Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
250/14.2TXLSB-E.L1-9
Relator: FERNANDO ESTRELA
Descritores: SARS-COV-2
COVID-19
ESTADO DE EMERGÊNCIA - COVID 19
PERDÃO DA PENA
REQUISITOS LEGAIS
RECLUSÃO DO CONDENADO EM E.P.
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I-Tendo a arguida sido pessoalmente notificada em 11.1.2021 para comparecer no E.P. de Tires a fim de iniciar o cumprimento da pena em regime de prisão por dias livres , em que foi condenada nos autos, por sentença transitada em julgado em 27.5.2015, pela prática de crimes de furto simples, mas de acordo com a informação do E.P., de 10.3.2021, até essa data, não se tinha apresentado ainda no Estabelecimento Prisional para cumprimento de prisão por dias livres, a conclusão é que esta não tem o estatuto de reclusa ( uma vez que se encontra em liberdade), pois nem sequer iniciou o cumprimento da pena em que foi condenada;
II-O perdão no quadro dos autos ( Lei de emergência da doença Covid 19) sendo uma medida absolutamente excecional, que tem como único objetivo retirar das prisões reclusos condenados que estejam a dois ou menos anos do termo da pena ou das respetivas penas.
Logo e ao contrário do estabelecido na Lei 29/99, de 12/5, o perdão (bem como o regime especial de indulto, o regime extraordinário de licença de saída administrativa e a antecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional), só tem como destinatários reclusos condenados, por decisão transitada em julgado anterior à sua entrada em vigor;
III-Quer face ao âmbito de aplicação da lei 9/2020 de 10 de Abril (e no seu artº 2), quer pelos destinatários por ela visados, a competência para a sua aplicação foi atribuída aos tribunais de execução de penas, o que consolida a  conclusão que só o arguido/a que esteja recluso poderá beneficiar de tal medida excepcional, e não, quando esteja ainda em liberdade, pese embora decisão anterior à entrada em vigor desta Lei já transitada em julgado que a condenou numa pena detentiva da sua liberdade em meio prisional.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – No proc.º n.º 250/14.2TXLSB-E, do Tribunal de Execução das Penas de Lisboa, Juiz 4, por despacho judicial de 15 de março de 2021 foi indeferido o pedido de aplicação do perdão art.º 2.º da Lei 9/2020, de 10.4, à arguida AA.
II – Inconformada, a arguida AA interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. Por Acórdão proferido em 22/04/2015 foi a Recorrente condenada na pena de 9 (nove) meses de prisão, a cumprir aos fins de semana, correspondentes a 54 (cinquenta e quatro) períodos;
2. O Referido Acórdão transitou em julgado em 27/05/2015.
3. A condenação da Arguida transitou em julgado em data anterior à da entrada em vigor da lei n.º 9/2020, de 10 de abril.
4. O Tribunal a quo decidiu que o perdão de penas previsto na Lei n.º 9/2020, de 10 de abril é apenas aplicável a quem se mostra em reclusão à data da entrada em vigor da referida Lei.
5. A posição tomada e adoptada pelo Tribunal a quo no Despacho recorrido é flagrantemente violadora do princípio da igualdade e do princípio da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável.
6. Recusar a aplicação da lei nova com o singelo argumento de que o Arguido condenado ainda não é recluso, sempre violará o espírito e o escopo da Lei 9/2020 de 10ABR, e violará ainda o princípio constitucional da igualdade e da retroactividade da lei penal mais favorável.
7. A interpretação do art.º 2º n.ºs 1 e 7 da Lei 9/2020 de 10ABR, sempre será INCONSTITUCIONAL quando interpretada no sentido de que o perdão da pena de prisão igual ou inferior a dois anos resultante de sentença já transitada em julgado, apenas se aplica ao arguido cujos mandados de detenção já foram cumpridos e portanto já se encontra em estado de recluso no estabelecimento prisional, e não já se aplica àqueloutro arguido cuja pena, sendo igual ou inferior a dois anos de prisão resultante de sentença transitada em julgado à data da entrada em vigor da nova lei, aguardava que fossem executados os mandados de detenção.
8. Tal interpretação ofende os princípios constitucionais da universalidade, igualdade, retroactividade da lei penal mais favorável e direito à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação, violando, portanto, o disposto nos art.ºs 12º n.º 1, 13º, 18º, 26º n.º 1 e 29º n.º 4 da C. Rep. Portuguesa.
INCONSTITUCIONALIDADE que desde já, e para todos os efeitos, se argui.
Termos em que deve o presente Recurso obter provimento com o que farão V. Exas. a tão costumada JUSTIÇA
III – Em resposta, veio o Ministério Público na 1.ª Instância dizer, formulando as
seguintes conclusões:
- A recorrente foi condenada, por acórdão transitado em julgado em 27.05.2015, numa
pena de 9 meses de prisão, a cumprir aos fins de semana, correspondentes a 54 (cinquenta e
quatro) períodos;
- A recorrente ainda não iniciou o cumprimento dessa pena;
- O perdão de pena previsto na lei 9/2020, de 10.04, aplica-se apenas a reclusos;
- Não estando a recorrente recluída, não lhe é aplicável tal perdão;
- A razão pela qual a lei prevê e concede o referido perdão (prevenção/redução do risco
de surto/contágio pelo vírus pandémico COVID – 19 entre a população prisional) não procede
relativamente à recorrente, dado que esta não se encontra em situação de reclusão;
- Não há, por isso, violação de qualquer princípio constitucional, designadamente o da
igualdade.
- Pelo que a decisão recorrida se deverá manter, na íntegra e nos seus precisos termos.
V. Exªs, porém, melhor apreciarão, decidindo conforme for de JUSTIÇA.
IV – Transcreve-se a decisão recorrida.
No processo n.º1/12.6PELRA foi a arguida condenada na pena de nove meses de prisão
a cumprir por dias livres, correspondente a 54 fins de semana. Nunca se apresentou no EP
para iniciar o cumprimento da pena.
Dispõe o art.º 2.º da Lei 9/2020, de 10.4:
1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.
2 - São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena.
Resulta claro do texto da Lei que o perdão se aplica exclusivamente a reclusos. Não é manifestamente o caso da arguida que não se encontra presa. Assim, indefere-se o pedido de aplicação do perdão ao caso dos autos.
(...)
V – Nesta Relação a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso interposto.
VI – Cumpre decidir.
1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente (cf., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na CJ (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo I, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403° e 412°, n° 1, do CPP).
2. O recurso será julgado em conferência, atento o disposto no art.º 419.º n.º 3 alínea b) do C.P.Penal.
3. A arguida veio interpor recurso da decisão proferida Sra. Juiz do TEP, de 4.1.2021, que indeferiu o seu pedido de aplicação do perdão de pena previsto na Lei 9/2020, de 10.4 .

4. Decidindo.
A arguida foi pessoalmente notificada em 11.1.2021 para comparecer no E.P. de Tires a fim de iniciar o cumprimento da pena em regime de prisão por dias livres (fls. 44), em que foi condenada no P.1/12.6PELRA, por sentença transitada em julgado em 27.5.2015, pela prática de crimes de furto simples.
De acordo com a informação do E.P., de 10.3.2021, até essa data, não se apresentou no Estabelecimento Prisional para cumprimento de prisão por dias livres. Mais se informou que a mesma, contactou em 05/02/2021, o EP, telefonicamente, questionando se poderia apresentar-se para cumprimento desta PDL e que foi informada que deveria questionar o Tribunal (atento, o período de tempo decorrido, a legislação atual, o desconhecimento do interesse/ posicionamento atual do Tribunal.
Uma vez que a arguida nunca se apresentou para cumprimento da pena, não tem o estatuto de reclusa.
Nos termos do artº2º da lei 9/2020, de 10.4, Perdão
1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.
2 - São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena.
3 - O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única.
4 - Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cúmulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos.
5 - Relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão.
(...)
7. O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.(...)
“Assim, não estando a arguida recluída, uma vez que ainda não iniciou o cumprimento da pena de prisão, não é reclusa, pelo que não há lugar à aplicação do perdão de penas, uma vez que a lei se aplica apenas a reclusos.
O recurso a que agora se responde incide sobre a decisão, proferida em 15.03.2021, que indeferiu o pedido de aplicação do perdão de pena, previsto na lei 9/2020, de 10.04.
A recorrente entende, em síntese, que o perdão de penas previsto naquele diploma é aplicável ao seu caso, uma vez que tal diploma prevê que (cfr. artº 2º, nº 1) são “...perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos”.
A recorrente foi condenada, por acórdão transitado em julgado em 27.05.2015, numa pena de 9 meses de prisão, a cumprir aos fins de semana, correspondentes a 54 (cinquenta e quatro) períodos.
A recorrente foi pessoalmente notificada, em 11.01.2021, para comparecer no E.P. de Tires a fim de iniciar o cumprimento da sua pena (em regime de prisão por dias livres).
No entanto, até à data, não o fez.
Donde, uma vez que a recorrente nunca se apresentou para cumprimento da pena, a mesma não tem o estatuto de reclusa.
Por outro lado, preceitua a lei 9/2020, de 10.04, que o perdão de pena se aplica apenas a reclusos.
Na verdade, o artigo 2º, nº 1, do aludido diploma dispõe que “São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.”.
Assim, não sendo a recorrente reclusa, não haverá lugar à aplicação do referido perdão de penas, uma vez que este se aplica apenas a quem seja recluso.

Aliás, essa será o entendimento mais conforme com a finalidade do diploma em causa (prevenir/reduzir o risco de surto/contágio pelo vírus pandémico COVID – 19 entre a população prisional), pelo que, também por isso, a decisão recorrida não viola (diferentemente do que a recorrente sugere) o princípio constitucional da igualdade.
Quanto à invocada que invocada inconstitucionalidade da norma constante no artigo 2.°/7 da Lei 9/2020 de 10.04, por violar o princípio da igualdade constante no artigo 13.° da Constituição, na parte em que restringe a concessão do perdão aos condenados em cumprimento de pena à da entrada em vigor da referida lei, apontamos decisão em sentido contrário proferida, por exemplo, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3.2.2021 proferido no P.109/20.4TXCBR-B.C1., que citamos (...)
Acresce que, este entendimento (de o perdão se aplicar apenas a reclusos que se encontrem a cumprir pena de prisão no momento da sua entrada em vigor) não viola o princípio constitucional da igualdade.
Como sublinha Maia Gonçalves «as medidas de graça, como providências de excepção, constam de normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas».
No mesmo sentido, o Ac. do STJ (fixação de jurisprudência) de 25-10-2001 (proc. n. ° 00P3209) - sendo excepcionais as normas que estabelecem perdões, não comportando, por isso mesmo, aplicação analógica (artigo 11.° do CC), nem admitindo interpretação extensiva ou restritiva, devem ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas, impondo-se, assim, uma interpretação declarativa, em que "não se jaz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo".
Sendo, assim, insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» - Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, 1978, p. 147.

Na interpretação declarativa «o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo» - Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 185.
Como decidiu o Tribunal Constitucional (Ac. n. ° 39/88, de 9 de Fev. - DR n.º 52/1988, Série I, de 03-03-1988):
«O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n. º2 do artigo 13. º
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.»
Por sua vez, pode ler-se no Acórdão n. ° 149/93, de 28 de Janeiro, do mesmo Tribunal, in www.tribunalconstitucional.pt:
«Pode-se considerar que é já vasta e consolidada a jurisprudência constitucional sobre o sentido e o alcance do princípio da igualdade (cfr., entre outros, os Acórdãos n°s 39/88 - publicado no Diário da. República, 1 Série, de 3 de Março de 1988 -, 157/88 - publicado no mesmo local e série, de 26 de Julho de 1988 -, 76/85, 142/85, 309/85 e 186/90, - todos publicados no Diário da República II Série, respectivamente, de 8 de Junho de 1985, de 7 de Setembro de 1985, de 11 de Abril de 1986 e de 12 de Setembro de 1990 -, 400/91 publicado no Diário da República, 1 Série, de 15 de Novembro de 1992 e finalmente o Acórdão n° 226/92, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Setembro de 1992, neste último caso versando especificamente a temática do presente processo, cujo desenvolvimento, aliás, seguiremos no essencial.
Da assinalada jurisprudência decorre que, vistas as coisas na óptica da igualdade em sentido material, e enquanto princípio vinculador do próprio legislador, se  exige que a lei dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e trate de forma  distinta o que for dissemelhante.  O princípio da igualdade não comporta, pois, uma proibição absoluta de discriminações no tratamento legal de uma dada matéria, mas tão-somente que essas discriminações sejam arbitrárias ou irrazoáveis, isto é, desprovidas de fundamento material bastante.
Neste contexto, citando o que se escreveu no Acórdão n° 400/91, "o princípio da igualdade funciona, pois, como um limite objectivo da discricionariedade legislativa, proibindo a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional, proíbe, em termos gerais, o arbítrio legislativo."»
Por conseguinte, atendendo aos objectivos da citada Lei n. ° 9/2020 (prevenir o risco de alastramento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19), não se vislumbra que a circunstância de o perdão se aplicar apenas a reclusos que se encontrem a cumprir pena de prisão no momento da sua entrada em vigor constitua uma desigualdade de tratamento arbitrária por materialmente infundada, desprovida de fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional, razão por que, a nosso ver, não se mostra violado o princípio constitucional da igualdade. (,..)
No mesmo sentido, veja-se o Parecer n°10/2020 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, no seu ponto 8.”
E como acrescentou a Exma PGA nesta Relação:
A este propósito o Ac. TRC de 16 dez 2020, no âmbito do proc. 430/20.1TXCBR-C.1, consultável in https://blook.pticaselaw/PT/TRC/594752/ analisa a situação de aplicabilidade deste perdão, bem como da competência para a sua determinação, afigurando-se importante, neste contexto, a referência a tal acórdão onde consta que:

"O perdão (..) é uma medida absolutamente excecional, que tem como único objetivo retirar das prisões reclusos condenados que estejam a dois ou menos anos do termo da pena ou das respetivas penas.
Por tal razão, e ao contrário, por exemplo, da Lei 29/99, de 12/5, o perdão (bem como o regime especial de indulto, o regime extraordinário de licença de saída administrativa e a antecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional), só tem como destinatários reclusos condenados, por decisão transitada em julgado.- sublinhado nosso.
Quer face ao âmbito de aplicação da lei, quer pelos destinatários por ela visados, a competência para a sua aplicação foi naturalmente atribuída aos tribunais de execução de penas, ao contrário da tradição jurídica anterior em tal matéria. Na verdade, só estes tribunais, por se supor estarem ou virem a ficar na posse dos dados referentes a todo o elenco de penas que porventura um condenado tenha a cumprir, que se mostrem já em execução, é que se encontram em condições de determinar se o mesmo está ou poderá vir a ficar em condições de beneficiar da aplicação da lei do perdão. A atribuição da competência aos tribunais de execução de penas, conjugada com o que se acabou de referir, implica que a concessão do perdão só possa ocorrer depois de a reclusão se ter iniciado, pois que só a partir de tal momento se torna materialmente possível concluir qual o "tempo total de reclusão"que o condenado tem a cumprir, seja por referência a uma única pena ou a diversas penas em que tenha sido condenado" -sublinhado nosso.
Ora afigura-se efetivamente relevante, principalmente para o caso em apreço saber se é, ou não, exigível à aplicação do perdão ao abrigo da Lei n.° 9/2020 a condição de recluso do respetivo beneficiário, isto é se o perdão só pode incidir, para além dos demais requisitos legais, sobre penas relativas a pessoas que no momento da sua aplicação se encontrem efetivamente recluídas.
Ora, a posição assumida no supra referenciado Ac. do TRC é no sentido de que é imprescindível à aplicação do perdão a condição de recluso, competindo após, ao Tribunal de execução de penas a apreciação dos requisitos legais no caso concreto.
Também neste sentido veja-se o Ac. TRC de 30 setembro 2020 proferido no âmbito do processo744/13.7TXCBR-P.C1, consultável in https://blook.pt/caselaw/PT/TRC/593402/ , segundo o qual "O perdão previsto no artigo 2° da Lei n° 9/2020, de 10 de Abril, verificados que sejam os demais requisitos legais, pode ser aplicado tanto a condenados que sejam reclusos à data da entrada em vigor daquele diploma (11-04-2020), como a condenados que, no decurso da vigência da mesma Lei, venham a estar na situação de reclusão."
E isto porque a manutenção da vigência da lei em período temporal alargado implica uma constante verificação sobre a sua aplicabilidade a reclusos que, entretanto, se encontrem em condições de poder beneficiar da sua aplicação.
Ora, in casu, a recorrente não se enquadra em nenhuma destas situações, dado que não chegou a iniciar o cumprimento da sua pena.
Também neste sentido o Ac. Tribunal Relação Lisboa no processo 16/06.3PEHRT.L1, reproduzindo as alegações de recurso do Ministério Público, discorre sobre esta questão da aplicabilidade da lei em apreço abordando o contexto da sua criação por forma a melhor se compreender o âmbito da sua aplicação. E, neste contexto refere-se naquele Acórdão que:
"Efectivamente, trata-se de um regime excepcional, para fazer face a uma situação de saúde pública provocada pela doença COVID-19, com o qual se pretende evitar a propagação da doença no contexto prisional, o que é agravado pela circunstância de os estabelecimentos prisionais estarem muito cheios, alguns lotados, e com uma população na sua generalidade envelhecida, o que agrava a possibilidade de alastramento e propagação da doença nestes estabelecimentos, de acordo com a Exposição de motivos da Proposta de Lei n.° 23/X1V, referente ao perdão de penas consagrado na Lei n.° 9/2020 de 10 de Abril.
Assim, impõe-se libertar espaço das prisões, permitindo uma maior segurança para todos os que tem necessidade de, por qualquer razão, estar presentes nestes espaços, quer reclusos, quer pessoas, que aí exercem as suas funções profissionais. Deste modo, se justifica que o legislador tenha previsto a atribuição do perdão para reclusos, ou seja, condenados que se encontram já em cumprimento de pena, não prevendo o perdão daqueles que, embora condenados por sentença transitada em julgado, ainda não se encontram a cumprir pena, e por isso, ainda não são considerados reclusos.
Ora, atentas as razões que motivaram a criação de um regime excepcional de perdão de penas, uma interpretação que incluísse o perdão de penas a condenados que ainda não estivessem na condição de recluso a cumprir a pena, iria muito além do espírito da lei, daquela que foi a intenção do legislador com a criação do aludido regime, extravasando a letra da lei e criando um regime demasiado amplo atendendo àquelas que foram as finalidades da atribuição de perdão de pena. Com efeito, para que sejam obtidos os resultados, pretendidos conforme expostos pelo Governo, no sentido de libertar os reclusos particularmente vulneráveis à COVID-19, bem como, os infractores de baixo risco, no sentido de, acautelar o surgimento de focos de doença nos estabelecimentos prisionais e prevenir os riscos do seu alastramento, exige-se uma actuação junto da comunidade de reclusos, pois que, apenas estes sofrem o risco decorrente da permanência e concentração de um vasto número de pessoas nos estabelecimentos prisionais que se visa justamente acautelar com a criação de um regime excepcional de perdão de penas.(...)
Ademais, e corroborando o entendimento de que o perdão é aplicável apenas aos reclusos encontra-se a circunstância de que a Lei n° 9/2020, de 10 de Abril, apenas atribuiu competência para declarar o perdão aos Tribunais de Execução de Penas e não aos tribunais da condenação, o que deveria acontecer, no caso de o legislador pretender aplicar o perdão aos condenados por sentença transitada em julgado que ainda não assumissem a condição de reclusos (neste sentido o Parecer emitido pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n° 10/20, pág. 18).
(...)
Em quarto lugar, importa referir que a interpretação da lei no sentido de que, não se aplica o perdão da pena a condenados por sentença transitada em julgado que não se encontrem em estabelecimento prisional a cumprir pena, e que, não assumam a condição de recluso, não constitui um tratamento desigual ou discriminatório de situações idênticas.
Com efeito, no que tange aos reclusos o objectivo da aplicação do perdão é a salvaguarda da sua saúde e dos demais que se encontrem em estabelecimentos prisionais revestindo, por isso, a salvaguarda da saúde pública e a protecção face à possibilidade da propagação da epidemia no meio prisional, situação diversa dos condenados que não assumem a qualidade de reclusos, pois, no que concerne a estes, poderão ser adoptadas outras medidas que salvaguardem a sua salde sem afectar o poder punitivo do Estado, ou seja, neste
conflito entre a salvaguarda da saúde pública e a manutenção do poder punitivo do Estado, não carece a primeira de protecção especial que a faça prevalecer face à necessidade de manutenção do poder punitivo do Estado
Acresce que, o princípio da igualdade previsto no art. 13° da Constituição da República Portuguesa permite distinções, proibindo o tratamento arbitrária sem fundamento material bastante que o justifique. Assim, o princípio da igualdade impõe que, existindo diferenciações, as quais não são proibidas em absoluto, estas estejam alicerçadas em medidas materialmente fundadas em respeito da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira , in Constituição da República Portuguesa Anotada Coimbra. Coimbra Editora. 1° volume; 2007, pág. 340)”.
Assim, é de manter o despacho recorrido.
Não foram violados quaisquer normas legais e/ou constitucionais maxime o artigo 2.º, n.° 7, a Lei n° 9/2020, de 10.4, e os art.ºs 13.º, 29.º/4 , e 204. ° da Constituição.
VI - Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso interposto pela arguida,
mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas pela arguida recorrente, sendo de 3UC a taxa de justiça.
(Acórdão elaborado e revisto pelo relator - vd art.º 94.º n.º2 do C.P.Penal)

Lisboa, 22 de abril de 2021
Fernando Estrela
Guilherme Castanheira