Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
55/20.1PGALM.L1-5
Relator: PAULO BARRETO
Descritores: HOMICÍDIO
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: I - A culpa criminal encerra um juízo de censura sobre o agente por não ter cumprido o dever-ser ético, que lhe era exigido, de respeito pelos bens jurídicos protegidos pela lei penal, que, tendo em conta a sua essencialidade, são garantes da dignidade da pessoa humana. No caso concreto, estando em causa o direito à vida, o juízo de censura tem tendência a ser maior por via das expectativas comunitárias na validade e reforço da norma protegida. Tirar a vida a alguém de forma violenta, sem causas de desculpa (causas de justificação ou de exclusão) é, por si só, muito censurável, daí que a pena abstracta do crime de homicídio seja das mais elevadas dos ilícitos penais.
II - A medida da pena, segundo os seus fins, tem como limiar mínimo a expectativa comunitária na validade (e reforço) das normas penais violadas. É a protecção dos bens jurídicos, a prevenção geral positiva. No lado oposto, como limite máximo, a culpa do arguido, assenta num juízo de censura sobre a conduta do arguido reflectida no facto criminoso praticado. E, finalmente, o pendor da pena, mais acima ou mais abaixo, está na denominada prevenção especial, na reintegração do agente (que não tem tanto a ver com as suas relações sociais, se tem família ou amigos, mas sobretudo se é expectável que seja um cidadão fiel ao direito). Se são mínimas as exigências de prevenção especial, a medida da pena baixa; e sobe quando são maiores tais exigências.
III - Não obstante os motivos subjacentes a estes ilícitos, o crime de homicídio é sempre um crime muito grave. Permitir que um condenado por um crime de homicídio doloso (embora eventual) não cumpra prisão efectiva, seria transmitir uma perigosa mensagem de benevolência, com claros prejuízos para a prevenção geral. A vida é um bem jurídico demasiado importante para que haja contemplações em situações de ofensa especialmente graves, como sucedeu no caso em apreciação. (Sumariado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório
No Juiz … do Juízo Central Criminal de ....., Tribunal Judicial da Comarca de ....., foi proferido acórdão a;
- Condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, als. h) e j), 22.º e 23.º, do C.P. na pena de cinco anos de prisão, absolvendo-se o arguido da demais qualificativa prevista no art. 132.º, n.º 2, al. e), do C.P..
- Condenar o arguido AA pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1 al. d), por referência aos arts. 2.º, n.º 1, al. m), 3.º, n.º 2, al. ab) e n.º 4.º, da Lei n.º 5/2006, de 23-02, na redação emergente da Lei n.º 50/2019, de 24-07, na pena de 1 (um) ano de prisão.
- Tendo em conta que as penas em apreço se encontram em situação de cúmulo jurídico, nos termos do art.º 77.º, do C.P. condena-se o arguido AA na pena única de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização cível formulado pelo demandante civil BB e em consequência:
- Condeno o demandado AA a pagar ao demandante:
a) - a título de danos não patrimoniais a quantia de €15.000 (quinze mil euros); - Sobre a quantia referida em a) são devidos juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da leitura da presente decisão até integral pagamento;
b) a título de dano patrimonial a quantia de €743,50 (setecentos e quarenta e três euros e cinquenta cêntimos); - Sobre esta quantia é devido juros de mora à taxa legal desde a notificação do pedido de indemnização à demandada e até integral pagamento – art.º 805.º, n.º 3, do C.C..
Para pagamento parcial da referida quantia deve ser imputada a quantia já depositada pelo arguido nos presentes autos, face à vontade manifestada pelo próprio.
- No mais absolve-se o demandado do pedido.
*
Inconformado, o arguido AA interpôs recurso, concluindo do seguinte modo:
“A. O Arguido vem condenado nos presentes autos, a uma pena única de 5 anos e seis meses, em cúmulo jurídico pela prática de um crime um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, als. h) e j), 22.º e 23.º, do C.P. e pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1 al. d), por referência aos arts. 2.º, n.º 1, al. m), 3.º, n.º 2, al. ab) e n.º 4.º, da Lei n.º 5/2006, de 23-02, na redação emergente da Lei n.º 50/2019, de 24-07, na pena de 1 (um) ano de prisão.
B. Entende contudo, o Arguido que o Tribunal a quo não ponderou devidamente os meios de prova produzidos nos autos e, adicionalmente, procedeu a incorreta aplicação da lei ao caso concreto.
C. Em primeira linha, a audiência realizada no passado dia 06.07.2021 padece de nulidade insanável, nos termos do artigo [...], porquanto resultou demonstrado que o acórdão sub judice apenas se monstra assinado dia 07.07.2021.
D. Ou seja, na audiência em causa não existia ainda acórdão validamente proferido, o que, nos termos da jurisprudência citada equivale a nulidade insanável que pelo presente se argui, nos termos e para os efeitos dos artigos 321.º, n.º 1, e 87.º, n.º 5, ambos do CPP.
E. Ainda que assim não se entenda, nos termos do artigo 411.º, n.º 1, al. b), do CPP apenas a partir da data do depósito do acórdão estaria o Arguido em condições de recorrer da decisão, começando aí a contar-se o prazo para o efeito.
F. Nos termos do artigo 107.º-A, c) do CPP é admitida a prática do ato nos três dias úteis subsequentes ao termo do prazo, mediante o pagamento de multa, o que efetivamente o Arguido realizou, devendo por isso ser admitido o recurso interposto.
G. O Arguido como já teve oportunidade de referir arrepende-se dos factos por si praticados, tendo os confessado e, igualmente, pedido desculpa ao Assistente, e, na tentativa de o compensar procedeu ao depósito nos autos de valor destinado a compensar os danos patrimoniais e não patrimoniais por este sofridos.
H. Entende o Arguido, em face da redação do ponto 3 dos factos provados que esta merece alteração, o qual deverá passar a ter a seguinte redação: “Ao longo do relacionamento que o arguido manteve com CC este teve conhecimento através dos relatos de CC e de seus pais, de ameaças, perseguições, e desentendimentos entre CC e o assistente, bem como da personalidade controladora e perigosa relatada por CC e pelos seus pais ao arguido, e ainda da denúncia de CC de factos que originaram um inquérito em que o assistente surge como denunciado e que foi classificado como de violência doméstica – vide emails e mensagens trocados entre CC e o assistente a fls. 440-457 e 1325-1364”
I. Com efeito, resulta dos elementos de prova juntos aos autos que o Arguido tinha conhecimento não apenas dos episódios de violência mas igualmente de outros factos relativos à personalidade do Assistente e a atos por este praticados que influem na compreensão do estado emocional do Arguido no momento da prática dos factos.
J. Em concreto, permitem concluir e fundamentar, nos termos indicados nas alegações a alteração da matéria de facto constante do ponto 3 os seguintes elementos (i) depoimento de CC prestado nos autos (ficheiro ....., minutos 40:57-41:25, 40:13-40:48, 22:23 – 24:00; 25:21-26:34; 37:16-37:33), (ii) depoimento de DD (ficheiro: ....., minutos 22:31-23:51, 4:22-5:05; 13:52-14:27; (iii) declarações do Assistente (ficheiro ....., minutos 22:05-22:22)
K. De igual forma, o ponto 4 dos factos provados deve ser alterado, passando dele a constar o seguinte: No dia 12.01.2020, por CC e os seus pais temerem que o Assistente voltasse a agredir a CC durante a entrega das crianças na residência desta sita na Rua ....., esta pediu ao Arguido que este estivesse presente no momento da entrega das crianças ainda que oculto, tendo este acedido ao pedido, não tendo, naquela altura, ocorrido qualquer problema ou questão existido qualquer situação de conflito nesse momento”
L. A presença do Arguido naquele dia, as motivações para o efeito e o pedido de CC, todos elementos que importam a modificação da decisão consta dos seguintes elementos: (i) depoimento de CC prestado nos autos (ficheiro ....., minutos 22:24-23:45, 54:45-55:50), (ii) depoimento de DD (ficheiro: ....., minutos 11:26-11:59).
M. De igual forma, o ponto 11 da matéria de facto provada deverá ser alterado, passando dele a constar o seguinte: “De seguida e no trajeto que efetuou em direção à casa de CC, após sair da estação de serviço, encontrou nas imediações de casa de CC, o veículo propriedade daquela e encetou uma perseguição à viatura”.
N. Os factos relativos à perseguição movida pelo Assistente ao Arguido, o contexto e a natureza deste constam dos seguintes elementos constantes do processo: (i) declarações do Assistente (ficheiro ....., minutos 0:31-2:12, 12:46-14:47, minutos 1:22:55 – 1:26:48 / ficheiro ....., minutos 1:22:55 – 1:26:48); (ii) depoimento de DD, (ficheiro ....., minutos 11:26-11:59, 4:22-5:04); depoimento prestado por CC (ficheiro ....., minutos 22:24-23:45; 54:45-55:50, 58:06-01:01:19; 10:28-11:15; 25:11-26:34; 01:04:47-01:06:42 / ficheiro ....., minutos 11:55 – 16:25); declarações de EE (ficheiro ....., minutos 9:10-10:20; 11:46-12:08); declarações da Inspetora FF (ficheiro ....., minutos 09:05-10:27) P. E, bem assim, dos seguintes elementos documentais: fls. 481, 482, 483, 485, 486, 318, 472-476, 482-486, 470, 469, 325-329; 467;
O. De igual forma o ponto 12 dos factos dados como provados deve ser alterado, passando dele a constar o seguinte: “Em face disso e sabendo que era o Arguido que conduzia a viatura, decidiu encetar perseguição que terminou apenas quando o Arguido entrou no parque de estacionamento da referida esquerda da PSP, regressando a casa, sita na Rua ....., artéria onde estacionou o veículo por si conduzido” - A alteração em causa visa descrever, de forma fáctica, com os elementos constantes dos autos, os termos e as condições em que o Assistente perseguiu o Arguido na madrugada dos factos.
P. Corroboram a alteração a afetuar os seguintes meios de prova: (i) declarações de CC (ficheiro ....., minutos 01:04:47-01:06:42; 1:06:49-1:06:55; 20:15-22:04; 8:17-9:18; 1:03:44 – 1:04:45); Declarações do Assistente (ficheiro ....., minutos 1:36:22-1:37:20; 1:34:29- 1:36:15); depoimento de GG (ficheiro ....., minutos 30:23 - 31:51); declarações de DD (ficheiro ....., minutos 19:26-20:35; 20:35 – 21:07); depoimento do Agente HH ([ficheiro ....., minutos 00:25 – 02:03; 06:55 – 07:32); e os seguintes elementos documentais: fls. 449, 1325-1364; 322, 323, 106, 1120, 326, 327, 467,
Q. Por igualmente ser relevante para a correta compreensão dos factos neste processo, torna-se igualmente imperioso alterar a redação do ponto 15 dos factos dados como provados, passando dele a constar o seguinte: “O arguido e CC, que se encontravam ansiosos e receosos com os sucessivos factos ocorridos naquele dia relacionados como Assistente, permaneceram a conversar na habitação da mesma sobre os factos ocorridos até cerca das 3h00 da manhã, altura em que arguido decidiu sair de casa munido de uma faca de cozinha que retirou da cozinha de CC”.
R. A alteração em questão visa, em primeira linha demonstrar o estado de ativação emocional em que o Arguido se encontrava, conforme melhor explicitado nas Alegações, resultando a alteração peticionada dos seguintes elementos constantes do processo: depoimento de DD (ficheiro ....., minutos 21:24-21:48); depoimento CC (ficheiro ....., minutos 14:08-15:46; 9:18-12:52; 1:02:15-1:05:34; :08:00 – 1:08:43); e dos seguintes elementos documentais: fls. 1325-1364
S. De igual forma, deverá ser alterado o teor do ponto 17 dos factos provados, passando dele a constar o seguinte: “Após a aquisição do tabaco o arguido decidiu deslocar-se até à rua ....., munido com uma faca da marca ....., com cabo em madeira de 11,8cm e lâmina de gume afiado com 12,2cm de comprimento de que se tinha munido em virtude de temer ser surpreendido pelo Assistente, tendo, na deslocação até ao local, conjeturado furar os pneus do veículo do Assistente para que este não pudesse encetar nova perseguição, ideia que abandonou quando chegou ao local”
T. A alteração em causa é relevante para que se traduza, de forma fiel, os motivos e fundamentos de o Arguido se munir com uma faca e ainda o propósito da deslocação do Arguido à rua do Assistente, os quais são corroborados pelos seguintes elementos de prova: (i) Arguido (ficheiro ....., minutos 23:52-25:55; 29:34-32:23 / ficheiro ....., minutos 26:24-27:44); depoimento de CC (ficheiro ....., minutos 25:11-26:34; 01:04:47- 01:06:45; 01:04:47-1:05:40; 39:48-41:26); depoimento DD (ficheiro ....., minutos 4:22-5:05; 19:26-20:35; 13:18-14:40);
U. De igual forma, o ponto 19 dos factos dados como provados, deverá ser alterado no sentido de passar a ter o seguinte conteúdo: “Entretanto, a vítima que estava à varanda a fumar com EE, sua companheira, ao aperceber-se de uma viatura branca que circulada nas imediações de sua casa – e sem que tenha reconhecido de imediato que o referido carro pertencia a CC – desceu para a rua a dirigiu-se no sentido em que se encontrava o veículo conduzido pelo Réu na parte inferior descendente da rua”.
V. As alterações visadas, conforme explicitado nas Alegações, visam tornar claro a perceção do Assistente quanto à presença do Arguido e a sequência de factos que se seguiu, nomeadamente a descida do Assistente para rua e consequente confronto como Arguido. As alterações da matéria de facto, fundam-se no seguinte: (i) depoimento de EE (ficheiro ....., minutos 14:34-19:24; 1:44:24-1:44:54; 24:42-24:51); depoimento assistente (ficheiro ....., minutos 24:45 – 27:55, 28:19-29:04); depoimento Prof. II (ficheiro ....., minutos 0:39-1:18; 2:36-7:20; 47:24-48:46; 21:06-29:02); E dos seguintes elementos documentais: fls. 287, 1371-1411;
W. De igual forma, o ponto 20 da matéria de facto dada como provada deverá passar a ter a seguinte redação: “O arguido AA ao visualizar BB na via pública, e sem motivação concretamente apurada, dirigiu o veículo por si conduzido na direção do corpo daquele que se encontrava a deslocar-se no sentido descendente da rua”.
X. A alteração da matéria de facto, tal como melhor explicitado nas alegações, visa torna claro e percetível o estado do Arguido no momento da prática dos factos e, bem assim, os termos em que ocorreu o sobredito atropelamento. A alteração em causa funda-se nos seguintes elementos de prova: declarações do Arguido (ficheiro ....., minutos 31:26-33:25); depoimento JJ (ficheiro ....., minutos 1:14:54 - 1:18:29); (i) depoimento de EE (ficheiro ....., minutos 14:34-19:24; 1:44:24-1:44:54; 24:42-24:51); depoimento assistente (ficheiro ....., minutos 24:45 –27:55, 28:19-29:04); depoimento Prof. II (ficheiro ....., minutos 0:39-1:18; 2:36-7:20; 47:24-48:46; 21:06-29:02); e prova documental junta aos autos: fls. 1412 e ss; 129; fls. 287, 1371-1411
Y. De igual forma, o ponto 21 da matéria de facto provada, deve ser alterado, passando dela a constar o seguinte: “O arguido imprimiu velocidade não concretamente apurada ao veículo que tripulava, mas cujo máximo foi inferior a 40 km/h”.
Z. A alteração visa tornar clara a velocidade a que o Arguido conduzia o veículo no momento da prática dos factos, derivando a prova dos factos em causa baseia-se no seguinte elemento documental constante de fls. 1371-1411.
AA. O ponto 22 da matéria de facto deve passar a apresentar a seguinte redação: Ato contínuo, e quando o arguido inverteu o sentido da marcha, passou junto ao assistente e saiu do seu interior, com o propósito de verificar a necessidade de prestação de auxílio ao assistente” sendo igualmente eliminada a alínea e) dos factos não provado.
BB. As motivações expressas nas alegações tiveram por base os seguintes elementos: depoimento EE (....., minutos 35:26-38:35; 51:36- 52:52); declarações do Arguido (....., minutos 4:13-6:31); E elementos documentais: fls. 89-90; 669;
CC. De igual forma, o ponto 23 da matéria de facto provada, deverá passar a ter a seguinte redação: Aproximou-se da vítima, que estava no chão a tentar se levantar tendo-se ambos envolvido em contenda física, no decurso da qual, o arguido desferiu um golpe com a faca nas costas e dois nas pernas da vítima
DD. A alteração em causa visa, nos termos explicitados nas Alegações detalhar e demonstrar o concreto contexto em que ocorreram os golpes de faca desferidos pelo Arguido, baseando-se nos seguintes elementos de prova: depoimento do perito (ficheiro ....., minutos 8:14-10:21); declarações do Arguido (ficheiro ....., minutos 5:40-6:31); e documentais: fls. 647-650; 496-499, 116-116v, 292-295, 296-302,30, 31, 736-738, 343, 353-360, 272v, 272.
EE. Também a matéria de facto constante do ponto 24 deverá ser alterada no seguinte sentido: “O ofendido BB com o propósito de que AA não abandonasse ao local, ainda conseguiu retirar as chaves da ignição do caro de CC e atirou-as para o mato”.
FF. Fundamentam as alterações os seguintes elementos probatórios: declarações perito Sr. Perito o seguinte (ficheiro ....., minutos 13:13-15:28; 21:18-22:05); e os elementos documentais: fls. 339-351, 353-369 e 647-650, 84, 85;
GG. Os pontos 29 e 32 deverão passar a ter a seguinte redação: 29 - Ao agir da forma descrita o arguido AA quis e representou provocar danos na integridade física do Assistente; 32 - O arguido AA agiu sob influência de stress disruptivo, que lhe causou uma falha na ponderação das consequências inerentes ao processo de tomada de decisão, tendo os eventos em causa espoletado a reativação de memórias traumáticas do seu passado, comprometendo a sua capacidade de raciocínio e de adotar, em concreto, atitude diversa da praticada.
HH. A fundamentação da alteração da factualidade em causa resulta, além do referido em sede de alegações, nos seguintes elementos documentais: fls. 1412 e ss; 634-640; 666; 668-669; 73.
II. O ponto 31 da matéria de facto deverá passar a ter a seguinte redação: O Arguido não representou que a faca apreendida nos presentes autos era passível de configurar arma branca”, sendo a alteração fundamentada no depoimento de CC (ficheiro ....., minutos, 1:08:53-1:10:02; e
JJ. De igual forma, quer pelo que se referiu a respeito deste ponto concreto dos Factos Provados, quer pelo que se referiu quanto ao ponto 17., 22., 23. e 24., deverá igualmente alterar-se a matéria de facto não provada, passando a sua alínea e) (“O arguido desferiu os golpes com a faca no corpo do assistente da forma dada como provada por temer pela sua vida e com o intuito que o assistente o libertasse”) a integrar os pontos da matéria de facto dada como provada
KK. Alteração baseada em depoimento CC (ficheiro ....., minutos 1:08:53 – 01:10:02), depoimento arguido (ficheiro ....., minutos 24:04 – 26:17) e das declarações prestadas pelo Arguido (ficheiro ....., minutos 24:04 – 26:17), além do que se referiu em sede de motivação de recurso.
LL. Deverá ser julgado não provado o facto 34, com base no depoimento de DD (ficheiro ....., minutos 3:32-4:22, bem como dos factos provados 54 e 55.
MM. A respeito dos pontos 36, 38 e 39, deverá considerar-se, conforme exposto na motivação do recurso que tais factos não podem ser dados como provados, em virtude, nomeadamente, dos elementos documentais juntos aos autos (relatório pericial de fls. 498/499, documento junto a fls. 878).
NN. Na verdade, não existem elementos de prova juntos aos autos que permitam concluir por qualquer sintomatologia relativa a depressão, síndrome pós-traumático, rebate estético ou lesão psicológica do Arguido. Aliás, o Tribunal a quo desconsiderou a ausência de quaisquer “queixas” a nível psicológico no relatório pericial junto (fls. 498), bem como o facto de o médico que elabora o documento de fls. 878 nem sequer ter qualquer especialidade, não sendo os factos contantes daqueles pontos da matéria de facto corroborados por outros elementos de prova juntos ao processo, especialmente atendendo ao juízo técnico que importa para concluir no sentido em que o Tribunal a quo concluiu.
OO. A parte final do ponto 36 e dos pontos 38 e 39 da matéria de Facto Provada deverão passar a integrar, desta forma, a matéria de facto dada como “não provada” com a seguinte formulação:
O Assistente sofre de depressão”;
“Em consequência da conduta do arguido o assistente apresenta sintomas compatíveis com síndrome pós-traumático que obrigam o mesmo a ter acompanhamento médico”; “As cicatrizes presentes no corpo do assistente e resultantes das lesões causadas pelo arguido provocam uma diminuição na autoestima do assistente que não se sente confortável com o seu aspeto físico”.
PP. Deve ainda ser aditado à matéria de facto dada como provada que: “Até à prática dos factos em discussão nos presentes autos, o Arguido, apesar do que lhe foi transmitido por CC e pelos pais desta, desenvolveu uma atitude de acalmar os ânimos e de minimizar as tensões existentes entre CC e pais desta e o Assistente”.
QQ. Devendo, igualmente, ser acrescentado ao ponto 8 da matéria de facto dada como provada o seguinte: “ponto 8 da matéria de facto dada como provada, o qual possui o seguinte teor: “Tendo o Arguido, respondido «diz ao teu pai para bloquear o número ou assim» (cfr. fls. 467)”.
RR. As alterações referidas nos dois pontos anteriores, conforme explicitado na motivação do recurso, devem-se à análise dos seguintes elementos probatórios constantes dos autos: depoimento de CC (ficheiro ....., minutos 50:16-51:24) e documento de fls. 467;
SS. Adicionalmente, deverão ser introduzidas as seguintes alterações na matéria de facto:
- deve ser suprimido do ponto 20. dos Factos provados a referência a “despeitado e movido por sentimentos de vingança”.
- deve ser aditado à matéria de facto dada como provada o seguinte: “O Arguido, no seguimento da perseguição realizada pelo Assistente na madrugada de 13.01.2020, apresentava-se nervoso e receoso, não tendo manifestado quaisquer sentimentos de vingança, zanga ou irritação”.
- deve igualmente ser aditado à matéria de facto dada como provada o seguinte: “O Arguido, na sequência do envio da mensagens referida no ponto 5 da matéria de facto provada não expressou qualquer sentimento de despeito ou de vingança para com o Assistente”.
TT. Conforme resulta da motivação, a alteração dos concretos pontos suscitados no artigo anterior resulta, além da ausência de qualquer fundamentação do acórdão recorrido quanto aos meios de prova de onde alcançou a conclusão sobre o estado de espírito e dos sentimentos e intenções do Arguido, dos meios de prova produzidos no processo, nomeadamente, depoimento de CC (ficheiro ....., minutos 2:24-5:04; ficheiro ....., minutos 10:28-10:50; (ficheiro ....., minutos 12:05-12:52; ficheiro ....., minutos 1:02:33-1:03:44); depoimento de DD (ficheiro ....., minutos 19:26-20:35; ficheiro ....., minutos 21:07-21:13).
UU. Deve igualmente ser aditada à matéria de facto dada como provada o seguinte: “Ao jantar do dia 12.01.2020 e em momentos subsequentes, o Assistente encontrava-se a consumir cervejas, tendo assumido ter consumido pelo menos cinco cervejas”.
VV. A realidade acabada de descrever, conforme resulta da motivação do recurso, alicerça em elementos de prova juntos aos autos, nomeadamente documentos de fls. 200, 669 e declarações do Assistente (ficheiro ....., minutos 10:38-11:07).
WW. Por outro lado, deverá igualmente aditar-se à matéria de facto dada como provada que “Após o atropelamento e no contexto da contenda física entre assistente e arguido, o arguido gritou por socorro”.
XX. O facto referido no ponto anterior deriva, além do que é explanado na motivação do recurso, dos elementos documentais de fls. 666 e 667 dos autos.
YY. Deverá igualmente aditar-se à matéria de facto dada como provada que “Na sequência dos factos ocorridos, o Arguido entregou-se voluntariamente e manifestou vontade em colaborar com a Justiça”, o qual deriva, entre outros elementos melhor explanados na motivação, do elemento documento junto a fls. 73 dos autos.
ZZ. Deve ainda ser aditada à matéria de facto dada como provada o seguinte: “Após os factos ocorridos, o Arguido apresenta problemas ao nível do sono (insónia inicial e intermédia, com dificuldade em conciliar posteriormente o sono), do apetite, com perda de peso, bem como alterações ao nível da energia e líbido, encontrando-se em sofrimento face ao arrependimento pelo cometimento dos factos e dos danos causados ao assistente”, sendo tal factualidade, conforme melhor explicitado na motivação, do elemento documental junto a fls. 1412.
AAA. Estabelece o artigo 131.º, do CP que “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos”. Conforme sublinhado quer na doutrina, quer na jurisprudência, o crime de homicídio exige a verificação de dolo, ou seja, da intenção de matar presente na atuação do arguido que comete o facto.
BBB. Tal é assim, desde logo, para distinguir as situações de homicídio previstas no artigo 131.º do CP, das demais situações de homicídio por negligência, nos termos e ao abrigo do artigo 137.º do CP.
CCC. Sucede que, no caso em apreço, não se logrou demonstrar, conforme se destacou anteriormente, que o Arguido tivesse atuado com o objetivo ou o propósito de tirar a vida ao Assistente.
DDD. Para que fosse necessário concluir pela existência de intenção homicida era necessário analisar cada um dos meios utilizados para atentar contra a vida do Assistente e deles concluir que, a forma como o Arguido os utilizou, era de molde a produzir a morte do Assistente, o que não sucedeu.
EEE. Não resultou demonstrado que um veículo, com as características do veículo presente nestes autos circulando a uma velocidade inferior a 40 km/h fosse apto a provocar a morte do Assistente. Simplesmente: não existe qualquer meio de prova, deste género careado para os autos que demonstre a apetência do meio para o resultado que é imputado.
FFF. De igual maneira, a forma como a faca que o Arguido utilizou para o cometimento dos factos em discussão (atingindo, como se viu, a zona da omoplata e das penas do Arguido) não foi de molde a causar qualquer perigo para a vida do Assistente, desde logo porque, em concreto, não se logrou demonstrar que a os golpes produzidos pela faca tenha penetrado qualquer das cavidades que alojam órgãos vitais, nomeadamente a cavidade torácica e o crânio.
GGG. Como ficou demonstrado na motivação, a forma como qualquer dos dois meios foi utilizado não tinha a virtualidade nem se demonstrar a intenção homicida, nem de por em risco a vida do Assistente, sendo incorreto caracterizar que o resultado morte só não ocorreu por motivos alheios à vontade do Arguido.
HHH. Na verdade, se o Arguido, como já se referiu anteriormente, pretendesse matar o Assistente teria imprimido maior velocidade no veículo por si conduzido ou teria, por exemplo, esmagado o corpo do Assistente contra os carros que se encontravam estacionados naquele local ou aproveitados para passar por cima do corpo do Assistente após o atropelamento. Tal como teria utilizado a faca que consigo tinha para fins de defesa, para golpear o Assistente em zonas aptas (como o pescoço) a provocarem a morte do Assistente e não atingiria as pernas e a omoplata (osso resistente e por isso impenetrável com uma faca). De igual forma, se o Assistente alega que o Arguido o atacou com a faca quando estava de costas, o Arguido teria aí a oportunidade de "ouro" para atacar livremente o Assistente em zona apta a causar a morte deste, o que não sucedeu.
III. É contraditória a conclusão da intenção homicida quando está documentado que o Arguido gritou socorro no meio da rua, chamando a atenção para si e para o que se encontrava a realizar naquele momento. Também no mesmo sentido, note-se que se fosse efetivamente vontade do Arguido matar o Assistente não teria abandonado o local até ter realizado tal desiderato, resultando dos autos que o Assistente nunca perdeu os sentidos ou ficou em situação de incapacidade de movimentação (veja-se o extrato da conversa com o INEM - fls. 664-670).
JJJ. Ante a prova produzida, a atuação ilícita do Arguido, por si confessada e reconhecida, apenas poderá integrar a prática, efetiva, de um crime de ofensas à integridade física simples, previsto e punido nos termos do artigo 143.° do CP.
KKK. Ainda que se verificassem algumas das circunstâncias qualificadoras do crime de ofensa à integridade simples, previsto e punido, nos termos do artigo 146.°, n.º 1, al. a), do CP, (por remissão do n.º 2 para o regime do artigo 132.º, n.º, 2, do CP, que, em concreto não se verifica) a moldura penal máxima a aplicar seria de 4 anos, não existindo, em qualquer caso, fundamento para a aplicação máxima da pena ali prevista.
LLL. Assim, em caso de condenação do Arguido pelo crime de ofensa à integridade, (ainda que qualificada), estariam reunidos os requisitos para a suspensão da pena (art. 50.° CP).
MMM. Ainda que assim não se entendesse - o que não se concede - então sempre se teria de concluir a inexistência de dolo direto do Arguido mas, somente, que este tivesse representado a morte do Arguido como consequência da sua atuação (não como certo, nem como necessário, nem como querido o resultado) e, dessa forma, que a tentativa o foi a título de dolo eventual (art. 14.°, n.º 3, do CP): ainda que tal não equivalha a qualquer reconhecimento de que a intenção ou pelo menos o resultado representado fosse o falecimento do Assistente.
NNN. Na verdade, conforme explicitado na motivação, a forma de utilização dos meios em causa (carro e faca), o facto de nunca ter "aproveitado" oportunidades de "superioridade" que foi tendo, o facto de ter gritado por socorro no meio da rua, revelam necessariamente que o Arguido nunca colocou em risco a vida do Assistente, designadamente através do atingimento de qualquer órgão vital ou de qualquer cavidade de alojasse órgãos vitais, não atuando de forma ou com a intenção querida e motivada de causar a morte do Assistente.
OOO. A qualificação do dolo como eventual tem impacto desde logo, na suscetibilidade de considerar a prática do crime de tentativa de homicídio qualificado na medida em que, conforme se destaca da doutrina e da jurisprudência citadas, tal é incompatível com a intensidade do dolo exigido para a punição (dolo direito ou necessário).
PPP. Desta forma, ante a não verificação dos requisitos legais apenas se poderia condenar o Arguido pelo crime de homicídio simples, na sua forma tentada, o que implicaria, necessariamente, a redução da pena aplicada e a sua sujeição ao regime da suspensão previsto no artigo 50.° do CP, ainda que sujeito ao regime de prova.
QQQ. Mas, ainda que assim não se entendesse - o que não se admite, nem se concebe, nem por isso estariam verificadas as condições para qualquer qualificação do homicídio, nos termos do artigo 132.° do CP, conforme de se deixou demonstrado na motivação.
RRR. O arguido foi condenado pelo Tribunal a quo que considerou verificadas as circunstâncias qualificativas das alíneas h) e j) do artigo 132.° do CP. Sucede, contudo, que além de não se verificarem as circunstâncias qualificativas das alíneas em causa, não logrou o Tribunal a quo fundamentar o preenchimento da cláusula geral presente no n.o 1 do artigo 132.º CP.
SSS. As circunstâncias qualificativas do artigo 132.°, número 2, não são de funcionamento automático, servindo apenas como meros indícios e presunções de especial perversidade/censurabilidade referidas no número 1, não dispensado a análise e a subsunção do caso concreto à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade (desde logo para que não se transforme o homicídio qualificado no homicídio tipo ou regra).
TTT. O Tribunal a quo limitou-se, tabelarmente a concluir pela existência, no caso em apreço, pelo preenchimento das alíneas h) e j) do n.º 2 do artigo 132.° do CP, dando por demonstrado o que pretendia demonstrar, ou seja: dando como demonstrada a especial censurabilidade da atuação por verificação das circunstâncias qualificativas, como resulta patente do texto do acórdão sub judice.
UUU. Desta forma, ante a ausência da devida ponderação quanto à especial censurabilidade do ato, o Arguido apenas poderá ser condenado pelo crime de homicídio simples (131.° do CP), na forma tentada, impondo-se a redução da medida da pena e, a aplicação ao Arguido do regime da suspensão previsto no artigo 50.° do CP.
VVV. Ainda que assim não se entendesse, nem, por isso deixaria de não estar verificada a circunstância qualificativa presente no 132.º, n.º 2, alínea h), do CP, desde logo porque o juízo qualificativo não pode ser feito em abstrato: está em causa na circunstância qualificativa a utilização desse meio com especial censurabilidade ou perversidade.
WWW. A qualificação é aliás contraditória como facto de se ter dado como provado que o Arguido não tinha intenção de encontrar o Assistente, nem tinha intenção de, no momento em que se desloca à artéria onde esta residia, de lhe tirar a vida, nem que era expetável encontrar o Assistente na rua àquela hora.
XXX. Por outro lado, a qualificativa exige, como salienta a doutrina e a jurisprudência citadas, além de uma aturada ponderação sobre os meios, o facto de apanhar desprevenida a vítima. Resultou demonstrado que o Arguido formulou a sua intenção em meros instantes (num contexto de stress disruptivo, limitativo da capacidade de conformação e atuação do Arguido), quando avistou o Assistente, sendo que este último se apercebeu da presença do Arguido, não tendo sido apanhado de surpresa nem surpreendido (sendo que se dirigiu, contra as regras estradais na direção do local onde o veículo do Arguido se encontrava).
YYY. Conforme ficou demonstrado - apoiado nos ensinamentos da jurisprudência e da doutrina citadas -, considera-se, essencial, por forma a que haja o enquadramento no âmbito do homicídio qualificado, que o Arguido tenha plena e total capacidade de executar o facto em consciência e que os meros impulsos ou instintos não revelam para efeitos de uma culpa "qualificada",
ZZZ. Tudo sem esquecer que a especial censurabilidade não resiste, em todo o caso, ao contexto vivido pelo Arguido: motivado por um clima emocional particularmente intenso, com despertar das memórias traumáticas do Arguido e sob stress disruptivo, agindo de forma não premeditada, mas instintiva (o que já deixou lamentado e aqui reitera).
AAAA. Por outro lado, resulta igualmente indemonstrada a circunstância qualificativa do art. 132.°, 2, alínea i), do CP, desde logo porque, como se notou na motivação do recurso, todas as definições do conceito insidioso avançadas, servem precisamente para se demonstrar a completa inexistência de insidia nos presentes autos.
BBBB. Conforme se deixou demonstrado, o Assistente estava na posse das suas faculdades e consciente, tanto assim que se debateu com o Arguido, sendo que os golpes de faca, como se demonstrou igualmente ocorreram no contexto da contenda física, destacando-se ainda que o Assistente não foi surpreendido pela presença do Arguido naquele momento, sabendo de antemão da sua presença, não tendo sido apanhado de surpresa, de forma insidiosa ou "à traição".
CCCC. Tudo sem esquecer que, conforme resulta da jurisprudência citada, a insidia reporta-se ao momento do início da execução do crime (que, recorde-se, é imputado ao atropelamento), o que no caso concreto afasta totalmente a qualificativa em causa.
DDDD. Merece ainda a devida consideração, o facto de não ser o Arguido que vai à procura do Assistente e o encontra: é o Assistente que tendo a perceção da presença do Arguido na sua rua, desce para a via pública e se dirige, inicialmente, para o local onde se encontrava estacionado o veículo do Arguido. Por outro lado, o Assistente tinha consciência da presença do Arguido, tanto que assume a existência de contenda física (dada como provada), tendo por isso noção clara da presença do Arguido: não caiu numa cilada, não foi apanhado de surpresa, não foi atraído por um engodo, nem foi apanhado "à traição".
EEEE. Nunca esteve em causa, nem resultou demonstrado, qualquer recurso a emboscadas ou estratagemas, preparadas e estudadas antecipadamente pelo Arguido, a que se soma a formulação instantânea do ato criminoso (não havendo premeditação ou ponderação sobre os meios e forma de execução).
FFFF. Tudo sem esquecer que a faca foi utilizada como instrumento de defesa no contexto da contenda física existente com o Assistente, não havendo qualquer propósito associado de provocar a morte, mas apenas de defesa, atento o contexto e os relatos que foram sendo feitos ao Arguido quanto à perigosidade do Assistente.
GGGG. Novamente apelando ao que já foi referenciado: não basta a putativa verificação da circunstância qualificativa: é necessário demonstrar a concreta especial censurabilidade e perversidade, que terá necessariamente superior à que se verificaria no contexto de uma tentativa de homicídio simples, sob pena de subversão do sistema, passando a ser a regra, aquilo que deveria ser a exceção.
Além do mais: conforme abundante doutrina e jurisprudência citadas, a utilização de faca (ou mesmo de outros objetos cortantes) não é circunstância qualificativa do crime de homicídio (e, portanto, também não da respetiva tentativa).
HHHH. Mesmo que se tentasse ir por via da desproteção da vítima (que não pela via da "surpresa" ou insídia), tal não quadraria nos requisitos que têm sido afirmados pela doutrina e pela jurisprudência para o preenchimento da circunstância qualificadora, a que se soma a manifesta contradição com a matéria de facto apurada: o Assistente entrou em contenda física com o Arguido não havendo como qualificar qualquer situação de desproteção ou de inferioridade do Assistente naquele momento.
IIII. Assim, resta, então aplicar ao Arguido pena pela prática do crime de homicídio simples, na sua forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 22.° e 23.° do CP - isto sem prejuízo do que anteriormente foi referido quanto à subsunção dos factos em apreço ao crime de ofensa à integridade simples, previsto e punido pelo artigo 143.° do CP.
JJJJ. Independentemente do enquadramento a dar (homicídio simples na forma tentada ou ofensa à integridade física), impõe-se a aplicação ao Arguido de pena inferior a três anos e meio de prisão, ainda que suspensa na sua execução, nos termos do artigo 50.° do CP.
KKKK. Ainda que este Venerando Tribunal viesse a considerar a manutenção do enquadramento dos factos na tentativa de homicídio qualificada na forma tentada - o que não se concede - ainda assim, e ao contrário do Tribunal a quo, não poderá deixar de ser considerada a clara proibição de dupla valoração das circunstâncias agravantes do artigo 132.° do CP: ou seja, utilizar as mesmas circunstâncias para qualificar e para medir o grau de culpa do Arguido, sob pena de violação do princípio constitucional do ne bis in idem.
LLLL. Por outro lado, resulta do artigo 40.° do CP, que a aplicação das penas deve visar não apenas a proteção dos bens jurídicos, mas igualmente a reintegração do agente na sociedade, traduzindo a culpa, em qualquer circunstância, a medida da pena a aplicar.
MMMM. Note-se ainda que, conforme defendido na motivação, a condenação em pena de prisão (no caso especialmente agravada, porque efetiva), terá de ter em consideração não apenas a medida da culpa do Arguido, mas igualmente a tutela da comunidade jurídica (até onde essa tutela seja necessária). A efetividade da pena de prisão é excluída sempre que o agente criminoso não represente um perigo para a comunidade.
NNNN. Quanto à culpa do Arguido - e tomando em conta o que foi referido em sede de motivação de facto e de direito - deve tomar-se em atenção que não resulta demonstrada qualquer intenção direta e necessária de causar a morte ao Assistente (sobretudo considerado a forma como os meios em causa foram utilizados), nem se podendo afirmar, com base no apurado, que tal se deveu a fatores estranhos ao Arguido já que este tinha o domínio de dois meios aptos a realizar esse fim e teve a "oportunidade" de utilizar ambos de uma forma que nunca colocou em risco a vida do Assistente, tendo aliás demonstrado na execução dos factos que tal não era a sua intenção, o que resulta reforçado do Arguido se ter - nas palavras de EE - a gritar "feito louco" no meio da rua a pedir socorro (se o Assistente alguma vez tivesse estado em risco de vida era expectável que fosse este a gritar e não o Arguido).
OOOO. O Arguido - repise-se - lamenta toda a factualidade ocorrida, os danos causados ao Assistente e a EE, e não coloca em causa que venha a ser punido nos presentes autos: pretende apenas que o grau de culpa e o consequente enquadramento jurídico da factualidade tenham em conta o que efetivamente ocorreu.
PPPP. Por reporte à culpa do Arguido, não poderá ignorar-se a circunstância em que os factos ocorreram naquela data, em particular o clima em que o Arguido viveu desde o dia 12.01.2020, numa sucessão de factos que vão desde o conjunto de provocações dirigidas pelo Assistente a CC, ao pai desta DD e que culminaram na perseguição que o Assistente efetuou ao Arguido naquela madrugada quando o Arguido se encontrava a chegar às imediações da casa de CC.
QQQQ. A sucessão de factos em causa foi constante até ao momento da prática (não ponderada ou idealizada) dos factos: desde as mensagens do dia anterior, passando pela perseguição (que, ainda que não se venha a dada como provada [o que não se concede], foi percecionada pelo Arguido como tal), pela ida à esquadra para apresentar queixa, pela conversa com o pai de CC, pela conversa em sequência com CC onde esta manifestou o receio com a escalada dos factos e com o novo trabalho que ia começar no dia seguinte. As provocações e perseguições sempre estiveram presentes e ativadas no Arguido, que em qualquer caso não esperava ter encontrado ­como resultou provado - o Assistente naquele dia e àquela hora;
RRRR. O Arguido esteve em constante clima de ativação psicológica dos factos, não tendo conseguido acalmar-se, relaxar, distrair a cabeça e o pensamento: a vivenciar os seus receios e os de CC, sendo que tendo estado sempre o Arguido à margem dos conflitos entre o Assistente e CC, foi arrastado para a situação diretamente pelo Assistente, temendo pela sua vida e pela escalada dos factos.
SSSS. O Arguido não se dirigiu - conforme, repise-se, ficou demonstrado - à rua do Assistente para "se vingar", para "ajustar contas" ou para "resolver problemas": fê-lo com a intenção confessada de verificar se o carro do Assistente estava no local e não seria alvo de nova perseguição. O Arguido confessou igualmente que ainda pensou em rasgar os pneus do Assistente mas abandonou a ideia ante a exposição do local.
TTTT. Por outro lado, os factos descritos nos pontos anteriores foram o culminar dos receios manifestado por CC e sua família quanto a comportamentos provocatórios, persecutórios e controladores do Assistente - sucessivamente repetidos ao Arguido que igualmente sabia do processo de violência doméstica relativo a alegadas agressões do Assistente a CC: este é o pano de fundo de elevado stress psicológico a que o Arguido esteve sujeito durante os meses anteriores.
UUUU. Dos meios de prova indicados na motivação resultou o juízo - técnico e científico da psicóloga forense - de que o Arguido viveu uma situação, quando confrontado com a presença do Assistente, de stress disruptivo que lhe toldou a capacidade de atuação de forma racional e orientada, com noção exata das consequências das suas ações, ativando, naquele momento, memórias traumáticas das quais, infelizmente o Arguido não é responsável e que dizem respeito a episódios de violência doméstica anterior e de ataques com arma branca na sua juventude.
VVVV. Todos estes factos a que se tem aludido devem ser tomados em consideração na medida da culpa do Arguido: este não agiu no pleno das suas capacidades cognitivas e emocionais. Se não tivesse ocorrido a sucessão de factos descritos e se o Arguido não estivesse sob intenso stress emocional, não teria atuado da forma como atuou naquela noite.
WWWW. Naquele momento - ao contrário do que é apanágio na sua vida - o Arguido teve uma reação que não é sua, com a qual não se identifica e com a qual não se revê, que não reflete os seus valores, a sua forma de agir, de pensar e de estar na vida.
XXXX. Além disso, devem ser ponderadas, devidamente, as demais circunstâncias ligadas ao Arguido e que influem - como demonstrado na motivação - na determinação da pena a aplicar: o Arguido tem pautado sempre a sua vida pela honestidade e pelo trabalho, estando social, familiar e profissionalmente integrado, não tem qualquer antecedente criminal, não tem quaisquer problemas com a Justiça e não tem quizilas ou conflitos com quer que seja e o episódio em causa nos presentes autos não representa a sua forma de atuar perante a vida e de inserção na sociedade, sendo por isso reduzidas as necessidades de prevenção do caso.
YYYY. Por outro lado: Arguido interiorizou o desvalor da sua conduta, demonstrou arrependimento, cumpriu sempre as medidas de coação impostas de forma exemplar e sem percalços, não existindo outros fatores que permitam concluir pela possibilidade de reincidência do Arguido (o que aliás nem foi dado como provado ou demonstrado nos presentes autos), tendo depositado à ordem dos autos a quantia que conseguiu recolher para compensar o Assistente pelos danos sofridos.
ZZZZ. A culpa não pode ser aferida por um juízo genérico e que desconsidere, em concreto, a real condição do Arguido.
AAAAA. Felizmente e como se demonstrou nos presentes autos, as consequências derivadas pelos atos do Arguido não apresentaram especial gravidade, não houve risco de vida do Assistente - que poucas horas depois saiu do hospital e ficou de baixa médica por período de apenas 8 dias. Ao nível das sequelas, e sem que exista rebate estético, o Assistente ficou com cicatrizes localizadas em zonas não comumente visíveis do seu corpo, que não causarão repulsa em terceiros que com ele se cruzem.
BBBBB. Felizmente para todos os envolvidos - e ao contrário do que sucede em várias decisões dos nossos tribunais (citadas na motivação) - não resultam consequências como necessidades de internamento prolongado, realização de cirurgias ou de operações médicas, de realização de fisioterapia ou de privação de membro ou função do corpo humano. Também esta dimensão deve ser ponderada na pena a aplicar ao Arguido.
CCCCC. Tal como deve ser ponderada a vontade do Arguido de compensar o Assistente, tendo procedido ao depósito nos autos de um valor de EUR 5.863,50 para compensação do Assistente (valor que reuniu com ajuda de familiares e amigos).
DDDDD. A moldura penal abstrata do crime de homicídio simples, na sua forma tentada, que vai de um ano, sete meses e seis dias e dez anos e oito meses de prisão. Para a sua determinação concreta, impõe-se a consideração de todas as circunstâncias anteriormente referidas, nomeadamente como circunstâncias atenuantes da pena, nos termos dos artigos 72.°, n.ºs 1, e 2, alíneas b) e c) do CPC e, necessariamente, para efeitos da determinação da medida da culpa (limite inultrapassável da pena) nos termos do artigo 71.° do CP.
EEEEE. Pelas razões expostas, entende o Arguido que lhe deve ser aplicada, em razão da medida da culpa, e da baixa intensidade do dolo (eventual), uma medida de prisão inferior a 3 anos.
FFFFF. Mesmo considerando a moldura pena abstrata aplicável, caso se conclua pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada, o Arguido entende que, ante o seu grau de culpa e o dolo revelado (eventual) é justa (na ponderação dos diversos elementos referidos) a aplicação de uma medida da pena até ao máximo de 4 anos.
GGGGG. Em qualquer dos casos, a pena em que o Arguido vier a ser condenado deverá ser suspensa na sua execução, sujeita ao regime de prova, nos termos do artigo 50.° do CP, porquanto se verificam os respetivos requisitos: o Arguido não tem antecedentes criminais, já cumpriu mais de um ano e sete meses de medidas de coação privativas de liberdade, estando a pagar a sua dívida para com a sociedade, não representa qualquer perigo real ou abstrato para a comunidade, não possui quaisquer sentimentos de vingança para com o Assistente ou quem quer que seja, goza de boa reputação pessoal, familiar e profissional, não faz do crime o seu modo de vida e contra todas as circunstâncias graves porque passou na juventude (morte do pai, esfaqueamento, violência doméstica) o Arguido seguiu e concluiu a sua formação e sempre trabalhou, incluindo em instituições de caridade (ponto 51 da matéria de facto provada).
HHHHH. Ou seja: o Arguido não é nem um marginal, tem uma família que o ama, que o apoia e lhe dá estrutura, não é "parasita" da sociedade: é alguém empenhado em construir um futuro melhor, não apenas para si, mas a comunidade onde se encontra inserido.
IIIII. Os factos em discussão nos presentes autos representam um percalço - com consequências gravosas, como o Arguido reconheceu - irrepetível na vida do Arguido.
JJJJJ. Saliente-se, igualmente, a postura do Arguido perante os factos cometidos: o Arguido pediu desculpa ao Assistente, publicamente, quer em sede de instrução, quer em sede de julgamento (aqui estendendo o pedido de desculpa igualmente a EE); o Arguido demonstrou arrependimento e confessou os factos essenciais em discussão nos presentes autos, quais sejam o atropelamento e os golpes de faca por si desferidos, discordando apenas do enquadramento fáctico apurado respeitante à dinâmica em que os factos ocorreram - ponto 57 da matéria de facto dada como provada.
KKKKK. O Arguido apenas pretende, neste momento, virar a página e seguir a sua vida, para desta forma, regressando ao exercício da profissão, poder efetivamente reparar a sua dívida à sociedade e pagar o remanescente dos danos em que vier a ser condenado ao Assistente (caso tal ocorra). Na verdade, a reparação de qualquer indemnização ao Assistente, além dos valores já constantes dos autos apenas poderá ser realizada se o Arguido estiver profissionalmente inserido.
LLLLL. Nenhuma razão existe - nem foi demonstrada - para ilidir a conclusão de que ameaça do cumprimento efetivo da pena não seja suficiente para que o Arguido se mantenha fiel e cumpridor ao Direito, como sempre o tinha sito até à data dos factos em discussão nestes autos.
MMMMM. O Arguido manifesta, em todo o caso, desde já, a sua concordância à execução de outras medidas acessórias que o este Tribunal considere relevantes, nos termos do artigo 50.°, n.º 2 e 52.° do CP.
NNNNN. O Arguido foi ainda condenado pelo Tribunal a quo pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.°, n.º 1 al. d), por referência aos arts. 2.º, n.º 1, al. m), 3.º, n.º 2, al. ab) e n.º 4.º, da Lei n.º 5/2006, de 23-02, na redação emergente da Lei n.º 50/2019, de 24-07, na pena de 1 (um) ano de prisão.
OOOOO. Conforme resulta da matéria de facto dada como provada, o Arguido quando se muniu da faca em causa e quando a utilizou, não representou que, pelas suas características, a faca verificasse os pressupostos para ser considerada uma arma branca, nunca tendo o Arguido medido a lâmina, nem se debruçado sobre as suas qualidades e características.
PPPPP. Tal nunca pensou o Arguido, quando dela se muniu, que viesse a utilizá-la. Conforme resultou dos factos adquiridos neste processo, o Arguido apenas no caminho para a rua onde reside o Assistente ponderou a sua utilização para esfaquear os pneus do carro daquele: até aquela altura o Arguido apenas queria ter um meio de defesa caso fosse surpreendido pelo Assistente, como ocorreu aquando da perseguição em causa.
QQQQQ. Resultou igualmente demonstrado que o Arguido quando utilizou a faca em causa, o fez no contexto da contenda física existente. Não representou o Arguido nunca a detenção de arma branca e, sobretudo, não representava ter de utilizá-la como meio defensivo naquelas circunstâncias.
RRRRR. Desta forma, o Arguido encontrava-se em situação de erro sobre as circunstâncias de facto (art. 16.° do CP), na medida em que, conforme se referiu o Arguido nunca pretendeu munir-se de qualquer arma branca, nem representou que estivesse a fazê-lo quando dela se apossou. Repete-se: não existe qualquer facto nos autos que leve a concluir que o Arguido tinha conhecimento da real dimensão da faca ou sequer dos critérios legais para a qualificação da faca como arma branca, não se verificando sequer as condições de punibilidade do ilícito em causa a título doloso.
SSSSS. Em todo o caso, considerando a medida da pena abstratamente aplicável (pena de multa ou de pena de prisão até 4 anos), entende o Arguido que o Tribunal a quo, também aqui, não aferiu concretamente a culpa do Arguido, excedendo a pena aplicável a culpa do Arguido, tendo sido desconsideradas quer a finalidades punitivas da norma (a detenção da arma), quer o concreto contexto em que tal ocorreu (provocações e perseguição quando se encontrava a chegar a casa de CC e as inerentes preocupações com nova perseguição quando sai para comprar tabaco). Salientando-se, ainda, que o Arguido não tem, também aqui, qualquer antecedente criminal.
TTTTT. Desta forma, considerando os factos anteriormente referenciados, e por aplicação dos critérios dos artigos 72.º, n.ºs 1, e 2, alíneas b) e c) do CP e, necessariamente, para efeitos da determinação da medida da culpa (limite inultrapassável da pena) nos termos do artigo 71.° do CP, entende o Arguido que lhe deve ser aplicada pena de multa, a determinar dentro dos critérios legais, sendo excluída, in casu, a suscetibilidade de aplicação de pena de prisão. Ainda que assim não se entenda, o Arguido considera que a pena de prisão que possa vir a ser aplicada não deve exceder um mês.
UUUUU. Em todo o caso, considerando a cúmulo jurídico em causa, nos termos do artigo 77.° do CP, nunca a pena total a aplicar ao Arguido deverá, independentemente do tipo de crime em causa (ofensa à integridade física simples, tentativa de homicídio ou tentativa de homicídio qualificado) e do concreto enquadramento a dar à detenção da faca, ser superior a 4 anos de prisão, sempre suspensa na sua execução, nos termos do artigo 50.° do CP, atendendo a que, conforme se demonstrou, se encontram verificados os respetivos requisitos legais e manifestando o Arguido a sua concordância a regras de conduta que lhe venham a ser impostas, nos termos do artigo 52.°.
VVVVV. Nos termos igualmente expostos na motivação, deve ser o pedido de indeminização cível a atribuir ao Assistente, reduzido a um valor não superior a EUR 6,000,00, porquanto manifestamente excessivo e contrário aquilo que têm sido, nesta matéria, as decisões dos nossos tribunais superiores, sendo que o montante da condenação excede - como demonstrado anteriormente ­aquele que foi aplicado em situações de maior gravidade (internamento, necessidade de cirurgia e tratamento reabilitante e largos períodos de incapacidade).
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, oferecendo as seguintes conclusões:
“1. Se o arguido e o seu mandatário estiveram presentes à leitura do acórdão (o que equivale à sua notificação, como dispõe o citado artigo 372, n. 4) é a partir desse momento que começa a correr o prazo do recurso, desde que o acórdão esteja assinado e depositado.
2. Em caso contrário, ou seja, caso tenha sido lido o acórdão sem que o mesmo tenha sido assinado e depositado, é deste último acto que se deve considerar notificado o arguido. Em caso de assinatura em data diferente da leitura existe uma irregularidade e não nulidade, cfr. artigos 380, n. 1, e 374, n. 3, alínea e), do CPP).
3. No caso dos nossos autos essa irregularidade, não invocada no acto diga-se, sanou-se com a assinatura do acórdão em 7/7/2021, pelo que, em nossa opinião não existe qualquer nulidade.
4. Em nossa opinião inexiste qualquer fundamento para alteração do facto provado 3 uma vez que da discussão da causa não decorre que o assistente tivesse ameaçado, perseguido ou que tivesse uma personalidade controladora e perigosa. Este facto teve como base de prova a análise das mensagens/e-mails trocados entre CC e o assistente e onde é manifesta tensão entre os mesmos e só.
5. Ora se o assistente, arguido e as testemunhas ouvidas negaram qualquer conflito na entrega das crianças porque motivo vem o arguido agora pretender alterar o facto provado alegando um perigo de agressão por parte do assistente na entrega das crianças.
6. Não existe por isso qualquer prova credível que corrobore a versão trazida pelo arguido para alterar a redacção do facto provado 4.
7. Da nossa parte a douta fundamentação é clara, precisa, objectiva explicando o motivo pelo qual a versão do arguido não pode colher, nem que o assistente quisesse deslocar-se à casa da testemunha CC ou que soubesse que era o arguido que conduzia a viatura de CC até à esquadra da PSP de ....., pelo que devem manter-se os factos 11 e 12 tal como descritos no douto acórdão.
8. Ora em nossa opinião esta pequena alteração do ponto 15 não é compatível com a postura posterior do arguido que saiu da habitação da sua namorada CC e foi à rua do assistente procurá-lo. Alguém que está ansioso e receoso de uma pessoa, não vai de seguida procurá-lo, às 3h:00, na rua onde este reside, por isso o tribunal nem sequer levou esses sentimentos à matéria de facto provada.
9. A fundamentação do tribunal do ponto 17 não merece qualquer reparo uma vez que a versão do arguido não tem qualquer lógica em face das regras da lógica e da experiência comum e da sua conduta que foi de retaliação pela conduta do assistente que perseguiu o carro da sua namorada CC.
10. Não se entende a dúvida do arguido e a persistência em pretender que o tribunal dê como provado no ponto 19 que o assistente não conhecia o veículo da sua antiga companheira quando resulta mais que evidente pela prova produzida.
11. As versões trazidas pelo arguido não convenceram o tribunal. A prova produzida vai toda no sentido que o arguido dirigiu a viatura automóvel contra o assistente porque o queria matar.
12. O tribunal considerou inexistir qualquer dúvida quanto à intencionalidade do primeiro embate do veículo tripulado pelo arguido no corpo do assistente pelo que deve manter-se o ponto 20.
13. Foi o próprio arguido a dizer que ia a velocidade não superior a 50 Km e no auto de interrogatório de arguido detido, pelo que não merce qualquer credibilidade a alteração sugerida no ponto 21.
14. Em nossa opinião a fundamentação nos pontos 29 a 32 apresentada pelo tribunal é clara, precisa, objectiva e de acordo com a prova produzida e as regras da lógica e da experiência comum e não merece qualquer censura.
15. Com efeito a conduta do arguido de dirigir uma viatura na direcção do ofendido, aforma como embateu, as lesões que provocou e a conduta posterior de esfaquear, só tem uma intenção, a de matar o assistente.
16. Para todos os cidadãos é elementar o conhecimento que uma faca é uma arma, por ter uma capacidade lesiva ou uma perigosidade cujo uso provoca lesões físicas e pode tirar vidas, pelo que não colhe a invocação do arguido de que não sabe que uma faca é uma arma.
17. A fundamentação de direito relativamente aos crimes de que o arguido foi condenado revela-se acertada e de acordo com a lei e a jurisprudência maioritária que se tem debruçado sobre o assunto.
18. Com efeito, considerando a factualidade provada é manifesto para qualquer pessoa que a utilização de um veículo para atingir o corpo de outra pessoa é um meio particularmente perigoso porque não deixa qualquer margem de protecção e tem uma elevada potencialidade para tirar a vida de outra pessoa. Tal como desferir várias facadas numa contenda e após a tentativa de tirar a vida a outra pessoa com um atropelamento é um meio para alcançar o desígnio de tirar a vida de outra pessoa, ainda mais após uma primeira tentativa com o carro.
19. A utilização da faca de forma traiçoeira e esquiva não deixou grande margem de defesa ao assistente.
20. A faca utilizada nas circunstâncias em que o foi (fora do seu uso normal doméstico), aliada ao tempo em que foi utilizada e o propósito com que o foi, não pode o utilizador ignorar o seu uso ilícito e característica de arma (ainda mais um licenciado em .....).
21. O arguido foi condenado por homicídio qualificado sendo que, para nós, e para a comunidade é intolerável, nas circunstâncias em que os factos ocorreram e a motivação dos mesmos, que um cidadão decida matar outra pessoa mediante a utilização de uma viatura automóvel e não contente ainda o vá esfaquear para concretizar esse objectivo, pelo que tende-se especialmente censurável a conduta.
22. O arguido foi condenado por dolo directo pelo que não colhe a tese do dolo eventual, que é possível nos homicídios simples e qualificados, e, tentados conforme muito bem explicou o tribunal.
23. Em nossa opinião a qualificação jurídica do tribunal não merce qualquer reparo e subsume a factualidade provada.
24. O art.º 71º do C.P. estabelece no seu nº 1 a orientação base para a medida da pena a aplicar: “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. No nº 2 do preceito faz-se referência às “circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele.” O nº 3, por último, obriga a explicitar na sentença os fundamentos da medida da pena que se elegeu.
25. O mesmo art.º 71º estabelece como parâmetro da medida da pena as exigências de prevenção. Vem-se entendendo, então, que dentro da moldura penal prevista na lei se encontrará uma sub moldura adequada ao caso e aferida pelas necessidades de prevenção geral positiva. O limite inferior dessa sub moldura corresponderá então ao mínimo de pena suportável pela comunidade, em face do facto, e o limite superior à medida óptima de defesa dos bens jurídicos violados com aquele crime. Dentro desta sub moldura, configurada pelas exigências de prevenção geral de integração haverá que encontrar então, um “quantum” certo de pena, ditado pelas necessidades de prevenção especial.
26. Em nossa opinião a pena fixada de cinco anos e 4 meses de prisão numa pena abstracta de cinco a seis anos de prisão não oferece qualquer reparo.
27. Uma vez que a pena de prisão fixada é superior a 5 anos não pode a mesma ser suspensa na sua execução”.
Também o assistente veio responder, com as seguintes conclusões:
“A) Em sede de Recurso vem o Arguido alegar que o Acórdão padece de nulidade insanável, por falta de assinaturas dos Mmos. Juízes que integravam o Coletivo que julgou o processo, na data da leitura do Acórdão;
B) Salvo melhor opinião, não assiste razão ao Arguido porquanto na audiência de julgamento realizada no dia 06/07/2021, momento em que foi realizada a leitura do Acórdão, tanto o Arguido como o seu Mandatário estiverem presentes, não tendo no referido momento, nem nos 3 dias seguintes (para a alegação da irregularidade), nem nos 10 dias seguintes (para a nulidade dependente de arguição), suscitado a questão de qualquer nulidade do Acórdão, pelo que só poderemos concluir que qualquer eventual irregularidade se tenha sanado com a própria assinatura e depósito do Acórdão, ocorrido no dia 07/07;
C) Ademais, a lei não comina como causa de nulidade, a efetivação do depósito do Acórdão no dia seguinte, pelo que a circunstância de as assinaturas do Acórdão não se mostrarem concretizadas no próprio dia da leitura do Acórdão, apenas, poderá consubstanciar uma mera irregularidade, que se mostrou posteriormente sanada, razão pela qual improcede, a alegação de nulidade.
D) O Arguido no seu Recurso impugna a matéria de facto dada como provada, especificamente os pontos 3, 4, 11, 12, 15, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 29, 30, 31, 32, 34, 36, 38 e 39, com os fundamentos estribados na dita peça processual.
E) Quanto ao Ponto 3 da Matéria de Facto dada como provada, somente se demonstrou nos presentes Autos que a relação entre CC e o Assistente era tensa, com a existência de diversos desentendimentos, tendo como base exclusiva questões relacionadas com os filhos de ambos, não merecendo qualquer reparo a redação conferida pelo Acórdão a tal Ponto da Matéria de Facto dada como provada.
F) Quanto ao Ponto 4 da Matéria de Facto dada como provada, o mesmo deverá, salvo melhor opinião, ser mantido sem qualquer alteração, porquanto, na verdade, dos diversos depoimentos carreados nos Autos – EE, CC, Assistente e do próprio Arguido – a entrega dos menores, no dia 12/01/2020, ocorreu sem qualquer problema / litígio, não resultando qualquer episódio de conflito entre os intervenientes.
G) Quanto aos Pontos 11 e 12 da Matéria de Facto dada como provada, quanto à alegada perseguição, cumpre começar por ter subjacente que tanto o Arguido como o Assistente, ao momento da ocorrência dos factos, não se conheciam!
H) Nunca haviam dirigido uma palavra um ao outro; Nunca haviam trocado olhares;
I) O Assistente nas declarações que presta em sede de Audiência de Julgamento explicou a razão pela qual efetuou um seguimento ao veículo que reconheceu como sendo o de CC, decorrente do facto de ter deixado os filhos com a Mãe por volta das 18 horas, ter estranhado que o veículo de CC circulasse por volta das 0 horas, pretendendo, por essa razão verificar se os seus filhos se encontravam no veículo, atento o adiantado da hora;
J) Mais explicou que, quando o veículo virou para a direita, em direção ao parque de Estacionamento da PSP de ....., o Assistente teve oportunidade de confirmar que os seus filhos não se encontravam no veículo e que o condutor era um homem, pelo que nesse momento deu a volta na rotunda seguinte e voltou para casa.
K) O Assistente não efetuou manobras perigosas, sinais de luzes; não tentou fazer qualquer ultrapassagem; não se colocou em paralelo com o veículo de CC, sendo tal versão inteiramente corroborada pela Testemunha HH, agente da PSP, que recebeu o Arguido na supra identificada esquadra da PSP;
L) No seu depoimento, a Testemunha HH, agente da PSP, refere, com relevância para os factos supra descritos, que o Arguido, quanto ao modo como decorreu a perseguição, não lhe comunicou a existência de manobras perigosas, sinais de luzes; tentativas de ultrapassagem; que o outro veículo se tenha colocado em paralelo com o seu veículo; ou que lhe tenham sido feitos sinais para parar a marcha; O Arguido não terá mostrado interesse em apresentar qualquer Queixa Crime o que reflete a inexistência de gravidade de tal ocorrência;
M) - O Arguido reportou à testemunha que julgava que quem o seguia seria o ex-marido (aqui Assistente) da sua namorada (CC), no sentido de verificar se esta circulava, àquela hora, na via pública, com os filhos menores de ambos, ou se as crianças tinham sido deixadas em casa; pelo que, conjugada a prova carreada nos Autos, não merecem os Pontos 11 e 12 qualquer reparo.
N) Quanto ao Ponto 15, da Matéria de Facto dada como provada, deverá, salvo melhor opinião, manter-se a redação dada pelo Acórdão recorrido, porquanto é manifesta a incompatibilidade entre a ansiedade e receio – que o Recurso pretende evidenciar - e a subsequente conduta do Arguido, ou seja – sair de casa de CC, munido de uma faca, e dirigir-se, sem razão, especificamente à rua onde reside a pessoa “causadora” dessa mesma ansiedade e receio.
O) Quanto ao Ponto 17 da Matéria de Facto dada como provada, não se poderá deixar de considerar que:
- No dia anterior aos factos, pela hora de almoço, o Assistente havia mandado uma mensagem a CC onde fazia alusão, implícita, à circunstância de esta sustentar, economicamente, o Arguido – sendo que o Arguido teve conhecimento do teor desta mensagem;
- No próprio dia, cerca de 3 horas antes, o Assistente havia seguido o veículo que era conduzido pelo próprio Arguido (conforme já se aludiu supra);
- O Arguido teve conhecimento que, pelas 02h06m, o Assistente mandou uma mensagem ao Pai de CC;
- O Arguido saiu de casa da CC, munido de uma faca de cozinha;
- O próprio Arguido afirma que tinha intenção de furar os pneus do veículo do Assistente;
P) As circunstâncias supra descritas, aliadas às regras da experiência comum, só permitem concluir que o Arguido, ao dirigir-se, às 03 horas, à rua onde residia o Assistente, apenas, visou retaliar contra este, razão pela qual não merece qualquer reparo o Ponto 17 da Matéria de Facto dada como provada, devendo manter-se a redação constante do Acórdão proferido pelo Tribunal “a quo”.
Q) Quanto ao Ponto 19 da Matéria de Facto dada como provada, não merece, pois, qualquer reparo, porquanto tal factualidade é demonstrada pela prova carreada nos autos, concretamente, os fotogramas da rua onde o veículo do Assistente se encontrava; fotogramas da rotunda adjacente ao acesso à rua do prédio onde reside o Assistente, onde este vislumbrou o veículo de CC; assim como as declarações prestadas pela testemunha EE e pelo próprio Assistente, resultando que:
- O Assistente vislumbrou, a partir do terraço da sua casa, o carro de CC a circundar a rotunda que permite o acesso à sua rua, dirigindo-se para a mesma, de seguida;
- Ato contínuo, o Assistente, lembrando-se que havia deixado a carteira no porta luvas seu veículo, desceu para a via pública, no sentido de retirar a mesma e salvaguardar a integridade do veículo, temendo que houvesse a intenção de alguém o danificar.
R) Quanto aos Pontos 20 e 21 da Matéria de Facto dada como provada, cumpre ter em consideração a prova carreada nos Autos, especificamente, no que se refere às declarações prestadas pelo Arguido, pelo Assistente e pela testemunha EE, que na verdade são os 3 únicos sujeitos que visualizaram os factos em discussão nos presentes Autos, a saber:
- O Arguido assume que acelerou o veículo que conduzia, até uma velocidade de cerca de 50 kms/hora (é o próprio Arguido que o afirma nas suas declarações, fazendo uma alusão expressa a 50 kms / hora) e, quando está perto do Assistente – que reconheceu -, guinou para a esquerda, o veículo que conduzia, embatendo no corpo deste, que se encontrava na hemi-faixa de rodagem contrária ao sentido de trânsito que era seguido pelo veículo do Arguido – não havendo qualquer necessidade, razão ou causa lógica para aquele movimento, que não fosse o de embater no próprio corpo do Assistente;
- O Assistente declara que se encontra na hemi-faixa contrária ao veículo do Arguido, e quando se encontra à distância de um braço esticado dos carros que se encontram estacionados na via contrária à porta do seu prédio, é embatido por um veículo que sobe a rua e que deveria circular na outra hemi-faixa;
- E a testemunha EE, que se encontrando na janela, vê e ouve o veículo do Arguido arrancar, quando o Assistente está a alcançar o seu veículo, e vislumbra o veículo do Arguido guinar para a esquerda, invadindo a hemi-faixa contrária, e embatendo no corpo do Assistente;
S) Ora, o Arguido, assim como qualquer homem comum, bem sabia que o embate de um veículo, em movimento, contra o corpo de uma pessoa, era meio idóneo para provocar a morte, pelo que, ao guinar o veículo automóvel que conduzia, invadindo a hemi faixa contrária, o Arguido teve a intenção de tirar a vida ao Assistente.
T) Tal intenção, mais clara se demonstra pela circunstância de o próprio Arguido ter saído da casa de CC munido de uma faca com a intenção de provocar dano / prejuízo ao Assistente;
U) O Arguido, naquele momento, demonstrou uma verdadeira sede de vingança, encontrando-se movido por despeito em face dos acontecimentos ocorridos anteriormente, não merecendo, pois, qualquer reparo os Ponto 20 e 21 da Matéria de Facto dada como provada, devendo manter-se a redação constante do Acórdão proferido pelo Tribunal “a quo”.
V) Quanto aos Pontos 22, 23, 24, 29, 30, 31 e 32 da Matéria de Facto como provada, no que se refere à dinâmica subsequente das agressões perpetradas pelo Arguido, cumpre ter subjacente a prova produzida, especificamente, as declarações prestadas pela testemunha EE e pelo Assistente, a saber:
- Apurou-se que o Arguido, após embater com o veículo automóvel no corpo do Assistente, continuou o sentido da marcha ascendente;
- Ato contínuo, inverteu o sentido da marcha e voltou a descer a rua, parando o veículo junto do corpo do Assistente, saindo do veículo munido da faca que havia trazido de casa de CC;
- Com a faca na mão, abeirando-se do Assistente que, nesse momento, se tentava levantar, o Arguido desferiu um primeiro golpe, acertando na cabeça daquele;
- De seguida, e perante uma tentativa de reação, cambaleando, do Assistente que se tentava defender esgrimindo socos, o Arguido desferiu, no corpo do Assistente, pelo menos, mais 3 facadas – nas costas e pernas – para além de pontapés.
- De forma a evitar a fuga do Arguido, o Assistente conseguiu esgueirar-se pelo banco do pendura, do veículo de CC, retirando a chave da ignição, atirando-as para o mato, ao mesmo tempo que, pelas costas, o Arguido lhe desferia, nas costas, a quinta facada.
- Após estes atos, o Arguido abandonou o local apeado, após o que EE desceu à via pública para auxiliar o Assistente.
W) Note-se que a referida factualidade decorre da conjugação dos depoimentos do Assistente e da testemunha EE que se encontrava à janela, assistindo à agressão enquanto falava telefonicamente com o INEM – descrevendo o sucedido, conforme transcrição da conversa telefónica que consta dos Autos.
X) Resultou, de forma cristalina, a dinâmica dos factos e da conduta do Arguido, assim como as lesões que o mesmo provocou no Assistente.
Y) O Arguido, ao agir como agiu, de forma livre, deliberada e ciente de que a sua conduta era suscetível de provocar a morte do Assistente, é demonstrativa do seu intento.
Z) Na verdade, o Arguido teve inúmeras oportunidades de evitar a sua conduta, não a tendo evitado, somente, porque a sua intenção era causar a morte do Assistente:
- O Arguido poderia ter seguido na sua faixa de rodagem e ter evitado o embate do veículo no corpo do Assistente, mas, ao invés, guinou o volante, invadindo a hemi faixa contrária, de forma a, intencionalmente, atropelar o Assistente;
- O Arguido poderia ter prosseguido a marcha do veículo e abandonado o local, mas, ao invés, inverteu o sentido da marcha para parar o seu veículo junto ao corpo do Assistente que se encontrava deitado no chão da via pública;
- O Arguido poderia ter permanecido dentro do veículo, mas, ao invés, decidiu sair do veículo, empunhando uma faca, para confrontar o Assistente, dando-lhe uma facada na cabeça, antes de deste se conseguir colocar erguido de pé, e manifestamente em desvantagem;
- O Arguido poderia não ter dado mais uso à faca que empunhava, mas, ao invés, decidiu dar, indiscriminadamente, mais 4 facadas no corpo do Arguido, tal não era a fúria e sede de vingança e retaliação de que padecia.
AA) Note-se que o Arguido só não provoca a morte, do Assistente, por mera acaso, atinente, talvez, à conjugação da circunstância de ser Inverno e, como tal, o Assistente ter vestidas diversas camadas de roupa, o que atenuou o impacto do atropelamento e das facadas que o mesmo sofreu.
BB) Ademais, não se poderá deixar de considerar que o Arguido é licenciado em ..... e, como tal, tem adicional obrigação de conhecer a lei e, consequentemente, as condutas que lhe são proibidas e punidas.
CC) Destarte, não merece qualquer reparo a redação dada no Acórdão aos Pontos 22, 23, 24, 29, 30, 31 e 32 da Matéria de Facto como provada.
DD) Quanto aos Pontos 34, 36, 38 e 39 da Matéria de Facto dada como provada, os mesmos devem manter a sua redação, porquanto tais factos são demonstrados tendo em consideração as declarações do Assistente, das testemunhas EE e KK, assim como os elementos documentais, inclusive, uma declaração médica a atestar que o Assistente apresentava sintomas compatíveis com síndrome pós-traumático.
EE) Dos elementos probatórios carreados nos Autos, e concretamente pelos depoimentos prestados pelas testemunhas e pelo próprio Assistente, resultou demonstrado que no momento em que ocorreram as agressões, o Assistente sofreu dor muito forte e dilacerante, tendo perdido os sentidos por diversas vezes, e que a mesma permaneceu durante diversos dias – mais de 30 -, enquanto o demandante recuperava das lesões sofridas;
FF) Enquanto esperava pela chegada do INEM, o Assistente sentia o sangue a escorrer pelas diversas partes do corpo onde havia sido esfaqueado, provocando-lhe imediato medo de morrer, tremores, ansiedade pela espera - que parecia eterna - pelo socorro médico, encontrando-se assustado com tudo o que lhe acabava de acontecer.
GG) Nesse preciso momento, e nos dias seguintes, manteve constante e intenso receio que o Arguido repetisse o ato, o voltasse a agredir e o tentasse novamente matar, pelo que nos dias e meses seguintes, o que se verifica até à presente data, se sentiu desgostoso, infeliz, amargurado, com uma tristeza inexplicável, desorientado e com dificuldades em dormir, em virtude de pesadelos que o atormentavam, revivendo, de dia e de noite, mentalmente, as agressões a que havia sido sujeito.
HH) Depois de ter alta e deixar o hospital, e em face do sentimento de total insegurança que o assolava – medo permanente de que voltasse a ser agredido -, o Assistente evitou sair de casa, de forma a sentir alguma segurança, alterando por completo toda a sua vida quotidiana, especialmente a nível laboral e nas relações pessoais com os seus familiares e amigos, restringindo os seus contactos sociais ao mínimo.
II) Pelo que, o envolvimento no episódio supra descrito, provocou, no Assistente, sentimentos de medo, tristeza, desgosto e amargura, mais ainda por se ter tratado de um episódio que ocorreu na via pública, junto ao prédio onde reside, sendo visível nas imediações do edifício vestígios de sangue, o que lhe causou embaraço e consternação perante vizinhos e conhecidos, acrescido pelo facto de ter sido noticiado nos órgãos de comunicação social, o que provocou os naturais comentários e “burburinho” entre os vizinhos;
JJ) O Assistente sentiu-se diminuído na sua pessoa e depressivo, Sintomas esses compatíveis com Síndrome pós-Traumático, e que obrigam o Assistente, ainda, nos dias de hoje, a ter acompanhamento médico;
KK) Desde a data dos factos que o Assistente sente dificuldades em dormir;
LL) O Assistente sentia, e ainda sente, medo de morte, sempre que sai à rua e tem de atravessar uma estrada, em sobressalto constante, olhando para todos os lados com receio de que idêntica agressão volte a ocorrer.
MM) A agressão de que foi alvo provocou no Assistente diversas cicatrizes físicas, especificamente, na zona craniana, na face, no tórax, no membro superior direito e no membro inferior direito, conforme elementos fotográficos juntos aos Autos, marcas essas que provocaram uma diminuição relevante da autoestima do Assistente, que não se sente confortável com o seu aspeto físico, derivado das cicatrizes que tem espalhadas pelo corpo;
NN) No que se refere à Qualificação Jurídica, também colocada em causa em sede de Recurso pelo Arguido, cumpre verificar que da factualidade dada como provada se mostram verificados os elementos objetivos e subjetivos dos crimes imputados ao Arguido, senão vejamos:
- O Arguido dirige-se especificamente à Rua onde reside o Assistente;
- O Arguido leva consigo uma faca, com uma lâmina de gume afiado com 12, 2 centímetros de cumprimento;
- O Arguido ao ver o Assistente, passar a estrada, guina, propositadamente, a sua viatura, invadindo a hemi faixa contrária, atropelando o Assistente, a uma velocidade de cerca de 50 km/ hora, com um veículo que pesa mais de 1 tonelada;
- O Arguido, depois de inverter o sentido da marcha, regressa para junto do corpo do Assistente, e saí do carro empunhando uma faca;
- Sem que o Assistente se tenha levantado do chão, o Arguido desfere uma facada na cabeça deste;
- O Arguido desfere, adicionalmente, mais 4 facadas, de forma indiscriminada, no corpo do Assistente, ao ponto de a própria lamina se partir.
- As condutas do Arguido foram idóneas a provocar a morte do Assistente, só não tendo ocorrido uma tragédia pela conjugação de diversas circunstâncias como seja a sorte; a incapacidade do próprio sujeito Arguido; o facto de ser inverno e o Assistente ter diversas camadas de roupa vestidas.
- O uso de um veículo automóvel, como “arma”, é jurisprudencialmente aceite como meio particularmente perigoso, na prática do homicídio.
- As condutas supra referidas demonstram, só por si, fúria, raiva e sede de vingança, derivado de um sentimento de despeito de que o Arguido padecia.
OO) O Arguido insurge-se, ainda, quanto ao valor atribuído ao Assistente a título de Pedido de Indemnização Civil, sendo certo que jurisprudencialmente se considera que a indemnização por danos não patrimoniais tem de assumir um papel significativo, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de "compensação", não se compadecendo com atribuição de valores meramente simbólicos, nem com miserabilismos indemnizatórios.
PP) Ora, nos autos provou-se que em consequência da conduta criminosa do arguido, o demandante sofreu lesões graves, demonstrando-se um quadro implícito, de intensa dor, acentuada angústia, e reconhecida tristeza, que merece, de forma indiscutível, a tutela do direito e de uma forma que se afaste de quaisquer considerações miserabilistas ou que transforme o valor indemnizatório em algo meramente simbólico.
QQ) Sendo um dano com cobertura legal - Artº 496 nº3 do C. Civil – entende-se que o valor fixado pela instância recorrida se mostra justificado pelos considerandos expostos, não merecendo a censura que lhe é feita pelo recorrente.
RR) Nesta conformidade, e face às motivações apresentadas, deverá a Sentença Recorrida ser mantida, nos exatos termos em que foi proferida, porquanto bem andaram os Mmos. Juizes “a quo” na apreciação dos factos e na aplicação da Lei, assim se julgando o Recurso Interposto como Improcedente”.
*
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Proferido despacho liminar e dispensados os “vistos”, teve lugar a conferência.
*
II - A) Factos Provados
1. O arguido AA, desde meados de outubro, início de novembro de 2019 até fevereiro de 2020 manteve um relacionamento amoroso com CC.
2. CC foi casada com o ofendido BB, tendo o casal dois filhos em comum.
3. Ao longo do relacionamento que o arguido manteve com CC este teve conhecimento através dos relatos de CC e de seus pais de desentendimentos entre CC e o assistente, o que originou que CC denunciasse factos que originaram um inquérito em que o assistente surge como denunciado e que foi classificado como de violência doméstica – vide emails e mensagens trocados entre CC e o assistente a fls. 440-457 e 1325-1364.
4. No dia 12.01.2020 o Assistente procedeu à entrega dos menores a CC na residência desta sita na Rua ....., não tendo, naquela altura, ocorrido qualquer problema ou questão.
5. Entretanto, o ofendido no dia 12-01-2020 soube da relação entre o arguido e a sua ex-mulher, tendo enviado para CC uma mensagem com o seguinte teor: “Agora já percebo como tiveste a lata de me pedir mais dinheiro, tens mais um filho para sustentar, que até dorme naquela que foi mi cama!!!”, mensagem de que o arguido teve conhecimento.
6. Nesse dia o Arguido deslocou-se à sua residência, após o jantar, tendo estado a confraternizar com a família (mãe e irmão).
7. Quando estava na companhia da sua família o Arguido recebe mensagem de CC, onde esta relata a existência de mensagens enviadas pelo Assistente e que DD, pai de CC, “está super nervoso” (cfr. fls. 467).
8. Tendo o Arguido, respondido “diz ao teu pai para bloquear o número ou assim” (cfr. fls. 467).
9. O arguido saiu da casa de sua mãe pelas 00h19 e dirigiu-se para a habitação de CC sita na Rua ......
10. No dia 13.01.2020, cerca da 00h00, o ofendido BB saiu de casa para comprar tabaco, tendo-se dirigido à ..... sita na variante nº ..., conduzindo o veículo de matrícula …-UA-…, tendo adquirido o tabaco e saído da referida estação de serviço pelas 00h11m.
11. De seguida e no trajeto que efetuou após sair da estação de serviço viu a viatura de CC com a matrícula …-UV-….
12. Em face disso e com o propósito de saber quem a conduzia, seguiu a viatura até à esquadra da PSP de ....., tendo no trajeto da dita perseguição se apercebido tratar-se do arguido, cessando a referida perseguição quando este entrou no parque de estacionamento da referida esquerda da PSP, regressando a casa, sita na Rua ....., artéria onde estacionou o veículo por si conduzido.
13. Após sair da esquadra da PSP de ..... o arguido dirigiu-se para a casa de CC onde se encontrava no exterior e a aguardar a sua chegada o pai de CC, DD onde, uma vez chegado o arguido permaneceram a conversar por breves momentos.
14. Pelas 02h06 o pai de CC recebeu uma mensagem provinda do número de telefone utilizado pelo assistente com o seguinte teor: “Oh toto em vez de andares pra aí anunciares 7 ventos… Se homem pelo menos uma vez na vida!!!!”.
15. O arguido e CC permaneceram a conversar na habitação da mesma até cerca das 3h00 da manhã, altura em que arguido decidiu sair de casa munido de uma faca de cozinha que retirou da cozinha de CC.
16. Tendo-se dirigido à estação de combustível ....., em ..... onde adquiriu tabaco.
17. Após a aquisição do tabaco o arguido decidiu deslocar-se até à rua ....., munido com uma faca da marca ....., com cabo em madeira de 11,8cm e lâmina de gume afiado com 12,2cm de comprimento com o intuito, inicial, de cortar os pneus da viatura do assistente, como forma de retaliação pelas condutas anteriores do mesmo.
18. Assim, cerca das 03h30, o arguido AA, conduzindo o veículo com a matrícula …-UV-…, da propriedade CC, dirigiu-se até à rua ....., munido com uma faca da marca ....., com cabo em madeira de 11,8cm e lâmina de gume afiado com 12,2cm de comprimento, também da propriedade de CC.
19. Entretanto, a vítima que estava à varanda a fumar com EE, sua companheira, ao aperceber-se da viatura da ex-mulher, conduzida pelo arguido, próximo da sua viatura, temendo que aquele a danificasse e porque tinha a sua carteira pessoal no porta luvas, foi para a rua e dirigiu-se à sua viatura.
20. O arguido AA ao visualizar BB na via pública, despeitado e movido por sentimentos de vingança, com o propósito de lhe tirar a vida, dirigiu o veículo por si conduzido em direção ao corpo daquele, que nesse momento atravessava a pé a faixa de rodagem, saindo para o efeito da sua hemi-faixa de rodagem, embatendo com a parte da frente esquerda do veículo no corpo da vítima na hemi-faixa contrária atento sentido de marcha do arguido, projetando-a para cima do para-brisas e atirando-a ao chão.
21. O arguido imprimiu velocidade não concretamente apurada ao veículo que tripulava, mas cujo máximo foi inferior a 50 km/h.
22. Ato contínuo, e quando atingiu o cimo da rua o arguido inverteu o sentido da marcha, passou junto ao assistente, parou a viatura e saiu do seu interior munido com a faca acima descrita.
23. Aproximou-se da vítima, que estava no chão a tentar se levantar e, com a faca que empunhava, desferiu-lhe um primeiro golpe na cabeça e depois pelo menos mais três golpes, um nas costas e dois nas pernas, pontapeou-o, enquanto a vítima se defendia, desferindo socos na cara do arguido.
24. O ofendido BB com o propósito de que AA não abandonasse ao local, ainda conseguiu abrir a porta do lado do pendura do veículo de CC, agarrou nas chaves da ignição e atirou-as para o mato, altura em que o arguido AA lhe desfere outro golpe nas costas.
25. Entretanto EE que assistia da janela da sua casa à conduta do arguido, chamou o INEM e foi em socorro da vítima, enquanto que o arguido largou a faca e saiu do local apeado.
26. Como consequência direta e necessária do embate da viatura conduzida pelo arguido AA e dos golpes com faca que aquele lhe desferiu, a vítima BB sofreu fortes dores e as seguintes lesões:
- Na região Craniana: cicatriz, com crosta castanha, linear, na região frontopariental esquerda, obliqua ínfero–lateralmente, com 4,5cm de comprimento; cicatriz hipercromática na região fontal direita, linear, ínfero –mediana com 0,5cm de comprimento;
- Na face: 2 cicatrizes com crosta castanha, no pavilhão auricular esquerdo, transversais, com 0,5cm de comprimento, cada
- Tórax: cicatriz hipocromática na região escapular esquerda, puntiforme; cicatriz hipocromática na região dorsal esquerda, vertical, com 2,5cm de comprimento; equimose roxa e amarela, na região dorsal, justa axilar, com 6cm de dilatrómetro; cicatriz hipocromática na região lateral esquerda, oblíqua ínfero–lateralmente, com 1,2cm de comprimento; área escoriada na face lateral esquerda, oblíqua, ínfero –posteriormente, com 6x2cm de maiores dimensões;
- Membro superior direito: 2 cicatrizes com crosta castanha na face posterior do cotovelo, numa área com 2cm de diâmetro (ação de natureza contundente);
- Membro inferior direito: ferida, na face posterior do terço medio da coxa, transversal, com 2,5cm de comprimento, e edema associado; cicatriz hipercromática na face posterior do terço distal da coxa, vertical, com 1,5cm de comprimento.
27. Lesões essas, resultado de traumatismo de natureza contundente, corto perfurante e que determinaram ao ofendido 30 dias de doença, com perda parcial de autonomia para as atividades da vida diária, social e familiar, 8 dos quais com perda total e 22 dos quais com perda parcial de autonomia para a atividade laboral, tendo carecido de tratamento médico e hospitalar.
28. O assistente deu entrada no Hospital ..... no mesmo dia pelas 04h00, tendo sido dada alta ao mesmo pelas 11h54.
29. Ao agir da forma descrita o arguido AA quis e representou tirar a vida do ofendido, atingindo-o no corpo com veículo automóvel por si conduzido e desferindo-lhe golpes com faca em zonas do corpo que alojam órgão vitais, o que apenas não conseguiu por motivos alheios à sua vontade.
30. O arguido agiu utilizando para o efeito uma faca e um veículo automóvel.
31. O arguido quis ainda e representou, deter e fazer uso como arma de agressão, de arma branca com lâmina superior a 10cm, destinada às lides domésticas, o que conseguiu, bem sabendo que a sua detenção e utilização fora dos fins que lhe estão atribuídos, mormente como arma de agressão, é proibida.
32. O arguido AA agiu sempre de forma livre, deliberada e ciente que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Do pedido de indemnização:
33. Em consequência das condutas do arguido o assistente sentiu dores, ansiedade, teve medo de morrer face ao sangue que perdeu ao ser esfaqueado.
34. O assistente sentiu e sente medo que o arguido volte a tentar matá-lo, o que fez com que o mesmo alterasse as suas rotinas diárias, isolando-se e restringindo os seus contatos pessoais com os seus familiares e amigos.
35. Quando sai à rua fica em sobressalto.
36. Sentiu-se infeliz, amargurado, com desgosto e com dificuldades em dormir em virtude de pesadelos que o atormentavam revivendo os factos praticados pelo arguido e de que foi vítima, sendo que sofre de depressão.
37. Sentiu embaraço e vergonha perante os seus vizinhos, tendo em conta que os factos ocorreram junto ao prédio onde reside, sendo visível nas imediações do prédio vestígios de sangue, bem como os factos terem sido noticiados na comunicação social.
38. Em consequência da conduta do arguido o assistente apresenta sintomas compatíveis com síndrome pós-traumático que obrigam o mesmo a ter acompanhamento médico.
39. As cicatrizes presentes no corpo do assistente e resultantes das lesões causadas pelo arguido provocam uma diminuição na autoestima do assistente que não se sente confortável com o seu aspeto físico.
40. O assistente sente necessidade de esconder as referidas cicatrizes para que as mesmas não sejam visíveis para terceiros.
41. Em consequência da conduta do arguido foram danificados e inutilizados os seguintes objectos/vestuário do assistente:
- um relógio smartwatch ....., no valor de €172;
- sapatos da marca ....., modelo ....., no valor de €100;
- uma camisa de marca ....., no valor de €32,50.
- uma camisola da marca ....., no valor de €49,00;
- umas calças de marca ....., modelo ....., no valor de, pelo menos, €90,00;
- um casaco de marca ....., no valor de €300.
Das condições económicas e sociais do arguido:
42. No decurso do seu processo de desenvolvimento AA tem estado integrado no agregado familiar de origem, inicialmente residente na ..... (concelho de .....).
43. Na história familiar destaca-se o falecimento súbito, decorrente de doença, do progenitor do arguido (quando este tinha seis anos e o irmão doze anos), episódio que determinou que a progenitora passasse a assumir sozinha as responsabilidades familiares/parentais.
44. Na adolescência do arguido, a mãe estabeleceu uma nova relação afetiva, no âmbito da qual a própria e os dois filhos foram vítimas direta e/ou indiretamente de atos de violência doméstica, o que reforçou o desenvolvimento de laços de proximidade afetiva e interajuda entre AA, o irmão e a mãe, tendo os dois últimos vindo a manter, ao longo dos anos, uma atitude de considerável proteção do arguido.
45. Estes três elementos familiares continuam a coabitar, residindo, desde há cerca de nove anos, em ..... (concelho de .....).
46. AA manteve uma trajetória escolar satisfatória, da qual destacou um único episódio negativo que lhe causou significativo receio pessoal, uma agressão física grave por arma branca de que foi alvo no estabelecimento de ensino básico onde estudava por parte de um aluno.
47. O arguido concluiu com sucesso os ensinos básico e secundário e, subsequentemente, a licenciatura em ....., na Universidade ......
48. Posteriormente, realizou pós-graduações na área do …. e realizou tarefas laborais, na qualidade de estagiário, em duas Sociedades de ….. sedeadas em ......
49. AA é visto no seu meio como uma pessoa com boas competências relacionais, que estabeleceu relações cordiais, algumas de amizade, nos vários contextos estudantil e laboral em que esteve inserido.
50. O arguido era visto no seu meio laboral como alguém determinado, focado, responsável e competente.
51. Também no seu meio social é visto como alguém solidário e preocupado com o próximo, sendo que nos seus tempos livres era voluntário na “.....” e numa comunidade local espiritual.
52. Na data dos factos dados como provados AA residia com a mãe (.....) e o irmão (..... e .....), ambos laboralmente ativos, na habitação situada em ..... de que o último é proprietário.
53. O arguido frequentava o estágio de …., na ....., com um desempenho pessoal avaliado muito favoravelmente pelo patrono e pelos seus colegas de trabalho.
54. No âmbito da sua constituição como arguido neste processo, AA esteve sujeito a prisão preventiva entre 14-01-2020 e 29-01-2020, tendo, na segunda data, sido iniciada a medida de OPHVE cuja execução tem de corrido satisfatoriamente, porquanto o arguido tem mantido um comportamento cumpridor das regras, sem registo de anomalias, e uma relação ajustada com os técnicos desta Equipa.
55. AA encontra-se em situação de confinamento habitacional integral desde 29-01-2020, ocupando o seu tempo com a execução de algumas tarefas jurídicas e com atividades lúdicas com recurso às tecnologias de comunicação e à leitura.
56. Não obstante não usufrua de rendimentos pessoais os recursos económicos familiares têm permitido suprir as suas necessidades.
57. O arguido demonstrou arrependimento pelos danos que causou no assistente com a sua conduta, sendo que logrou reunir a quantia de €5863,50 com o propósito de compensar o assistente pelos danos que causou.
Do Certificado de Registo Criminal do arguido:
58. O arguido não possui antecedentes criminais registados.
II – B) Factos Não Provados
a) O arguido pretendia cortar os pneus da viatura do assistente por forma a impedir que este os perseguisse na manhã seguinte.
b) Mantendo o propósito de tirar a vida do assistente, o arguido no cimo da rua inverteu a marcha e voltou a dirigir a viatura por si conduzida em direção ao corpo do ofendido, que estava no chão, passando-lhe com uma das rodas por cima da perna direita.
c) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 20) o arguido saiu da sua hemi-faixa de rodagem porque existia um veículo a ocupar a “mão de trânsito” onde o arguido se encontrava a circular.
d) Que em consequência da conduta do arguido o assistente sofreu uma subluxação rotatório de C2/C3 com desvio lateral esquerdo da C2, com desvio da C4 sobre C5, rotura de ligamentos.
e) Que o arguido após ter atingido o assistente com o veículo que tripulava regressou para junto do mesmo para verificar da necessidade do mesmo necessitar de auxílio.
f) O arguido desferiu os golpes com a faca no corpo do assistente da forma dada como provada por temer pela sua vida e com o intuito que o assistente o libertasse.
g) Em consequência da conduta do arguido o assistente sentiu falta de apetite.
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III – Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
In casu, discute-se (i) nulidade insanável da audiência de 06.07.2021; (ii) impugnação da decisão sobre a matéria de facto; (iii) qualificação jurídica dos factos; (iv) da medida da pena; (v) suspensão da execução da pena; (vi) valor da indemnização cível.
*
(da nulidade insanável da audiência de 06.07.2021)
Sustenta o recorrente que a audiência realizada no passado dia 06.07.2021 padece de nulidade insanável, nos termos do artigo [...], porquanto resultou demonstrado que o acórdão sub judice apenas se mostra assinado dia 07.07.2021.
Não se vislumbra qualquer nulidade insanável, por que não prevista nas diversas alíneas do art.º 119.º.
É usual que durante a leitura dos acórdãos sejam detectados erros ortográficos, cuja correcção se exige. Expurgados tais erros, é então o acórdão assinado pelos juízes que compõem o tribunal colectivo.
De qualquer modo, não se entende como é que o acórdão é depositado no dia 6 de Julho e as assinaturas só surgem no dia seguinte (dia 7). Não tendo sido invocada qualquer falsidade no acto do depósito, temos que ter como bom que ocorreu mesmo no dia 6. Quanto à circunstância das assinaturas do acórdão só surgirem no dia 7, dela também não podemos retirar qualquer consequência, porque tal pode ter ocorrido por motivos informáticos (ou seja, os juízes assinaram no dia 6, mas só apareceu no citius no dia 7).
O certo é que esta questão é irrelevante para o recorrente.
Ao abrigo do art.º 411.º, n.º 1, al. b), do CPP, o prazo de recurso começa com o depósito do acórdão.
O recurso foi interposto em tempo, e como tal admitido, sem qualquer prejuízo para o recorrente.
Improcede este fundamento do recurso.
*
(da decisão sobre a matéria de facto)
Discorda o recorrente da matéria de facto provada com os números 3, 4, 8, 11, 12, 15, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 29, 30, 31, 32, 34, 36, 38 e 39. Que são os seguintes:
3. Ao longo do relacionamento que o arguido manteve com CC este teve conhecimento através dos relatos de CC e de seus pais de desentendimentos entre CC e o assistente, o que originou que CC denunciasse factos que originaram um inquérito em que o assistente surge como denunciado e que foi classificado como de violência doméstica –vide emails e mensagens trocados entre CC e o assistente a fls. 440-457 e 1325-1364.
4. No dia 12.01.2020 o Assistente procedeu à entrega dos menores a CC na residência desta sita na Rua ....., não tendo, naquela altura, ocorrido qualquer problema ou questão.
8. Tendo o Arguido, respondido “diz ao teu pai para bloquear o número ou assim” (cfr. fls. 467).
11. De seguida e no trajeto que efetuou após sair da estação de serviço viu a viatura de CC com a matrícula …-UV-….
12. Em face disso e com o propósito de saber quem a conduzia, seguiu a viatura até à esquadra da PSP de ....., tendo no trajeto da dita perseguição se apercebido tratar-se do arguido, cessando a referida perseguição quando este entrou no parque de estacionamento da referida esquerda da PSP, regressando a casa, sita na Rua ....., artéria onde estacionou o veículo por si conduzido.
15. O arguido e CC permaneceram a conversar na habitação da mesma até cerca das 3h00 da manhã, altura em que arguido decidiu sair de casa munido de uma faca de cozinha que retirou da cozinha de CC.
17. Após a aquisição do tabaco o arguido decidiu deslocar-se até à rua ....., munido com uma faca da marca ....., com cabo em madeira de 11,8cm e lâmina de gume afiado com 12,2cm de comprimento com o intuito, inicial, de cortar os pneus da viatura do assistente, como forma de retaliação pelas condutas anteriores do mesmo.
19. Entretanto, a vítima que estava à varanda a fumar com EE, sua companheira, ao aperceber-se da viatura da ex-mulher, conduzida pelo arguido, próximo da sua viatura, temendo que aquele a danificasse e porque tinha a sua carteira pessoal no porta luvas, foi para a rua e dirigiu-se à sua viatura.
20. O arguido AA ao visualizar BB na via pública, despeitado e movido por sentimentos de vingança, com o propósito de lhe tirar a vida, dirigiu o veículo por si conduzido em direção ao corpo daquele, que nesse momento atravessava a pé a faixa de rodagem, saindo para o efeito da sua hemi-faixa de rodagem, embatendo com a parte da frente esquerda do veículo no corpo da vítima na hemi-faixa contrária atento sentido de marcha do arguido, projetando-a para cima do para-brisas e atirando-a ao chão.
21. O arguido imprimiu velocidade não concretamente apurada ao veículo que tripulava, mas cujo máximo foi inferior a 50 km/h.
22. Ato contínuo, e quando atingiu o cimo da rua o arguido inverteu o sentido da marcha, passou junto ao assistente, parou a viatura e saiu do seu interior munido com a faca acima descrita.
23. Aproximou-se da vítima, que estava no chão a tentar se levantar e, com a faca que empunhava, desferiu-lhe um primeiro golpe na cabeça e depois pelo menos mais três golpes, um nas costas e dois nas pernas, pontapeou-o, enquanto a vítima se defendia, desferindo socos na cara do arguido.
24. O ofendido BB com o propósito de que AA não abandonasse ao local, ainda conseguiu abrir a porta do lado do pendura do veículo de CC, agarrou nas chaves da ignição e atirou-as para o mato, altura em que o arguido AA lhe desfere outro golpe nas costas.
29. Ao agir da forma descrita o arguido AA quis e representou tirar a vida do ofendido, atingindo-o no corpo com veículo automóvel por si conduzido e desferindo-lhe golpes com faca em zonas do corpo que alojam órgão vitais, o que apenas não conseguiu por motivos alheios à sua vontade.
30. O arguido agiu utilizando para o efeito uma faca e um veículo automóvel.
31. O arguido quis ainda e representou, deter e fazer uso como arma de agressão, de arma branca com lâmina superior a 10cm, destinada às lides domésticas, o que conseguiu, bem sabendo que a sua detenção e utilização fora dos fins que lhe estão atribuídos, mormente como arma de agressão, é proibida.
32. O arguido AA agiu sempre de forma livre, deliberada e ciente que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
34. O assistente sentiu e sente medo que o arguido volte a tentar matá-lo, o que fez com que o mesmo alterasse as suas rotinas diárias, isolando-se e restringindo os seus contatos pessoais com os seus familiares e amigos.
36. Sentiu-se infeliz, amargurado, com desgosto e com dificuldades em dormir em virtude de pesadelos que o atormentavam revivendo os factos praticados pelo arguido e de que foi vítima, sendo que sofre de depressão.
38. Em consequência da conduta do arguido o assistente apresenta sintomas compatíveis com síndrome pós-traumático que obrigam o mesmo a ter acompanhamento médico.
39. As cicatrizes presentes no corpo do assistente e resultantes das lesões causadas pelo arguido provocam uma diminuição na autoestima do assistente que não se sente confortável com o seu aspeto físico.
Mais sustenta o recorrente que deve ser considerada provada outra diversa factualidade que mais à frente será descrita e apreciada.
*
O Tribunal a quo motivou a sua convicção do seguinte modo:
“O Tribunal formou a sua convicção com base quanto aos factos dados como provados com base nas declarações que o arguido prestou em sede de audiência de julgamento e também em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido e em sede de instrução, nas declarações do assistente, no depoimento das testemunhas ouvidas nessa sede, na prova documental e pericial junta aos autos e em juízos de experiência comum.
Quanto à demais factualidade o arguido apresentou duas versões dos factos – uma em sede de primeiro interrogatório e outra em sede de instrução, que confirmou, com algumas precisões, em sede de audiência de julgamento.
Na verdade, o arguido em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido o arguido justificou a sua saída pela segunda vez da casa de CC com o facto de terem ficado sem tabaco, sendo que referiu, expressamente, que pensava que o assistente já não o iria incomodar pelo facto do mesmo o ter visto entrar na esquadra da PSP de ..... e pelo tempo que já havia decorrido desde aquele encontro.
Também referiu que acabou por ir até à rua onde reside o assistente por mera coincidência, já que, cerca das 3h00 da menhã, quando saiu das bombas de gasolina onde adquiriu tabaco sentiu um carro atrás do seu e ficou assustado face ao que já havia anteriormente experienciado. Menciona que perante isso acelerou e andou vários quilómetros para o despistar e acabou por chegar à rua onde reside o assistente, sendo que há data o mesmo não sabia desse facto.
Referiu, ainda, que quando se encontrava na rua onde reside o assistente circulava a uma velocidade um pouco acima dos 50 km/h, tendo visto o assistente no meio da via a uma distância de cinco metros. Face a isso acelerou porque queria sair daquele local e é nesse momento que o assistente se atirou para cima do capot do seu veículo. Menciona que não se tentou desviar porque não se apercebeu da reação do assistente.
Afirmou, também, que após o embate no assistente, acabou por dar a volta com o veículo e pará-lo cerca de 5 metros mais abaixo relativamente ao local do embate, tendo negado que nesse trajeto tenha atropelado, uma segunda vez ofendido. Saiu do carro quando o ofendido está a tentar levantar-se, o que faz por uma ou duas vezes, estando o ofendido a cambalear. O ofendido dirigiu-se a si e agarra-lhe pelo colarinho, tendo-lhe desferido um ou dois murros na face que o projetaram para o chão. Ato contínuo o ofendido meteu-lhe um dos joelhos no ombro e um cotovelo no pescoço para o tentar imobilizar, tendo-lhe dito “separa-te dela” e o arguido respondeu “tudo bem BB”, continuando o ofendido a desferir murros na sua cara.
Quanto à faca referiu que não sabe de onde ela proveio, tendo referido que pensa que a mesma pertencia ao ofendido e que caiu no chão quando este foi contra o veículo. Admitiu que a certa altura desta contenda física agarrou na faca que estava no chão para se proteger no momento em que o arguido e o ofendido já se haviam levantado do chão e continuaram numa contenda física. No entanto, referiu não se recordar de ter esfaqueado o assistente, mas perante as lesões que o mesmo apresentava admitiu que tenha sido o autor das mesmas.
O arguido mencionou que tentou afastar-se, por várias vezes, do assistente, mas este último sempre o agarrou, mesmo quando tentou entrar no veículo que tripulava para sair do local o assistente abriu a porta do veículo e o agarrou, momento em que desferiu um pontapé no assistente para o mesmo se afastar.
O arguido mencionou que durante a altercação gritou por socorro e polícia, tendo logrado sair do local em busca de socorro.
Esta versão do arguido mostra-se eivada de contradições, não tendo o arguido logrado explicar como havia, por coincidência, e à hora tardia em causa, acabado por aparecer na rua onde vive o assistente. Também quanto à questão da faca a sua versão não faz qualquer sentido e muito menos o facto de ter sido o próprio assistente a se atirar para cima do carro tripulado pelo arguido.
Tão flagrantes eram tais inconsistências que o arguido em sede de instrução corrigiu a sua versão dos factos.
Assim, em sede de instrução e depois em audiência de julgamento o arguido referiu que a faca em causa havia sido transportada por si, tendo-a tirado da cozinha de CC e decidido transportar a mesma quando foi comprar tabaco para se proteger.
Admite que se deslocou, de forma deliberada, à rua onde morava o assistente (facto que tinha conhecimento por lhe ter sido, anteriormente, transmitido por CC) com o intuito de cortar os pneus do veículo do mesmo para que este não o perseguisse, a si e à CC
Uma vez na rua do assistente subiu a mesma e viu o assistente a sair do lado onde o carro do assistente se encontrava estacionado, tendo guinado o seu veículo para o lado esquerdo (da perspetiva em que seguia o arguido), com o intuito de assustar o assistente, mas tendo-o atingido com o lado esquerdo do seu veículo e provocado a queda deste no chão.
Corrigiu a velocidade a que seguia tendo referiu que vinha a uma velocidade inferior a 50 km/h.
Mencionou que o arguido tentou levantar-se, que inverteu a marcha do seu veículo tendo parado o mesmo após o local onde se encontrava o assistente e saiu do seu veículo para verificar o seu estado. O arguido mencionou que quando saiu do veículo tinha a faca de cozinha no seu bolso do sobretudo, sendo que conduziu o veículo já com a referida faca no bolso.
Ao sair do veículo dirige uma expressão ao assistente cujo conteúdo não se recorda e este último vem na sua direção, tendo tentado o alcançar com um soco, não o tendo conseguido, tropeçou e só depois logrou agarrá-lo e desferir-lhe vários socos, que provocaram a queda do arguido com as costas no chão e o assistente também acabou por cair em cima do mesmo. É nesse momento que o arguido assume que tirou a faca do bolso do sobretudo e esfaqueou o assistente nas costas, não tendo ideia de quantas vezes acabou por atingir o corpo do assistente com a faca, sendo que no desenvolvimento da contenda o arguido e o assistente voltaram a cair no chão, desta feita foi o assistente que caiu de costas para o chão e o arguido colocou-se em cima do assistente, na zona da cintura e foi nesse momento que admite que possa ter atingido a perna do assistente com a faca.
Quanto ao mais o arguido manteve a versão que apresentou em sede de primeiro interrogatório judicial.
Em sede de audiência de julgamento o arguido manteve, na sua essencialidade, a versão dos factos que relatou em sede de instrução, colocando maior ênfase no facto de ter utilizado a faca no corpo do assistente face ao estado de pânico em que se encontrava, não só por lhe ter sido transmitido por CC e sua família que o assistente era alguém muito perigoso e conflituoso, mas também face à sua menor compleição física quando comparada com o assistente e à sua experiência traumática anterior em que este foi alvo de agressão com uma arma branca na zona do pescoço.
Já o assistente assume o relacionamento que manteve com CC e do qual resultaram dois filhos, bem como os conflitos que passaram a existir entre ambos relacionado com as responsabilidades parentais. Também confessa que teve conhecimento, através do seu filho mais velho (com 9 anos), que CC tinha um novo namorado, sendo que o menor relatou que o mesmo até dormia na cama que havia sido do pai.
O assistente assumiu que enviou a mensagem referida em 5) dos factos provados, bem como confirmou a factualidade constante em 4).
Quanto à perseguição que encetou ao veículo de CC tripulado pelo arguido o mesmo confessa que a mesma ocorreu, mas apenas porque queria confirmar se era CC que estava a conduzir veículo e se os seus filhos estavam no veículo àquela hora tardia, tendo negado que tenha feito qualquer diagonal com o seu carro para bloquear que o arguido passasse ou mesmo qualquer sinal para o arguido parar. Menciona que quando logrou visualizar que era o arguido a conduzir o veículo abandonou a perseguição e regressou a casa, onde esteve a conversar e a beber 3 ou quatro cervejas, na varanda, com a sua atual companheira, EE até cerca das 03h30 da manhã, sendo que o seu andar é um 1.º andar.
Quando se preparavam para ir dormir o assistente menciona que viu o veículo de CC na rotunda que antecede o acesso à sua rua e por temer que o condutor desse veículo viesse danificar o seu veículo, tendo-se esquecido da sua carteira no mesmo, decidiu descer até à rua para se dirigir ao seu veículo que se encontrava estacionado no lado esquerdo no sentido em que seguia o arguido.
O assistente iniciou a travessia da via tendo visto o veículo tripulado pelo arguido que vinha devagar, mas o mesmo a o ver a atravessar a via em direção ao seu veículo que se encontrava estacionado no lado esquerdo no sentido em que seguia o arguido, acelerou e embateu no mesmo quando este estava quase a chegar à traseira do seu veículo.
Afirmou que pensa que perdeu os sentidos após o embate e que acordou quando sente uma forte dor na perna direita, tendo ficado com a impressão que o veículo tripulado pelo arguido havia passado por cima da sua perna.
Quando retomou a consciência viu o veículo tripulado pelo arguido à sua frente no sentido descendente, tendo já o referido veículo invertido o sentido de marcha que mantinha quando o embateu.
Tentou levantar-se e foi logo abordado pelo arguido que vinha munido com um objeto na mão pontiagudo. O arguido atingiu-o com o referido objeto quando este ainda estava no chão a tentar levantar-se, sendo que a primeira agressão foi na cabeça. Acaba por conseguir levantar-se e agarra-se ao arguido e entram em contenda física. Nega que o arguido alguma vez tenha caído ao chão consigo.
No decorrer da contenda física o assistente tentou tirar a chave da ignição do veículo utilizado pelo arguido tendo aberto a porta do lado do pendura e logrado entrar no interior do veículo e retirar a chave do mesmo da ignição e o arguido aproveitando esse movimento do assistente e quando este está de costas, dentro do veículo é atingido nas costas com o citado objeto pontiagudo. Após essa agressão o assistente após sair do carro cai para o chão ao lado da porta do pendura e já não se levanta por falta de forças e é aí que o arguido abandona o local.
O assistente nega qualquer troca de palavras com o arguido, nem que o arguido tenha gritado por ajuda.
Assim, resultaram provados sem margem para dúvidas por resultarem pacificamente da prova produzida em julgamento os seguintes factos:
O arguido quer em sede de primeiro interrogatório judicial, bem como em instrução e em audiência de julgamento confirmou o relacionamento que manteve com CC bem como os conflitos existentes entre CC e BB, assistente nestes autos, e ainda a mensagem remetida por BB referida em 5) dos factos provados. Tal factualidade foi igualmente confirmada pelas declarações do próprio assistente, sendo que a testemunha EE também confirmou a existência de conflitos entre o assistente e CC, facto também confirmado por esta última e pelo seu pai, DD.
O facto constante em 3) assentou, também, na análise das mensagens/e-mails trocados entre CC e o assistente e onde é manifesta tensão entre os mesmos – vide fls. 440-457 e 1325-1364.
Quanto à entrega dos filhos de CC e BB referida no facto 4) EE, CC, o assistente e o próprio arguido confirmaram que inexistiu qualquer conflito.
Relativamente à factualidade constante em 5) para além do arguido ter confirmado a mesma, esta foi confirmada pela testemunha CC, pelo próprio assistente que confrontado com o teor da referida mensagem (fls. 436-437) confirmou que enviou a referida mensagem.
O assistente reconheceu igualmente que teve conhecimento, no dia 12/01/2020, da relação que o arguido então mantinha com a sua ex-mulher CC, e que nesse mesmo dia o assistente enviou uma mensagem a CC acusando-a de lhe pedir mais dinheiro a título de pensão de alimentos por ter mais um filho para sustentar (em alusão ao arguido), mensagem de que o arguido teve conhecimento, tal como o próprio confessou.
O arguido também confirmou em sede de audiência de julgamento os factos dados como provados em 6) a 9), sendo que a referida factualidade também foi confirmada pelo depoimento da testemunha CC e dos depoimentos da mãe e do irmão do arguido, LL e GG que confirmaram a referida factualidade.
Também quanto aos factos constantes em 7) e 8) os mesmos foram confirmados pelo arguido e surgem sustentados, igualmente, no depoimento de CC e no teor da mensagem a fls. 467.
Quanto ao facto constante em 10) o assistente e EE confirmaram que o arguido saiu da sua casa para adquirir tabaco. Ainda que o assistente não tenha logrado concretizar o momento em que procedeu à compra do tabaco tal factualidade resulta clara da análise dos fotogramas das imagens de vídeo vigilância da estação de serviço ..... a fls. 482-487.
Quanto à perseguição encetada pelo assistente ao veículo tripulado pelo arguido – factos 11) e 12) – o mesmo foi confirmado pelo arguido e pelo próprio assistente, ainda que em termos diferentes quanto ao modo como ocorreu a referida perseguição.
A versão do assistente que acabou por admitir que perseguiu o veículo de CC para confirmar que se era a mesma que estava a conduzir o veículo àquela hora vai de acordo com as mais básicas regras de experiência comum.
Note-se que existia um intenso conflito entre o assistente e CC envolvendo os filhos dos mesmos e por isso faz sentido que o assistente quisesse saber se era CC quem estava a conduzir o veículo e se os seus filhos estavam com a mesma na rua àquela hora que era impropria para dois menores estarem acordados.
Após ter confirmado que não era CC quem estava a conduzir o veículo e tendo o arguido dirigido o veículo para o parque de estacionamento da PSP de ..... o assistente regressou a casa.
A entrada do veículo do arguido no parque da PSP de ..... e a sua entrada nas instalações da referida PSP, denunciando esse seguimento ao agente que aí se encontrava resulta da conjugação dos fotogramas das imagens de vídeo vigilância da referida esquadra a fls. 326-338, bem como no depoimento do agente da PSP, HH, que confirmou que o arguido lhe transmitiu que fora perseguido por um veículo e que suspeitava que o autor de tal perseguição era o ex-marido da sua namorada, com quem esta estava em litígio. Fundou tais suspeitas pelo fato de estar a circular com o veículo de CC e o assistente ao ver tal veículo seguiu-o para ver se era CC e se esta havia deixado as crianças em casa, o que aliás, foi essa a versão que o assistente trouxe a julgamento e, como referimos mostra-se conforme com as regras de experiência comum.
Quanto ao modo como ocorreu a referida perseguição o arguido referiu que o assistente chegou a estar com o seu veículo ao lado do seu enquanto esbracejava para que este encostasse o veículo e parasse, o que o arguido não obedeceu, tendo acelerado, sendo que aí o arguido colocou o seu veículo na diagonal para tentar parar o veículo tripulado pelo arguido, mas este logrou contornar o veículo do assistente subindo o passeio.
Esta versão de como decorreu a referida perseguição foi contrariada pelo assistente que negou a mesma e referiu que abandonou a perseguição quando o arguido voltou para entrar no parque de estacionamento da PSP de ....., pois aí logrou ver que não era CC que conduzia o veículo.
A versão do arguido quanto ao modo como decorreu a perseguição não foi confirmada por nenhum outro elemento probatório, sendo que o arguido quando entrou na PSP de ..... e esteve a falar com o agente HH não descreveu nenhuma destas peripécias. Aliás, HH, foi claro ao referir que o arguido não lhe referiu qualquer ultrapassagem perigosa, nem qualquer outra manobra perigosa na perseguição, sendo que o arguido lhe transmitiu que pelas características do veículo que o perseguiu e pelos motivos que enunciamos em supra associou o autor de tal perseguição ao assistente. Ora, se a perseguição tivesse ocorrido como descreveu o arguido o mesmo não teria qualquer dúvida quanto à identidade de quem o estava a perseguir, pois tinha-o visto bem já que este circulou lado a lado ao seu veículo, sendo que o arguido conhecia o assistente pelas fotografias que já havia anteriormente visionado.
Por fim, note-se que, como bem referiu o agente HH, o arguido recusou qualquer escolta para casa, facto que foi negado pelo arguido, sendo que esta testemunha não demonstrou qualquer animosidade para com o arguido, pelo contrário, até foi claro ao referir que o arguido lhe parecia emocionalmente desgastado, não tendo qualquer motivo para mentir em julgamento, tendo o tribunal concedido credibilidade à referida testemunha.
Assim, se a perseguição tivesse a gravidade que o arguido tentou transmitir a este tribunal, o mesmo teria aceite a referida escolta policial para sua própria proteção.
Os factos constantes em 13) e 14) foram confirmados pelo arguido e surgem igualmente sustentados no depoimento de DD, pai de CC, que confirmou a referida factualidade. Igualmente, para a prova do facto constante em 14) atendeu-se ao teor da mensagem a fls. 1451.
Também resultou provado que cerca das 03h30 desse dia, conduzindo o veículo de CC, o arguido dirigiu-se à Rua ....., onde sabia que o assistente residia, acompanhado da faca descrita nos factos provados, também de CC, de que previamente se munira.
Previamente a se dirigir à rua onde reside o assistente o arguido se dirigiu à estação de serviço da ....., em ....., onde adquiriu tabaco e após ter saído da mesma é que se dirigiu à rua onde habita o assistente – factos 15) e 16).
O arguido confessou essa factualidade, sendo que CC confirmou, igualmente, a factualidade constante em 15) no que diz respeito à saída tardia do arguido para adquirir tabaco. Também as imagens de vídeo vigilância do posto de estabelecimento a fls. 472-476 demonstram que o arguido se dirigiu à estação de serviço da ..... de ..... onde adquiriu tabaco que depois foi apreendido e que se encontravam no interior do veículo tripulado pelo arguido – vide auto de apreensão a fls. 55.
Também inequívoco se mostra porque nesta parte as declarações do arguido e do assistente são convergentes que na rua onde habita o assistente o arguido embateu com a parte da frente esquerda do veículo que conduzia no corpo do assistente – que nesse momento atravessava a pé a faixa de rodagem, na hemi-faixa contrária à afeta ao sentido de marcha do arguido –, projetando o ofendido para cima do para-brisas e atirando-o ao chão.
No cimo da rua, o arguido inverteu a marcha, dirigindo-se de novo ao local do embate, passou pelo assistente, parou o veículo que conduzia e saiu do mesmo transportando consigo a faca já referida, após o que lhe dirigiu vários golpes no corpo e pelo menos um pontapé, tendo-lhe o assistente desferido igualmente socos na face.
Enquanto isto, EE, companheira do assistente, encontrava-se na janela da sua casa, tendo telefonado para o número nacional de emergência e falado com o INEM, pedindo auxílio, conforme decorre da respetiva transcrição da conversação telefónica que a mesma manteve com a enfermeira do INEM – fls. 664-670.
Após, o arguido largou a faca e abandonou o local a pé.
Quanto à de mais factualidade a mesma é controvertida inexistindo concordância entre as declarações do assistente e do arguido nos termos supra referidos.
O arguido afirmou em sede de audiência de julgamento que a sua intenção inicial ao deslocar-se à rua onde morava o assistente seria para cortar os pneus do carro do mesmo e que esta seria uma forma do assistente não os seguir de manhã para ....., já que CC iniciaria um novo trabalho.
Esta versão trazida pelo arguido em sede de audiência de julgamento mostra-se credível na parte em que o mesmo refere que a sua intenção inicial ao se deslocar com a faca à rua do assistente fosse cortar os pneus do carro deste último, até porque àquela hora não era espetável que o arguido encontrasse o assistente na rua.
É certo que o fez às 03h30, hora a que habitualmente as pessoas não andam na rua e muitas até estão a dormir. Porém, também é certo resultou da prova produzida que por volta das 02h00 o assistente enviou mensagens a familiar de CC, que foram do conhecimento desta e, com grande probabilidade, também do arguido, que estava com ela, ficando assim a saber que pelo menos a essa hora o assistente estava acordado. De todo o modo, não tinha o arguido maneira de saber que o assistente, mesmo vendo-o circular de carro pela sua rua, sairia de casa, criando assim as condições para que pudesse atropelá-lo e depois esfaqueá-lo.
Assim, não se prova suficientemente que, ao dirigir-se de veículo automóvel à rua onde sabia morar o assistente, munido de uma faca, o arguido já estivesse animado da intenção de tirar-lhe a vida ou que pretendesse ou soubesse que ia encontrá-lo ou confrontá-lo.
Já a versão do arguido na parte em que refere que pretendia furar os pneus para “ganhar tempo”, impedindo que o assistente o voltasse a seguir ou importuná-lo a si ou a CC na manhã daquele dia, pois CC iria iniciar um novo trabalho em ..... não faz qualquer sentido à luz das regras da experiência comum. O arguido sabia que o assistente era e é ..... e que trabalha por turnos. Também estava ciente que o assistente o perseguiu já após as 00h00, hora já tardia e como tal a possibilidade do assistente o perseguir logo de manhã cedo era ínfima, pois o assistente estaria a descansar naquele horário.
Por outro lado, a testemunha CC não descreveu ter sido alguma vez perseguida pelo assistente para o seu local de trabalho.
O arguido encontrava-se despeitado não só pelo teor da mensagem que o assistente havia enviado a CC onde este o tratava como alguém menor em função da diferença de idade que existia entre este e CC, bem como pelo comportamento do assistente, designadamente pela perseguição de que por ele julgava ter sido alvo pouco antes, levando-o inclusivamente a deslocar-se a esquadra da P.S.P..
De facto, se o arguido tinha relativamente ao assistente o receio que pretendeu fazer crer em toda a audiência de julgamento, só poderia esperar que semelhante atitude da sua parte o deixasse ainda mais irado.
Assim, deu-se como provado os factos constantes em 17) e 18) e como não provado o facto constante em a).
Para a prova das características da faca que o arguido detinha e que usou atendeu-se ao auto de apreensão a fls. 130 (cuja cópia encontra-se a fls. 51) e fotograma 12 a fls. 88.
Quanto ao facto constante em 19) o mesmo foi confirmado pelo assistente que descreveu o local onde o seu veículo estava estacionado - vide fls. 82 e 83, 284-287 – bem como a forma como viu o veículo em causa na rotunda próximo da sua rua (vide fotograma a fls. 118-1121) e que embora a mesma não tenha acesso direto à rua em causa certo é que o assistente viu o veículo a se dirigir na direção do seu prédio, tendo sido esse o fator que o levou a descer até junto do seu veículo não só com receio do que o arguido pudesse fazer no referido veículo, bem como pelo facto de se ter esquecido da sua carteira no veículo.
As declarações do assistente mereceram total credibilidade pois tal como referiu EE, companheira do assistente, àquela hora já se preparavam para se deitar e o facto do assistente ter descido do seu andar e se dirigir para o seu veículo está justificado pelo fato do mesmo ter visto, efetivamente, o veículo tripulado pelo arguido na sua rua e temer o que o mesmo iria fazer, face até à perseguição que o assistente havia feito naquela noite ao referido veículo.
O tribunal considerou inexistir qualquer dúvida quanto à intencionalidade do primeiro embate do veículo tripulado pelo arguido no corpo do assistente.
O próprio arguido assumiu em julgamento – aliás, em choro convulsivo – que viu e reconheceu o assistente na hemi-faixa de rodagem contrária ao seu sentido de marcha e que (palavras suas) “guinou para a esquerda”, “virou o carro” e atingiu-o. “Guinar” significa desviar-se bruscamente da sua trajetória. Das suas declarações resultou também que não existia qualquer obstáculo na via que pudesse tê-lo levado a alterar a sua trajetória (nem sequer o carro estacionado do lado direito da via, fotografado pela testemunha EE – foto de fls. 81 – que está estacionado bem mais à frente), tendo-se, assim, dado como não provado o constante em c). Esta intencionalidade resultou também, de resto, das declarações do assistente e da testemunha EE em julgamento, por isso, não se compreende alguma insistência da defesa relativamente a uma suposta pouca experiência do arguido no exercício da condução, em geral e designadamente do carro de CC. A não ser que pretenda agora vir defender que foi por falta de perícia que atingiu o corpo do assistente ou que só pretendia assustá-lo, o que é absolutamente contraditório com as suas próprias declarações.
Por outro lado, uma das hipóteses que é colocada no parecer do Prof. II (vide fls. 1371-1411), num cenário que equacionou (o nº 2, supostamente “descrito pelo arguido”), é a de o veículo do arguido circular na sua mão de trânsito e ter sido o próprio assistente a dirigir-se para esse veículo – quase em defesa da absurda tese que o arguido veiculou no seu primeiro interrogatório judicial, mas que abandonou em instrução e em julgamento. Ora, como todos percebemos da audição em julgamento do Prof. II, o seu parecer foi elaborado com base num pressuposto errado, o de que o veículo conduzido pelo arguido circulou sempre numa trajetória reta (e isto, quer no cenário 1, quer no cenário 2), quando o próprio arguido declarou que guinou para a sua esquerda e foi assim que invadiu a hemi-faixa contrária, onde se encontrava o assistente – elemento que, pelos vistos, não foi fornecido à testemunha.
Aliás, não é esse o único pressuposto errado desse parecer, pois ali também se dá como assente que, depois do embate, o assistente ficou caído de barriga para cima com as pernas viradas no sentido descendente da via, quando a testemunha EE declarou em julgamento que as pernas do assistente ficaram viradas no sentido ascendente.
Assim, porque baseado em pressupostos que o próprio arguido negou em audiência de julgamento tal parecer técnico não se mostrou minimamente relevante para a decisão da causa.
No entanto, quanto à factualidade referente ao segundo atropelamento do assistente por parte do arguido a mesma resultou como não provada – al. b).
Na verdade, o assistente não apresentava lesões físicas compatíveis com a passagem de um carro com mais de uma tonelada pela perna, tendo tal conclusão sido afirmada pelo Sr. Perito em esclarecimento em sede de audiência de julgamento e que aliás, também havia sido descrito pela testemunha II.
Por outro lado, as declarações do assistente e até de EE neste ponto não foram concludentes, já que o assistente apenas referiu que acordou quando sentiu uma grande dor na perna, mas não viu o carro tripulado pelo arguido a passar por cima da mesma por estar inanimado e EE não foi assertiva nesse ponto, tendo referido que ficou com a “sensação”, do ponto onde estava que o carro do arguido fez um movimento que levou esta a concluir nesse sentido.
Assim, não se logrou provar que o arguido tenha atropelado, uma segunda vez, o corpo do assistente.
Também da prova produzida em sede de audiência de julgamento inexiste qualquer dúvida quanto à intencionalidade dos golpes de faca por parte do arguido no corpo do assistente.
Ela resulta do facto de o arguido ter saído do veículo na posse da faca de que previamente se munira (como ele próprio admitiu) e de se ter dirigido ao assistente que instantes antes havia atropelado e que (como também disse) estava “no chão a tentar levantar-se”.
Não colhe a explicação de que pretendia apenas verificar como é que estava o assistente, supostamente para ver se necessitava de auxílio, pois se estivesse preocupado com o seu estado – eventualmente depois de ter caído em si… – lógico seria que tivesse providenciado pela obtenção de socorro, até sem se identificar (para o que nem sequer seria necessário sair do carro), muito menos fazendo sentido que tenha levado a faca consigo quando saiu do carro.
Referiu o arguido, é certo, que ao aproximar-se do assistente – justamente neste momento, note-se – este conseguiu levantar-se, momento em que ambos se envolveram em luta, dizendo também que golpeou o assistente nas costas quando este estava sobre si a agarrar-lhe na camisa (porventura insinuando que se limitou a defender-se).
Mas, a este propósito, das declarações do assistente e da testemunha EE resultou claramente que ao aproximar-se do assistente o arguido já trazia a faca, posto que o viram com um objeto na mão, com o qual de imediato desferiu golpes no assistente.
Aliás, das transcrições da conversação telefónica que EE manteve com a técnica do INEM a mesma afirma que o arguido tinha qualquer coisa na mão que ela não conseguiu perceber quando saiu de dentro do veículo e que até lhe parecia um ferro (cfr. fls. 669). Ainda que EE não tivesse logrado descrever que se tratava de uma faca certo é que viu o arguido sair do veículo já munido de tal objeto na sua mão, o que confirmou em sede de audiência de julgamento.
É certo que o assistente também desferiu socos no corpo do arguido após este lhe ter atingido com a faca quando se tentava levantar – o que aliás, foi assumido pelo próprio assistente e por EE e resulta da já referida transcrição da chamada para o INEM por parte de EE, tendo esta afirmado que estes (arguido e assistente) andavam a bater-se.
E de facto, neste contexto, que atitude seria esperar do assistente, em situação de inferioridade pelo embate que sofrera e vendo o causador desse embate aproximar-se de si com uma faca na mão, estando ele ainda no chão, senão a de tentar defender-se, deferindo socos na cara no arguido e procurando pelos meios ao seu alcance opor-se à sua ação?
Fica, pois, manifestamente afastado qualquer cenário de defesa por parte do arguido ou mesmo receio relativamente ao assistente, cuja proximidade ele próprio procurou… Quem receia alguém da forma que o arguido pretendeu convencer o tribunal (designadamente de ser perseguido e eventualmente agredido) não sai de casa às 03h30 apenas para comprar tabaco, não se desloca depois à rua onde sabe que essa pessoa mora e não se dirige a ela depois de a ter atropelado intencionalmente.
Assim, deu-se como não provada a factualidade constante em e) e f).
Quanto à intenção de matar a mesma resultou igualmente provada analisando toda a conduta do arguido.
O arguido dirigiu intencionalmente o veículo que conduzia na direção do corpo do assistente, com a velocidade e força suficientes para fazê-lo embater no vidro para-brisas (que ficou estilhaçado, como demonstram as fotos dos autos a fls. 91, 340-343) e projetá-lo ao solo – conduta por si só apta a provocar-lhe a morte, mesmo a velocidade não superior a 50 Km/h, o que o arguido não podia deixar de saber, facto que previu e quis.
Não satisfeito com isso, dirigiu-se logo a seguir ao assistente, que se encontrava debilitado pelo embate e com dificuldade em levantar-se, munido de uma faca bem pontiaguda (vejam-se as fotos dos autos a fls. 88), com a qual o golpeou por diversas vezes, designadamente em zonas onde se alojam órgãos vitais e com a força suficiente para perfurar as diversas camadas de roupa que lhe revestiam o tronco (camisa, camisola de malha e sobretudo do tipo canadiana), levando até a que a faca se partisse, como resulta das fotos colhidas no local – com a clara intenção de lhe causar a morte. Tal foi a fúria e força exercida pelo arguido para lograr esfaquear o assistente que a faca acabou por se partir.
Tal resultado morte só não aconteceu por circunstâncias alheias à sua vontade não só porque o assistente se debateu e defendeu, agredindo ele próprio o arguido da forma de que foi capaz, como a própria roupa que o assistente vestia (diversas camadas de roupa e com uma canadiana que constituiu uma barreira eficaz) foi necessariamente impeditiva de que os golpes de faca atingissem maior profundidade.
Por fim, o arguido apercebeu-se também de que a testemunha EE estava a presenciar os factos da janela/varanda/terraço da sua habitação (foi ele próprio que disse ter notado que uma senhora chorava e que essa senhora teria alguma ligação com o assistente porque este lhe disse “vem cá abaixo”). Nestas circunstâncias, não pode ter deixado de se aperceber ou menos de supor que esta teria pedido auxílio (conforme efetivamente fez) e que esse auxílio chegaria em breve, sendo ele surpreendido no local.
De resto, o arguido acabou por abandonar o local a pé antes da chegada de qualquer socorro ou autoridade policial, não sem antes ter tentado fazê-lo no carro que o levara até ali (conforme ele próprio reconheceu). E não, obviamente, porque quisesse “fugir” do assistente, com receio dele (o que é absolutamente incompatível com toda a conduta que anteriormente assumira), mas porque quis simplesmente ausentar-se do local antes da chegada de terceiros e o assistente conseguiu retirar da ignição, pela porta do pendura, as chaves que ele ali deixara (o arguido admitiu que efetivamente deixara as chaves na ignição e o assistente declarou que conseguiu retirá-las, atirando-as para o mato – o que é compatível com o facto de essas chaves não terem sido encontradas na ignição).
Como referiu o assistente foi nesse momento – quando o assistente retirou as chaves da ignição – que o arguido desferiu um dos golpes de faca nas costas do assistente, o que, de certa forma, foi confirmado pelas declarações da inspetora da PJ FF, na parte em que aludiu à existência de sangue, quer no interior do veículo, quer na porta do pendura, bem como com o teor do relatório de inspeção a fls. 339-351, 353-369 e 647-650.
Note-se que o arguido quando se prepara para sair do local caiu em si até porque viu o assistente a desfalecer e se apercebeu que quer ele quer o assistente estavam cheios de sangue, tendo este começado a gritar por socorro “como um louco”, nas palavras de EE – vide fls. 666. Assim, este comportamento do arguido não significa que este se limitou a usar a faca para se defender como insinuou nas suas declarações, mas porque foi apenas nesse momento que este pensou, de forma racional, na gravidade da sua conduta.
Por fim, quanto à motivação da conduta do arguido referira-se que a conduta do arguido, empreendida contra uma pessoa que ele nem sequer conhecia, não pode ser dissociada do conhecimento da mensagem que na véspera o assistente remetera a CC, então sua namorada, e que lhe dizia diretamente respeito, nos termos já analisados.
Tal como não pode ser dissociada do seguimento que o assistente lhe fez poucas horas antes e que o levou a dirigir-se a esquadra da PSP, onde queixa alguma acabou por ser formalizada.
O próprio arguido admitiu que, ao deslocar-se munido de uma faca à rua onde o assistente morava, pretendia furar-lhe os pneus, o que parece ser demonstrativo do seu intuito de retaliação para com ele (afastado, por incongruente, como já disse, o motivo que ele invocou para esse ato).
Assim, resultou provado que a motivação do arguido ao atuar nos termos dados como provados foi de retaliação/vingança.
A testemunha JJ, psicóloga que elaborou o que designou de “relatório de avaliação psicológica” do arguido a fls. 1412 e segs., traçou um perfil psicológico do arguido onde afirma que “o atropelamento com o carro surge de forma reativa, no contexto de uma situação de incapacidade de se regular emocionalmente, que o (arguido) impede de ponderar de forma adequada entre os benefícios e os prejuízos da ação cometida, ou seja a ponderação das consequências.” A testemunha refere que “houve uma situação de stress disruptivo, que acabou por reativar eventuais memórias traumáticas do passado. Neste sentido, a capacidade de manter um pensamento causal (estabelecer relações de causa-efeito), alternativo (gerar soluções alternativas para a resolução da situação), consequencial (antecipar possíveis consequências das suas ações) e meio-fim (considerar, avaliar e articular de forma adequada e coerente os meios necessários para a implementação de uma solução alternativa) encontrava-se comprometido, levando à sequência de acontecimentos descritos.”
Ora, quer o arguido, quer o seu irmão e a sua mãe confirmaram que o arguido foi alvo de um ataque com arma branca na sua juventude por um colega de escola na zona da cervical direita, o que resulta, igualmente, da ficha de informação clínica a fls. 1367-1368,1464 e missiva do arguido a fls. 1366. Também das declarações do arguido, corroboradas pelos depoimentos de seu irmão e mãe resulta que o arguido na sua juventude viu a sua mãe ser vítima de violência doméstica, tendo presenciado atos de tal natureza.
Ora, apesar do supra referido e da imagem que foi transmitida por CC e por seus pais de que o assistente seria uma pessoa conflituosa, a que acresce a perseguição ao veículo que tripulava por parte do assistente certo é que não é o assistente que vai à rua onde se encontrava o arguido, nem é o assistente que saiu de casa munido de uma faca com a intenção inicial de cortar os pneus do veículo do arguido. Quem pratica estes atos é o arguido e nem se diga que aqui exista qualquer situação de stress disruptivo, tanto mais que mediou algum tempo desde a perseguição até o arguido se deslocar à rua onde habita o assistente. Mais, o arguido não se limitou a atropelar o assistente num ato irrefletido, o mesmo vendo que o assistente ainda se está a tentar levantar após ter sido atingido com um veículo com mais de mil quilos (vide print do registo automóvel a fls. 374) este sem dó nem piedade sai do veículo empunhando um faca e parte para o corpo do assistente atingindo-o com a faca em primeiro lugar na cabeça e depois no confronto físico que se gerou o assistente acaba por ser atingido, pelo menos mais quatro vezes com a faca.
A testemunha no relatório que elaborou parece defender que o arguido agiu num estado de inimputabilidade ou que este agiu dominado por compreensível emoção violenta. Mas esse elemento privilegiador não pode ter-se como verificado de forma a que, correlativamente, se conclua por uma culpa diminuída. A chamada “cláusula de compreensibilidade” se referida aos motivos relacionados com a emoção que devem ser valorados, não parece que no caso se verifique. Antes de mais porque essa “emoção” momentânea, na medida em que surgida na ocasião (e não constituindo um estado de afecto) assenta em experiências ainda que traumáticas já há muito passadas na vida do arguido e numa perseguição que havia ocorrido havia horas. Depois porque aquilo que essa isso desencadeou, de acordo com os factos provados, foi um intuito de vingança. E não desencadeou um desejo de vingança difuso, etéreo, mas muito concreto e radical que, leva que o arguido saia de casa munido de uma faca com potencial letal evidente para, inicialmente, furar os pneus da viatura do assiste, mas ao deparar-se com o mesmo na via o arguido não hesitou em usar o veículo que conduzia como uma arma, guinando-o na direção do corpo do assistente e não satisfeito com esse resultado ainda usa uma faca para atacá-lo.
É, pois, manifesta a desproporção e inadequação entre o “facto” tido como injusto, causador da “emoção” em relação à ofensa que se preparou para levar a cabo e que acabou por concretizar. Tudo o que se descreveu quanto a experiências passadas pelo arguido e ao que lhe foi transmitido quanto ao caráter do assistente, bem como o teor das mensagens enviadas pelo assistente e a perseguição que o mesmo efetuou não pode ter-se como adequado a provocar no arguido determinado grau de perturbação psicológico e emocional tal que pudesse justificar de forma aceitável que tenha alcançado um grau de violência que não pudesse ser refreado de maneira a manter sob controle o seu desejo de reação extremada, até porque a testemunha JJ quer no seu relatório, quer em sede de audiência de julgamento referiu que o arguido não era impulsivo, refletia nos atos que cometia e que até tinha uma inteligência acima da média.
Quanto às lesões provocadas no corpo do assistente com a faca empunhada e usada pelo arguido da conjugação das declarações do assistente com o teor do exame pericial de avaliação do dano corporal a fls. 496-499, relatório e respetivos fotogramas a fls. 647-650, ficha de urgência do assistente a fls. 116-116 verso, reportagem fotográfica das lesões ao nível da cabeça que o assistente tinha quando foi admitido no hospital a fls. 292-295, bem como fotogramas da roupa que o assistente trajava no momento dos factos - fls. 296-302 – aliado aos esclarecimentos que o Ex.mo perito, MM, o tribunal deu como provados os factos constantes em 23), 26) e 27).
Na verdade, o Ex.mo perito foi claro ao referir que da análise da ficha de urgência do assistente logrou-se apurar, sem qualquer margem para dúvida, que a ferida que o assistente apresentava no couro cabeludo e que o assistente referiu ter sido onde primeiro o arguido lhe atingiu com a faca quando este ainda se tentava levantar, foi provocada por uma arma branca já que tal ferida tinha um rebordo regular, sem grande hematoma, típica de tal tipo de lesão. Caso tal ferida tivesse sido provocada por impacto no solo ou no para brisas do carro a mesma não teria um rebordo linear e estaria com muito mais hematoma, sendo que o vidro do para brisas do carro estalou/esmigalhou, mas não partiu, pelo que tal vidro não produziria feridas idênticas às produzidas por arma branca.
O assistente ainda apresentava dois ferimentos no membro inferior direito – o que está de acordo com os dois orifícios nas calças do assistente provocados por um objeto corto-perfurante, sendo que o assistente ainda possui, pelo menos mais duas feridas típicas de arma branca na zona do tórax.
O que não se provou foi a factualidade constante em d) já que a referida lesão era apenas uma suspeita que não veio a ser confirmada, como resulta claro da referida ficha de urgência do assistente.
Quanto aos dias de doença o Ex.mo perito esclareceu o que já constava no seu relatório, sendo que para a fixação de tais dias teve não só em causa a natureza e localização das lesões, mas também o tipo de trabalho que o assistente fazia – era ....., o que implica várias horas em pé.
Pela defesa do arguido foi junto aos autos um outro parecer subscrito por um médico (fls. 617-623) em que este refere que tendo em conta o tipo de lesões que o assistente apresentava o tempo de doença seria de apenas 10 dias.
Em primeiro lugar, no referido relatório e ao contrário do que as boas práticas médico-legais ditam não se teve em conta o tipo de profissão que o assistente exerce. Ao contrário na perícia médico legal elaborada fixou-se 30 dias de doença, com perda parcial de autonomia para as atividades da vida diária, social e familiar, 8 dos quais com perda total e 22 dos quais com perda parcial de autonomia para a atividade laboral.
Tal prova pericial mostra-se subtraída da livre convicção do julgador, sendo que o referido relatório foi feito por perito habilitado do INML, que o confirmou em sede de audiência de julgamento, sendo que inexistem quaisquer evidências que contradigam de forma séria as conclusões do referido relatório, sendo que a testemunha KK, colega de trabalho do assistente e chefe de equipa no Hospital de ....., descreveu como nos primeiros dias que o arguido regressou para o trabalho o mesmo estava fisicamente debilitado, claudicando na sua marcha e por isso teve de mudar para funções que não implicassem andar muito.
Assim, o referido parecer subscrito pelo Dr. NN em nada afetou a solidez do relatório pericial de avaliação do dano corporal a fls. 496-499.
O facto 28) resultou assente na análise de ficha de urgência do assistente já referida.
Quanto aos factos dados como provados em 33) a 40) os mesmos foram confirmados pelo assistente e pela sua companheira EE que descreveu como todo este episódio alterou a forma de ser do assistente, tendo-o deixado profundamente triste, ansioso, com medo, bem como descreveu como o assistente se sente diminuído na auto estima face às cicatrizes que tem no seu corpo e que são bem visíveis conforme fotos a fls. 880-902.
O estado psicológico do assistente também está espelhado na declaração médica a fls. 878, tendo sido com base na mesma e nos depoimentos de EE, bem como no depoimento de KK, colega de trabalho do assistente que se deu como provada a factualidade em causa.
Uma última nota para referir que o isolamento social e a retração do assistente no que diz respeito à sua efusividade e contatos sociais não foi condicionada pela pandemia que assola o nosso país. O assistente é ....., estava na linha da frente do combate ao COVID e como tal não confinou, pelo contrário.
Nem se diga, como referiu a defesa do arguido, que este estado psicológico do assistente derivaria do fato de estar na linha da frente do COVID. Tal facto foi infirmado pelas testemunhas supra referidas e mostra-se em contradição com contante na declaração médica já mencionada.
Apenas não se logrou provar a factualidade constante em g) pelo facto de nenhuma prova ter sido efetuada quanto à mesma.
Quanto ao facto constante em 41) o mesmo resultou provado com base nas declarações do assistente, conjugados com os documentos a fls. 904, 906, 908910, 912, sendo que quanto ao casaco ..... a testemunha EE confirmou o valor do mesmo já que foi ela que havia oferecido o referido casaco ao assistente como prenda de Natal.
Apenas quanto às calças ..... que o assistente trazia não resultou provado que as mesmas valessem mais de €90, preço que pode ser consultado na internet como correspondente a umas calças normais da “.....” para homem, modelo ...... O print que o assistente juntou aos autos para justificar o valor que peticiona pelas referidas calças – vide fls. 914 diz respeito a um modelo específico vintage de calças “.....”, não tendo o assistente logrado provar que as calças que trajavam eram desse modelo.
Para a prova dos factos constantes em 42) a 57) atendeu-se às declarações do arguido que foram confirmadas pelo teor do relatório social do arguido a fls. 1252-1255, bem como pelos depoimentos do irmã e mãe do arguido.
Quanto à integração social e laboral do arguido atendeu-se aos depoimentos das testemunhas OO, colega de trabalho do arguido, PP, patrono do arguido quando este estava a efetuar o estágio em ….., sendo que tais testemunhas salientaram o empenho, dedicação e competência do arguido no trabalho que fazia, bem como o facto do mesmo ser um bom colega.
Também a testemunha QQ, orientadora espiritual do arguido, descreveu como o mesmo é uma pessoa ativa na comunidade, alguém que era solidário, que ajuda os outros e que era bem reputado no meio onde vivia.
Atendeu-se ao certificado de registo criminal do arguido junto aos autos”.
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Constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis – art.º 124.º, do CPP.
Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente – art.º 127.º
Em matéria de apreciação da prova, rege o artigo 127°, do Código de Processo Penal: “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Tal livre apreciação da prova, não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, realizando-se de acordo com critérios lógicos e objectivos que determinam uma convicção racional, objectivável e motivável. Não significando, porém, que seja totalmente objectiva pois, não pode nunca se dissociar da pessoa do juiz que a aprecia e na qual “(…) desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais (...)”, (cfr. Professor Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, pág. 205). Neste mesmo sentido podem ver-se ainda variadíssimos autores entre os quais Rodrigues Bastos (in Notas ao Código de Processo Civil, III, pág. 221), que defende, que ao juiz “... não é permitido julgar só pela impressão que as provas oferecidas pelos litigantes produziram no seu espírito, mas antes se lhe exige que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou e cujo carácter racional se expressará na correspondente motivação”. E também o Professor Cavaleiro Ferreira (in “Curso de Processo Penal”, 1 vol., Reimpressão da Universidade Católica) “o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”. É que o sistema processual moderno atribui ao julgador uma maior liberdade, mas não um arbítrio a que a lei seja indiferente. Se o julgador interpreta a liberdade de apreciação como um domínio arbitrário da sua vontade sobre a matéria de facto, e oferece às partes, como conteúdo de jurisdição, a sua fé ou convicção sem provas e sem base objectiva, ultrapassa os limites da liberdade de apreciação, que não pode confundir-se com a supressão da prova, ou com a faculdade, por exemplo, de inverter por seu alvedrio o ónus da prova. A livre valoração da prova não pode, pois, ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas sim valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permitia objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão.
O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se de credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a determinado meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência. (...) Importa ainda anotar que a objectividade que aqui importa «não é a objectividade científica (sistemático-conceitual e abstracto-generalizante), é antes uma racionalização de índole prático-histórica, a implicar menos o racional puro do que o razoável, proposta não à dedução apodíctica, mas à fundamentação convincente para uma análoga experiência humana, o que se manifesta não em termos de intelecção, mas de convicção (integrada sem dúvida por um momento pessoal)» E, na expressão de Figueiredo Dias, a convicção da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável — Curso de Processo Penal, II, Verbo, Lisboa, 1993. p. 111.
Sobre esta questão, o Supremo Tribunal de Justiça, na Acórdão de 18 de Janeiro de 2001, processo nº 3 105/2000-5 secção, sumários de Acórdãos do STJ, Boletim nº 47, considerou: (...) II — O princípio contido no art.127°, do CPP, estabelece três tipos de critérios para a apreciação da prova com características e natureza completamente diferentes: haverá uma apreciação da prova inteiramente objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, já de carácter eminentemente subjectiva e que resulta da livre convicção do julgador. III — É certo que tudo isto se poderá conjugar, e também é certo que a prova assente da livre convicção poderá ser motivada e fundamentada, mas neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão. IV — Seja como for, a motivação probatória compete sempre aos julgadores e não pode ser posta em confrontação com as convicções pessoais do recorrente. (…)
A prova pessoal resulta da actividade de uma pessoa (declarações e depoimentos). A prova real emana da observação ou da própria existência nos autos da coisa em si (documentos ou instrumentos utilizados no crime). A prova pericial resulta da percepção e apreciação dos factos pode pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.
Cfr. ainda o acórdão do Conselheiro Santos Cabral, de 07.04.2011, processo n.º 936/08.0JAPRT.S1:
I - A avaliação dos indícios pelo juiz implica uma especial atenção que devem merecer os factos que se alinham num sentido oposto ao dos indícios culpabilizantes, pois que a sua comparação é que torna possível a decisão sobre a existência, e gravidade, das provas. II - Os factos que visam o enfraquecimento da responsabilidade do arguido, sustentada na prova indiciária, são de duas ordens – uns impedem absolutamente, ou pelo menos dificilmente permitem que se atribua ao acusado o crime (estes factos recebem muitas vezes o nome de indícios da inocência ou contra presunções); os outros debilitam os indícios probatórios, e consubstanciam a possibilidade de afirmação, a favor do acusado, de uma explicação inteiramente favorável sobre os factos que pareciam correlativos do delito, e davam importância a uma convicção de responsabilidade criminal. Denominam-se de contra indícios e emergem em função da necessidade de contrapor aos indícios culpabilizantes outros factos indício que aniquilem a sua força à face das regras de experiência. III - Tal como perante os indícios, também para o funcionamento dos contra indícios é imperioso o recurso às regras da experiência e a afirmação de um processo lógico e linear que, sem qualquer dúvida, permita estabelecer uma relação de causa e efeito perante o facto contra indiciante infirmando a conclusão que se tinha extraído do facto indício. Dito por outras palavras, o funcionamento do contra indício, ou do indício de teor negativo, tem como pressuposto básico a afirmação de uma regra de experiência que permita, perante um determinado facto, a afirmação de que está debilitada a conclusão que se extraiu dos indícios de teor positivo.
E, finalmente, as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca do facto a provar, certeza, essa, que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida.
Passemos ao caso concreto.
Comecemos pela prova real (cuja credibilidade emana da observação ou da própria existência nos autos da coisa em si): (i) trocas de mensagens de fls. 436-437, 440-457 e 1325-1364; (ii) imagens de vídeo vigilância da estação de serviço ..... a fls. 472 a 476 e 482-487; (iii) auto de apreensão a fls. 55; (iv) transcrição da conversação telefónica com INEM – fls. 664-670; (v) para a prova das características da faca que o arguido detinha e que usou atendeu-se ao auto de apreensão a fls. 130 (cuja cópia encontra-se a fls. 51) e fotograma 12 a fls. 88; (vi) relatório de inspeção a fls. 339-351, 353-369 e 647-650; (vii) ficha de informação clínica a fls. 1367-1368,1464; (viii) missiva do arguido a fls. 1366; vide print do registo automóvel a fls. 374); e (ix) documentos a fls. 904, 906, 908910, 912 e 914.
Quanto à prova pericial (resulta da percepção e apreciação dos factos por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos): (i) relatório de avaliação psicológica” do arguido a fls. 1412 e segs.; (ii) exame pericial de avaliação do dano corporal a fls. 496-499, relatório e respetivos fotogramas a fls. 647-650, ficha de urgência do assistente a fls. 116-116 verso, reportagem fotográfica das lesões ao nível da cabeça que o assistente tinha quando foi admitido no hospital a fls. 292-295, bem como fotogramas da roupa que o assistente trajava no momento dos factos - fls. 296-302; (iii) declaração médica a fls. 878.
E, finalizando, a prova pessoal, sendo que não há dúvidas que as declarações do assistente são coerentes, seguras e alinhadas com toda a prova pessoal, real e pericial que foi produzida. São credíveis. Também credível é o depoimento de EE. Da janela da sua casa viu o arguido embater com o veículo no assistente, bem como os golpes da navalha, o que a levou telefonar para o INEM. Elemento importantíssimo para aferir da solidez do depoimento do assistente e para afastar as declarações do arguido, que se revelaram contraditórias ao longo do processo.
Apreciemos agora a força dos denominados contra indícios (porque debilitam os indícios probatórios e consubstanciam a possibilidade de afirmação, a favor do acusado, de uma explicação inteiramente favorável sobre os factos que pareciam correlativos do delito, e davam importância a uma convicção de responsabilidade criminal). Denominam-se de contra indícios e emergem em função da necessidade de contrapor aos indícios culpabilizantes outros factos indício que aniquilem a sua força à face das regras de experiência. O funcionamento do contra indício, ou do indício de teor negativo, tem como pressuposto básico a afirmação de uma regra de experiência que permita, perante um determinado facto, a afirmação de que está debilitada a conclusão que se extraiu dos indícios de teor positivo.
Tais contra indícios foram trazidos a julgamento apenas pelas declarações do próprio recorrente. Disse o que foi reproduzido de forma autêntica e verdadeira pelo tribunal a quo: “Referiu, ainda, que quando se encontrava na rua onde reside o assistente circulava a uma velocidade um pouco acima dos 50 km/h, tendo visto o assistente no meio da via a uma distância de cinco metros. Face a isso acelerou porque queria sair daquele local e é nesse momento que o assistente se atirou para cima do capot do seu veículo. Menciona que não se tentou desviar porque não se apercebeu da reação do assistente.  Afirmou, também, que após o embate no assistente, acabou por dar a volta com o veículo e pará-lo cerca de 5 metros mais abaixo relativamente ao local do embate, tendo negado que nesse trajeto tenha atropelado, uma segunda vez ofendido. Saiu do carro quando o ofendido está a tentar levantar-se, o que faz por uma ou duas vezes, estando o ofendido a cambalear. O ofendido dirigiu-se a si e agarra-lhe pelo colarinho, tendo-lhe desferido um ou dois murros na face que o projetaram para o chão. Ato contínuo o ofendido meteu-lhe um dos joelhos no ombro e um cotovelo no pescoço para o tentar imobilizar, tendo-lhe dito “separa-te dela” e o arguido respondeu “tudo bem BB”, continuando o ofendido a desferir murros na sua cara. Quanto à faca referiu que não sabe de onde ela proveio, tendo referido que pensa que a mesma pertencia ao ofendido e que caiu no chão quando este foi contra o veículo. Admitiu que a certa altura desta contenda física agarrou na faca que estava no chão para se proteger no momento em que o arguido e o ofendido já se haviam levantado do chão e continuaram numa contenda física. No entanto, referiu não se recordar de ter esfaqueado o assistente, mas perante as lesões que o mesmo apresentava admitiu que tenha sido o autor das mesmas. O arguido mencionou que tentou afastar-se, por várias vezes, do assistente, mas este último sempre o agarrou, mesmo quando tentou entrar no veículo que tripulava para sair do local o assistente abriu a porta do veículo e o agarrou, momento em que desferiu um pontapé no assistente para o mesmo se afastar. O arguido mencionou que durante a altercação gritou por socorro e polícia, tendo logrado sair do local em busca de socorro”.
São contra indícios muito fracos. Desde logo, muito bem apreciados no acórdão recorrido quanto às evidentes contradições.
 E assim vamos para o nível 2, a objectividade: referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.
Ora, as credíveis declarações do assistente e o igualmente credível depoimento da testemunha EE, conjugados com a prova real e pericial produzida (sobre as características da navalha e lesões sofridas pelo assistente) e a inexistência de contra indícios sólidos, levam-nos a concluir, com segurança, que o aqui recorrente praticou os factos que lhe são imputados no acórdão recorrido.
Não há dúvidas que o arguido quis matar o assistente, pois provocou as seguintes lesões:
- Na região Craniana: cicatriz, com crosta castanha, linear, na região frontopariental esquerda, obliqua ínfero–lateralmente, com 4,5cm de comprimento; cicatriz hipercromática na região fontal direita, linear, ínfero –mediana com 0,5cm de comprimento;
- Na face: 2 cicatrizes com crosta castanha, no pavilhão auricular esquerdo, transversais, com 0,5cm de comprimento, cada
- Tórax: cicatriz hipocromática na região escapular esquerda, puntiforme; cicatriz hipocromática na região dorsal esquerda, vertical, com 2,5cm de comprimento; equimose roxa e amarela, na região dorsal, justa axilar, com 6cm de dilatrómetro; cicatriz hipocromática na região lateral esquerda, oblíqua ínfero–lateralmente, com 1,2cm de comprimento; área escoriada na face lateral esquerda, oblíqua, ínfero –posteriormente, com 6x2cm de maiores dimensões;
- Membro superior direito: 2 cicatrizes com crosta castanha na face posterior do cotovelo, numa área com 2cm de diâmetro (ação de natureza contundente);
- Membro inferior direito: ferida, na face posterior do terço medio da coxa, transversal, com 2,5cm de comprimento, e edema associado; cicatriz hipercromática na face posterior do terço distal da coxa, vertical, com 1,5cm de comprimento.
A morte só não ocorreu apenas pela urgente e bem sucedida intervenção médica.
Andou bem o tribunal a quo na decisão sobre a matéria de facto.
A questão do recorrente é de discordância quanto à convicção do Tribunal. E, como se vê, sem razão.
As conclusões do tribunal a quo relativas à matéria de facto estão em consonância com a prova produzida. Resulta assim claro que a discordância do recorrente de pouco vale, porque se impõe o estatuído no artº 127º, do CPP (a prova é apreciada segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador). É uma apreciação subjectiva da prova, que resulta da imediação e da oralidade, que só seria afastada se o recorrente demonstrasse que a apreciação do Tribunal a quo não teve o mínimo de consistência. O que não é o caso. Só sabemos que o recorrente, se fosse o julgador, teria fixado os factos de modo diferente.
É muito difícil impugnar o julgamento de facto assente na prova pessoal, meio de prova que não está subtraído à livre apreciação do julgador. Ainda por cima, num caso como o dos autos, em que o depoimento do ofendido, valorizado pelo tribunal, não apresenta contradições e está confirmado por outro depoimento, ao invés das declarações do arguido, que não são credíveis e tiveram diferentes versões.
O Tribunal a quo fundamentou de modo razoável e suficiente a sua convicção, com enquadramento no artº 127º, do CPP. De acordo com as regras da experiência comum, da normalidade das coisas e da lógica do homem médio, é, como vimos, razoável e acertado o entendimento do Tribunal a quo quanto à valoração da prova e à fixação da matéria de facto. As provas existem para a decisão tomada e não se vislumbra qualquer violação de normas de direito probatório (nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica). O Tribunal “a quo” apreciou criticamente todas as provas produzidas conjugadas entre si e com as regras de experiência comum, conforme consta da respectiva fundamentação de facto. O recorrente não concorda. Porém, a fundamentação da convicção do Tribunal, em conjugação com a matéria de facto fixada, não revela que seja errada, ilógica, contrária às regras da experiência comum. Podemos, pois, concluir, que o Tribunal a quo, imbuído da imediação, explicitou as razões da sua convicção, de forma lógica e global, com o mínimo de consciência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados e, com base no seu teor, alicerçou uma convicção sobre a verdade dos factos. Acresce que, para além, na dúvida razoável, tal juízo há-de sempre sobrepor-se às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, como corolário do princípio da livre apreciação da prova ou da liberdade do julgamento.
 Face ao supra exposto quanto à apreciação da decisão sobre a matéria de facto, cumpre ainda dizer que o tribunal a quo não violou a presunção da inocência do arguido recorrente. Dando como assente apenas o que fundada e justificadamente ficou provado, o Tribunal a quo mais não fez do que garantir a presunção da inocência do recorrente. Só se considerou provado o que resultou certo e seguro (cfr. os factos não provados). O raciocínio do Tribunal a quo foi lógico e coerente. Deste modo conseguiu certeza e segurança na decisão de facto. Nada mais há a dizer sobre esta matéria porque, como refere esta Relação, no acórdão de 01.02.2011, processo n.º 153/08.0PEALM.L1-5, dgsi.pt, “ o princípio in dubio pro reo, é um princípio probatório que procura solucionar um problema de dúvida em relação à matéria de facto e não ao sentido de uma norma jurídica, traduz o correspectivo do princípio da culpa em Direito Penal, ao garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos típicos, é um corolário lógico do princípio da presunção de inocência do arguido, mas não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais, pois em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance das normas penais, deve o aplicador do direito recorrer às regras de interpretação, entre as quais o princípio in dubio pro reo não se inclui”. Trata-se, assim, de uma questão relativa à matéria de facto, porém, como vimos, no caso concreto não se vislumbra dúvida na apreciação dos meios de prova e consequente factualidade apurada.
Improcede assim o recurso sobre a matéria de facto, mantendo-se inalterados todos os factos provados que foram impugnados.
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(da qualificação jurídica dos factos)
O arguido AA foi condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, als. h) e j), 22.º e 23.º, do C.P. na pena de cinco anos de prisão, absolvendo-se o arguido da demais qualificativa prevista no art. 132.º, n.º 2, al. e), do C.P..
Não enfermando o acórdão recorrido dos vícios analisados e tendo-se por definitiva a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto, as questões de direito têm que ser apreciadas à luz da factualidade que se confirmou e não da que propunha o recorrente.
Vejamos a fundamentação do tribunal a quo:
“A questão que ora se coloca é se a conduta do arguido preenche o tipo de homicídio qualificado.
São imputadas ao arguido quanto ao crime de homicídio as qualificativas presentes no art. 132.º, n.º 2, als. e), h) e j), do C.P..
No homicídio qualificado pune-se “quem matar outra pessoa” “em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade”, seguindo-se depois as situações indiciadoras dessa qualificação, sendo precisamente as que são imputadas ao arguido: “ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou causar de sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou qualquer motivo torpe ou fútil” (al. e), “utilizar meio particularmente perigoso” (al. h) e “agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregado ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas” (al j). Por sua vez a al. i) pune a utilização de meio insidioso.
Este crime tutela a vida humana que é um dos valores estruturantes e estruturadores do nosso ordenamento jurídico, consistindo por isso, num tipo de crime fundamental, mas que aqui surge agravado em relação ao tipo base do crime de homicídio.
Quanto à al. e) em causa temos o facto do agente ser determinado por “motivo torpe ou fútil”.
Motivo fútil é o notoriamente desproporcionado ou inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado. Para a além da desproporcionalidade deve acrescer a insensibilidade moral, que tem a sua manifestação mais alta na brutal malvadez ou se traduz em motivos subjetivos ou antecedentes psicológicos que, pela sua insignificância ou frivolidade, sejam desproporcionados com a reação homicida.
Motivo fútil é o motivo de importância mínima. Será também o motivo frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática desse grave crime, inteira desproporção entre o motivo e a extrema reação ofensiva do corpo e/ou da saúde, o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime de que se trate, o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da ação cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da integridade física humana – cfr.: ac. STJ de 27-05-2010, proc. n.º 58/08.4JAGRD.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt; autor e obra citados, p. 33.
Ora, o arguido agiu da forma dada como provada movido por sentimentos de despeito e vingança. O arguido não gostou do teor da mensagem que o assistente enviou a CC, bem como do facto de ter sido perseguido pelo assistente e retaliou da forma dada como provada também imbuído por um sentimento de vingança.
Entende-se que estes motivos também não podem ser dissociados daquilo que foi sendo transmitido por CC e seus familiares, quanto ao carácter supostamente conflituoso do assistente, bem como do ambiente crispado existente entre CC e o assistente face às divergências que mantinham quanto às responsabilidades parentais.
Assim não podemos dizer que esteja em causa um motivo frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática desse grave crime. Existiu, assim, um motivo que embora não justifique, de todo, a conduta do arguido, não se pode qualificar de fútil, para a actuação do arguido.
A agravação constante na al. h), que justifica uma maior severidade punitiva, advém, de acordo com o proémio do n.º 1 do citado artigo 132.º, de uma conduta causadora de morte que revele uma “especial censurabilidade ou perversidade”. Esta ocorre quando as circunstâncias causadoras da morte revelarem uma particular reprovabilidade, surgindo as mesmas com uma assinalável gravidade em virtude de traduzirem uma atitude do agente profundamente distanciada dos valores que são, de um modo comum, aceites na convivência em comunidade. Já a agravação constante na al. i) advirá da peculiar malignidade ou crueldade com que foi praticada a morte, revelando uma atitude com base em motivos ou sentimentos profundamente rejeitados pela sociedade, tanto sob o ponto de vista ético, como jurídico (Ac.STJ de 2007/Set./05, Cons. Oliveira Mendes).
Na leitura do que será o significado jurídico-penal de um “meio particularmente perigoso”, temos de atender à sua razão de ser (i), à sua inserção sistemática no tipo qualificado do crime de homicídio (ii), à sua descrição textual (iii), partindo do seu significado comum, bem como à compreensão que o mesmo tem tido na jurisprudência (iv).
No que concerne ao primeiro tópico, temos que o mesmo encontra a sua justificação no maior desvalor da ação conducente à produção do resultado morte, tendo em atenção o meio utilizado para o efeito, sendo certo que este desfecho é idêntico aos demais tipos legais de homicídio. Assim, não bastará que o meio utilizado para causar a morte seja simplesmente apto ou mesmo perigoso para provocar esse desfecho fatal, mas que, para provocar esse resultado, seja especialmente idóneo e grave.
No que diz respeito ao segundo tópico podemos dar conta que a descrição agravativa aqui em causa surge a par da morte ser produzida pelo agente “juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas” ou então que se “traduza na prática de crime de perigo comum”, estando estes ilícitos criminais referenciados nos artigos 276.º a 284.º, destacando-se destes os crimes de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas (272.º C. Penal), energia nuclear (273.º C. Penal), poluição (279.º a 281.º C. Penal) e corrupção de substâncias alimentares ou medicinais (282.º C. Penal). Isto dá a ideia de que estes contextos qualificativos reduzem a capacidade defensiva por parte da vítima, sendo ainda estes últimos suscetíveis de colocar em perigo outros bens jurídicos.
Fazendo a ponte entre este segundo tópico e o seguinte relativo ao texto descritivo desta circunstância agravativa, podemos constatar que a mesma surge imediatamente antes daquela que faz menção de que a morte veio a ser provocada por o agente “utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso” (alínea i)). Daí que para além da identidade do texto em relação ao vocábulo “meios”, donde partem e estão ancorados tais conceitos, naturalmente que as referências a “meio particularmente perigoso” e “meio insidioso”, exprimem necessariamente significados jurídico-penais distintos. Porém, o vocábulo “meio” tem um significado polissémico, pelo que o mesmo tanto pode ter o sentido de “instrumento”, “utensílio” ou “ferramenta” como exprimir um “processo” ou “método”. E nenhum destes significados é excludente do outro, como é óbvio.
Por último temos a leitura jurisprudencial, com destaque para o STJ, dos conceitos de “meio insidioso” e “meio particularmente perigoso”. Ora por “meio insidioso” tem-se considerado todo aquele processo que se revela enganador, desleal, sub-reptício, dissimulado ou oculto, criando uma situação que coloca a vítima numa posição de indefesa ou então de mais difícil reação defensiva, como sucederia em circunstância normais (Ac.STJ de 2010/Mai./27 CJ (S) II/206, Cons. Santos Cabral), como sucede quando apenas se exibe uma arma de fogo junto da vítima, que é sacada de surpresa (Ac.STJ 2004/Mai./20, CJ (S) II/195, Cons. Costa Mortágua; 2006/Jul./13, CJ (S) II/244, Cons. Rodrigues da Costa) ou então manieta previamente a vítima pelo pescoço e pelas costas, encosta a pistola à cabeça e dispara (Ac.STJ 2000/Dez./13, CJ (S) III/241, Cons. Mariano Pereira) e a generalidades dos tiros disparados à “queima roupa” ou desferidos de modo traiçoeiro (Ac. STJ 2007/Mar./29, CJ (S) I/238, Cons. Pereira Madeira). O mesmo sucede quando o arguido, sem qualquer troca de palavras, saca de uma faca de que estava munido e golpeia outra pessoa (Ac.STJ 1994/Abr./14, CJ I/263, Cons. Fisher Sá Nogueira).
A propósito do conceito de “meio particularmente perigoso” considera-se que o mesmo é o instrumento, método ou processo que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, tem que revelar uma aptidão reforçada, muito superior ao normal em relação a outros meios e procedimentos, para causar a morte, constituindo ainda um perigo para outros bens pessoais, excluindo-se, em regra, desta estrutura valorativa as facas, as pistolas e os instrumentos contundentes em geral (Ac.STJ 2006/Mar./02, Cons. Sima Santos).
Mas a utilização de um veículo automóvel dirigido contra a vítima, mediante o seu atropelamento (Ac. STJ 2007/Out./17, Cons. Armindo Monteiro) ou o uso de uma adaga, com duas linhas de corte, sendo uma delas em serra e a outra direita, com o comprimento de lâmina de 21,5 cm e cabo de 14,5 cm (Ac. STJ 2008/Jul./03, Cons. Rodrigues da Costa), correspondem a um meio particularmente perigoso.
No entanto também se expressou uma corrente de que a particularidade do meio empregue depende não só da natureza e das características do instrumento utilizado (i), mas também do contexto em que se faz uso do mesmo (ii), de modo que o seu uso ou o processo da sua utilização dificultem significativamente a defesa da vítima, violando ou que sejam suscetíveis de lesar outros bens jurídicos importantes (Ac. STJ de 2000/Set./27, CJ (S) III/179, Cons. Lourenço Martins). Tal ocorreria com o uso de uma caçadeira de canos serrados, sem que nada fizesse prever essa utilização (Ac.STJ de 2004/Dez./07, Cons. Pereira Madeira), mormente quando aquela é municiada com cartuchos de calibre 12 (Ac. STJ de 2007/Set./05, Cons. Oliveira Mendes).
Por tudo isto, o significado jurídico-penal de “meio particularmente perigoso”, tanto pode corresponder ao “instrumento” ou “utensílio” utilizado para causar a morte, como é habitualmente empregue, como ao “processo” e “método” com que esse mesmo instrumento foi utilizado, havendo assim uma similitude de significados, ainda que plural, entre aquela leitura e o vocábulo “meio” expresso no texto da circunstância qualificativa da al. h), havendo, por isso, uma correspondência de terminologias (9.º do Código Civil).
Aliás, só assim a lei penal revela a sua racionalidade e uma dinâmica distintiva entre o crime matriz de homicídio e o crime qualificado de homicídio, por um lado, bem como entre aquelas circunstâncias qualificativas constantes nas alíneas h) e i) do n.º 2 do artigo 132.º, por outro lado. Também só através desta conceitualização é que a norma pode assumir a sua estrutura comunicativa clara e percetível entre o legislador, os tribunais e os cidadãos. Cremos, por tudo isto, que a expressão “meio particularmente perigoso” tanto pode ser revelada pela natureza e as características do instrumento empregue no ato de matar, como também do contexto que rodeou o processo (“expediente” ou “método”) causador dessa mesma morte.
Ora, a utilização de um automóvel da forma como o arguido utilizou – numa via cuja circulação de trânsito era reduzida – uma rua residencial – em que o arguido, de forma intencional guina o carro em direção ao corpo do assistente, a uma velocidade ainda que não elevada, mas suficiente para projetar o assistente para cima do para brisas, rachando-o e depois atirando-o para o chão.
Assim, a utilização do automóvel em causa revela-se não como um meio insidioso, mas como um meio particularmente perigoso.
Um automóvel utilizado nas circunstâncias suprarreferidas possui uma capacidade destruidora muito acima da média, face às flagrantes potencialidades de lesão no corpo humano. A vítima vê a sua capacidade de resistência absolutamente aniquilada com a utilização do veículo em causa que a abalroou e projetou para cima do para brisas do veículo e depois para o chão provocado lesões no corpo da mesma e diminuindo de forma considerável a sua capacidade de defesa quanto ao comportamento posterior do arguido.
Assim, as circunstâncias e o modo como foi cometida a tentativa de morte do assistente é reveladora de particular censurabilidade.
O arguido não só sabia que o veículo em causa, animado ainda que em velocidade inferior a 50 km/h, era apta a provocar a morte ao assistente, tanto mais que estamos a falar de um veículo que tem cerca de 1000 kg e que animado de velocidade, ainda que baixa, possui grande capacidade para tirar a vida de quem for atropelado da forma que o assistente o foi, resultado que o arguido quis, tanto mais que o arguido “cego” com os sentimentos de que vinha imbuído ao atropelar o assistente em vez que sair do local com o veículo ainda sai do mesmo empunhando uma faca e atacou o assistente com a mesma quando este estava a tentar levantar-se. Tal conduta do arguido demonstra que o arguido agiu, também quanto ao atropelamento, com dolo direto, prevendo e querendo com a sua conduta tirar a vida do assistente.
Assim, em causa está a qualificativa “meio particularmente perigoso” (al. h) e não a al. i) (meio insidioso).
Quanto à utilização da faca entende o tribunal que a forma como a mesma foi utilizada e as circunstâncias em que a mesma foi utilizada preenche a qualificativa de meio insidioso – meio traiçoeiro e desleal que reduz sensivelmente as possibilidades de defesa da vítima.
Resultou provado que o arguido sai do veículo que tripulava munido da referida faca e desfere os golpes com a mesma no corpo do assistente, após o ter atropelado, deixando-o prostrado no solo, sendo que ao desferir-lhe o primeiro golpe este se encontrava ainda no chão, indefeso, sem qualquer hipótese de defesa.
Assim, entende-se que está preenchida a qualificativa presente na al. i) do n.º 2 do art. 132.º, do C.P..
Por fim, quanto à qualificativa presente na al j) não se logrou provar factualidade que sustente a referida qualificativa. Como vimos, não tinha o arguido maneira de saber que o assistente, mesmo vendo-o circular de carro pela sua rua, sairia de casa, criando assim as condições para que pudesse atropelá-lo e depois esfaqueá-lo. Assim, não se pode dizer que o arguido agiu da forma dada como provada nem com frieza de ânimo, nem com reflexão sobre os meios empregados.
Pela defesa foi alegada da incompatibilidade das qualificativas em causa do crime de homicídio com o dolo eventual.
Ora, diga-se, desde já, que resultou provado que o arguido agiu com dolo direto, pelo que nem se coloca essa questão. No entanto, diga-se, que este tribunal, na esteira da jurisprudência maioritária que existe compatibilidade das qualificativas dos crimes de homicídio com a atuação do agente com dolo eventual – neste sentido e a título de mero exemplo Ac. STJ de 09.04-2015, processo n.º 331/12.7JALRA.S1, relatora Isabel Pais Martins, in www.dgsi.pt. Mesmo antes deste acórdão o STJ veio a reafirmar a sua tradicional posição em acórdão de 02-04-2009 (Processo 08P3277, rel. Cons. Souto de Moura) ao discorrer, no seu ponto VIII: “Uma parte minoritária da doutrina, tem posto em causa a compatibilidade destas duas realidades, tentativa e dolo eventual, face à incongruência entre a «decisão de cometer um crime» e a mera representação e aceitação, por parte do agente, da eventualidade de os atos praticados virem a desencadear a sua consumação (art.º 22.º do CP), mas no sentido claro de compatibilidade se tem pronunciado a jurisprudência, e de forma dominante neste STJ – cf. Ac. de 11-10-2001, Proc. n.º 951/01 - 5.ª”.
Na doutrina as dúvidas são lançadas pelo Prof. Faria Costa quando afirma num seu artigo publicado na RLJ em 1999/2000 que “A decisão de cometer uma infração é manifestamente incompatível com a vontade que o dolo eventual expressa (...) – in “Tentativa e dolo eventual revisitados”. [Anotação ao Acórdão de 3 de julho de 1991 do STJ]. Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 132, pág. 311 - n.º 3903 (out. 1999), págs. 167 a 183; Ano 132, n.º 3907 (fev. 2000), pags. 305 a 312.
Esta posição vem a ser seguida, igualmente, por Maria Margarida Silva Pereira quando afirma que “não é compatível com o menor desvalor de a menor censurabilidade do dolo eventual a admissão de homicídio qualificado (…)” – in “Direito Penal II – os homicídios, vol. II, apontamentos de aulas teóricas dadas ao 5º ano 96/97”, pág. 71, Textos, AFDL, Lisboa, 1998.
Foi o Prof. Figueiredo Dias a chamar a atenção para a insustentabilidade da tese – in “Direito Penal – Parte Geral”, tomo I, Coimbra Editora, 2007, págs. 694-695 (a propósito da tentativa) e comentário ao artigo 132º do Código Penal - §§ 34 e 35 – do “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, págs. 42-43, Almedina, 1999.
O supra citado acórdão do STJ de 02-04-2009 expõe, de forma clara, as razões dessa insustentabilidade, nos seguintes termos: “(…) não existe a aludida incompatibilidade, “quer porque a “ decisão” a que se refere o art.º 23º nº 1 [agora 22º nº 1], não tem de (nem deve) ser entendida em termos diferentes e mais exigentes do que aqueles que valem para qualquer tipo de ilícito doloso, que exige sempre ser integrado por uma “decisão”, não necessariamente por uma “intenção”; quer porque não existe nenhuma incompatibilidade lógica e dogmática entre o tentar cometer um facto doloso e a representação da realização apenas como possível, conformando-se o agente com ela; quer porque, decisivamente estão nestes casos colocadas as mesmas exigências político-criminais, a mesma “dignidade punitiva” e a mesma “carência de pena” que justificam a punibilidade de qualquer tentativa”.
E esta é a tese largamente maioritária na doutrina, expressa designadamente por Teresa Serra (in, “Homicídio qualificado – Tipo de culpa e medida da pena”, págs. 77-79, Almedina, Coimbra, 1990) e Paula Ribeiro de Faria (in, Comentário ao artigo 146º do Código Penal - § 9 – do “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, pág. 252, Almedina, 1999).
O homicídio qualificado é, tal como o homicídio simples, um tipo punível a título de dolo, em qualquer das suas modalidades inscritas no artigo 14.º do CP – direto, necessário ou eventual.
Para a afirmação do dolo, o que o aplicador tem de fazer é partir da situação tal como ela foi representada pelo agente e, a partir dela, perguntar se a situação, tal como foi representada, corresponde a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga. E, em caso afirmativo, se ela é suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Para que possam afirmar-se certos motivos ou finalidades, o agente tem de estar consciente desses motivos ou finalidades. Tal como tem que ter conhecimento das circunstâncias em que executa o facto.
Assim, entende-se que o crime de homicídio qualificado pode ser praticado com qualquer tipo de dolo.
Face ao exposto o arguido com a sua conduta praticou:
- um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º n.ºs 1 e 2 alíneas h) e i), em conjugação com os artigos 22.º e 23.º, todos do C.P.”.
Apreciando, cumpre desde logo referir que há lapso de escrita no acórdão. Se na motivação o tribunal a quo conclui pela verificação do crime de homicídio qualificado, sob a forma tentada, ao abrigo das alíneas h) e i) do n.º 2, do art.º 132.º, ao invés, na parte decisória, faz referência às alíneas h) e j). Mas esta é matéria que, como veremos, não será relevante.
A ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se o agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artº 132º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores - cfr. Maria Fernanda Palma, Direito Penal - Parte Especial (crimes contra as pessoas), 1983, pg. 44 e segs.
Com referência à especial perversidade tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada a constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente - Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de culpa e Medida da Pena, 1997, pg. 64.
Ora, da matéria apurada resulta que: O arguido AA ao visualizar BB na via pública, despeitado e movido por sentimentos de vingança, com o propósito de lhe tirar a vida, dirigiu o veículo por si conduzido em direção ao corpo daquele, que nesse momento atravessava a pé a faixa de rodagem, saindo para o efeito da sua hemi-faixa de rodagem, embatendo com a parte da frente esquerda do veículo no corpo da vítima na hemi-faixa contrária atento sentido de marcha do arguido, projetando-a para cima do para-brisas e atirando-a ao chão. O arguido imprimiu velocidade não concretamente apurada ao veículo que tripulava, mas cujo máximo foi inferior a 50 km/h. Ato contínuo, e quando atingiu o cimo da rua o arguido inverteu o sentido da marcha, passou junto ao assistente, parou a viatura e saiu do seu interior munido com a faca acima descrita. Aproximou-se da vítima, que estava no chão a tentar se levantar e, com a faca que empunhava, desferiu-lhe um primeiro golpe na cabeça e depois pelo menos mais três golpes, um nas costas e dois nas pernas, pontapeou-o, enquanto a vítima se defendia, desferindo socos na cara do arguido. O ofendido BB com o propósito de que AA não abandonasse ao local, ainda conseguiu abrir a porta do lado do pendura do veículo de CC, agarrou nas chaves da ignição e atirou-as para o mato, altura em que o arguido AA lhe desfere outro golpe nas costas. Ao agir da forma descrita o arguido AA quis e representou tirar a vida do ofendido, atingindo-o no corpo com veículo automóvel por si conduzido e desferindo-lhe golpes com faca em zonas do corpo que alojam órgão vitais, o que apenas não conseguiu por motivos alheios à sua vontade. O arguido agiu utilizando para o efeito uma faca e um veículo automóvel.
Do exposto resulta a vontade de tirar a vida ao assistente. Nem vamos apreciar a questão do dolo eventual. O que interessa é perceber se o arguido agiu com especial censurabilidade ou perversidade. Importa apurar se o homicídio, sob a forma tentada, cometido pelo arguido, ocorreu em circunstâncias tais, que, apesar de as enumeradas na lei serem meramente exemplificativas, de aplicação não automática e até considerados como indícios susceptíveis de contraprova, a factualidade apurada dá do crime uma imagem global de horror e repugnância e do arguido uma imagem de personalidade fria, insensível e tão profundamente distanciada do Direito que, necessariamente, a sua culpa, tão elevada, só encontra reflexo adequado nos parâmetros da especial censurabilidade ou perversidade.
Desde já adiantamos que temos que concluir pela negativa. Independentemente da conduta do arguido poder objectivamente integrar alguma ou algumas das als. do n.º 2, do art.º 132.º, o certo é que, vistos os factos, não resulta uma culpa tão elevada.
A culpa criminal encerra um juízo de censura sobre o agente por não ter cumprido o dever ser ético, que lhe era exigido, de respeito pelos bens jurídicos protegidos pela lei penal, que, tendo em conta a sua essencialidade, são garantes da dignidade da pessoa humana. No caso concreto, estando em causa o direito à vida, o juízo de censura tem tendência a ser maior por via das expectativas comunitárias na validade e reforço da norma protegida. Tirar a vida a alguém de forma violenta, sem causas de desculpa (causas de justificação ou de exclusão) é, por si só, muito censurável, daí que a pena abstracta do crime de homicídio seja das mais elevadas dos ilícitos penais.
Questão distinta é considerar a especial censurabilidade ou perversidade.
O arguido agiu a quente. Despeitado e movido por sentimentos de vingança. Embateu com a parte da frente esquerda da viatura no corpo da vítima, projetando-a para cima do para-brisas e atirando-a ao chão. O arguido imprimiu velocidade não concretamente apurada ao veículo que tripulava, mas cujo máximo foi inferior a 50 km/h. Depois, aproximou-se da vítima, que estava no chão a tentar se levantar e, com a faca que empunhava, desferiu-lhe vários golpes, enquanto a vítima se defendia, desferindo socos na cara do arguido. O ofendido BB com o propósito de que AA não abandonasse ao local, ainda conseguiu abrir a porta do lado do pendura do veículo de CC, agarrou nas chaves da ignição e atirou-as para o mato, altura em que o arguido AA lhe desfere outro golpe nas costas.
O arguido não atropelou o assistente, não passou por cima do corpo dele. E as facadas que foi desferindo eram simultâneas às tentativas de defesa da vítima, que ainda conseguiu tirar as chaves do carro do arguido e jogá-las para o mato, de modo que ele não saísse do local.
Do exposto não resulta uma personalidade fria e insensível do arguido e uma imagem global de horror e repugnância. O que temos é um crime movido por questões passionais, decidido na hora e a quente, com descontrolo emocional, mas longe de se poder considerar o arguido como alguém profundamente distanciado do direito.
Como refere Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 29), o que se deve ter em conta é se estamos perante uma imagem global do facto agravada que corresponda ao especial tipo de culpa.
As circunstâncias qualificativas, não fazendo parte do tipo objectivo de ilícito, devem ter-se por verificadas a partir da situação tal qual ela foi representada pelo agente, perguntando se a situação, tal qual foi representada, corresponde a um exemplo padrão ou a uma situação substancialmente análoga, e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente (cfr. Ac. do STJ de 10.07.2008, dgsi.pt).
Pelo exposto, e independentemente da utilização do veículo e da faca, que o tribunal a quo considerou, o primeiro, como meio particularmente perigoso, e, a segunda, como meio insidioso, do quadro global da factualidade não resulta especial censurabilidade ou especial perversidade.
Acresce que não concordamos que, no caso concreto, a viatura tenha sido utilizada como meio particularmente perigoso (foi utilizada porque o arguido queria matar o ofendido e, vendo-o apeado, foi embater contra ele), nem que a faca fosse insidiosamente utilizada (saindo do veículo com a faca empunhada, não escondida, foi certamente esta circunstância que permitiu ao ofendido esboçar actos de defesa).
Cumpre referir que a circunstância da faca vir empunhada afasta o carácter «insidioso», que será todo o meio cuja forma assuma características análogas às do veneno, do ponto de vista pois do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto» – Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal. Na insídia o agente aproveita a distracção da vítima para actuar; age enganando-a, cria uma situação que a coloca em posição de não poder resistir como em circunstâncias normais sucederia» (Maria Margarida Pereira, Textos – Direito Penal II – Os Homicídios, Vol. II, AAFDL, 1998, pág. 42) e jurisprudencialmente, cf. Acs. deste Tribunal de 20-02-04, Proc. n.º 1127/04 - 5.ª e de 17-03-05, Proc. n.º 546/05 - 5.ª. No conceito de meio insidioso cabem todos aqueles que possam rotular-se de traiçoeiros, desleais ou perigosos. A traição constitui um meio insidioso e pode ser definida como um ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso – acórdão do STJ de 17.03.2005, processo nº 05P546, www.dgsi.pt.  O meio insidioso traduz-se, por um lado, num comportamento caracterizado pela traição, por uma acção dissimulada, e, por outro lado, derivado disso, na colocação da vítima numa situação de pouca ou nenhuma possibilidade de defesa – acórdão do STJ de 02.04.2009, processo nº 08P3277, www.dgsi.pt.
Concluindo, dando parcial razão ao arguido, os factos provados demonstram a prática pelo arguido de um crime de homicídio simples, sob a forma tentada, decaindo a qualificação, e também se afasta qualquer ilícito por ofensas à integridade física, por ter resultado provado que houve intenção de causar a morte.
Acresce que, tendo em conta que o homicídio foi cometido com uma arma (faca de cozinha com lâmina superior a 10 cm), cumpre agravá-lo nos termos do n.º 3, do art.º 86.º, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, dizendo-se, desde já, que inexiste dupla incriminação pelos mesmo factos, pois a agravação aqui referida tem a ver com a utilização da arma na prática do homicídio, enquanto que o crime do art.º 86.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, pune a mera detenção e transporte.
Quanto ao crime de detenção de arma proibida, face à factualidade apurada, é certo que o arguido deteve e transportou a faca de cozinha apreendida nestes autos, com lâmina com comprimento superior a 10 cm, para desferir golpes no corpo do assistente, na rua, junto à habitação deste.
Não há assim qualquer causa de desculpa (erro ou outra) para afastar a culpa criminal do arguido pela prática deste crime, mostrando-se adequada a conclusão do tribunal a quo ao condená-lo pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1 al. d), por referência aos arts. 2.º, n.º 1, al. m), da Lei n.º 5/2006, de 23-02, na redação emergente da Lei n.º 50/2019, de 24-07.
*
(da medida da pena)
Vejamos a motivação do acórdão recorrido:
“O Código Penal traça um sistema punitivo que arranca do princípio basilar de que as penas devem ser executadas com um sentido pedagógico e ressocializador.
Apenas quanto ao crime de detenção de arma proibida impõe-se proceder à escolha da pena, já que quanto ao crime de homicídio qualificado tentado o legislador afastou a aplicação da pena de multa.
Assim, apenas quanto ao crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23-02, na redação emergente da Lei n.º 50/2019, de 24-07 impõe-se escolher entre a aplicação de uma pena de multa ou pena de prisão.
O crime em causa é punido com pena de prisão até quatro anos ou com pena de multa até 480 dias.
Apesar do arguido não ter antecedentes criminais certo é que atenta a gravidade da sua conduta e ao facto do arguido não se ter limitado a deter a arma branca em causa mas a utilizá-la para a prática de um crime de imensa gravidade e que protege o bem jurídico mais precioso do nosso ordenamento jurídico, bem como as elevadíssimas exigências de prevenção geral que no caso se fazem sentir face aos inúmeros crimes que são praticados nestes comarca com armas brancas proibidas entende-se que apenas a aplicação de uma pena de prisão satisfaz as referidas exigências de prevenção geral que se fazem sentir quanto a este tipo de comportamentos.
Interessará por ora apreciar, face ao critério de escolha da pena – art.º 70º e 71º do CP as diretrizes que o julgador deve ter em conta na determinação da medida da pena, devendo atender para tal, nomeadamente, à culpa do agente, às exigências de prevenção geral e especial, como também a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, sem prejuízo, necessariamente, do respeito pelos mínimos e máximos da pena aplicável em abstrato que no caso quanto ao crime de homicídio qualificado tentado a referida moldura é atenuada nos termos do art.º 73.º, n.º 1, als. a) e b), sendo o limite mínimo reduzido a um quinto (dois anos, quatro meses e 24 dias) e o limite máximo é reduzido de um terço (16 anos e oito meses).
A favor do arguido temos a ausência de antecedentes criminais, integração social e familiar, apoio familiar de que beneficia, bom conceito de que goza no seu meio, confissão parcial dos factos, arrependimento expresso, reparação parcial dos danos (a nível patrimonial).
No entanto, contra o mesmo temos a intensidade do dolo (muito acentuada) – note-se que foi o arguido que foi ter à rua do assistente com o propósito inicial de furar os pneus do assistente e ao ver o assistente na rua, raivoso e despeitado pelo comportamento anterior do assistente ao perseguir-lhe e pelo teor da mensagem que o assistente havia enviado em que o rebaixa, tratando-o como uma criança, e salienta a diferença de idade entre ele e CC, mas também por tudo aquilo que a sua namorada lhe havia contado que o assistente lhe havia feito passar e o seu carácter supostamente violento, guina o carro em direção ao corpo do assistente, atingindo-o e projetando-o para cima do para brisas do veículo e depois para o chão e não contente com tais danos o arguido saiu do veículo munido de uma faca que usa para esfaquear o assistente quando este estava combalido com o embate do veículo e ainda estava a tentar levantar-se. O arguido sabia da violência do embate no corpo do ofendido, já que em consequência do mesmo o vidro do para brisas rachou de forma muito evidente conforme demonstram os fotogramas a fls. 303 e 305, e mesmo assim não se inibiu de agredir o corpo do assistente com facadas.
Também se mostra muito elevado grau de ilicitude da conduta do arguido face à presença de mais do que uma circunstância qualificativa e face a que se referiu em supra. Acresce que inexiste de qualquer conduta do ofendido, imediatamente prévia aos factos, que pudesse explicar o seu comportamento, sendo que nem mesmo o facto do arguido ter perseguido o veículo do arguido poderia justificar o seu comportamento. O arguido não é um homem médio comum. O arguido é licenciado em ..... e na data da prática dos factos era ….., sendo que era muito competente na sua profissão. Assim, melhor do que o comum do cidadão o arguido estava ciente da maneira que deveria reagir ao comportamento do assistente. Aliás, o arguido teve tempo de se acalmar após a perseguição já que ainda foi para casa de CC e estava a conversar com a mesma. Mesmo na rua do assistente o arguido poderia ter minorado as consequências da sua conduta já que após o embate com o seu veículo no assistente poderia ter saído do local ou mesmo se fechado no veículo e chamado por auxílio. Nada disto ocorreu ao arguido, antes preferiu sair munido de uma faca e atacar quem já se encontrava fragilizado com o primeiro embate.
Diga-se, ainda, que não são desprezíveis as consequências dos factos para o ofendido, que sofreu 30 dias de doença, com 8 dias de incapacidade total para o seu trabalho e 22 com perda parcial de autonomia para a sua atividade laboral. Mas mais do que as consequências físicas são as sequelas psicológicas que pesaram na vida do assistente face aos factos dados como provados.
Por fim, ainda que o arguido tenha efetuado uma confissão parcial dos factos do seu comportamento em sede de audiência de julgamento ressalta uma certa tendência para a vitimização, tendo sempre tentado realçar o caráter agressivo do assistente, indo ao ponto de referir que o mesmo era conhecido por fazer cobranças difíceis, o que não foi confirmado por ninguém, nem mesmo CC ou o seu pai, DD. O arguido, ao longo do processo foi corrigindo a sua versão dos factos salientando sempre este lado de vitimização, ainda que tenha acabado por reconhecer que o seu comportamento foi errado.
Contra o arguido também militam razões de prevenção geral face ao elevado número de vítimas atropeladas e esfaqueadas todos os anos no nosso país.
Por fim, diga-se que mesmo antes da prática destes factos o arguido gozava de integração social e familiar, apoio familiar e de bom conceito no seu meio. No entanto, tais fatores não foram suficientes para que o arguido se inibir de agir da forma dada como provada.
Ponderadas as agravantes e atenuantes, entende-se fixar:
- Quanto ao crime de homicídio qualificado tentado, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º n.ºs 1 e 2 alíneas h) e j), 22.º, 23.º e 26.º, todos do Código Penal a pena de 5 (cinco) anos de prisão.
- Quanto ao crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1 al. d), por referência aos arts. 2.º, n.º 1, al. m), 3.º, n.º 2, al. ab) e n.º 4.º, da Lei n.º 5/2006, de 23-02, na redação emergente da Lei n.º 50/2019, de 24-07, a pena de 1 (um) ano de prisão.
Nos termos do art. 77.º, do C.P. impõe-se efetuar cúmulo jurídico das penas supra referidas.
Assim, encontramos uma moldura de cúmulo que vai de cinco anos a seis anos de prisão.
Tendo em conta que este arguido praticou os crimes em apreço na mesma circunstância de tempo e lugar entende-se aplicar ao arguido a pena única de cinco anos e quatro meses de prisão”.
Tendo em conta a desqualificação do crime de homicídio, mas a sua agravação pelo n.º 3, do art.º 86.º, da Lei n.º 5/2006, a pena abstracta situa-se agora entre 2 anos, 1 mês e 18 dias e 14 anos, 2 meses e 20 dias.
A medida da pena, segundo os seus fins, tem como limiar mínimo a expectativa comunitária na validade (e reforço) das normas penais violadas. É a protecção dos bens jurídicos, a prevenção geral positiva. No lado oposto, como limite máximo, a culpa do arguido, assenta num juízo de censura sobre a conduta do arguido reflectida no facto criminoso praticado. E, finalmente, o pendor da pena, mais acima ou mais abaixo, está na denominada prevenção especial, na reintegração do agente (que não tem tanto a ver com as suas relações sociais, se tem família ou amigos, mas sobretudo se é expectável que seja um cidadão fiel ao direito). Se são mínimas as exigências de prevenção especial, a medida da pena baixa; e sobe quando são maiores tais exigências.
Razões de prevenção geral estão presentes nesta pena, pois importa alertar os potenciais delinquentes para as penas e, deste modo, tentar evitar que se pratiquem crimes desta natureza que claramente afectam a tranquilidade e ordem públicas.
Cumpre também atender à prevenção especial, na medida em que o arguido tem de ser alertado para a gravidade do seu comportamento, de modo a corrigir-se, evitando-se assim futuros actos de delinquência, embora a factualidade apurada relativa à sua situação pessoal, familiar e social, demonstre que as exigências em sede de ressocialização não são elevadas. À excepção desta conduta, o arguido tem sido fiel ao direito e está perfeitamente inserido na sociedade.
Valorando ainda, no caso em apreço:
- o grau de ilicitude do facto – o mais elevado, pois que a violação do direito à vida é o bem primeiro, o suporte de todos os bens da tutela jurídica;
- o modo de execução;
- a gravidade das consequências – ao agir da forma descrita o arguido AA quis e representou tirar a vida do ofendido, atingindo-o no corpo com veículo automóvel por si conduzido e desferindo-lhe golpes com faca em zonas do corpo que alojam órgão vitais, o que apenas não conseguiu por motivos alheios à sua vontade. O arguido agiu utilizando para o efeito uma faca e um veículo automóvel;
- a intensidade do dolo eventual: o arguido agiu de forma a retirar a vida do ofendido, o que quis e representou, desiderato que só não logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade;
- os sentimentos manifestados no cometimento do crime;
 - os motivos e fins determinantes – agiu por despeito e vingança;
- a condição pessoal e económica;
- a conduta anterior e posterior ao facto – do seu certificado de registo criminal nada consta.
Estes os fundamentos para a medida concreta da pena, sendo de destacar as poucas exigências em sede de prevenção especial.
Termos em que se considera como justa e adequada a pena de prisão de 4 anos e 6 meses pelo crime de homicídio simples, agravado (86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, sob a forma tentada.
Quanto ao crime de detenção de arma proibida, a conduta do arguido prevê a punição, em alternativa, em prisão ou em multa. O critério de escolha é-nos dado pelo art.º 70.º do Código Penal, optando-se, preferencialmente, pela pena não privativa da liberdade, mas só quando esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Neste âmbito, refira-se, em primeiro lugar, que o sistema punitivo adoptado pelo Código Penal português tem um sentido pedagógico e ressocializador, visando a recuperação social do delinquente, assentando “na concepção básica de que a pena privativa da liberdade (...) constitui verdadeiramente a última ratio da política criminal”, Figueiredo Dias, “As Consequências Jurídicas do crime”, editorial notícias, 1993, pág - 52.
“São, pois, finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção geral e de prevenção especial (artigos 70.º e 40.º n.º 1, do CP), que justificam e impõem a preferência por uma pena não privativa da liberdade (pena alternativa ou pena de substituição), sem perder de vista que a finalidade primordial é a de protecção de bens jurídicos” - Maria João Antunes, ob. cit., pg. 52.
Ora, tendo em conta que o arguido deteve, transportou e usou a faca de cozinha apreendida nestes autos, com lâmina com comprimento superior a 10 cm, para desferir golpes no corpo do assistente, na rua, junto à habitação deste, afigura-se não ser suficiente a aplicação de uma pena de multa, porquanto a mesma não realiza os limiares mínimos de prevenção geral da defesa da ordem jurídica, posta em causa pelo comportamento desviante do arguido.
Face aos critérios para a ponderação da medida concreta do homicídio, já indicados neste acórdão, seria desajustada uma pena de multa, mostrando-se a pena de prisão indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização das expectativas comunitárias.
Porém, tendo em conta a baixa exigência em sede de prevenção especial, é adequada a pena de prisão de 6 meses pela prática do crime de detenção de arma proibida.
Cumpre agora fixar a pena única.
Como refere Figueiredo Dias, a pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 71º.º, n.º 1, um critério especial: o do artigo 77º, nº 1, 2ª parte.
Diz-se no Ac. do STJ de 14.09.2016, dgsi.pt: “Na indicação dos factos relevantes para a determinação da pena conjunta não relevam os que concretamente fundamentaram as penas parcelares, mas sim os que resultam de uma visão panóptica sobre aquele «pedaço» de vida do arguido, sinalizando as circunstâncias que consubstanciam os denominadores comuns da sua actividade criminosa o que, ao fim e ao cabo, não é mais do que traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos e esboçar a sua compreensão à face da respectiva personalidade, destarte se o mesmo tem propensão para o crime, ou se na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, sem relação com a sua concreta personalidade. É esta avaliação global resultante desta interconexão geral, que permite apurar legitimamente o ilícito e culpa global, e perante tais conclusões, aferir in concreto a necessidade de prevenção especial e geral, à luz da amplitude que a apreciação total da actividade criminosa do agente permite”.
De novo citando Figueiredo Dias, na escolha da medida da pena “tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)” – Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pg. 291.
E, finalmente, o STJ, em acórdão de 27/01/2016, dgsi.pt: “fundamental na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação «desse bocado de vida criminosa com a personalidade (…). A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares. Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos pois que a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também a recetividade à pena pelo agente deve ser objeto de nova discussão perante o concurso ou seja a sua culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa.”
Face ao exposto, a todas as circunstâncias dos factos e à personalidade do arguido, fixa-se a pena única de 4 anos e 8 meses de prisão.
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(Da suspensão da execução da pena de prisão)
O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – artigo 50º, nº 1, do Código Penal.
Subjacente à decisão de suspensão da execução da pena está um juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento do arguido, ou seja, quando se possa prever que o mesmo não cometerá futuros crimes. Pressuposto básico da aplicação da suspensão da execução da pena, é a existência de factos que permitam um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do agente, em termos de que o tribunal se convença de que a censura expressa na condenação e a ameaça da pena aplicada sejam suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais para o futuro. Mas tal juízo tem de se fundamentar em factos concretos que apontem para uma forte probabilidade de inflexão em termos de vida.
Como refere o Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português, p. 331), sendo a suspensão da execução da pena “a mais importante das penas de substituição” – não apenas pela frequência com que é aplicada, mas também pelo âmbito lato de aplicação que comporta – a lei, nos termos do art. 50º do Cód. Penal, exige não só a verificação de um requisito objectivo (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos) como também requisitos subjectivos, determinados por finalidades de política criminal, que permitam concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente. Em causa já não está a medida da culpa do agente, mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção, sendo necessário determinar se existe esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada.
Pressuposto básico da aplicação da suspensão da execução da pena, é a existência de factos que permitam um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do agente, em termos de que o tribunal se convença de que a censura expressa na condenação e a ameaça da pena aplicada sejam suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais para o futuro. Mas tal juízo tem de se fundamentar em factos concretos que apontem para uma forte probabilidade de inflexão em termos de vida.
Não é difícil fazer um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido. Todavia, a efectiva execução da pena de prisão, num caso, como o dos autos, mostra-se indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização das expectativas comunitárias. Na verdade, e não obstante os motivos subjacentes a estes ilícitos, o crime de homicídio é sempre um crime muito grave. Permitir que um condenado por um crime de homicídio doloso (embora eventual) não cumpra prisão efectiva, seria transmitir uma perigosa mensagem de benevolência, com claros prejuízos para a prevenção geral. A vida é um bem jurídico demasiado importante para que haja contemplações em situações de ofensa especialmente graves, como sucedeu no caso em apreciação. Face ao exposto, neste caso concreto, a mera ameaça de prisão e a simples censura do facto manifestamente não realizariam as finalidades da punição.
Estes os fundamentos para a não suspensão da execução da pena de prisão do recorrente, decaindo este fundamento do recurso.
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(do valor indemnização cível)
Sustenta o recorrente que deve ser o pedido de indeminização cível a atribuir ao Assistente, reduzido a um valor não superior a EUR 6,000,00, porquanto manifestamente excessivo e contrário aquilo que têm sido, nesta matéria, as decisões dos nossos tribunais superiores, sendo que o montante da condenação excede - como demonstrado anteriormente ­aquele que foi aplicado em situações de maior gravidade (internamento, necessidade de cirurgia e tratamento reabilitante e largos períodos de incapacidade).
O arguido foi condenado no seguinte:
a) - a título de danos não patrimoniais a quantia de €15.000 (quinze mil euros); - Sobre a quantia referida em a) são devidos juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da leitura da presente decisão até integral pagamento;
b) a título de dano patrimonial a quantia de €743,50 (setecentos e quarenta e três euros e cinquenta cêntimos); - Sobre esta quantia é devido juros de mora à taxa legal desde a notificação do pedido de indemnização à demandada e até integral pagamento – art.º 805.º, n.º 3, do C.C..
O que aqui se discute é a compensação por danos não patrimoniais, pois a indemnização por danos patrimoniais resulta da factualidade apurada.
É sabido que os danos não patrimoniais têm uma dimensão que não obedece aos critérios correntes de avaliação.
O artº 496º, nº1, do Cód. Civil, limita-se a fornecer um critério com alguma elasticidade, mas inspirado numa razão objectiva, sobre a qual há-de assentar o juízo de equidade.
Nessa perspectiva objectiva, só são atendíveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Ora, um dano grave é aquele que sai da mediania, que ultrapassa a fronteira da banalidade. É um dano considerável que, no seu mínimo, espelha a intensidade duma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna exigível em termos de resignação. Para a dor moral ou psíquica é impossível estabelecer escalas peremptórias: dentro do critério da gravidade, seguir-se-ão os ensinamentos da experiência humana em termos de afectividade e sentimento, segundo um prudente arbítrio de indemnização. Importa, neste caso, encontrar o adequado quantitativo em dinheiro, através do qual se alcance uma compensação que neutralize a dor sofrida.
A matéria apurada reflecte temor e sentimento de morte iminente, terror, angústia, dificuldade de raciocínio e irritabilidade, estado de angústia e medo permanente, danos estético (pelo menos uma das cicatrizes que marca o assistente localiza-se no pescoço, não sendo possível ocultá-la dada a sua extensão e espessura), crises de confiança, problemas de autoestima,  vergonha do próprio corpo, vexame, sentimentos de perseguição, tristeza e dores físicas que o molestaram durante um largo período de tempo e o obrigaram a recorrer a medicamentos analgésicos.
Danos que indiscutivelmente merecem a tutela do direito e que, por isso, justifica uma compensação monetária segundo o juízo de equidade.
No acórdão da Relação de Guimarães de 25.03.2019, processo n.º 802/17.9JABRG.G1, considera-se adequada a compensação de 15.000€ a título de danos não patrimoniais para uma vítima (também de um homicídio tentado) que ficou em coma, registou um longo período de internamento e convalescença, teve e mantém dores na cabeça, ficou mais nervoso, severo, desgostoso, abatido, para além de apresentar uma notória cicatriz na cabeça, com concavidade e sobretudo ter passado a sofrer de epilepsia pós traumática.
Encontramos ainda em dgsi.pt:
- No Ac. do STJ de 27.11.11, essa compensação foi fixada em €30.000,00 para um jovem que teve um período de tratamento particularmente penoso, com intervenções cirúrgicas, acamamento, imobilização, enjoos, dores de grau 3 numa escala de 7, e sequelas com gravidade relativa e grave;
- No Ac. do STJ de 07.10.10, em €50.000,00 para uma pessoa de 29 anos de idade que sofreu várias fracturas e um traumatismo crânio-encefálico, com dores de grau 5 numa escala de 7, que esteve hospitalizado duas vezes, foi sujeito a intervenções cirúrgicas e a tratamento de fisioterapia, que teve de se deslocar, longo tempo, com o auxílio de canadianas e que ficou, como sequelas permanentes, com cicatrizes na perna, claudicação de marcha, dificuldade em permanecer de pé, subir e descer escadas impossibilitado de correr e praticar desporto que antes praticava, e que passou de alegre e comunicativo a triste, desconcentrado e ansioso;
- No Ac. do STJ de 27.05.10, em €60.000,00 para um lesado de 16 anos de idade, que sofreu fractura basicervical do fémur esquerdo e traumatismo craniano com perda de consciência, que teve de andar de canadianas três meses e fazer fisioterapia, ficou com marca viciosa e marcadamente claudicante, dismetria dos membros inferiores, báscula da bacia com rotação e maior saliência da anca esquerda, desvio escoliótico com dor na palpação lombar, atrofia da coxa e da perna esquerdas e marcada rigidez na anca esquerda; incapacidade para a corrida, para se ajoelhar e adoptar posição de cócoras, dificuldade marcada na permanência de pé, alterações sexuais devido a dificuldades de posicionamento, impossibilidade de praticar desportos que impliquem esforço físico; sensação de tristeza, vergonha e revolta bem como frustração e medo no contacto com o sexo oposto; necessidade de nova intervenção cirúrgica, de fisioterapia, de adaptação automóvel para poder conduzir; não frequência de praias por dificuldade em caminhar na areia e pela vergonha de exibir o corpo, e de piscinas; não participação em jogos de futebol e impossibilidade de carregar pesos; anteriormente alegre e extrovertido, passou a ser mal-humorado, com pesadelos frequentes, insónias e tendências para o isolamento, lendo e escrevendo com dificuldade;
- No Ac. do STJ de 28.10.10., em €50.000,00 ao lesado que sofreu vários internamentos hospitalares e intervenções cirúrgicas, apresentando dores no pescoço que se agravam com os esforços ou em viagens a conduzir, dores no punho esquerdo, dores no joelho direito ao subir e descer escadas, perturbações no sono e ansiedade que se manifestaram depois do acidente, uma cicatriz na posição inferior da face anterior do joelho direito, com 2,8 cm de comprimento, desgosto e complexos de inferioridade física bem como angústia e má disposição pelo estado físico em que se encontra;
- No Ac do STJ de 31-01-2007 - Revista n.º 4383/06 - 6.ª Secção, in boletim de jurisprudência do STJ: “Tendo em conta o elevado grau de ilicitude de que se revestiu a conduta do réu (tentativa de homicídio com perseguição ao autor, que atingiu com dois tiros, após discussão entre ambos), e o facto de o autor apenas ter provado internamento durante cerca de um mês, extracção das balas tendo ficado com uma cicatriz cirúrgica de 15 cm, ter tido dores e incómodos, e ficado ainda com uma IPP de 5%, entende-se adequado, com base num critério de equidade, o montante de 17.500,00 euros a título de indemnização por danos não patrimoniais, com referência à data da citação, ocorrida no ano de 2.000”;
- Ac. do STJ de 26/01/12: É adequado o montante compensatório de €40.000 relativamente ao danos não patrimoniais sofridos pelo mesmo lesado cujo internamento hospitalar se prolongou por quase 3 meses, com várias intervenções cirúrgicas, que, depois, teve necessidade de ajuda permanente de terceira pessoa, tendo tido dores de grau 5 numa escala até 7 e cuja incapacidade absoluta para o trabalho (relevando aqui na sua vertente não patrimonial) se prolongou por cerca de ano e meio, tendo ficado, com a estabilização clínica, com dores e dismetria dos membros inferiores (Procº 220/2001-7.S1);
- Ac. do STJ de 07/06/11: Não é excessiva uma indemnização de €90.000, arbitrada como compensação de danos não patrimoniais, decorrentes de lesões físicas dolorosas, que implicaram sucessivas intervenções cirúrgicas, internamento por tempo considerável, dano estético relevante e ditaram sequelas irremediáveis e gravosas para o padrão e a qualidade de vida pessoal do lesado (Procº 3042/06.9TBPNF.P1.S);
- Ac. de 07/10/10: É de acolher a pretensão compensatória, por danos não patrimoniais, de €50.000 relativamente a essa pessoa que:  Sofreu várias fracturas e um traumatismo crâneo-encefálico, com inerentes dores (de grau 5 numa escala até 7); Esteve hospitalizado duas vezes, foi sujeito a intervenções cirúrgicas e a tratamento em fisioterapia; Teve de se deslocar, por longo tempo, com o auxílio de canadianas; Ficou, como sequelas permanentes, com cicatrizes na perna, claudicação da marcha, dificuldade em permanecer de pé, em subir e descer escadas e, bem assim, impossibilitado de correr e praticar desporto que antes praticava; Passou, de alegre e comunicativo, a triste, desconcertado e ansioso (Procº 370/04.1TBVGS.C);
- Ac. do STJ de 29/06/11: Em matéria de lesões físicas do demandante sobressai a fractura do cotovelo, que o obrigou a uma intervenção cirúrgica e a um período de 30 dias de incapacidade temporária geral e profissional total, seguido de um período de 177 dias de incapacidade temporária geral e profissional parcial; as dores sofridas, tendo sido fixado quantum doloris no grau 5, numa escala de 7; o dano estético, constituído pela cicatriz de 14 cm, fixado no grau 3, numa escala até 7. Tendo em conta esta factualidade, com destaque para o período de tempo de doença e o quantum doloris, que são significativos, entende-se que o montante de indemnização fixado (€25 000) é justo e adequado à reparação dos danos não patrimoniais (Procº 345/06.6PTPDL.L1. S1).
No caso concreto temos:
- Como consequência direta e necessária do embate da viatura conduzida pelo arguido AA e dos golpes com faca que aquele lhe desferiu, a vítima BB sofreu fortes dores e as seguintes lesões:
- Na região Craniana: cicatriz, com crosta castanha, linear, na região frontopariental esquerda, obliqua ínfero–lateralmente, com 4,5cm de comprimento; cicatriz hipercromática na região fontal direita, linear, ínfero –mediana com 0,5cm de comprimento;
- Na face: 2 cicatrizes com crosta castanha, no pavilhão auricular esquerdo, transversais, com 0,5cm de comprimento, cada
- Tórax: cicatriz hipocromática na região escapular esquerda, puntiforme; cicatriz hipocromática na região dorsal esquerda, vertical, com 2,5cm de comprimento; equimose roxa e amarela, na região dorsal, justa axilar, com 6cm de dilatrómetro; cicatriz hipocromática na região lateral esquerda, oblíqua ínfero–lateralmente, com 1,2cm de comprimento; área escoriada na face lateral esquerda, oblíqua, ínfero –posteriormente, com 6x2cm de maiores dimensões;
- Membro superior direito: 2 cicatrizes com crosta castanha na face posterior do cotovelo, numa área com 2cm de diâmetro (ação de natureza contundente);
- Membro inferior direito: ferida, na face posterior do terço medio da coxa, transversal, com 2,5cm de comprimento, e edema associado; cicatriz hipercromática na face posterior do terço distal da coxa, vertical, com 1,5cm de comprimento.
- Lesões essas, resultado de traumatismo de natureza contundente, corto perfurante e que determinaram ao ofendido 30 dias de doença, com perda parcial de autonomia para as atividades da vida diária, social e familiar, 8 dos quais com perda total e 22 dos quais com perda parcial de autonomia para a atividade laboral, tendo carecido de tratamento médico e hospitalar.
- O assistente deu entrada no Hospital ..... no mesmo dia pelas 04h00, tendo sido dada alta ao mesmo pelas 11h54.
- Em consequência das condutas do arguido o assistente sentiu dores, ansiedade, teve medo de morrer face ao sangue que perdeu ao ser esfaqueado.
- O assistente sentiu e sente medo que o arguido volte a tentar matá-lo, o que fez com que o mesmo alterasse as suas rotinas diárias, isolando-se e restringindo os seus contatos pessoais com os seus familiares e amigos.
- Quando sai à rua fica em sobressalto.
- Sentiu-se infeliz, amargurado, com desgosto e com dificuldades em dormir em virtude de pesadelos que o atormentavam revivendo os factos praticados pelo arguido e de que foi vítima, sendo que sofre de depressão.
- Sentiu embaraço e vergonha perante os seus vizinhos, tendo em conta que os factos ocorreram junto ao prédio onde reside, sendo visível nas imediações do prédio vestígios de sangue, bem como os factos terem sido noticiados na comunicação social.
- Em consequência da conduta do arguido o assistente apresenta sintomas compatíveis com síndrome pós-traumático que obrigam o mesmo a ter acompanhamento médico.
- As cicatrizes presentes no corpo do assistente e resultantes das lesões causadas pelo arguido provocam uma diminuição na autoestima do assistente que não se sente confortável com o seu aspeto físico.
- O assistente sente necessidade de esconder as referidas cicatrizes para que as mesmas não sejam visíveis para terceiros.
Face ao exposto, às normas legais aplicáveis, aos critérios jurisprudenciais citados (numa corrente que afasta indemnizações miserabilistas) e aos danos não patrimoniais sofridos pelo assistente, entendemos ser justo e adequado o montante de 10.000 € para a compensação pelos danos morais.
E, assim, também se julga parcialmente procedente este segmento do recurso.
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V – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso, e, em sequência:
- Reduzir para 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão a pena do crime de homicídio simples (que se desqualifica), agravado (86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006), sob a forma tentada, p. e p. pelo arts. 131.º, C.P.
- Reduzir para 6 (seis) meses a pena de prisão pela prática do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1 al. d), por referência aos arts. 2.º, n.º 1, al. m), 3.º, n.º 2, al. ab) e n.º 4.º, da Lei n.º 5/2006, de 23-02, na redação emergente da Lei n.º 50/2019, de 24-07.
- Reduzir a pena única para 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão efectiva.
- Reduzir para 10.000 € (dez mil euros) a compensação pelos danos não patrimoniais, mantendo-se a condenação quando aos danos patrimoniais.
Sem custas.

Lisboa, 21 de Dezembro de 2021
Paulo Barreto
Manuel Advínculo Sequeira