Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
38/23.0YTLSB-B.L1-PICRS
Relator: ALEXANDRE AU-YONG OLIVEIRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
APREENSÃO
CORREIO ELECTRÓNICO
JIC
DEVER DE SIGILO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/16/2024
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO (da responsabilidade do Relator)
1. O exame, recolha e apreensão de mensagens de correio eletrónico (e comunicações interpessoais semelhantes), efetuada pela AdC ao abrigo do artigo 18.º, n.º 1, do Regime Jurídico da Concorrência, não contende com o direito à inviolabilidade da correspondência previsto no artigo 34.º, n.º 4, da CRP (cf. Ac. TC n.º 533/2024, de 04 de julho de 2024).
2. No caso concreto, o despacho proferido por Juiz de Instrução, que tomou conhecimento por amostragem do teor dos dados informáticos apreendidos em busca e apreensão por si previamente autorizada, e que, nessa sequência, nomeou inspetores da AdC, entidade encarregue da investigação, para lhe coadjuvar, no sentido de, no prazo de 90 dias, apresentar-lhe uma listagem dos dados informáticos (correio eletrónico e registo de comunicações) que sejam relevantes para a prova, bem como suporte digital onde os mesmos deverão gravados, para efetiva apreensão e junção, ficando aqueles ligados ao dever de segredo, acaso encontrem itens que contendam com sigilos profissionais e sejam manifestamente estranhos à investigação e/ou com a intimidade da vida privada, os quais, a suceder, deverão ser identificados para destruição, não enferma de qualquer nulidade ou irregularidade e, menos ainda, de inconstitucionalidade material.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
Recorrente/arguida: Clínia - Clínica Médica da Linha, Lda. (doravante, Clínia)
Recorrida/Entidade Supervisora: Autoridade da Concorrência (doravante, AdC)
1. A Recorrente Clínia interpôs recurso sobre despacho judicial de 26-05-2024 (ref.ª 8883270), proferido pela Mm.ª Juiz de Instrução Criminal de Lisboa (despacho recorrido), e que, concluiu nos seguintes termos:
“Termos em que se julga não verificada a nulidade (e sequer a irregularidade) arguida pela Requerente e se julga constitucional a interpretação e aplicação do disposto nos artigos 179.º, n.º 3, 1ª parte do C.P.P. e 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro nos termos ordenados por este Tribunal.”.
2. Em sede de exame preliminar, foi decidido pelo Relator do presente acórdão, por despacho proferido em 01-10-2024, que o efeito do recurso deveria ser meramente devolutivo e não suspensivo conforme requeria a Recorrente e fixado pelo tribunal a quo.
3. Quanto ao fundo da questão do recurso, a Recorrente teceu as seguintes:
CONCLUSÕES e PEDIDO (reprodução)
1. Vem o presente recurso interposto do despacho judicial de fls. 296 a 298 verso dos autos, proferido pela Mma. Juiz de Instrução Criminal em 26.05.2024, que indeferiu o requerimento de arguição de nulidade apresentado pela Clínia em 18.04.2024 quanto ao despacho judicial de 09.04.2024 reproduzido no auto de abertura e verificação de correspondência da mesma data.
Da errada interpretação e aplicação dos artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º do Código do Processo Penal
2. A Decisão Recorrida erra na interpretação e aplicação, desde logo, do disposto nos artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º e 268.º, n.º 1, alínea d), ambos do CPP, encerrando uma decisão frontalmente atentatória do disposto nos citados normativos, mas também, e sobretudo, do disposto nos artigos 18.º, n.ºs 1 e 2, 20.º, 26.º, 32.º, n.ºs 1, 4 e 8, 34.º, n.ºs 1 e 4 e 202, n.º 2, todos da CRP.
3. A Decisão Recorrida erra, pois, ao julgar improcedente a nulidade do Despacho de 09.04.2024 arguida pela Clínia, devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra que declare nulo (ou, pelo menos, irregular) o Despacho de 09.04.2024. nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.º, n.º 1 da CRP, no artigo 17.º da Lei do Cibercrime e nos artigos 118.º, n.º 1, 119.º, n.º 1, 123.º, 179.º, n.º 3 e 268.º, n.º 1, alínea d) do CPP, por violação do disposto naquele artigo 17.º da Lei do Cibercrime e naqueles artigos 179.º, n.º 3 e 268.º, n.º 1, alínea d) do CPP, bem como por violação do disposto nos artigos 18.º, n.ºs 1 e 2, 20.º, 26.º, 32.º, n.ºs 1, 4 e 8, 34.º, n.ºs 1 e 4 e 202, n.º 2, todos da CRP.
4. O princípio da autonomia do Ministério Público e da sua independência, decorrentes do disposto no artigo 21º.º da CRP e invocados na Decisão Recorrida para destrinçar as competências daquela face às do juiz de instrução, não têm aplicação ao caso dos autos nos termos dela constantes porquanto não é, in casu, o Ministério Público que dirige o inquérito, sendo que a estrutura do processo de contraordenação em fase administrativa não é, como se sabe, puramente acusatória.
5. A teleologia subjacente à imposição decorrente do disposto no artigo 179.º, n.º 3 do Código do Processo Penal de que é o juiz de instrução o primeiro a tomar conhecimento do teor da correspondência apreendida vem claramente identificada na lei como radicando na necessidade de assegurar o direito à inviolabilidade da sua correspondência dos buscados, ínsito no artigo 34.º n.º 4 da CRP, garantindo que o mesmo só é colocado em causa se houver justificação para tal com o legislador a consignar que tal apenas se verifica quanto à correspondência que se afigure ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
6. A proteção constitucional conferida ao sigilo da correspondência (artigo 34.º, n.º 4 da CRP), bem como à reserva da intimidade da vida privada (artigo 26.º, n.º 1, CRP) e à proibição de acesso a dados pessoais por terceiros (artigo 35.º, n.º 4, CRP), impõe, no mínimo, que a afetação desses direitos, liberdades e garantias, mediante a realização de exame, recolha e apreensão pelas autoridades, seja feita num quadro legal e normativo que assegure adequada proteção contra intromissões abusivas e dependa de uma ponderação prévia que, constitucionalmente, constitui matéria reservada ao juiz (artigo 32.º, n.º 4 da CRP). Reserva essa que, como se sabe, encontra a sua razão de ser, por um lado, na circunstância de, na estrutura judiciária portuguesa, só estes poderem praticar atos materialmente jurisdicionais e, por outro, nas garantias de independência e imparcialidade (concretamente, na obtenção da prova) que apenas estes oferecem e que decorrem da lei (artigos 3.º, 4.º e 6.º-C da Lei n.º 21/85, de 30 de julho), e da própria Constituição (artigos 202.º e 203.º da CRP)
7. Foi neste quadro que o legislador ordinário estabeleceu que o controlo judicial prévio da ingerência na correspondência, exigido pela Constituição, concretiza-se não só na ponderação ex ante reclamada para a ordem ou autorização de apreensão de correspondência, mas também na salvaguarda ex post de que a correspondência encontrada e selecionada pelas autoridades públicas como potencialmente relevantes para a sua investigação é mantida inviolada até que seja pelo juiz de instrução, sendo esse o desenho infraconstitucional traçado para assegurar a efetividade da garantia jusfundamental prescrita no artigo 34.º da CRP, assim sujeita à reserva de juiz decorrente do artigo 32.º, n.º 4, também da Constituição.
8. Dessa forma, por via daquele controlo judicial, assegura o legislador que apenas é carreada para o processo a correspondência que seja pelo juiz de instrução considerada, com a imparcialidade e independência que só ele oferece (por oposição à natural parcialidade do titular da ação sancionatória e dos seus coadjuvantes), relevante para a descoberta da verdade material e/ou para a prova dos factos sob investigação, tal como lhe foram comunicados pelo titular do inquérito, assim se garantindo que a ingerência das autoridades públicas - que não o juiz das liberdades - se cinge àquela correspondência, impedindo a desproporcionalidade da afetação jusfundamental, bem como que outras pessoas que não o próprio tomem conhecimento (indevido e desnecessário) do conteúdo da correspondência privada apreendida que não se mostre relevante para os fins da investigação (tanto membros dos órgãos de polícia criminal, como inclusivamente terceiros que tenham acesso ao processo).
9. Daí que estejamos perante uma matéria que, enquadrando-se na já mencionada reserva de juiz pelos motivos expostos e melhor desenvolvidos nas motivações supra, é da competência exclusiva e indelegável do juiz de instrução criminal, vindo incluída no elenco de competências reservadas prescrito no artigo 268.º, n.º 1, alínea d) do CPP, sem que se preveja qualquer situação na lei em que a sua intervenção neste âmbito seja (ou possa ser) dispensada.
10. Sucede que entender que tal nulidade não existe por força da nomeação operada pelo Tribunal a quo é ignorar a delegação nos Senhores Inspetores nomeados de uma competência exclusiva e reservada ao juiz para tomar conhecimento, em primeira mão, da correspondência apreendida e, analisando-a, selecionar aquela que se revele relevante para a descoberta da verdade material ou para a prova dos factos sob investigação, bem como para identificação pelos mesmos dos elementos que, contendendo com sigilos profissionais e/ou com a intimidade da vida privada, devam ser destruídos, sendo que, como resulta patente, aquilo que se pretende seja efetuado pelos Senhores Inspetores é precisamente o que a Constituição e lei impõem, nos termos conjugados do disposto nos artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º, n.º 3, 268.º, n.º 1, alínea d), todos do CPP, e 32.º, n.º 4 e 34.º, n.º 4, estes da CRP, seja realizado pelo juiz de instrução criminal, independente e imparcial, tendo em vista a minimização da afetação dos direitos fundamentais em presença por via da limitação da ingerência ao estritamente necessário à prossecução dos respetivos fins, em obediência ao princípio da proporcionalidade inscrito no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.
11. É que se forem os Senhores Inspetores os primeiros a tomar conhecimento de boa parte da correspondência apreendida (desde logo, aquela não contemplada na amostra) e a selecionar o que deverá ser, subsequentemente, objeto de decisão de junção aos autos a adotar pelo Juiz de Instrução e o que deve ser destruído ou devolvido à Buscada, esse desígnio jusfundamental sai absolutamente frustrado. E isto mesmo que, naquele momento subsequente, o juiz de instrução valide e faça sua a seleção preliminar operada pelos Senhores Inspetores.
12. Acresce que a delegação de competências, ao defraudar a arquitetura infraconstitucional definida pelo legislador para a realização da missão jusfundamental em referência, atropela também, além da reserva de juiz e da garantia de inviolabilidade da correspondência, os direitos fundamentais consagrados nos artigos 20.º, 26.º e 34.º da CRP, bem como viola o princípio da vinculatividade e aplicação direta dos direitos fundamentais e da proporcionalidade (artigo 18.º, n.ºs 1 e 2 da CRP), o princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 5 da CRP, por deixar sem tutela jurisdicional a proteção de direitos fundamentais, quando os mesmos são atacados por medidas de investigação efetuadas pelas autoridades; e, bem assim, o princípio de que em processo penal são garantidas todas as garantias de defesa, previsto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 8, da CRP.
13. Assim, pelo que se expôs, deveria a Decisão Recorrida ter julgado procedente a nulidade do despacho de 09.04.2024, por violação das regras de competência e, em particular, da reserva de juiz constitucionalmente consagrada.
14. Por outro lado, e sem conceder, mesmo admitindo, por mera cautela de patrocínio, que as mensagens que serão relevantes para a prova poderiam ser objeto de seleção posterior, sob proposta da AdC, mediante despacho recorrível, conforme determinado pelo Tribunal a quo, a imposição legal decorrente dos artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º, n.º 3 do CPP no sentido de que é o juiz de instrução criminal quem toma, em primeiro lugar, conhecimento das mensagens de correio eletrónico apreendidas e seleciona aquelas que se afigurem relevantes para o processo sempre terá, em qualquer caso, de ter alguma finalidade, não podendo esvaziar-se em letra morta o conteúdo normativo das citadas disposições legais.
15. Nesse sentido, mesmo nessa hipótese, crê-se que cabe ao juiz de instrução criminal, nesse primeiro momento, assegurar, pelo menos, que:
(i) a correspondência apreendida se circunscreve nos limites temporais e materiais do despacho que autorizou a sua apreensão;
(ii) a correspondência apreendida não abrange correspondência sem conexão com os factos sob investigação e cuja manutenção no processo contenda com direitos de terceiros, nomeadamente com a respetiva vida pessoal;
(iii) de entre a correspondência apreendida avulta correspondência que, nos termos da lei, deva ser removida do processo, em particular porque sujeita a sigilo, nomeadamente sigilo profissional (de advogado, médico, etc) - in casu, considerando, em especial, o facto de, em direito da concorrência, ser proibida a apreensão de correspondência que contenda com sigilo profissional de advogado (cfr. artigo 76.º do EOA, que admite apenas exceção para situações de factos que constituam crime e não contraordenação).
16. Das conclusões precedentes, desenvolvidas e substanciadas nas motivações supra, resulta patente que o controlo judicial a exercer, nos termos da Constituição e da lei, pelo juiz de instrução neste âmbito não pode ser um controlo parcial, aleatório, meramente formal e, também por isso, ineficaz na tutela dos direitos fundamentais para cuja salvaguarda se encontra destinado. E, nesse sentido, contrariamente ao propugnado na Decisão Recorrida, compreende-se que nem a Constituição nem a lei prevejam qualquer ressalva ou exceção no sentido de autorizar que a intervenção do juiz de instrução criminal prevista no disposto nos artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º, n.º 3 do CPP possa ser realizada por amostragem ou em termos parciais, designadamente em função da quantidade de correspondência apreendida.
17. O conteúdo normativo do artigo 179.º, n.º 3 do CPP (e, bem assim, do artigo 17.º da Lei do Cibercrime) não pode deixar de se referir a toda a correspondência apreendida, sem exceções, ressalvas ou limitações, que, aliás, não se encontram nem no artigo 179.º, n.º 3 do CPP, nem em qualquer outra disposição legal, sendo, de resto, este o único sentido da letra da lei, sobretudo quando lida e interpretada à luz do respetivo enquadramento constitucional e da respetiva teleologia, mesmo limitada à sua função iminentemente garantística e orientada para a proibição do excesso.
18. Por outro lado, e ao contrário do que se afirma na Decisão Recorrida, a quantidade de correspondência que em concreto subjaz aos presentes autos e outra tanta que diariamente nos é apresentada, quando muito, tornaria a tarefa imperativamente imposta ao juiz de instrução pelo disposto no artigo 179.º, n.º 3 do CPP numa tarefa morosa, exigente e complexa e, em qualquer caso, não serve para justificar a dispensa do cumprimento da lei. Ainda para mais quando essa dificuldade prática foi provocada pela circunstância de o Tribunal a quo ter permitido que a AdC, no âmbito das diligências de busca a que presidiu, apreendesse as mensagens de correio eletrónico em causa com base numa lista de palavras-chave que terá de ter sido excessivamente abrangente, tendo presente os milhares de resultados positivos pelas mesmas gerados.
19. De resto, tivesse a AdC, no decurso das buscas, realizado um exercício sério de seleção dos elementos que deveriam ser apresentados a este Tribunal para os efeitos do disposto naquela disposição legal, designadamente mediante a aplicação cuidada e eficaz dos filtros de pesquisa empregues na seleção dos elementos a apreender, muito provavelmente teria sido efetuada uma apreensão de correspondência mais seletiva e cirúrgica e a dificuldade prática que serve de fundamento à Decisão Recorrida não se teria verificado in casu.
20. O legislador terá adotado a solução que levou aos artigos 179.º, n.º 3 e 268.º, n.º 1, alínea d) do CPP, tendo em vista a salvaguarda constitucional inscrita no artigo 34.º da CRP, precisamente por ter antecipado os termos em que, na prática, seriam executadas as diligências de busca e apreensão de correspondência por parte das autoridades públicas, designadamente a postura cautelar relativamente à aquisição de prova que tenderiam a adotar no âmbito de diligências de busca em face das vicissitudes típicas destas.
21. Admitir-se a solução perfilhada pelo Tribunal a quo e confirmada na Decisão Recorrida seria admitir-se que o juiz de instrução pode demitir-se das suas funções jurisdicionais de garante independente dos direitos fundamentais e, assim, permitir-se aos agentes da investigação que, contra o que dispõe a Constituição e a lei, sejam estes afinal os primeiros a tomar conhecimento do teor da correspondência, a avaliar se a mesma contende com segredos profissionais ou outros e/ou com a intimidade da vida privada, bem como a avaliar a (ir)relevância daquela correspondência para a prova, com os inerentes atropelos para os correspondentes direitos fundamentais em presença - o que, conforme ressalta das conclusões precedentes, redundaria na aceitação ilegítima da verificação do resultado não pretendido pelo legislador.
22. Termos em que, não obstante a Clínia ser solidária com a escassez de meios e com o volume do serviço a cargo dos Tribunais, ter-se-á de concluir, mais uma vez, que a justificação apresentada pelo Tribunal o quo não colhe, não se apresentando como lícita para a realização de uma seleção por amostragem, acarretando essa opção a nulidade do Despacho de 09.04.2024 e, consequentemente, a necessidade de revogação da Decisão Recorrida e a sua substituição por outra que reconheça e declare essa nulidade.
23. A norma que se extrai da interpretação conjugada do disposto nos artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º, n.º 3 do CPP, ex vi artigo 41.º n.º 1 do RGCO e 13.º da LdC, no sentido de que o juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência eletrónica apreendida, o que pode ser feito por amostragem é materialmente inconstitucional, por violação dos direitos fundamentais consagrados nos artigos 20°, 26.º e 34.º da CRP, bem como do princípio da vinculatividade e aplicação direta dos direitos fundamentais e da proporcionalidade (artigo 18.º, n.ºs 1 e 2 da CRP), do princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.ºs 1 e 5 da CRP), do princípio da reserva de juiz (artigo 32.º n.º 4 da CRP), e do princípio de que em processo penal são asseguradas todas as garantias de defesa (artigo 32.º, n.ºs 1 e 8, da CRP).
24. A norma que se extrai da interpretação conjugada do disposto nos artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º, n.º 3 do CPP, ex vi artigo 41.º n.º 1 do RGCO e 13.º da LdC, no sentido de que não é imposto ao juiz de instrução criminal que tome conhecimento de todos os dados informáticos apreendidos (correio eletrónico e correspondência análoga), ou seja, que os abra, visualize um a um e escolha, entre todos eles, os que são relevantes para a prova, designadamente em face da quantidade de correspondência que em concreto subjaz aos presentes autos e outra tanta que lhe é diariamente apresentada, é materialmente inconstitucional, por violação dos direitos fundamentais consagrados nos artigos 20.º, 26.º e 34.º da CRP, bem como do princípio da vinculatividade e aplicação direta dos direitos fundamentais e da proporcionalidade (artigo 18.º, n.ºs 1 e 2 da CRP), do princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.ºs 1 e 5 da CRP) e do princípio de que em processo penal são asseguradas todas as garantias de defesa (artigo 32.º, n.ºs 1 e 8, da CRP).
25. A norma que se extrai da interpretação conjugada do disposto no artigo 17.º da Lei do Cibercrime e dos artigos 179.º, n.º 3 e 268.º, n.º 1, al. d), ambos do CPP, ex vi artigo 41.º n.º 1 do RGCO e 13.º da LdC, no sentido de que o juiz de instrução criminal pode nomear inspetores a cargo da investigação para lhe apresentarem uma listagem dos dados informáticos apreendidos (correio eletrónico e registo de comunicações) que sejam relevantes para a prova, bem como suporte digital onde os mesmos deverão gravados, para efetiva apreensão e junção, ficando aqueles ligados ao igual dever de segredo, acaso encontrem itens que contendam com sigilos profissionais e sejam manifestamente estranhos à investigação e/ou com a intimidade da vida privada, os quais, a suceder deverão ser identificados para destruição, é materialmente inconstitucional por consubstanciar a delegação de uma competência exclusiva, reservada e indelegável do juiz de instrução criminal, não autorizada pela Constituição e/ou pela lei ordinária, bem como por redundar na violação da reserva constitucional de juiz (artigo 32.º, n.º 4 da CRP), do princípio da reserva da função jurisdicional, inerente ao Estado de direito democrático (202.º, n.º 2, da CRP), dos princípios da independência e imparcialidade (artigos 202.º e 203.º da CRP), do princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.ºs 1 e 5 da CRP), do princípio de que em processo penal são asseguradas todas as garantias de defesa (artigo 32.º, n.ºs 1 e 8, da CRP), do princípio da vinculatividade e aplicação direta dos direitos fundamentais e da proporcionalidade (artigo 18.º, n.ºs 1 e 2 da CRP), com a inerente afetação dos direitos fundamentais consagrados nos artigos 20.º, 26.º e 34.º da CRP.
26. A norma que se extrai da interpretação conjugada do disposto nos artigos 17.º da Lei do Cibercrime e dos artigos 179.º, n.º 3 e 268.º, n.º 1, al. d), ambos do CPP, ex vi artigo 41.º n.º 1 do RGCO e 13.º da LdC, no sentido de que, em processo de contraordenação, após o juiz de instrução criminal que autorizou ou ordenou a apreensão de correio eletrónico tomar conhecimento, em primeiro lugar, por amostragem, do conteúdo da correspondência apreendida, a seleção da correspondência relevante para a prova e a que deva ser restituída a quem de direito é determinada sob proposta dos inspetores a cargo da investigação que devem apresentar ao juiz uma listagem dos dados informáticos apreendidos (correio eletrónico e registo de comunicações) que sejam relevantes para a prova, bem como suporte digital onde os mesmos deverão gravados, para efetiva apreensão e junção, ficando aqueles ligados ao igual dever de segredo, acaso encontrem itens que contendam com sigilos profissionais e sejam manifestamente estranhos à investigação e/ou com a intimidade da vida privada, os quais, a suceder, deverão ser identificados para destruição.
Nestes termos, e nos melhores de Direito, requer- se a V. Exas. se dignem julgar o presente recurso procedente e, em consequência, ordenar a revogação da Decisão Recorrida, bem como a sua substituição por outra que declare nulo o Despacho Judicial de 09.04.2024, proferido pelo Tribunal a quo nos autos.
Mais se requer a V. Exas. se dignem conhecer e apreciar as questões de constitucionalidade suscitadas no presente recurso, declarando a inconstitucionalidade das normas em crise, tal como interpretadas e aplicadas pelo Tribunal a quo.
*
4. A Recorrida AdC, regularmente notificada para o efeito, respondeu ao recurso, pugnando pela respetiva improcedência.
*
5. O Ministério Público junto deste tribunal da relação apôs “visto”.
*
II. QUESTÕES
6. Perante a fundamentação e conclusões de recurso da arguida cumpre ao presente tribunal responder às seguintes questões:
i. O despacho de 09-04-2024, contrariamente ao que decidiu o despacho recorrido de 26-05-2024, deve ser considerado nulo por violação das regras de competência e, em particular, da reserva de juiz, sendo o entendimento do tribunal a quo materialmente inconstitucional?
*
III. FUNDAMENTAÇÃO
7. O presente recurso segue a tramitação prevista no Código do Processo Penal, com as especialidades previstas no artigo 74.º, n.º 4, do Regime Geral das Contraordenações.
8. Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores, que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação do recurso (artigo 412.º, n° 1, do Código de Processo Penal), sem prejuízo da apreciação das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito.
9. Também decorre das regras processuais e de jurisprudência superior que o presente tribunal deve conter-se nos limites do pedido[1].
10. Feitos estes esclarecimentos, passemos, pois, a responder à questão suscitada pela Recorrente.
i. O despacho de 09-04-2024, contrariamente ao que decidiu o despacho recorrido de 26-05-2024, deve ser considerado nulo por violação das regras de competência e, em particular, da reserva de juiz, sendo o entendimento do tribunal a quo materialmente inconstitucional?
11. Segundo o que alega a Recorrente, a decisão recorrida, datada de 26-05-2024, errou ao julgar improcedente a nulidade do Despacho de 09-04-2024, arguida pela mesma.
12. Tal erro, deve-se, na sua perspetiva, à imposição, desde logo decorrente do disposto no artigo 179.º, n.º 3 do Código do Processo Penal, de que deve ser o juiz de instrução (doravante, JI), o primeiro a tomar conhecimento do teor da correspondência apreendida, radicando tal conhecimento na necessidade de assegurar o direito à inviolabilidade da sua correspondência dos buscados, ínsito no artigo 34.º n.º 4 da CRP.
13. Realça a Recorrente, nas suas conclusões, que do controlo judicial da correspondência tal como previsto no tecido normativo aplicável, resulta patente que “não pode ser um controlo parcial, aleatório, meramente formal e, também por isso, ineficaz na tutela dos direitos fundamentais para cuja salvaguarda se encontra destinado”. Nem a Constituição nem a lei preveem qualquer ressalva ou exceção no sentido de autorizar que a intervenção do juiz de instrução criminal prevista no disposto nos artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º, n.º 3 do CPP possa ser realizada por amostragem ou em termos parciais, designadamente em função da quantidade de correspondência apreendida.
14. Mais realça a Recorrente que, a delegação nos Senhores Inspetores nomeados de uma competência exclusiva e reservada ao juiz, em concreto, para tomar conhecimento, em primeira mão, da correspondência apreendida, analisando-a e selecionando aquela que se revele relevante para a descoberta da verdade material ou para a prova dos factos sob investigação, bem como para identificação pelos mesmos dos elementos que, contendendo com sigilos profissionais e/ou com a intimidade da vida privada, devam ser destruídos, é precisamente o que a Constituição e lei impõe que seja realizado pelo JI, independente e imparcial, tendo em vista a minimização da afetação dos direitos fundamentais em presença. Entendimento diverso, viola, pois, o artigo 17.º da Lei do Cibercrime, artigos 179.º, n.º 3, 268.º, n.º 1, alínea d), ambos do CPP, e artigos 18.º, n.º 1 e 2, 20.º, 26.º, 32.º, n.ºs 1, 4 e 8, 34.º, n.ºs 1 e 4 e 202.º, n.º 2, todos da CRP.
15. Alega, em suma, que o legislador ordinário estabeleceu que o controlo judicial da ingerência na correspondência, exigido pela Constituição, concretiza-se não só na ponderação ex ante reclamada para a ordem ou autorização de apreensão de correspondência (que aqui não está em causa), mas também pela salvaguarda ex post de que TODA a correspondência encontrada e selecionada pelas autoridades públicas como potencialmente relevantes para a sua investigação é mantida inviolada até que seja conhecida pelo juiz de instrução. Entendimento diverso, da sua perspetiva, é materialmente inconstitucional, por violação das referidas normas da CRP.
Dos atos processuais relevantes para a decisão a proferir
16. Resulta do “Auto de abertura e verificação de correspondência”, datado de 09-04-2024, que foi, na presença da JI, efetuada a abertura de correspondência eletrónica referenciada nos Autos e feita a observação, por amostragem, do que se encontrava no interior de vários discos externos, num total de 5, entre os quais um “Disco Externo de marca WD da Clinia”.
17. Decorre do mesmo auto que certos emails foram desde logo eliminados.
18. Mais foi consignado o seguinte:
“DESPACHO
Consigno que tomei conhecimento “em primeiro lugar”, diga-se, por amostragem, do teor dos dados informáticos apresentados, nos termos do art. 179.º, n.º 3, 1ª parte do C.P.P. ex vi art. 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro.
A articulação destas duas normas, a meu ver, não impõe que o Juiz de Instrução tome conhecimento de todos os dados informáticos apreendidos (correio electrónico e correspondência análoga), ou seja, que os abra, visualize “um a um” e escolha, entre todos eles, os que são relevantes para a prova.
Ainda que se assim não se entendesse – o que só por mera hipótese de raciocínio se admite -, seria tarefa materialmente impossível, dada a quantidade de correspondência que em concreto subjaz aos presentes autos e outra tanta que diariamente nos é apresentada.
Termos em que nomeio os inspectores Dr. (…), Dr.ª (…), Dr. (…), Dr.ª (…), Dr.ª (…) e ainda o Dr. (…), este último na qualidade de informático, e que têm a cargo a investigação a coadjuvar-me, no sentido de, no prazo de 90 (noventa) dias, apresentar-me listagem dos dados informáticos (correio electrónico e registo de comunicações) que sejam relevantes para a prova, bem como suporte digital onde os mesmos deverão gravados, para efectiva apreensão e junção, ficando aqueles ligados ao igual dever de segredo, acaso encontrem itens que contendam com sigilos profissionais e sejam manifestamente estranhos à investigação e/ou com a intimidade da vida privada, os quais, a suceder, deverão ser identificados para destruição.”.
19. A apreensão dos referidos discos externos ocorreu durante uma busca efetuada pela AdC, iniciada no dia 26-10-2023 e terminada no dia 30-10-2023, às instalações da empresa Clínia - Clínica Médica da Linha, Lda., sitas na Rua Lino de Assunção, n.º 6, 2770-109, Paço de Arcos (Clínia), previamente autorizada por despacho de JI e efetuada inclusivamente na presença da JI e de representante da Ordem dos Médicos, conforme atesta o respetivo “Auto de busca e apreensão”, junto com a certidão subjacente aos presentes autos de recurso.
20. Daquele mesmo auto de busca e apreensão, cuja autenticidade e integridade não são postos em causa, resulta, ainda, o seguinte:
a) Mostrava-se também presente na busca, a Exma. Senhora (…), na qualidade de gerente da empresa Clínia.
b) Acompanharam também a diligência no dia 26 de outubro de 2023, das 11 horas e 37 minutos às 13 horas e 12 minutos, os mandatários legais da empresa Clínia, Drs. (…) e (…).
c) No dia 26 de outubro de 2023, foram entregues pela Clínia (i) um documento comprovativo da ativação da funcionalidade "Litigation Hold" para as caixas de correio eletrónico dos colaboradores (…) e (…) (Anexo 2 ao presente Auto) e (ii) um consentimento por escrito, nos termos do qual a empresa Clínia autorizou a Autoridade da Concorrência a analisar, selecionar e extrair os elementos probatórios no âmbito da diligência, nos termos previstos no despacho que fundamenta o mandado de busca e apreensão emitido pela Meritíssima Juíza de Direito do Tribunal Central de instrução Criminal - Juiz 6 que autoriza a diligencia (Anexo 3 ao presente Auto).
d) Na sequência dos procedimentos detalhadamente descritos nos autos de suspensão dos dias 26 e 27 de outubro de 2023, para efeitos da apreensão, a Autoridade correu, no computador de sua propriedade, utilizado para a pesquisa informática, palavras-chave relacionadas com o ilícito sob investigação.
e) Da pesquisa informática realizada aos ficheiros onde consta a identificação dos advogados resultaram ficheiros informáticos que serão incluídos em pasta própria no dispositivo de armazenamento externo que será encriptado.
f) Tendo sido feita uma cópia integral dos mesmos constante de dispositivo de armazenamento externo que será oportunamente entregue nos autos à ordem da Meritíssima Juíza de Direito, a qual fica, neste momento, a única detentora da password para respetiva desencriptação dos ficheiros eletrónicos. Sem prejuízo, a Meritíssima Juíza de Direito escreveu, pelo seu próprio punho, a referida password, a qual ficou em envelope fechado, devidamente lacrado e rubricado, que ficara a constar da contracapa dos autos que correm termos no Tribunal Central de lnstrução Criminal - Juiz 6.
g) Foi igualmente feita uma cópia integral dos referidos ficheiros (não encriptados) descritos e certificados nos acima indicados ficheiros ListaAdC_Advogados.sha256 e ListaAdC.sha256 para um dispositivo de armazenamento externo disponibilizado para o efeito pela Clínia e entregue a sua representante legal.
h) Tal procedimento foi validado pela Meritíssima Juíza de Direito e, portanto, certificado pela mesma que preside esta diligencia, e conferido pela representante legal da Clínia.
i) A cópia encriptada acima indicada ficará na posse da Meritíssima Juíza de Direito que preside a presente diligência, única detentora da password de desencriptação, e será posteriormente remetida ao Tribunal de lnstrução Criminal de Lisboa, para os devidos efeitos.
j) No final da diligência, o computador portátil utilizado pela Autoridade para permitir a utilização de ferramentas forenses de pesquisa digital foi deixado em procedimento de limpeza (secure erase), que se estima ter uma duração de duas horas e meia, e será recolhido, após a conclusão deste procedimento, na mesma data, pela Autoridade, facto do qual ficou ciente a representante legal da Clínia.
21. Mais consta do documento intitulado “Consentimento”, anexo ao “Auto de busca e apreensão”, cuja autenticidade e integridade não foram colocados em causa, o seguinte:
“Pelas 10 horas e 38 minutos do dia 26 de outubro de 2023, nas instalações da empresa Clínia - Clínica Médica da Linha, Lda., sitas na Rua Lino de Assunção, n.º 6, 2770-109, Paço de Arcos, encontravam-se presentes a Meritíssima Juíza de instrução Criminal, Dra. (…), o Prof. Dr. (…), representante da Ordem dos Médicos, os trabalhadores da Autoridade da Concorrência (Autoridade) (…), (…) e (…), para o efeito investidos através de credenciais nominativas emitidas pela Autoridade da Concorrência em 25 de outubro de 2023…
No ato de notificação, a pessoa supra identificada [Exma. Senhora (…), na qualidade de gerente da empresa Clínia - Clinica Medica da Linha, Lda.] foi informada de que a diligência seria, nos termos do n.º 7 do artigo 19.º da Lei da Concorrência, presidida e realizada na presença da Meritíssima Juíza de lnstrução Criminal, tendo-lhe sido ainda entregue o despacho que fundamenta o mandado. Nos termos do referido despacho, são expressamente conferidos os poderes para a Autoridade:

3) Tirar ou obter, sob qualquer forma, cópias ou extratos dos documentos controlados, designadamente mensagens eletrónicas, nomeadamente, mensagens de correio eletrónico, sms, mensagens instantâneas e outras, constantes de quaisquer dispositivos eletrónicos, lidos, não lidos ou apagadas, bem como de documentos internos de reporte de informação, entre níveis hierárquicos distintos e de preparação de decisões, atas de reuniões, quer se encontrem ou não em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, incluindo quaisquer suportes informáticos, computadores, telemóveis ou outros dipositivos móveis (das empresas e associações de empresas ou a estas afetos), que sejam diretamente ou indiretamente relacionados com praticas restritivas da concorrência".
A par dos poderes transcritos, foi determinado, nos termos do despacho, que "a) [A] apreensão por cópia dos dados relativos a caixas de correio eletrónico, bem como de mensagens de chat e comunicações eletrónicas semelhantes (Messenger, Whatsapp, app mensagens, etc) que se encontrem em qualquer sistema informático e que se mostrem relacionadas com a prática dos ilícitos em investigação ou que possam servir de prova dos mesmos, devem ser inseridas em suporte digital autónomo, de forma encriptada e sem análise prévia (art. 16.º , n.ºs 1 e 7, als. a) a c) e 8 da Lei n.º 109/2009, de 15.9), suporte dos quais devo ter conhecimento em "primeira mão" a fim de aferir do sua pertinência/relevância para a prova ou determinar a sua restituição a quem de direito (art. 17.º da mesma Lei e art. 179.º , n.ºs 1, als. a) a c) e 3) do C.P.P.) ou, ainda, aferir se revelam dados pessoais ou íntimos que possam colocar em causa a privacidade do respetivo titular ou de terceiros com vista a ponderar da sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto no contexto dos ilícitos investigados (art. 16.º, n.º 3 da identificada Lei)". Para este efeito, admite o Meritíssimo Juiz, nos termos da alínea b) do despacho supra referido, poder ser "coadjuvado, se necessário, pelas entidades policiais e/ou técnicos qualificados da autoridade da concorrência".
Sem prejuízo do exposto, o Meritíssimo Juiz que emitiu despacho, que fundamenta o mandado que autoriza a presente diligência, concede a possibilidade de o procedimento supra descrito não ser necessário, "caso as entidades/pessoas visadas pelas buscas prestem consentimento por si subscrito pelo qua/ autorizem a Autoridade da Concorrência a analisar, selecionar e extrair os elementos considerados relevantes no contexto dos infrações em investigação" (cf. alínea c) do despacho de fundamentação do mandado de busca, exame, recolha e apreensão).
Neste contexto e pelo presente, a Clínia - Clinica Medica da Linha, Lda. confere, nos referidos termos, o seu expresso consentimento para, no âmbito das buscas autorizadas pelo Meritíssimo Juiz de Direito, a Autoridade da Concorrência proceder a analise, seleção e extração dos elementos probatórios apreendidos no âmbito da presente diligencia para efeitos de apreensão final, a qual será posteriormente validada pela Meritíssima Juíza de Direito do Tribunal Central de Instrução Criminal - Juiz 6, que emitiu o mandado que autoriza a presente diligencia de busca, para exame, recolha e apreensão de cópias ou extratos de escrita e demais documentação.”.
22. Arguida a nulidade pela ora Recorrente Clínia do despacho exarado no “Auto de abertura e verificação de correspondência”, datado de 09-04-2024 e supra citado, foi proferido o despacho recorrido em 26-05-2024, onde se deixou consignado, entre outros, o seguinte:
“Ora, no caso em apreço, é indiscutível que houve prévio despacho judicial a autorizar a pesquisa e apreensão de dados, mensagens e correio electrónico susceptíveis de se relacionarem com a prática dos factos sob investigação, ao qual se seguiu, diga-se, consentimento expressado pela Requerente nessa mesma busca e apreensão.
Também é indiscutível que, na sequência dessa autorização judicial, foram apresentados a juiz de instrução, no caso, a signatária, os suportes informáticos onde se encapsularam de modo cego os dados apreendidos e que a mesma, após a respectiva desencapsulação, efectuada na sua presença, tomou conhecimento, em primeiro lugar, por amostragem, do respectivo conteúdo.
E, após, determinou a signatária que fossem tais dados melhor perscrutados pela investigação para posterior apresentação de listagem daqueles que sejam relevantes para a prova, bem como de suporte digital onde os mesmos deverão ser gravados, para efectiva apreensão e junção, ou não, aos autos.
É que depois daquela primeira tomada de conhecimento pelo juiz de instrução, caberá à autoridade que dirige o inquérito e a respectiva investigação a competência para tomar conhecimento de todos aqueles meios de prova em suporte electrónico apreendidos, pois que só assim lhe será possível aferir e pronunciar-se, fundamentada e detalhadamente, sobre a concreta relevância probatória, ou não, de todos e cada um desses meios probatórios apreendidos.
Por isso – contrariamente ao alegado pelos arguidos recorrentes e salvo o devido respeito – não consideramos que o despacho recorrido e os tramites que se lhe seguiram, tenham provocado a alegada nulidade ou estejam feridos das invocadas inconstitucionalidades, que só teriam lugar, sim, se inexistisse qualquer controlo judicial prévio e póstumo à apreensão dos dados, onde se inclui a aferição da proporcionalidade e da necessidade de sacrifício do interesse individual numa comunicação livre de interferências alheias, em prol do exercício do “ius puniendi” estadual.

Termos em que se julga não verificada a nulidade (e sequer a irregularidade) arguida pela Requerente e se julga constitucional a interpretação e aplicação do disposto nos artigos 179.º, n.º 3, 1ª parte do C.P.P. e 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro nos termos ordenados por este Tribunal.”.
Apreciação da questão pelo presente tribunal
23. A argumentação da Recorrente sustenta-se, essencialmente, numa dada interpretação do artigo 17.º da Lei do Cibercrime (doravante, LCC), conjugado com os artigos 179.º, n.º 3 e 268.º, n.º 1, alínea d), ambos do CPP, lidos à luz dos artigos 18.º, n.º 1 e 2, 20.º, 26.º, 32.º, n.ºs 1, 4 e 8, 34.º, n.ºs 1 e 4 e 202.º, n.º 2, todos da CRP.
24. Ou seja, a Recorrente parte do pressuposto, que tem por evidente, que as normas referidas, e mais nenhumas, são as que são aplicáveis ao caso concreto.
25. Da nossa parte, contudo, julga-se que se aplica ao caso o disposto no artigo 18.º do Regime Jurídico da Concorrência.
26. Efetivamente, segundo o artigo 18.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Jurídico da Concorrência, sob a epígrafe “Poderes de busca, exame, recolha e apreensão”, prevê-se o seguinte:
“1 - No exercício de poderes sancionatórios, a AdC, através dos seus órgãos ou trabalhadores pode, designadamente:
a) Aceder sem aviso prévio a todas as instalações, terrenos, meios de transporte, dispositivos ou equipamentos da empresa, ou à mesma afetos;
b) Inspecionar os livros e outros registos relativos à empresa, independentemente do suporte em que estiverem armazenados, tendo o direito de aceder a quaisquer informações acessíveis à entidade inspecionada;
c) Tirar ou obter sob qualquer forma cópias ou extratos dos documentos controlados e, sempre que o considere adequado, continuar a efetuar esse tipo de pesquisa de informação e seleção de cópias ou extratos nas instalações da AdC ou em quaisquer outras instalações designadas;
d) Proceder à selagem de quaisquer instalações, livros ou registos relativos à empresa, ou à mesma afetos, em que se encontrem ou sejam suscetíveis de se encontrar as informações, bem como os respetivos suportes, a que se refere a alínea anterior, durante o período e na medida necessária à realização das diligências referidas na mesma alínea;
e) Solicitar, no decurso das diligências a que se referem as alíneas anteriores, a qualquer representante ou trabalhador da empresa, esclarecimentos necessários ao desenvolvimento das diligências;
f) Inquirir, no decurso das diligências a que se referem as alíneas anteriores, qualquer representante ou trabalhador da empresa, sobre factos ou documentos relacionados com o objeto e a finalidade da busca, registando as suas respostas, sendo correspondentemente aplicável, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 17.º-A;
g) Requerer a quaisquer serviços da Administração Pública, incluindo as entidades policiais, a colaboração que se mostrar necessária ao cabal desempenho das suas funções.
2 - As diligências previstas nas alíneas a) a d) do número anterior dependem de autorização da autoridade judiciária competente.”.
27. Para compreendermos, contudo, porque julgamos aplicável este normativo e não o conjunto normativo adiantado pela Recorrente, há que dar um passo atrás.
28. É certo que no caso sub iudice inexiste controvérsia sobre a autorização de JI, dada em momento prévio à busca e apreensão.
29. Não menos certo é, porém, que sobre tal matéria, alguma jurisprudência dos tribunais superiores tem convergido para a solução da necessidade de controlo prévio por parte do juiz para a apreensão de mensagens de correio eletrónico, por considerar que com tal apreensão verifica-se uma ingerência no direito à inviolabilidade da correspondência, tutelado pelo artigo 34.º, n.º 4, da CRP.
30. A este propósito, em sede do processo contraordenacional, vejam-se os Acórdãos do TC n.ºs 91/2023 e 314/2023 e o Acórdão de Uniformização do STJ n.º 12/2024, de 26 de junho de 2024, segundo o qual “Em processo de contraordenação relativo a práticas restritivas da concorrência previstas no Regime Jurídico da Concorrência (Lei n.º 19/2012, de 8 de maio), compete ao juiz de instrução ordenar ou autorizar a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de outros registos de comunicações de natureza semelhante, independentemente de se encontrarem abertas (lidas) ou fechadas (não lidas), que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, nos termos do art. 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15/09 (Lei do Cibercrime), aplicável por força do disposto no art. 13.º, n.º 1, do RJC e do art. 41.º, n.º 1, do RGCO.”.
31. Contudo, mesmo sobre este ponto (da necessidade de controlo judicial prévio para a apreensão), existe ainda controvérsia jurisprudencial, pois o mais recente acórdão nesta matéria, o Ac. TC n.º 533/2024, de 04 de julho de 2024, decidiu o seguinte:
Não julgar inconstitucional o disposto no artigo 18.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio (na redação original, anterior à conferida pela Lei n.º 17/2022, de 17 de agosto), quando interpretado:
i) - No sentido de que “é possível, em processo de contraordenação da concorrência, examinar, recolher e apreender mensagens de correio eletrónico”;
ii) - No sentido de admitir a “possibilidade de exame, recolha e/ou apreensão de mensagens de correio eletrónico «abertas» ou «lidas»”;
iii) - No sentido de “admitir o exame, recolha e apreensão de mensagens de correio eletrónico em processo de contraordenação da concorrência sem despacho judicial prévio””.
32. Diz-se, ainda, no Ac. TC n.º 533/2024, com particular relevância para o caso sub iudice, o seguinte: “porque o artigo 34.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, cinge o seu âmbito de tutela a informações em trânsito e, em exclusivo, enquanto estiverem em trânsito, alheando-se de depósitos de dados armazenados em suporte documental (digital), o disposto no artigo 18.º, n.º 1, alínea c), do RJdC, não invade aquele espaço de proteção.”.
33. Resulta, pois, do Ac. TC n.º 533/2024, que o exame, recolha e apreensão de mensagens de correio eletrónico (e comunicações interpessoais semelhantes), efetuada pela AdC ao abrigo do artigo 18.º, n.º 1, al. c), do Regime Jurídico da Concorrência, não contende com o direito à inviolabilidade da correspondência prevista na CRP.
34. Ou seja, segundo este acórdão, os dados informáticos armazenados em suporte digital, mesmo provindos de comunicações por via de correio eletrónico ou outros meios de comunicação interpessoais semelhantes (por exemplo, por via de aplicações VoIP ou Voice over Internet Protocol, como o whatsapp, signal ou telegram), devem ser tratados como documentos, não merecendo a tutela reforçada da correspondência prevista no artigo 34.º, n.º 4, da CRP.
35. Mais se constata no referido acórdão que:
são quatro as razões por que concluímos pela desnecessidade de autorização judicial prévia para operações de busca e apreensão em empresas de mensagens eletrónicas ou outros documentos digitais ao abrigo do artigo 18.º, n.º 1, alínea c), do RJdC: (i) porque não está em causa qualquer ingerência na autodeterminação comunicativa; (ii) porque a norma fiscalizada não se integra no ordenamento processual do crime e, como tal, não se encontra sujeita à observância do respetivo regime especial de garantias (artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa); (iii) porque a Lei Fundamental não impõe que esse tipo de ingerências na privacidade sejam subordinadas a autorização ou validação por Juiz, mesmo no domínio criminal, como não existe exigência nesse sentido sobre intrusões na liberdade de empresa ou na autodeterminação informacional (cfr. artigos 61.º e 35.º, n.º 4, ambos da Constituição da República Portuguesa); (iv) porque os controlos garantidos pela Lei, pelo Ministério Público antes da ingerência e a sindicância jurisdicional, depois, concretiza e excede os standards de Direito europeu sobre defesa da privacidade de ordem económica, alinhando o ordenamento com a jurisprudência europeia.”.
36. Resultando, ainda, do mesmo acórdão, que: “o exposto também não pretende afirmar que nenhum controlo jurisdicional existirá sobre os meios de obtenção de prova que importem intrusão na defesa da privacidade de ordem económica e da integridade do estabelecimento em processos de investigação por autoridades públicas. Apenas significa que esse controlo será posterior à efetivação da operação de recolha de prova e no âmbito do controlo da respetiva validade, seja pela ulterior sujeição do processo a titularidade jurisdicional (artigo 32.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa; v. g., artigos 290.º, n.º 1 e 286.º, n.º 1, 310.º, n.º 2, 311.º, n.º 1, 338.º, n.º 1 e 368.º, n.º 1, todos do CPP e artigo 59.º do RGC), seja por via de instrumentos de impugnação autónomos e específicos ao meio de obtenção de prova [v. g., artigo 55.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações (RGC)].”.
37. Ora, seguindo o entendimento expresso no citado Ac. TC n.º 533/2024 há, pois, que concluir, no que à lei ordinária concerne, se não estamos no âmbito de proteção da correspondência, mas unicamente no âmbito de proteção do direito à privacidade das pessoas coletivas, é desnecessário recorrer aqui à aplicação subsidiária do preceituado em sede de processo penal, em especial, do artigo 17.º, da LCC e dos artigos 179.º, n.º 3 e 268.º, n.º 1, al. d), do Código do Processo Penal.
38. Concluímos, pois, que o disposto no artigo 18.º, n.º 1, al. c), do Regime Jurídico da Concorrência não carece de ser complementado, por via subsidiária (cf. artigos 41.º n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações e 13.º do Regime Jurídico da Concorrência), pelos aludidos dispositivos do Processo Penal.
39. Restringido assim o problema, é de se concluir que, no caso sub iudice, dos atos processuais praticados pelo tribunal a quo, resulta inequívoco que inexiste qualquer matéria que possa conduzir a qualquer nulidade, irregularidade ou nulidade de prova.
40. No caso concreto é desde logo de sublinhar, como o fez o despacho recorrido, que foi prestado consentimento pela Recorrente para “a Autoridade da Concorrência a analisar, selecionar e extrair os elementos considerados relevantes no contexto das infrações em investigação” e isto, note-se, quanto a “mensagens eletrónicas, nomeadamente, mensagens de correio eletrónico, sms, mensagens instantâneas e outras, constantes de quaisquer dispositivos eletrónicos, lidos, não lidos ou apagadas.”.
41. Como é lógico, não se pode selecionar o que é relevante, sem analisar o respetivo conteúdo (da informação apreendida).
42. Com tal consentimento, portanto, a nulidade da prova (de conhecimento oficioso) estará salvaguardada ao abrigo do disposto no artigo 126.º, n.º 3, do Código do Processo Penal, normativo este que densifica o conteúdo do preceito constitucional previsto no artigo 32.º, n.º 8 da CRP. Não se concorda, pois, com a Recorrente, no sentido de que se extravasou o consentimento dado.
43. Por outro lado, conforme resulta da descrição dos atos processuais supra, após autorização prévia do juiz na emissão dos mandados de busca e apreensão, no ato de apreensão, foram tomadas todas as necessárias precauções para garantir a autenticidade e integridade dos dados informáticos, desde logo, pelo uso de tecnologias de encriptação e do sistema hash “SHA256” (mencionado na extensão dos ficheiros apreendidos).
44. E isto, note-se, em busca presidida pelo próprio JI e na presença de representantes da visada.
45. Ademais, uma cópia integral dos dados foi descarregada para um dispositivo de armazenamento externo que terá sido oportunamente entregue à ordem da JI, a qual ficou como única detentora da password para respetiva desencriptação dos ficheiros eletrónicos.
46. A tal acresce, inclusive, que no final da diligência de busca e apreensão, o computador portátil utilizado pela AdC para permitir a utilização de ferramentas forenses de pesquisa digital foi deixado em procedimento de limpeza (secure erase). Ou seja, foram utilizadas ferramentas informáticas de modo a garantir que no computador utilizado pela AdC para a cópia de dados informáticos não ficassem quaisquer vestígios de tais cópias, restando, assim, as cópias dos dados entregues à JI e à própria visada, ora Recorrente. Tal procedimento é de louvar pois constitui uma proteção acrescida do direito fundamental em causa – a privacidade da pessoa coletiva (cf. artigos 26.º, n.º 1 da CRP) -, e que nem é exigida por lei expressa.
47. Neste contexto, não é pelo facto da JI ter feito um controlo da abertura dos ficheiros informáticos (correio eletrónico), por amostragem relegando, inclusive, a seleção dos documentos relevantes aos inspetores da AdC competentes, que se deve considerar o ato nulo ou irregular (neste sentido, Ac. TRL de 11-05-2023, processo n.º 215/20.5T9LSB-C.L1-9) e, muito menos, que a interpretação normativa subjacente seja inconstitucional.
48. Note-se, aliás, que mesmo em sede de escutas telefónicas, que implicam uma restrição no direito fundamental em causa, pelo menos equivalente à apreensão de correio eletrónico (em trânsito), o Tribunal Constitucional já deixou claro que “… não é constitucionalmente imposto que o único modo pelo qual o juiz pode exercitar a sua função de acompanhamento da operação de intercepção de telecomunicações seja o da audição, pelo próprio, da integralidade das gravações efectuadas ou sequer das passagens indicadas como relevantes pelo órgão de polícia criminal, bastando que, com base nas menções ao conteúdo das gravações, com possibilidade real de acesso directo às gravações, o juiz emita juízo autónomo sobre essa relevância, juízo que sempre será susceptível de contradição pelas pessoas escutadas quando lhes for facultado o exame do auto de transcrição.” (Ac. TC. n.º 426/2005, de 25 de agosto de 2005).
49. Ou seja, mesmo em sede de escutas telefónicas, o que realmente importa no acompanhamento judicial subsequente à ingerência nas telecomunicações pelos OPCs e Ministério Público, não é a audição pelo JI da totalidade das comunicações, mas sim que o juiz, podendo aceder às respetivas gravações (cópias das comunicações), emita um juízo autónomo sobre a sua relevância, juízo que sempre será suscetível de contradição, em momento ulterior, pelas pessoas interessadas.
50. Tal juízo pode ser necessário, desde logo, para justificar a respetiva junção aos autos, pois obviamente não devem ser juntos conteúdos privados sem interesse probatório, sob pena de violar-se o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), restringindo-se o direito fundamental quando não é meio adequado para os fins da investigação.
51. A tal acresce que poderá vir a ser necessário apreciar a “utilizabilidade” da prova em sede de nulidades da prova, pois estas podem ocorrer, como se sabe, de forma independente a qualquer ilegalidade[2].
52. É este tipo de juízos que devem caber ao JI e não à entidade investigadora, sendo certo que só poderão ser emitidos, caso necessário, após uma análise e seleção dos documentos já apreendidos, anteriormente realizada por aquela entidade.
53. Nesta decorrência, inexiste qualquer violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.º 1 da CRP), porquanto, com a junção como meio de prova, dos documentos apreendidos e já selecionados, o interessado sempre poderá requerer ao juiz competente o que tiver por conveniente, nomeadamente a respetiva exclusão por irrelevância ou por constituir prova proibida.
54. Também resulta do exposto, que o direito a um tribunal independente e imparcial, exigência dos artigos 20.º, n.º 4 e 5, 32.º, n.º 4, 202.º, n.º 2 e 203.º, da CRP interpretados, inclusive, em acordo com o artigo 6.º da Convenção dos Direitos Humanos e respetiva jurisprudência do TEDH, não sai minimamente beliscado com esta forma de proceder.
55. Nestes termos, o recurso deverá ser julgado integralmente improcedente.
*
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar o presente recurso totalmente improcedente, confirmando-se o despacho recorrido e declarando-se não inconstitucional a interpretação normativa expressa no despacho recorrido, por alegada violação do preceituado nos artigos 18.º, n.º 1 e 2, 26.º, n.º 1, 32.º, n.º 8, 34.º, n.ºs 1, 4 e 8 e artigos 20.º, n.º 1, 4 e 5, 32.º, n.º 4, 202.º, n.º 2 e 203.º, todos da CRP.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs (artigo 93.º, n.º 3 do RGCO e artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III do RCP).
**
Lisboa, 16-10-2024
Alexandre Au-Yong Oliveira
Armando Manuel da Luz Cordeiro
Carlos M. G. de Melo Marinho, com a declaração que segue.

DECLARAÇÃO DE VOTO:
Pelas razões que lancei em sede de relato do Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa proferido no âmbito do processo n.º 10626/18.0T9LSBB.LI-PICRS, que funcionou como «acórdão fundamento» no quadro da prolação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2024, proferido em sede de recurso de fixação de jurisprudência, e pelos motivos superiormente apontados nessa decisão do Tribunal Supremo, não aceito nem subscrevo construção que – como ocorre na decisão por referência à qual surge a presente declaração –  não atenda à jurisprudência fixada com o seguinte conteúdo:
Em processo de contraordenação relativo a práticas restritivas da concorrência previstas  no Regime Jurídico da Concorrência (Lei n.º 19/2012, de 8 de maio), compete ao juiz de instrução ordenar ou autorizar a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de outros registos de comunicações de natureza semelhante, independentemente de se encontrarem abertas (lidas) ou fechadas (não lidas), que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, nos termos do art. 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15/09 (Lei do Cibercrime), aplicável por força do disposto no art. 13.º, n.º 1, do RJC, e do art. 41.º, n.º 1, do RGCO.
Porque o núcleo da decisão que não se acompanha ao nível dos fundamentos invocados (por não acatar jurisprudência fixada), versa, afinal e sobretudo, sobre a caracterização e conteúdo dos poderes de controlo do exercício processual de direitos, liberdades e garantias, assumidos pelo juiz de instrução, e fá-lo em termos que reputo adequados, subscrevo, no entanto, o respectivo dispositivo.
Carlos M. G. de Melo Marinho
_______________________________________________________
[1] Cf. Ac. STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 3/201º, DR. n.º 124/201º, Série I de 201º-07-02.
[2] Vejam-se, por exemplo, os casos de apreensões, feitas em harmonia com a lei, de escritos íntimos, como diários pessoais e textos análogos.