Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
35548/15.3T8LSB-A.L1-6
Relator: AGUIAR PEREIRA
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
REGISTO SONORO DEFICIENTE
NULIDADE
FUNDAMENTAÇÃO DA CONVICÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.– A deficiente qualidade da gravação sonora do depoimento de uma testemunha prestado em audiência final só provoca a nulidade do acto se dela resultar a impossibilidade de se conhecer o teor do depoimento e se essa impossibilidade for susceptível de influir no exame e decisão da causa, nos termos do artigo 195.º n.º 1 do Código de Processo Civil;

2.– A deficiente gravação sonora de cerca de dois minutos do depoimento de uma testemunha prestado em audiência final durante cerca de quarenta e nove minutos não é susceptível de influir no exame e decisão da causa em primeira instância por parte do Juiz de Direito que presidiu à audiência, quando através da expressão da fundamentação da convicção sobre a matéria de facto se indicia que foi tomada em consideração na decisão a totalidade do depoimento prestado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, OS JUÍZES DESEMBARGADORES DA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, ACORDAM:

I – RELATÓRIO

a)- Maria, requereu, em 28 de dezembro de 2015, a Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais em relação à sua filha menor T, nascida em 9 de outubro de 2015, cujo progenitor é José.

Alega, em síntese, que apesar de nunca terem sido casados ou vivido em união de facto, a requerente e o requerido acordaram em ter um filho juntos, no pressuposto de que a criança ficaria ao cuidado e guarda da requerente e que passaria sempre mais tempo na sua companhia, sem prejuízo do direito do requerido visitar a criança.

Porém, pouco depois do nascimento da criança começaram a surgir divergências entre os progenitores a propósito do concreto exercício das responsabilidades parentais, inclusive no que se refere ao regime de visitas, pelo que se torna necessário regular o exercício das responsabilidades parentais em relação à menor T, filha da requerente e do requerido.

A requerente, formulando uma proposta do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais, requereu a realização de uma conferência de pais e a fixação de um regime provisório para o caso de nessa diligência não haver acordo entre os pais da menor T.

b)- O requerido veio aos autos, em 7 de janeiro de 2016, requerer igualmente a regulação provisória e urgente do regime de responsabilidades parentais em relação à menor T.
Por despacho de 4 de fevereiro de 2016 foi conferido carácter de urgência ao processo e designada data para realização de uma conferência de pais.
Nessa oportunidade foi fixado um regime provisório do exercício das responsabilidades parentais em relação à menor T, remetidos os seus progenitores para o Serviço de Mediação Familiar (…) numa tentativa de superar as divergências entre eles existentes e designada nova data para continuação da conferência de pais.
Na conferência de pais que teve lugar a 27 de junho de 2016 foram introduzidas alterações no regime provisório estabelecido, continuando pendente nessa data a intervenção do serviço de mediação familiar referido, a qual se viria a revelar infrutífera.
Designada nova conferência de pais a mesma viria a ter lugar no dia 8 de junho de 2017, mas a requerente e o requerido não acordaram quanto ao regime de exercício das responsabilidades parentais.
O regime provisório estabelecido foi posteriormente alterado nas conferências de pais que tiveram lugar a 22 de fevereiro, 13 de março e 8 de maio de 2018.
Finalmente, constatada a ausência definitiva de acordo acerca do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais da menor T, a requerente e o requerido apresentaram as respectivas alegações.
Foi designada data para a realização da audiência final de julgamento, com produção da prova testemunhal indicada.

c)- Teve lugar a audiência final de julgamento com sessões no dia 16 de outubro de 2019 (produção de prova) e no dia 8 de novembro de 2019 (alegações).
Na primeira das duas indicadas datas, estando presentes a requerente e o requerido e os seus ilustres mandatários, ocorreu a inquirição das testemunhas arroladas.
Tal como previsto na lei, a audiência final de julgamento foi gravada, ficando registado no sistema de gravação sonora disponível os depoimentos prestados.

d)- No dia 9 de abril de 2020 foi proferida sentença que, além do mais, fixou residência à criança T junto da respectiva progenitora.
Notificado do teor da sentença o ora apelante José requereu cópia da gravação da audiência de julgamento, a qual lhe foi entregue em 24 de abril de 2020.
No dia 12 de junho de 2020 o apelante apresentou requerimento em que, invocando a respectiva tempestividade face à suspensão dos prazos processuais durante a pandemia do Covid19, alega que uma parte muito significativa, e que reputa de muito importante, do depoimento da testemunha M se “encontra completamente impercetível”, arguindo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 155.º n.º 4 do Código de Processo Civil, “a deficiência da gravação, requerendo a repetição do referido depoimento, por o mesmo se reputar essencial.”

e)-Na sequência de ordem verbal da Sr.ª Juíza de Direito titular do processo foi informado pela Sr.ª Escrivã auxiliar presente na audiência de julgamento o seguinte: “auscultada a gravação da audiência de julgamento realizada no dia 16-10-2019, constatei que o depoimento da testemunha M, encontra-se perceptível, à excepção do intervalo entre os 40 minutos à 42 minutos.”

f)-A Sr.ª Juíza de Direito proferiu então o seguinte despacho:
“A gravação da prova destina-se a possibilitar o recurso da decisão final quanto à matéria de facto e, por consequência, à matéria de direito.
A deficiência na gravação constitui uma irregularidade que se traduz em nulidade secundária, que deve ser arguida pela parte interessada no prazo de 10 dias depois de disponibilizada a gravação, implicando a anulação do ato viciado e a repetição dos atos subsequentes que dele dependam – cfr. artigos 155º, n.º 4, e 195º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Haverá deficiência na gravação quando tal acarrete, no todo ou em parte, a impercetibilidade ou inaudibilidade do depoimento objeto de registo áudio.
No caso em apreço, o requerido arguiu, em tempo, a deficiência na gravação do depoimento da testemunha M (1).
Alega, para o efeito, que “parte muito significativa e que se reputa muito importante desse depoimento, se encontra completamente imperceptível”.
A fls. 493 dos autos, a sra. funcionária informou que o depoimento se encontra percetível exceto no intervalo entre os 40 a 42 minutos.
Ouvida a gravação, constata-se que, de facto, o depoimento eiva, em determinadas passagens, de ruído que dificulta a audição e a perceção do teor do depoimento.
Porém, com acrescido labor e empenho, julga-se que é possível, como foi aliás aquando da prolação da sentença dado que se ouviu, pela segunda vez, toda a prova produzida, alcançar o conteúdo e sentido da declaração produzida pela testemunha M.
Pelo que se conclui que o ruído existente na gravação não torna impercetível nem inaudível o depoimento registado e, por conseguinte, que subsista a nulidade secundária invocada, a deficiência na gravação.
Termos em que se indefere o requerido.”

g)- Não se conformando com tal decisão dela o requerido interpôs recurso oportunamente admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.

O apelante conclui as suas alegações de recurso pela forma seguinte:
“I.- O despacho recorrido indeferiu a reclamação que o recorrente apresentou ao Tribunal a quo, por motivo de parte do depoimento de M não constar de gravação inteligível.
II.- Certo é que a sentença final, proferida após o encerramento da Audiência em que esta testemunha foi ouvida, refere que o julgamento da matéria de facto se baseou concomitante “nos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em Audiência de Discussão e Julgamento”.
III.- E que M, enfermeira e mulher do progenitor, depôs, “no essencial, de forma objectiva, lógica, concordante e distanciada… o que permitiu [ser considerado] para além de qualquer dúvida razoável.
IV.- Depois, a sentença em causa sintetiza em muito maior extensão do que qualquer das outras testemunhas ouvidas em Audiência, o testemunho de M: “permitiu a afirmação de [todos os] factos [dados como provados].
V.- Como motivo de indeferimento da reclamação por nulidade (carência segmental de documentação da prova), o despacho recorrido consignou o argumento (não obstante ter sido certificada pela secretaria a inaudibilidade do passo assinalado pelo recorrente) de um esforço de audição superar, como supera (diz), a deficiência da gravação do depoimento em causa.
VI.- Porém, nos termos do disposto nos artigos 1.º, 2.º, 17.º, 18.º/1, 20.º/4 e 205.º/1, todos da Constituição da República Portuguesa, a gravação da prova, suporte das decisões judiciais de mérito, é uma garantia fundamental dos cidadãos, de que não é proporcional comprimi-la sob espécie de um maior e inabitual esforço de audição do material gravado (mal) na Audiência.
VII.- E sendo como é – a documentação da prova – garantia cidadã, oponível ao Estado/Administração da Justiça, o critério da insuficiência da gravação do depoimento não é o do Tribunal (logo depois da certificação da falha pela secretaria), mas o do recorrente, a quem importa reconhecer todo o depoimento, integral, tanto que, como resulta das conclusões precedentes, influiu na julgadora e pode e deve ser, pelo contrário, base de recurso.
VIII.- Ora, na verdade, ao invés do que assevera a Mm.ª Juíza a quo, o recorrente entende que o depoimento de M é contrário, e muito diferente e fundamental nessa diferença ao motivo principal do julgamento de mérito da causa, que manteve a criança T apenas na residência com a mãe.
IX.- Na realidade, todos os demais factos assentes se inclinam, como aliás a sentença depois proferida aceita, para um juízo de adequação ao superior interesse da filha de Requerido e Requerente, do sistema de guarda conjunta e semanas sucessivas de convivência parental.
X.- Mas, como acima se acabou de dizer, a Mm.ª Juíza a quo considerou que o tratamento por “Mamy”, dado pela criança, T, a M, mulher do recorrente, propunha, ao contrário do que seria desejável, uma família com duas mães.
XI.- Todavia, o recorrente entende que é precisamente no segmento inaudível da gravação do depoimento de M que foi relevado por esta não ocorrer, nem poder vir a ocorrer, uma tal forma de relacionamento desta com a infante: considerou-se apenas como uma “mãe do coração”, no plano sentimental e não num qualquer vínculo de proximidade educativa.
XII.- O depoimento que prestou, nomeadamente e entre o mais, na parte em que se referiu ao tipo de relacionamento que mantém com a menor, ao esforço que tem feito para que a menor tenha uma imagem positiva da Recorrida, ao apoio que presta ao seu marido na educação e cuidados prestados à menor, à disponibilidade que o Recorrente tem para estar com a menor, bem assim como as razões que aduziu para explicar porque é que o Recorrente, à data em que foi realizada a audiência de julgamento, ainda fazia “bancos” no serviço de urgência, não permite ao tribunal tirar tais conclusões.
XIII.- Porém, como a gravação do seu depoimento se mostra, em parte, imperceptível, não pode o Recorrente provar o erro em que incorreu a sentença de que se quer intentar recurso.
XIV.- Tal situação não é imputável ao Recorrente, para além de que influi no exame e reapreciação do decidido, constituindo, por isso, uma nulidade que importa sanar com a repetição do depoimento da referida testemunha e anulação da sentença proferida.
XV.- Por se ter como verificada a nulidade dos artigos 155.º/1/4 e 195.º/1/2 do CPC, com a consequência de ter de ser reaberta a Audiência, para gravação de novo depoimento oral a prestar pela testemunha M (aquisição processual de factos), a realizar pelo mesmo Tribunal e se tal não se mostrar possível, a repetição integral do julgamento.
XVI.- E anulação necessária da subsequente sentença que não pôde ter suporte numa integral documentação da prova produzida em Audiência, contra o que dispõe a Constituição, como garantia do recorrente no plano normativo do exercício de uma cidadania efectiva.
XVII.- Por conseguinte, deve o despacho recorrido ser reformado nos aspectos críticos e indicações legais deixadas supra.
XVIII.- Assim se fazendo, com douto suprimento de Vossas Excelências, a necessária JUSTIÇA”.

h)- Apenas o Ministério Público apresentou contra-alegações defendendo a manutenção do despacho impugnado e, em conformidade, a improcedência da apelação.

i)- Colhidos os Vistos legais das Ex.mas Juízas Desembargadoras adjuntas cumpre agora apreciar e decidir, ao que nada obsta.

Tendo em conta o teor das conclusões das alegações do recurso de apelação interposto a única questão colocada a este tribunal pelo apelante e que cumpre decidir é a da eventual nulidade resultante da reconhecida deficiente qualidade de uma parte da gravação sonora do depoimento prestado pela testemunha M na sessão do dia 16 de outubro de 2019 da audiência final de julgamento.

II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

a)-Relevam para a decisão a proferir nesta instância de recurso os factos descritos no antecedente relatório, inclusive que o depoimento da testemunha M prestado na sessão do dia 16 de outubro de 2019 durante quarenta e nove minutos e três segundos – como consta da respectiva acta – se encontra perceptível, à excepção do intervalo entre os minutos quarenta e quarenta e dois, conforme informação lavrada nos autos pela senhora escrivã auxiliar presente na audiência de julgamento, confirmada no despacho impugnado.

b)-Face ao teor das alegações de recurso importa ainda ter presentes os seguintes excertos da sentença na parte relativa aos factos provados:
“(…)
8. No ano 2014, José e Maria, movidos pelo desejo de terem um filho, decidiram, com o conhecimento e anuência da mulher de José, recorrer à fertilização in vitro.
9. Em consequência da fertilização in vitro, no dia 09/10/2015, nasceu T.
(…)
19. A relação de casamento (2) com M é harmoniosa e tranquila.
20. M desenvolveu lúpus, o que a impediu de ser mãe.
(…)
39. (A mãe da menor T) Também considera que o progenitor pretende proporcionar à companheira M a maternidade nunca conseguida.
40. Os progenitores mantêm uma relação distante e conflituosa, marcada por desconfiança mútua, percecionada pelo outro como manipuladora da menor em proveito próprio.
46. T é tratada pelo pai e respetiva família por “Cuca”.
47. T trata a mulher do pai, a seu pedido, por “Mami”.
(…)”

c)-Consta ainda da sentença proferida na parte relativa à fundamentação da matéria de facto, o seguinte:
“Para prova da factualidade acima elencada o Tribunal gizou a sua convicção (…) e por fim, nos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em audiência de discussão e julgamento, o que se conjugou com as máximas da experiência comum e juízos de normalidade e razoabilidade.
(…)
Sem prejuízo, foram igualmente relevantes os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em audiência de discussão e julgamento: Luís, médico, colega dos progenitores, (…); Maria, professora (…), amiga da progenitora; Francisco, designer gráfico, irmão da progenitora; João, médico psiquiatra, colega e amigo da progenitora; Maria, médica e amiga do progenitor; Ivo, coronel aposentado, amigo do progenitor; Maria, reformada, mulher de Ivo; e por fim, M, enfermeira e mulher do progenitor, porquanto depuseram, no essencial, de forma objetiva, lógica, concordante e distanciada, o que mereceu credibilidade, corroborando a factualidade que antecede, o que permitiu afirmá-la para além de toda e qualquer dúvida razoável.
(…)
Por fim, M, mulher do progenitor, esclareceu que residem na nova morada desde 2017, que adquiriram a nova habitação para que a T pudesse ter quarto próprio; que tem lúpus, o que a impediu de ser mãe; que aceitou o projeto a “três” para ser uma mãe de coração, tendo-se deslocado com o marido a uma clínica do Porto para ser constituído o embrião com óvulo doado; que a relação entre todos, durante a gravidez, sempre foi saudável, que sempre foi bem tratada pela mãe; que depois do nascimento começaram a surgir problemas; que a mãe é uma ótima mãe mas que o objetivo do marido não é ser pai ao fim de semana; e ainda, que um dia a T lhe disse “Tu não és a minha mãe!”, ao que lhe respondeu que chegava ela chamar-lhe “mami” porque ela era mãe de coração.
Por fim, deu conta das festas e das rotinas que organizou em função da menor e da adaptação que ambos fazem nas vidas profissionais para poderem acompanhar a menor, sublinhando que consegue fazer trocas para ficar mais tempo com a T e que conseguiu estar com ela todos os dias em que ela ficou com o pai, mesmo trabalhando por turnos (07h00-16h00, 16h00-23h00 e 23h00-08h00).
O pai, (…), trabalha das 08h00 às 15h00-16h00 e faz bancos todas as quintas feiras (…), elucidando que é a mesma que leva a T ao colégio e a vai buscar sempre que o pai não pode; que à quinta feira é sempre ela que a leva por causa do banco do pai; admitindo, por fim, que o pai, pontualmente, a foi buscar mais cedo ao infantário para estar mais tempo com ela porque estava desejoso de estar com ela.
Atualmente, o pai está com a T à quarta, pelas 16h00, indo buscá-la ao colégio (…), e ainda, ao fim de semana, de 15 em 15 dias, indo buscá-la às 16h00 de sexta ao colégio, entregando-a na segunda feira de manhã. As entregas/recolhas no colégio são feitas por um, por outro ou por ambos em função das disponibilidades de cada um.
A terminar, deu conta que já “entregou os papéis” no hospital para ter horário fixo e ter disponibilidade a partir das 16h00 e que ia “meter o papel” para vir para Lisboa a fim de estar sempre disponível para ir buscar a T, evidenciando a sua vontade e pretensão de conseguir ser uma “mãe de coração” para com a menor T, uma espécie de filha “adotada”, dada a circunstância da mesma ser filha biológica do progenitor, a mesma não poder ter filhos e tal constituir um desígnio do casal.
Como a mesma afirmou expressamente em audiência de discussão e julgamento: “Já me casei tarde, tive uma filha que não é minha filha e vou fazer o melhor que posso”.
(…)”.

III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

a)-Como já se deixou dito a única questão a decidir é a da consequência processual da deficiência parcial da gravação sonora do depoimento da testemunha M na sessão da audiência final que teve lugar no dia 16 de outubro d 2019.
Alega o apelante José que tal deficiência na qualidade da gravação sonora compromete o conhecimento do teor das declarações da referida testemunha que, eventualmente, possam ter sido consideradas na sentença proferida e na opção de confiar a menor T à guarda da respectiva progenitora e não atender à proposta por si formulada de guarda conjunta da menor.
Em seu entender sem acesso à parte imperceptível do depoimento fica o apelante impedido de evidenciar o erro de julgamento nessa medida cometido.

b)-Sobre a gravação da audiência final rege o artigo 155.º do Código de Processo Civil estabelecendo o seu n.º 1 o princípio da obrigatoriedade da gravação em sistema vídeo ou sonoro da audiência final das acções, incidentes e procedimentos cautelares.
A consagração deste princípio da obrigatoriedade de registo das audiências finais e das diligências de prova realizadas em sede de audiência de julgamento está directamente – ainda que não exclusivamente – relacionada com a garantia da efectividade da impugnação da matéria de facto em sede de recurso, ao mesmo tempo que assegura às partes e ao tribunal de recurso o controle sobre a correcção e a coerência da formação da convicção sobre a matéria de facto e o seu respaldo na prova produzida.
Considerando os fins visados com a gravação da audiência final e o registo da prova ali produzida, é de equiparar a ausência de gravação sonora à deficiência ou falta de qualidade da gravação sonora obrigatória dos depoimentos sempre que esta seja de molde a impedir o conhecimento do teor dos depoimentos prestados.

c)-Não sofre contestação que, em perfeita coerência com o regime de impugnação da matéria de facto, a gravação obrigatória dos depoimentos prestados em sede de audiência final constitui uma formalidade prevista na lei.

d)-Importa então indagar quais as consequências processuais da falta ou deficiência da qualidade da gravação sonora dos depoimentos, quando, como no caso sucede, ela seja obrigatória e a falta ou a deficiência, que impossibilite o conhecimento do teor do depoimento não tenham sido detectadas no acto.

e)-A lei processual não prevê sanção específica nem para o caso da absoluta omissão do cumprimento da formalidade de gravação dos depoimentos prestados na audiência final nem para a deficiência da qualidade da gravação, seja ela, ou não, absolutamente impeditiva da compreensão do seu teor.
O incumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação de gravação sonora dos depoimentos prestados em audiência de julgamento não tornam, ipso facto, nulos os depoimentos prestados nem o acto processual em que se inscrevem.

f)-Porém, tratando-se de formalidade prescrita na lei processual resultam aplicáveis as regras gerais sobre a nulidade dos actos contidas, em primeira linha, no artigo 195.º n. 1 parte final do Código de Processo Civil, relevando que, de acordo com o citado preceito, “a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade (…) quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Vejamos então o que sucede no caso presente, importando desde já adiantar que, por ser perfeitamente proporcional face aos interesses em discussão, nenhuma violação da Lei Fundamental se vislumbra com a regulamentação restritiva contida na norma acabada citar.

g)-O despacho impugnado dá conta de deficiência da gravação sonora, nomeadamente da existência de ruído que dificulta a audição e a percepção do teor do depoimento da testemunha M em cerca de dois minutos dos quarenta e nove que durou o depoimento, concluindo, no entanto, que o ruído existente na gravação não torna imperceptível nem inaudível o depoimento registado da testemunha, que, atesta, ouviu pela segunda vez.
Como ficou exarado no despacho impugnado, a dificuldade de audição de uma pequena parte do depoimento da testemunha M não comprometeu a possibilidade de “alcançar o conteúdo e sentido da declaração produzida pela testemunha”, não tendo, em conformidade, influído no exame e decisão da causa em primeira instância.
Tal conclusão sai, de resto, reforçada face ao teor da própria sentença onde o depoimento da testemunha M é analisado de forma detalhada, inclusive na parte referente ao seu relacionamento afectivo com a menor T.

h)-Tendo presentes os fins visados com a gravação sonora da audiência final, uma última observação se impõe para salientar que dificilmente se poderia compreender que a falta de qualidade da gravação sonora numa pequena parte de um depoimento prestado na audiência final pudesse comprometer ou influir no exame e decisão da causa em primeira instância, face ao princípio da imediação que preside à produção da prova testemunhal na audiência de julgamento.
O Juiz de Direito que preside à audiência de julgamento, considera toda a prova testemunhal perante si produzida ao examinar a causa e proferir sentença, independentemente da qualidade da gravação sonora dos depoimentos prestados, não sendo possível afirmar que eventual deficiência da gravação sonora de depoimentos prestados é susceptível de influir no exame e decisão da causa.

i)-Desse modo, e concluindo, na perspectiva do exame e decisão da causa em primeira instância, nenhuma influência teve a deficiente qualidade de pequena parte da gravação sonora do depoimento da testemunha M, pelo que, visto o disposto no artigo 195.º n.º 1 do Código de Processo Civil, tal deficiência parcial da gravação não implica a nulidade do acto de produção de prova praticado.

j)-Admita-se, porém, que a influência da deficiência parcial da gravação sobre o exame e decisão da causa deveria ser analisada também na perspectiva de reapreciação da causa nesta instância de recurso.
Estaria então eventualmente em causa a impossibilidade de reapreciação da matéria de facto e a consequente reponderação do direito aplicável.

k)-Acontece que o apelante não interpôs recurso da sentença que regulou o exercício das responsabilidades parentais da menor T.
Nas alegações de recurso apresentadas o apelante limitou-se a salientar a dissonância entre a apreciação positiva das condições de que ambos os progenitores da menor T dispõem para terem a guarda (conjunta) da menor T e a decisão de atribuir a guarda da menor apenas à mãe.

l)- Entendendo que tal divergência constitui erro de julgamento que pretende evidenciar, coloca o apelante em equação a possibilidade de a falta de qualidade da gravação sonora do depoimento da testemunha M o estar a impedir de tomar conhecimento de partes que foram relevantes na fundamentação da sentença.
Porém, tendo o apelante estado presente durante a prestação do depoimento da testemunha M e tendo acesso perfeito à gravação de cerca de noventa e seis por cento do depoimento prestado pela referida testemunha – não indica em concreto que factos, no seu entender relevantes, considerados na sentença se encontram abrangidos na pequena parte do depoimento cuja gravação apresenta deficiência que dificulta a compreensão do seu teor.
Assim como não concretiza em que se funda a conclusão de que na pequena parte do depoimento da testemunha M que apresenta deficiência de gravação o seu depoimento é contrário ao julgamento de mérito que manteve a menor T à guarda da mãe.
Desse modo não pode este Tribunal de recurso no âmbito da presente apelação avaliar da real implicação dos factos eventualmente relatados pela testemunha M no pequeno excerto cuja gravação torna imperceptível o depoimento para o exame e decisão da causa.

m)-De resto, a sentença é perfeitamente clara quanto ao que de relevante a Exm.ª julgadora extraiu do depoimento da testemunha M.
Da forma detalhada e esclarecida como a Sr.ª Juíza de Direito que proferiu a sentença analisou o depoimento prestado pela testemunha M não pode concluir-se senão que teve em conta na decisão a parte do depoimento em que a testemunha se pronunciou sobre a forma como, enquanto esposa do pai, se relaciona com a menor T, e do que tem feito e projecta fazer para integrar a menor no agregado familiar do pai, assumindo-se como “mãe do coração” da menor T.
Se, como alega o apelante, na pequena parte do depoimento da testemunha M cuja gravação apresenta deficiente qualidade, esta assumiu essa condição de “mãe do coração” da menor T, nos termos já adquiridos para os autos, então de nada adiantaria decretar a nulidade do acto de inquirição e ordenar a sua repetição.

n)-Ou, dito de outro modo, se tivesse sido interposto recurso da sentença proferida e pedida nesse contexto a reinquirição da testemunha M por impossibilidade parcial de compreensão das suas declarações, teria que concluir-se pela inexistência de nulidade do acto por não influir no exame ou decisão da causa, nos termos do artigo 195.º n.º 1 do Código de Processo Civil.

Em conclusão, o despacho impugnado não merece qualquer censura não sendo de declarar a nulidade do depoimento prestado pela testemunha M por deficiente qualidade de parte da respectiva gravação sonora.

IV – DECISÃO

Termos em que acordam em julgar improcedente a apelação interposta do despacho que indeferiu a arguição da nulidade decorrente da deficiente qualidade da gravação do depoimento da testemunha M na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 16 de outubro de 2019 e em manter o despacho impugnado.
Custas pelo apelante.


Lisboa, 22 de abril de 2021

Manuel José Aguiar Pereira
Maria Teresa Batalha Pires Soares
Octávia Machadinho Viegas


(1)-Por lapso evidente a testemunha foi incorrectamente identificada no despacho impugnado.
(2)-Do requerido José António Fernandes Ferreira.