Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANTÓNIO MOREIRA | ||
Descritores: | NULIDADE DA DECISÃO FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO CONTRATO DE ARRENDAMENTO OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO COMUNICAÇÃO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/24/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | 1- Só a falta absoluta de fundamentação, e não a fundamentação insuficiente ou deficiente, constitui causa de nulidade da sentença. 2- Mostra-se válida e eficaz a comunicação da oposição à renovação efectuada pelo senhorio ao inquilino, com mais de 120 dias de antecedência relativamente ao termo do prazo de três anos de duração do contrato de arrendamento urbano para habitação, o qual teve o seu início em 1/3/2021, ou seja, na vigência do nº 2 do art.º 1095º do Código Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 13/2019, de 12/2. (Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil) | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados: R. (A.) apresentou procedimento especial de despejo contra T. (R.), pedindo a emissão de título para desocupação do locado com fundamento na cessação do contrato de arrendamento celebrado em 1/3/2021, face à oposição à renovação comunicada em 1/9/2023. Notificada a R., apresentou oposição onde invoca, em síntese, a manutenção do contrato, por ser de renovação automática por 5 anos, mais deduzindo reconvenção onde alega que realizou várias obras no locado no valor de € 50.000,00, as quais constituem benfeitorias necessárias e das quais deve ser indemnizada, compensando-se tal quantia com as rendas devidas de Setembro de 2023 a Setembro de 2032. Tendo os autos sido distribuídos como acção especial de despejo, o A. respondeu ao articulado da R. invocando que o contrato foi celebrado por prazo certo de 3 anos, mais impugnando a realização de obras no locado pela R., alegando ainda que nunca autorizou quaisquer obras e que, mesmo que tivessem sido realizadas obras, não dariam direito a qualquer indemnização, de acordo com o estipulado no contrato de arrendamento. Conclui pela improcedência da reconvenção e pela desocupação do locado, mais pedindo a condenação da R. como litigante de má fé. Foi admitida liminarmente a reconvenção, identificado o objecto do litígio e admitidos os meios de prova. Realizada a audiência final, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto e decidindo, o Tribunal julga o presente procedimento especial de despejo procedente por provado, e em consequência: A) RECONHECE a caducidade do contrato de arrendamento, por motivo da validade da oposição à renovação efectuada, mais condenando a Requerida na entrega imediata do locado, no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da presente decisão; B) ABSOLVE a Requerente do pedido reconvencional. Não vislumbrei qualquer litigância de má-fé da Requerida, mas simples falta de prova do alegado. Custas pela Requerida”. A R. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem (corrigem-se os lapsos de escrita manifestos): 1ª Decorre do art.º 1095º nº 2 do CC que a renovação do contrato de arrendamento é automática durante os primeiros 5 anos. 2ª Efectivamente, com base no nº 2 do mesmo artigo o prazo do contrato de arrendamento para habitação a termo certo deve constar de cláusula inserida no contrato, sendo que não pode ser inferior a 5 nem superior a 30 anos. 3ª Logo, tal prazo nunca pode ser entendido como prazo supletivo antes como imperativo visto que se trata de um prazo de duração mínima. 4ª Logo, a inobservância de tal prazo como sucedeu no presente caso por violação de normas legais imperativas deve ter conduzido à prolação de sentença a declarar a nulidade da comunicação da oposição à renovação uma vez que ainda não foi esgotado o invocado prazo de 5 anos. 5ª A fundamentação da sentença, como a de qualquer outra decisão judicial, sendo exigência muito antiga, tem actualmente assento constitucional. De facto, art. 205º nº 1 da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Não se trata de mera exigência formal, já que a fundamentação cumpre uma dupla função: de carácter objectivo - pacificação social, legitimidade e autocontrole das decisões; e de carácter subjectivo - garantia do direito ao recurso e controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários. 6ª A fundamentação da douta sentença recorrida afigura-se contrária com os fundamentos na medida em que: 7ª As decisões judiciais sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição. 8ª A falta de fundamentação gera a nulidade do despacho ou da sentença. Tratando‑se da decisão sobre a matéria de facto, pode determinar-se em recurso a baixa do processo a fim de que o tribunal da 1ª instância a fundamente. 9ª Por outro lado, a douta sentença não faz uma análise crítica, nem completa nem mínima, da versão apresentada pelo A, limitando-se a reproduzir um conjunto de considerações que são válidas para “N” acções, mas que não consubstanciam minimamente o cumprimento do imposto. 10ª Prescreve, então e no que ora nos interessa, o artigo 334.º do C.C., primeira fonte do instituto do Abuso de Direito, que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. 11ª Quer-se, pois, tutelar ou permitir uma válvula de escape perante um determinado modo de exercício de direito ou direitos, que, apresentando-se formal e aparentemente admissível, redunda em manifesta contrariedade à ordem jurídica. 12ª Há abuso de direito quando um determinado direito – em si mesmo válido –, é exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante na comunidade social (Ac. RL, de 16 de Maio 1996, processo nº 0012472, sumário em dgsi.pt). Não foi apresentada alegação de resposta pelo A. *** Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem-se com: - A nulidade da sentença por falta de fundamentação; - O direito do A. a opor-se à renovação do contrato de arrendamento e o seu exercício ilícito. *** Na sentença recorrida considerou-se provada a seguinte factualidade (corrigem‑se as referências processuais): 1. Em 01.03.2021 por intermédio de documento particular denominado “contrato de arrendamento para fim habitacional com prazo certo; nos termos do artigo 1095.º do Código Civil”, o A., na qualidade de senhorio e a R., na qualidade de inquilino, celebraram entre si o contrato de arrendamento de anexo de moradia destinada a habitação, pelo prazo de três anos, com início a 01.03.2021 e fim em 30.03.2024, renovando-se pelo prazo automático e sucessivo de um ano, desde que não seja denunciado pelas partes. 2. Por intermédio de carta datada de 01.09.2023, o A. comunicou à R. a oposição à renovação do contrato de arrendamento, considerando que o mesmo cessaria os seus efeitos no dia 30.04.2024. *** Na sentença recorrida considerou-se não provada a seguinte factualidade: 3. O A. autorizou a R. a realizar obras no locado, sendo o valor tido em conta para efeitos de compensação sobre o valor das rendas. 4. A R. substituiu a porta de entrada visto que a anterior não tinha qualquer segurança. 5. E reparou, picotou e rebocou todos os tectos e paredes da habitação constituída por 2 quartos, 1 sala, 1wc e uma cozinha. 6. E procedeu à reparação e substituição de 2 entradas. 7. E procedeu à remoção do chão em toda a casa substituindo os azulejos partidos por outros novos. 8. E substituiu todas as loiças da casa de banho, dos azulejos, torneiras, chuveiros, armários. 9. E substituiu toda a cozinha desde os armários, azulejos, canalização, janelas. 10. E substituiu todas as portas interiores bem como dos armários. 11. E colocou uma janela na entrada. 12. E procedeu à pintura de toda a casa, exterior e interior. 13. Despendendo em toda a sua totalidade, a quantia de €50.000,00. *** Da nulidade por falta de fundamentação A R. invoca a nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação, já que “a douta sentença não faz uma análise crítica, nem completa nem mínima, da versão apresentada pelo A, limitando-se a reproduzir um conjunto de considerações que são válidas para “N” acções mas que não consubstanciam minimamente o cumprimento do imposto” dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais. Segundo a al. b) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, uma decisão judicial é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Todavia, a decisão judicial com fundamentação escassa ou deficiente não é nula. É que, segundo Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221), “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (artº 208º nº 1 do CRP; artº 158º nº 1)”. E mais refere que “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (…) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (…); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”. Revertendo tais considerações ao caso concreto dos autos, constata-se que o tribunal recorrido elencou a factualidade dada como provada e não provada, a partir daquela alegada pelo A. (no requerimento inicial) e pela R. (no requerimento de oposição), motivando esse segmento decisório de facto a partir da valoração da prova produzida, nos termos que fez constar da sentença recorrida. Mais se constata que, com fundamento na factualidade que foi dada como provada, o tribunal recorrido conheceu da pretensão formulada pelo A., indicando os preceitos legais aplicáveis e interpretando-os, para concluir pela procedência da mesma, condenando a R. na entrega do locado ao A. Ou seja, a fundamentação de facto e de direito que releva para a decisão de procedência da pretensão do A. é aquela invocada na sentença recorrida, por referência aos factos elencados e às considerações de natureza jurídica aí expressas. E se as considerações aí expressas são as mesmas que são válidas para situações idênticas, sendo apresentadas pela mesma forma em litígios semelhantes, isso só assegura que a decisão recorrida teve em conta um dos elementos interpretativos das normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto, como é a jurisprudência (a par da doutrina). O que equivale a afirmar que a sentença recorrida está fundamentada de facto e de direito, assim improcedendo as conclusões do recurso da R., no que respeita a esta questão da nulidade da mesma por falta de fundamentação. *** Do direito do A. a opor-se à renovação Na sentença recorrida ficou assim sustentada a verificação da cessação do contrato de arrendamento, face à oposição do A. à renovação do mesmo: “No caso vertente, verifica-se que o contrato apesar de vir mencionado que foi celebrado por prazo certo, com início em 01.03.2021 e fim em 30.03.2024 [a referência a 30.04.2024 trata-se de manifesto lapso de escrita, revelado no contexto da própria sentença, e que por isso se deixa desde já rectificado], admitia expressamente a possibilidade de renovação. Todavia, mostrando-se expressamente prevista a duração mínima temporal de três anos, não será de aplicar a norma supletiva do art. 1094.º, n.º 3 Cód. Civil, pelo que o contrato não poderia ter a duração de cinco anos, embora qualquer renovação devesse ter a duração mínima de três anos. Atento o teor do contrato celebrado, caso o senhorio não pretendesse a sua renovação, teria de o comunicar com pelo menos 120 dias de antecedência em relação ao termo do prazo de duração inicial (art. 1097.º, n.º 1, alínea b) Cód. Civil, neste caso até final do mês de Janeiro de 2024. No caso vertente, atento os factos provados em 2), verifica-se que o senhorio realizou a comunicação de oposição à renovação com a antecedência legal de pelo menos 120 dias das, pelo que a mesma foi validamente efectuada, o que determinou a caducidade do contrato na data de 30.03.2024. Por conseguinte, o contrato de arrendamento celebrado entre as partes, extinguiu-se validamente por caducidade, devendo ser objecto de despejo”. Contrapõe a R. que o nº 2 do art.º 1095º do Código Civil impõe a renovação automática do contrato de arrendamento durante os primeiros cinco anos de vigência do mesmo, já que resulta de tal preceito legal que o prazo do mesmo “não pode ser inferior a 5 nem superior a 30 anos”, e tratando-se de uma norma imperativa, pelo que as partes nunca poderiam ter previsto que a duração do contrato fosse de 3 anos. É certo que na redacção dada ao nº 2 do art.º 1095º do Código Civil pela Lei 6/2006, de 27/2, ficou previsto que o prazo de duração do contrato de arrendamento urbano não podia ser inferior a cinco anos nem superior a trinta anos. Todavia, tal redacção foi alterada pela Lei 31/2012, de 14/8, que eliminou o mencionado limite mínimo, ficando apenas previsto o limite máximo de trinta anos. E na sua redacção actual, que lhe foi dada pela Lei 13/2019, de 12/2, passou a estar previsto que “o prazo referido no número anterior [ou seja, o prazo certo de duração do contrato que deve constar de cláusula inserida no mesmo] não pode, contudo, ser inferior a um nem superior a 30 anos, considerando-se automaticamente ampliado ou reduzido aos referidos limites mínimo e máximo quando, respectivamente, fique aquém do primeiro ou ultrapasse o segundo”. Ora, tendo o contrato de arrendamento em causa nos autos sido celebrado no domínio da redacção actual do nº 2 do art.º 1095º do Código Civil, torna-se claro que na estipulação do prazo de duração do mesmo as partes não podiam ir além dos referidos limites mínimos (um ano) e máximo (trinta anos). Com efeito, há que atentar que resulta do art.º 1080º do Código Civil que “as normas sobre a resolução, a caducidade e a denúncia do arrendamento urbano têm natureza imperativa”, daí se podendo extrair que a norma relativa aos limites mínimos e máximos de duração do contrato de arrendamento urbano também não admite disposição em contrário, porque está ligada à verificação da possibilidade de caducidade do mesmo. Mas isso significa tão só, e no que respeita ao caso dos autos, que as partes não podiam ter estipulado um prazo de duração do contrato inferior a um ano, nem superior a trinta anos. Pelo que tendo as partes estipulado um prazo de duração do mesmo de três anos, apresenta-se tal estipulação como perfeitamente válida. Nessa medida, a renovação automática do contrato no seu termo, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 1096º do Código Civil, não ocorre se alguma das partes se opuser a tal renovação, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.º 1096º, nº 3, e 1097º, ambos do Código Civil. Do mesmo modo, quando é o senhorio que pretende opor-se à renovação automática do contrato de arrendamento com prazo certo igual ou superior a um ano e inferior a seis anos, deve comunicar tal oposição ao arrendatário com a antecedência mínima de 120 dias relativamente ao termo do prazo em vigor, tal como resulta da al. b) do nº 1 do art.º 1097º do Código Civil. Assim, estando-se perante um contrato de arrendamento com prazo de duração de três anos, e resultando da factualidade apurada que o A. exerceu tal direito com respeito pelo aí preceituado, pois que efectuou a comunicação da sua oposição à renovação com a referida antecedência mínima de 120 dias, tem-se o contrato de arrendamento por validamente cessado no termo do seu prazo de duração, ficando então a R. obrigada a desocupar o locado. Invoca ainda a R. que o exercício desse direito do A. se apresenta como abusivo, na medida em que ofende “o sentimento de justiça dominante na comunidade social”. Do art.º 334º do Código Civil resulta que é abusivo (ou ilegítimo) o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. O excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé ocorre quando o titular do direito viola o princípio da confiança que nele foi depositada pela contraparte, através da prévia aquisição da expectativa de uma conduta de sinal contrário à que se mostra adoptada. Este sentido interpretativo é aquele que é seguido pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como no acórdão de 12/2/2009 (relatado por Azevedo Ramos e disponível em www.dgsi.pt), aí se referindo que “no âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória (venire contra factum proprium), que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara”. E no mesmo acórdão refere-se ainda que “o abuso do direito só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do direito e da justiça”. Também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/11/2010 (relatado por Sebastião Póvoas e disponível em www.dgsi.pt), é afirmado que o abuso de direito, “tal como resulta do seu “nomen juris”, pressupõe a existência de um direito radicado na esfera do titular, direito que, contudo, é exercido por forma ilegítima por exceder manifestamente a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico (artigo 334.º do Código Civil). Quer o preceito vigente (com redacção idêntica à do artigo 334.º do Anteprojecto do Código Civil [2.ª revisão ministerial], quer a primeira proposta – artigo 297.º - 1.ª revisão ministerial – “O exercício de um direito (…) através de factos que contrariem os princípios éticos fundamentais do sistema jurídico (…).”) têm ínsito o “qui jure sua utitur”, ou seja, que o abusador surja titular de um direito subjectivo, ou de parte dele. E, então, ou o utiliza licitamente – dentro dos limites do direito objectivo – ou ultrapassa limites que a ética, a boa fé e o fim social não toleram. Assim, são os casos de “venire contra factum proprium”, em que o exercício contradiz uma conduta antes presumida ou proclamada pelo agente (Cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2007 – 07 A1180, desta Conferência e de 30 de Março de 2006 – P.º 3921/05, 4.ª). Aí, o ponto de partida é uma anterior conduta de um sujeito jurídico que “objectivamente considerada é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira.” (cf. Prof. Baptista Machado, apud “Obra Dispersa”, 1, 415 e ss). A conduta pregressa terá criado na contraparte uma situação de confiança com base na qual esta tenha tomado disposições ou organizado planos que, gorados, lhe causarão danos. Tem aqui ínsita a ideia de “dolus praesens”, a trair um investimento de confiança feito pela outra parte, originado por dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidas no tempo. (cf. o Prof. Menezes Cordeiro, “o primeiro – o ‘factum proprium’ – é, porém, contrariado pelo segundo”, apud, “Da Boa Fé no Direito Civil”, 45; e ROA – 58, 1998, 964)”. Do mesmo modo, e a propósito do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium (que corresponderá à invocada pela R.), afirmou o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 12/11/2013 (relatado por Nuno Cameira e disponível em www.dgsi.pt), que “são pressupostos desta modalidade de abuso do direito (…) os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou”. Reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, desde logo não se verifica qualquer actuação de sinal contrário do A., no sentido de levar a considerar que, não obstante haver sido estipulado o prazo de duração do contrato de arrendamento em três anos, o mesmo não exerceria o seu direito a opor-se à renovação do contrato para o termo desse prazo, assim criando na R. a convicção de que o contrato de arrendamento se manteria para além desse prazo, pelo menos até perfazer cinco anos de duração. Com efeito, a R. apenas convocou o instituto do abuso de direito para sustentar que o A. não podia opor-se à renovação do contrato de arrendamento para o termo do prazo de três anos, correspondente ao que ficou inscrito no documento que o corporiza como sendo o prazo de duração do mesmo, porque entendia que o contrato não podia durar menos de cinco anos. Mas tendo sido já afirmada a conformidade legal da estipulação desse prazo de duração do contrato de arrendamento de três anos, torna-se evidente que a conduta subsequente do A., comunicando à R. que pretendia fazer cessar o contrato no termo desse prazo, através da oposição à renovação do mesmo, não se apresenta como contraditória com a sua conduta anterior, mas antes perfeitamente alinhada com a mesma, expressa no acordo de vontades determinante do surgimento da relação contratual de arrendamento, com aquele prazo certo de duração (três anos). Ou seja, também por esta via improcedem as conclusões do recurso da R., não havendo que fazer qualquer censura à sentença recorrida quando aí se reconhece a validade da oposição à renovação do contrato, a determinar a caducidade do mesmo, com a consequente condenação da R. na entrega do locado. *** DECISÃO Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se a sentença recorrida. Custas do recurso pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia. 24 de Outubro de 2024 António Moreira Fernando Caetano Besteiro Vaz Gomes |