Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | RUI POÇAS | ||
Descritores: | ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA INJÚRIA AGRAVADA ADVOGADO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/22/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
Sumário: | (da responsabilidade do relator) 1 - Não se inclui no erro notório na apreciação da prova a que alude o art.º 410.º, n.º 2, al. c) do CPP a sindicância que os recorrentes pretendam fazer à valoração da matéria de facto feita pelo tribunal recorrido, valoração que esse tribunal é livre de fazer, nos termos do art.º 127.º do CPP. Pretendendo os recorrentes questionar esse julgamento, o caminho adequado é a impugnação da decisão da matéria de facto, de acordo com o regime do art.º 412.º, n.º 3 do CPP. 2 – Para aferir o preenchimento do tipo de crime de injúria agravada, as palavras e expressões ditas ao ofendido têm de ser apreciadas no seu contexto situacional. 3 – A expressão “tonto” dirigida pelo arguido ao demandante, perante o Tribunal onde este pratica a sua profissão de advogado e estava a atuar enquanto mandatário judicial, no decurso de diligência judicial, à frente de Juiz, advogados colegas e oficial de justiça, tem um caráter acintoso, vexatório, diminutiva da consideração devida ao ofendido, pelo que se identifica claramente como ofensiva. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO No Juízo Local Criminal de Santa Cruz, Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo: «Perante o exposto, julgam-se as acusações pública parcialmente procedente e, em conformidade, decide-se: a) (…) b) Condenar o arguido AA pela prática em 13.12.2021, como autor material e na forma consumada de um crime de injúria agravada, previsto e punível pelos artigos 14º nº1, 26º (1ª parte), 30.º, 77.º, 181.º, n.º 1 e 184.º, com referência à al. l) do n.º 2 do art.º 132.º, todos do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa à taxa diária de 10,00 € (dez euros), perfazendo um total de 700,00 € (setecentos euros), a que correspondem, em caso de não pagamento da pena de multa, a pena de prisão reduzida a dois terços, nos termos do artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal». Foi ainda julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil e condenado o citado demandado/arguido no pagamento da quantia de 500,00 € (quinhentos euros) ao demandante BB, a título de danos patrimoniais, acrescido de juros de mora civis à taxa de 4% a contabilizados desde a data da sentença, até integral e efetivo pagamento. Inconformado, recorreu o arguido, na parte em que foi condenado pela prática de um crime de injúria agravada e respetivo pedido de indemnização civil, formulando as seguintes conclusões: I) A sentença recorrida incorre em erro notório na apreciação da prova nos termos do artigo 410/2-c) do CPP, uma vez que o depoimento do arguido, assistente e testemunhas foi erradamente valorado. II) Pelo facto do arguido ter endereçado ao demandado a expressão “tonto”, e considerando que tal expressão é polissémica, há que aquilatar o contexto situacional em a mesma foi proferida, sendo que, no caso dos autos, considera-se que nem chega a alcançar um patamar mínimo de gravidade que lhe confira dignidade penal. III) Do contexto dos factos resulta que o assistente e arguido foram separados pelo Sr. funcionário judicial por duas vezes, sendo que ambos estariam a discutir, dizendo várias coisas um ao outro de frente a frente, e de cabeças encostadas. IV) Também resulta dos autos que o assistente representava na ação cível o Autor (aqui testemunha) que é seu amigo de infância, e ainda que o arguido trabalha perto do escritório do demandante e que é frequente cruzarem-se, sendo que o arguido é primo do cliente do demandante na ação judicial cível que deu origem aos presentes autos, pelo que é inequívoco que a relação entre assistente e o seu constituinte na ação cível e o arguido, e aquele constituinte, de quem o arguido é primo, ultrapassa em muito a mera relação de Advogado, cliente (Autor na ação cível) e Réu na ação cível (ora arguido), mas envolve relações de amizade e de inimizade. V) Acresce que, das declarações do funcionário judicial, a quem o tribunal considerou de verdadeiramente isenta, decorre que o ambiente era de animosidade entre os autores e réus naquela ação cível e ainda que os factos ocorreram na altura do COVID, estando, por isso, toda a gente de máscara, o que dificultava a comunicação e perceção. VI) Assim, a expressão dada como provada de “tonto”, dita que foi num contexto de animosidade, de cabeças encostadas entre o assistente e arguido e de discussão, significa claramente que ambos dirigiram palavras um ao outro, não sendo usual assistir a uma situação destas em que o Advogado, por mais de uma vez, está de cabeça encostada ao cliente de outro mandatário presente, e em discussão acesa. VII) Realce ainda para a situação do assistente nem mencionar tal expressão (“tonto”) como tendo sido dita (cfr. motivação da sentença – págs. 7, 8 in fine e 9), pelo que não se compreende que o tribunal recorrido dê como provado que o assistente tenha ficado profundamente ofendido e dominado por sentimentos de tristeza e de injustiça, sentiu-se enxovalhado e humilhado, por uma expressão que este nem se recorda ou, sequer, refere em julgamento (cfr. factos provados em 8 e 9) ???? VIII) E ainda se compreende menos que o tribunal dê como provado qual tal expressão foi proferida em frente do Tribunal, onde o demandante pratica a sua profissão e estava a atuar enquanto mandatário judicial, no decurso de diligência judicial, à frente de juiz, advogados colegas e oficial de justiça quando estariam todos de máscara, e tal expressão apenas terá sido ouvida seguramente pelo Sr. Funcionário (cfr. factos provados em 8 e 9). IX) A expressão “tonto” por ter um sentido polissémico, e mesmo a ter sido proferida num contexto de discussão entre os intervenientes, poderia significar apenas que o assistente estava a ter um comportamento de “tonto”, ou que não estava em si, ou que estava doido, ou que o seu comportamento não tinha nexo ou significado, ou que era disparatado, ou que estava atarantado, ou ainda para deixar de ser “tonto” face ao que estava a ser dito, e ao modo e local em que estava a ser dito. X) Tal expressão poderia apenas ter sido referida para qualificar o atual comportamento do assistente, e não para se referir à sua pessoa enquanto característica, sendo que o tribunal recorrido não teve em conta o contexto em que a expressão é dita, e nem se preocupa minimamente em destrinçar aquelas situações que poderão ter ocorrido, e que afastariam a punibilidade da conduta do arguido. XI) No crime de injúria a ofensa à honra e consideração não pode ser perspetivada em termos estritamente subjetivos, ou seja, não basta que alguém se sinta atingido na sua honra –, na perspetiva interior/exterior - para que a ofensa exista, realçando-se que, no caso dos autos, o assistente nem confirma no julgamento que lhe tenha sido dirigido tal nome dado como provado (conforme consta da fundamentação da sentença). XII) Torna-se necessário enquadrar a concreta expressão, no contexto em que foi proferida, o meio a que pertencem ofendido/arguido e as relações entre eles, entre outros aspetos, sendo certo que, quando uma palavra tem uma pluralidade de sentidos, não temos de acolher o significado atribuído ou pelo tribunal, ou pelo visado, tão-só por se ter considerado ofendido, e isso terá de resultar inequivocamente dos factos. XIII) A expressão em causa, produzida no exato contexto da sua produção, não atinge a credibilidade, a honra e consideração do assistente, uma vez que o significante utilizado não encerra em si a potência ofensiva devida, e ainda porque nem este percecionou o que foi dito (cfr. motivação da sentença – págs. 7, 8 in fine e 9), não se vislumbrando, pois, na expressão em causa, qualquer sentido, muito menos exclusivo, de ofender, ou seja não se afigura que esteja em causa uma expressão utilizada para gratuitamente e em primeira linha achincalhar e rebaixar a honra e o bom nome do assistente. XIV) A expressão “tonto”, da autoria do arguido não consubstancia a conduta mais correta ou o comportamento mais civilizado, mas naquele concreto contexto a expressão em causa não tem a virtualidade de alcançar um patamar mínimo de gravidade que lhe confira dignidade penal. XV) A proteção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos que atentem contra esses bens jurídicos, só se justifica em situações em que objetivamente as palavras proferidas não têm outro conteúdo ou sentido que não a ofensa, ou em situações em que, uma vez ultrapassada a mera suscetibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são, indubitavelmente, lesivas da honra e da consideração do lesado - cfr., neste sentido, o Ac. da Relação do Porto, de 14/07/2009, proferido no âmbito do Proc. nº 0841633, in www.dgsi.pt. XVI) Por outro lado, convém não olvidar que, como se sublinha no Acórdão da Relação do Porto, de 19/12/2007, proferido no âmbito do Proc. nº 0745811, in www.dgsi.pt, quando uma palavra tem uma pluralidade de sentidos, não temos de acolher o significado atribuído pelo visado tão-só por se ter considerado ofendido, sendo que isso terá de resultar inequivocamente dos factos. XVII) Transpondo para o caso vertente as normas e considerações jurídicas supra sumariamente expostas, face aos elementos fácticos indiciariamente apurados, entendemos que a conduta do arguido não é objetivamente difamatória para o assistente, e nem o é subjetivamente pois o assistente não refere em julgamento que a mesma tenha sido proferida (cfr. motivação da sentença – págs. 7, 8 in fine e 9). XVIII) A expressão "tonto", no contexto dos autos, não integra objetiva ou subjetivamente o crime de injúrias previsto e punido pelo artigo 181º/1 do C.P., por falta de carga ofensiva, devendo o arguido ser absolvido da prática desse crime. XIX) Razão pela qual o tribunal deveria ter dado como não provados os factos indicados em 3), 4), 5), 8), 9), 10 e 11) dos provados. XX) O apontado vício impõe uma decisão diversa da proferida, designadamente a eliminação de todos os factos provados relativos à atuação do arguido, impondo-se a sua completa absolvição, com consequências imediatas sobre a pena de multa aplicada, bem como no pedido cível formulado, por este ser uma das consequências do crime, sendo certo que inexistindo crime, inexiste o facto ilícito exigido pelo artigo 483º do Código Civil. XXI) Pelo que deve o arguido ser absolvido da prática do crime de injúria agravada, com consequências imediatas sobre a pena de multa aplicada, bem como no pedido cível formulado pela assistente, ou, caso assim não se entenda, que seja declarada nula a sentença recorrida, ou que seja anulado o julgamento com o consequente o reenvio para novo julgamento nos termos do artigo 426º do Código de Processo Penal. * Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos: 1 - O Tribunal enumerou os factos provados e não provados e expôs, de forma completa, clara e precisa os motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, tendo indicado as provas que serviram para formar a sua convicção e efectuou exame crítico das mesmas. 2 - A Mma Juiz a quo, para além de reproduzir, em síntese, as declarações e depoimentos quer do arguido, do ofendido e das testemunhas, conjugou-as entre si e demonstrou as diversas incongruências no que foi relatado, pelo que não se vislumbra o vicio ínsito na al. c) do n.º 2 do artigo 410.º, do Código de Processo Penal. 3 - O recorrente recorre da matéria de facto, mas não especifica os pontos concretos que considera incorrectamente julgados, não indica as provas concretas, e porque se impõe decisão diversa, não cumprindo por conseguinte as exigências do preceituado nos referidos nºs 3 e 4 do artigo 412º, do C. P. Penal, as quais não se satisfazem com a mera crítica genérica à formação da convicção do tribunal. 4 - A expressão “tonto” significa “Que ou quem tem dificuldades no raciocínio ou enfraquecimento das faculdades intelectuais. = pateta, parvo, tolo; Que ou quem perdeu a razão ou apresenta distúrbios mentais. = doido, maluco, tolo” in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. 5 – Exige-se que os sujeitos processuais se dirijam, no âmbito de uma diligência judicial, quer ao tribunal, quer entre si, com respeito, decoro, cordialidade e urbanidade, sendo que a expressão “és um tonto” dirigida ao ofendido, advogado, no exercício da sua profissão, ultrapassa os limites impostos por estes deveres. 6 - Bem andou o Tribunal a quo em condenar o Recorrente pela prática de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, n.º 1 e 184.º, com referência à al. l) do n.º 2 do art.º 132.º, todos do Código Penal, pois que a nosso ver, a expressão proferida, no contexto em que a mesma foi proferida, encerra em si um carácter desvalioso significativo, que ultrapassa os limites da adequação social. * Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo. * Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público, que não emitiu qualquer parecer. * Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência. Cumpre decidir. OBJECTO DO RECURSO Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995). Tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir: - Erro notório na apreciação da prova; - Preenchimento do tipo de crime de injúria agravada/absolvição do arguido. DA SENTENÇA RECORRIDA Da sentença recorrida consta a seguinte fundamentação de facto: «Dos Factos Provados Com relevo para a causa, dão-se como provados os seguintes factos: Da Acusação: 1. O ofendido, BB, é advogado com cédula profissional … e escritório no .... 2. No exercício das suas funções, o ofendido exerceu o mandato judicial no âmbito da ação de processo comum cível n.º 80/20T8SCR, no juízo local cível do Tribunal Judicial de Santa Cruz, Comarca da Madeira, em representação dos Réus CC e de DD. 3. No dia 13/12/2021, pelas 10h00, no decurso da diligência de inspeção ao local em ..., o arguido abeirou-se do ofendido e proferiu-lhe as seguintes palavras: «tonto». 4. Ao proferir as referidas expressões de forma audível, o arguido pretendeu ofender a honra, dignidade, bom nome, brio profissional e consideração do ofendido, apesar de saber que se tratava de um advogado que se encontrava no exercício das respetivas funções numa diligência judicial. 5. Sabia o arguido que os seus comportamentos eram previstos e punidos criminalmente, não se abstendo, contudo, de os praticar. Da Contestação 6. A testemunha EE, é primo do Arguido, e tem um litígio com aquele, relacionado com bens de família. 7. O demandante BB é amigo de infância da testemunha EE. Do pedido de indemnização civil 8. Em virtude dos factos praticados pelo arguido referidos em 1 a 5, o demandante ficou profundamente ofendido, ficou dominado por sentimentos de tristeza e de injustiça, sentiu-se enxovalhado e humilhado. 9. A expressão referida em 2 foi proferida em frente do Tribunal, onde o demandante pratica a sua profissão e estava a atuar enquanto mandatário judicial, no decurso de diligencia judicial, à frente de Juiz, advogados colegas e oficial de justiça. 10. Ficou com receio que o arguido o magoasse. 11. O demandante tem receio de encontrar o arguido e quando se cruza com o mesmo fica nervoso e com receio que este concretize os seus intentos. 12. O arguido trabalha perto do escritório do demandante, pelo que é frequente cruzarem-se. Mais se apurou que: 13. O arguido era autor na ação judicial referida em 2. Das Condições Pessoais e Socioeconómicos 14. O arguido é … e …, auferindo, mensalmente, a título de rendimentos do seu trabalho a quantia de cerca de 2.300,00 €. 15. Reside sozinho em casa própria. 16. Despende, mensalmente, a título de prestação para liquidação do crédito à habitação e despesas com a mesma a quantia de cerca de 1000,00 €. 17. É licenciado em …. Dos Antecedentes Criminais 1 8. O arguido não tem antecedentes criminais registado. Factos Não Provados Da acusação A. Que o arguido tivesse dito ao ofendido as seguintes palavras: «Filho da Puta, Paneleiro, vamos acertar contas mais tarde». B. Ato contínuo, e mesmo depois de ter sido afastado pelo oficial de justiça que acompanhava a diligência, o arguido continuou a proferir as seguintes palavras: “Filho da Puta, Paneleiro, tonto de merda, não podes com a mão na cara, vamos acertar contas mais tarde”. C. Que o arguido tivesse proferido as expressões referidas em 3 de forma explícita e de viva voz. D. O arguido atuou ainda com o propósito concretizado de intimidar o ofendido, fazendo crer que o matava, e constrangê-lo na sua liberdade de ação e movimentos, a fim de perturbar a diligência que se desenrolava, apesar de saber que se tratava de advogado no respetivo exercício de funções numa diligência judicial. Do pedido de indemnização civil E. Que os factos n.ºs 10 a 12, fossem resultado de qualquer comportamento do arguido. F. Apelidando o demandante de «filho da puta», ofendeu a mãe do denunciante, que faleceu em 03 de maio de 2021. G. O demandante, nas semanas seguintes após o episódio não conseguiu deixar de pensar no mesmo. H. Ficou com dificuldades em adormecer nas semanas seguintes. I. Sempre que vê o arguido fica nervoso. J. Perdeu apetite durante as primeiras semanas após a prática dos factos. K. A ofensa ao nome da mãe do denunciante muito o afetou e entristeceu o demandante. Da contestação L. O demandante BB, passou a diligência toda a chamar o demandado «mentiroso» e «ladrão» e já no final em plena ..., abordou-o, em tom intimidatório e disse «Contigo resolvo, as coisas mais tarde, se quiseres». M. O que provocou uma troca de palavras entre os dois e alguma animosidade entre ambos, que finalizou com o demandante BB a proferir o seguinte comentário: «Ainda bem que fizeste isso, quando chegarmos ao Tribunal já vais ver ...». N. O que se sucedeu, foi uma troca de palavras de ambas as partes, de forma grosseira e fora das normas da convivência social. O. Todo o julgamento e inspeção judicial naquele processo cível foi conotado por uma agressividade e animosidade do demandante, seu mandatário contra o demandado. P. Sendo que, apelidavam constantemente e o demandado de «mentiroso», em tom vexatório e difamatório. Q. Que o demandante está pessoalmente contra o Arguido devido àquele litígio. R. Já no fim da diligência de inspeção judicial e após a troca de palavras de ambos, voltou tudo ao normal. * O restante conteúdo das peças processuais que não resultem explanados nos factos supra elencados foi expurgado por corresponder a matéria de direito, a factos conclusivos ou a juízos de valor, não sendo essenciais para o apuramento da responsabilidade criminal e/ou civil do arguido». FUNDAMENTAÇÃO a) Do erro notório na apreciação da prova A primeira questão suscitada pelo arguido consiste no erro notório na apreciação da prova. Para ponderar a verificação deste vício, importa ter presente a motivação da decisão de facto da decisão recorrida, que a seguir se transcreve, nas partes relevantes para a resolução da questão a decidir: «Motivação O Tribunal, num juízo crítico da prova produzida, formulou a sua convicção quanto aos factos dados como provados e não provados com base na conjugação das provas infra referidas, aplicando as regras da experiência comum que a cada caso se exijam e a livre convicção do julgador, conforme dispõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal. (…) Concretizando: Os factos relativos às circunstâncias de tempo e lugar, ao facto de o ofendido ser advogado, a inspeção ao local, pessoas representadas pelo arguido e n.º de processo resultam, desde logo, demonstradas pela certidão da ata de dia 13.12.2021, a fls. 19 a 28, estando, assim, provados os factos n.ºs 2 e 1.ª parte do facto 3. (…) Quanto às expressões propriamente ditas, verifica-se uma discrepância nas declarações do arguido e demandante e, bem assim, das testemunhas. Por um lado, o demandante BB, referiu que quando se encontravam na inspeção ao local, no patamar superior do prédio, sendo que representava parte dos Réus na referida ação, disse ao arguido, que era Autor nessa ação, que face à construção existente no local era flagrante que a mesma era antiga, tendo o arguido, em resposta, o chamado de «filho da puta». Mais disse que, após todos foram para a estrada, tendo o arguido aproximado a sua cara da do demandante e dito «filho da puta, não podes com a mão na cara, vamos acertar contas disto mais tarde», tendo, nesse momento, o oficial de justiça que estava no local separado ambos. A propósito desta factualidade, o arguido AA referiu que quando estavam no patamar de cima do prédio, o demandante o interrompeu quando este estava a explicar uma data construção ali existente, tendo o arguido dito que era para o demandante o deixar falar com o juiz sendo que, após, quando já se encontravam na estrada, o demandante o abordou e disse «tu vais me mandar calar quando a gente se encontrar», tendo o arguido em resposta «perdido a cabeça» sic e dito «és tonto». Negou ter apelidado qualquer outro nome ao demandante ou dito qualquer outra expressão de teor ameaçador, imputando, sim, ao demandante, tais comportamentos, dizendo que este o chamou de «filho da puta, tonto de merda, não podes com a mão na cara», altura em que o oficial de justiça interveio. Negou, ainda, ter encostado a cabeça ao demandante. A testemunha FF, oficial de justiça, referiu que no âmbito da referida inspeção ao local, estavam presentes o arguido, demandante, o advogado do arguido (a testemunha GG), o réu HH, o juiz, uma estagiária de serviços jurídicos e o taxista. Relatou que existia animosidade entre os autores e réus naquela ação, sendo que os factos ocorreram na altura do COVID, estando, por isso, toda a gente de máscara, o que dificultava a comunicação. Acrescentou que quando estavam na via pública, viu o arguido e demandante próximos, parecia que estavam a discutir, não conseguindo percecionar o que diziam, sendo que a testemunha interveio e colocou-se a meio de ambos dizendo para pararem com aquele comportamento, tendo ambos acedido. Passados uns instantes, verificou que as pessoas referidas repetiram o comportamento, tendo a testemunha novamente intervindo, altura em que escutou o arguido dizer ao demandante que este era «um tonto de merda e havemos de falar fora daqui». Confirmou que a dada altura ambos tinham a cabeça encostada uma à outra, desconhecendo quem teve a iniciativa de alínea conduta. A testemunha GG, ex-cunhado do arguido e advogado deste no referido processo onde estava a decorrer a inspeção ao local, referiu que quando estavam no patamar superior, o demandante disse ao arguido que era para este se calar, sendo que quando já se encontravam na estrada, o demandante disse ao arguido «estás a olhar», altura em que houve uma troca de palavras entre ambos, tendo escutado o arguido a dizer ao demandante que este era «um tonto», altura em que ambos se aproximaram e o oficial de justiça interveio, referindo que tal intervenção se cingiu a uma única vez. Referiu que não se apercebeu da existência de contacto físico entre arguido e demandante. Por fim, a testemunha HH, primo do arguido, réu na ação cível em apreço e amigo do demandante, referiu que quando estavam no patamar superior, o arguido chamou o demandante de «tonto, tonto de merda, paneleiro, filho da puta», sendo que, após, já no patamar de baixo do prédio, o oficial de justiça interveio, não tendo a testemunha escutado qualquer expressão ou palavras dirigidas pelo arguido ao demandante nem tendo a testemunha visualizado qualquer encostar de cabeça. Ora, da análise destas declarações e depoimentos, verifica-se que inexiste qualquer unanimidade entre os mesmos, exceto no que concerne à expressão «és um tonto» que foi referida por todos, exceto pelo demandante (embora as testemunhas FF e HH tenham referido a expressão «tonto de merda»). Há desconformidade entre as declarações e depoimentos, desde logo, quanto ao local onde se terá iniciado o apelidar de nomes: o demandante e HH dizem que a primeira vez foi no patamar superior do prédio e a segunda já na estrada; o arguido, GG e FF dizem que o chamar de nomes ocorreu apenas na via pública. Por outro lado, também não existe concordância no que concerne à posição onde estavam as pessoas. FF referiu que, na via pública, a testemunha GG não estava junto do arguido, já esta testemunha disse que esteve sempre junto ao arguido, embora também tenha dito que o arguido e o demandante estavam do seu lado direito, FF e HH do seu lado esquerdo. Por sua vez, a testemunha HH referiu que o juiz estava a meio, a testemunha do lado esquerdo, GG do lado direito, o demandante, o arguido e FF atrás. Nesta matéria, foram juntas aos autos fotografias – na contestação (fls. 158) e na audiência de julgamento - que não permitem concluir pela ocorrência dos factos, sendo que se o seu intuito foi o de demonstrar a posição dos intervenientes no ato de inspeção ao local no momento da ocorrência dos factos, em nada contribuíram para a descoberta de tal factualidade pois que - embora se tenha esclarecido que o autor das fotografias tenha sido II, no âmbito da referida diligência-, a verdade é que não foi possível apurar, sem margem para dúvida, se tais fotos foram retiradas antes ou após os factos, não permitindo, assim, esclarecer a posição dos intervenientes, e, aliás, se atentarmos nas fotos, verifica-se que as mesmas apresentam cenários diversos: a de fls. 158 aparece com um prédio atrás, com uma construção em arco e portão; a foto identificada como doc. 1 junta em audiência de julgamento foi tirada junto a uma escadaria que nada tem a ver com a foto de fls. 158, escadaria essa que parece ser a mesma do doc. 4 junto em audiência de julgamento, onde aparece também uma edificação com um telhado conhecido como «sandwich» e janelas em madeira que é também visível no doc. 3 junto em audiência de julgamento. Em todas estas fotos é visível que os intervenientes na inspeção ao local vão mudando de posição. Na foto de fls. 158, vê-se a testemunha GG a meio do demandante que está à sua esquerda e do arguido que está à sua direita; no doc. 1 vê-se que o arguido está de frente para o demandante, ainda que com uma distância entre ambos, com o juiz a meio; no doc. 3, vê-se mais à esquerda a testemunha HH, o juiz, à sua direita o demandante, atrás do demandante, ligeiramente à direita, o arguido e, por fim, à direita, a testemunha GG; no doc. 4, as pessoas mantêm a mesma posição que na foto 3, à exceção da testemunha GG e do arguido, sendo que o primeiro está atrás do demandante e o segundo atrás de GG. Também não existe convergência quanto à pessoa que chamou nomes a quem: o demandante diz que foi o arguido que lhe chamou e ameaçou (conforme resulta também da queixa de fls. 4 e seguintes); o arguido diz o oposto; GG (o que resulta do auto de interrogatório de fls. 15 e de fls. 42 a 43). Novamente, tal discrepância existe, também, na parte referente à intervenção da testemunha FF, oficial de justiça, sendo que esta testemunha referiu que interveio duas vezes; o demandante, o arguido, GG e HH referiu que foi uma. O mesmo se diga quanto ao encostar de cabeça: o demandante afirmou que o arguido encostou a sua cabeça na sua; o arguido negou; FF confirmou; HH e GG nada viram a este propósito. Importará referir que tanto o demandante como o arguido apresentaram um discurso que pela sua posição nos autos é interessado, sendo que o depoimento das testemunhas GG e HH é também interessado, o primeiro pela relação que tem com o arguido (é ex-cunhado, advogado do arguido no referido processo e demonstrar existir amizade entre ambos) e o segundo por ter um conflito com o arguido no âmbito do referido processo cível (além de ser amigo do demandante). A única testemunha verdadeiramente isenta foi FF. Ora, perante todas estas divergências nas declarações e depoimentos, apenas permitiu ao Tribunal concluir, com certeza, de que o arguido apelidou o demandante de «tonto», porquanto tal expressão foi confirmada por todos, exceto pelo próprio demandante. Todas as demais expressões apenas foram relatadas pelo demandante e HH como tendo sido o arguido a dizer-lhe, sendo que, por sua vez, essas mesmas expressões foram referidas pelo arguido e por GG como tendo sido o demandante a dirigir ao arguido. Todavia, face ao que se disse perante o discurso interessado destas pessoas, o Tribunal não as considerou. Quanto à expressão que foi relatada por FF como tendo o arguido dito ao demandante («havemos de falar fora daqui»), não foi referida por mais nenhuma testemunha, sendo certo que esta, quando a descreveu, não tinha a certeza se tinha sido exatamente esta expressão ou «algo do género» sic. Dizer, ainda, que o facto de o demandante, logo após o ocorrido, ter, no âmbito da audiência de julgamento do processo cível requerido a palavra para a ata onde indicou os nomes e expressões que lhe foram dirigidas pelo arguido, conforme resulta do CD junto aos autos, a saber «filho da puta, paneleiro, tonto de merda, vamos acertar contas mais tarde» - cf. ficheiro denominado «202111213104607_1678346_3994995» - não é, por si só, suficiente para se concluir que tais expressões foram proferidas na integra pelo arguido dirigidas ao demandante, sendo que, nesse mesmo ficheiro áudio, é imputado ao demandante a prática de factos e expressões semelhantes, já que o mesmo, alegadamente, terá dito, de acordo com tal áudio ao arguido, no âmbito da mesma diligência de inspeção ao local: «tu vais ver o que sou mas não é aqui», inclusive apelidando-o de «filho da puta, mentiroso». Ora, esta circunstância, de palavra contra palavra que se mantém na presente data, não permite concluir sem margem para dúvida que o arguido proferiu todas as expressões por que vinha acusado, mas apenas a de apelidar o demandante de «tonto». Acrescentar, ainda, que o facto de o arguido em momento algum, no âmbito de tal exercício de contraditório, através da testemunha GG, ter negado a prática dos factos, por si só, também não tem relevo, pois que, se assim fosse, também se teria que considerar, embora não seja o demandante a pessoa que está a ser julgado, que o mesmo também proferiu as expressões que lhe foram imputadas no âmbito de tal exercício de contraditório pois não as negou (isto de acordo com a gravação). Dizer, também, que apesar de na ata de fls. 21, constar a menção a que a testemunha GG se opôs ao requerimento do demandante, «dizendo que o mandatário dos réus [ora demandante] provocou e ameaçou o autor [ora arguido]», não permite concluir-se pela ocorrência, na integra, dos factos tais como foram relatados pelo demandante, remetendo-se para a argumentação já explanada no parágrafo anterior que também aqui é válida, por uma questão de economia e celeridade processual. Face ao relatado, é forçoso concluir que não se apurou qualquer outra expressão dirigida pelo arguido ao demandante que não a expressão «tonto» e que não se apurou qualquer expressão ou palavra dirigida pelo demandante ao arguido, sendo que, após o evento, não voltou a situação à normalidade conforme é referido na contestação, pois que, se assim fosse, aquando do regresso ao Tribunal, não teria o demandante pedido a palavra para realizar o requerimento que se referiu. Por outro lado, não se apurou que o demandante estivesse pessoalmente contra o arguido no âmbito do processo cível, desde logo, considerando que o mesmo não é parte naquele processo, mas sim mandatário de dois Réus, não se podendo confluir por tal pessoalidade só pelo facto de ser amigo de um dos Réus, nem se demonstrou qualquer tipo de animosidade do demandante para com o arguido no âmbito da referida inspeção ao local. Por todo o exposto, resultaram provados a 2.ª parte do facto n.º 3, factos n.ºs 6, 7 e 13 e não provados os factos A a D e L a R. Os danos sofridos pelo demandante em consequência da conduta do arguido estão demonstrados pelas declarações do próprio que são consonantes com as regras de experiência comum, pois que, o demandante estava no âmbito de uma diligência judicial, no exercício de funções, sendo comum os sentimentos por si vivenciados em consequência de tal comportamento, estando, assim, provados os factos n.ºs 8 e 9. Os factos n.ºs 10 a 12, referentes a danos sofridos pelo demandante, resultam assim demonstrados por terem sido relatados pelo próprio também de forma espontânea e coerente. Todavia, a verdade é que não se provou que tais danos adviessem de qualquer conduta do arguido, uma vez que, quanto à expressão ameaçadora, a mesma resulta não demonstrada, estando assim, não provado o facto n.º E. Neste âmbito, dizer, ainda que a listagem de processos pendentes do arguido é irrelevante para se concluir por qualquer conduta agressiva deste ou qualquer suscetibilidade de o mesmo praticar qualquer facto ilícito, bem como o facto de o arguido ter requerido a fls. 42 a 43 a substituição da magistrada do Ministério Público que era titular do inquérito, pois que, atuou no âmbito de que qualquer cidadão pode atuar. (…) Os demais danos invocados pelo demandante resultam não provados por não terem sido mencionados pelo próprio nem por qualquer outra testemunha, inexistindo qualquer prova dos autos quanto à mesma, estando, assim, não provados os factos G a J. Os factos n.ºs 4 e 5, relativos à consciência da ilicitude e vontade de ação as mesmas resultam das regras de experiência comum, pois que quando uma pessoa apelida outra de «tonta» é porque assim o quer fazer, ainda para mais quando o destinatário de tal expressão é um advogado que representa a contraparte no âmbito de uma diligência judicial. Ainda que porventura o ofendido tenha falado com o arguido no âmbito da referida diligência, tal não justifica o comportamento do arguido para com este (…). * Como é sabido e resulta do texto da lei, os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 do CPP têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. No que respeita ao erro notório na apreciação da prova, a que alude a alínea c) daquele preceito legal, a doutrina e a jurisprudência caracterizam-no como uma «falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si (…). Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras de experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis» (cfr. Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 4ª Ed., 2001, p. 76). No dizer do Conselheiro Sérgio Poças, «o erro notório é o erro que se vê logo, que ressalta evidente da análise do texto da decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência» (cfr. «Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto», Revista Julgar n.º 10, de 2010, pg. 29). O erro notório na apreciação da prova unicamente é prefigurável quando se depara ter sido usado um processo racional e lógico mas, retirando-se, contudo, de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irrazoável, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum, bem como das regras que impõem prova tarifada para determinados factos (cfr. o Acórdão do STJ de 18/03/2004, P. 03P3566 em www.dgsi.pt). Não se inclui no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes pretendam fazer à valoração da matéria de facto feita pelo tribunal recorrido, valoração que esse tribunal é livre de fazer, nos termos do art.º 127.º do CPP. Pretendendo os recorrentes questionar esse julgamento, o caminho adequado é a impugnação da decisão da matéria de facto, de acordo com o regime do art.º 412.º, n.º 3 do CPP. Tendo presentes estas noções, importa verificar se a decisão recorrida revela nalgum ponto um erro notório na apreciação da prova. Ora, basta ler os fundamentos do recurso e as respetivas conclusões para verificar que o recorrente não aponta verdadeiramente qualquer erro percetível no texto da decisão, que possa configurar aquele vício. O recorrente entende é que a matéria de facto foi incorretamente julgada, discordando quer do julgamento da matéria de facto, quer do enquadramento jurídico a que o tribunal procedeu perante a factualidade que deu por provada. Vejamos. O recorrente começa por afirmar que o depoimento do arguido, assistente e testemunhas foi erradamente valorado. Trata-se de uma conclusão que apenas revela a discordância genérica relativamente à decisão da matéria de facto, mas que não aponta qualquer vício concreto, patente num excerto do texto da própria decisão. De seguida, o arguido refere que a expressão “tonto” dirigida ao ofendido, no contexto situacional em que foi proferida, nem chega a alcançar um patamar mínimo de gravidade que lhe confira dignidade penal. Nesta parte, está em causa a valoração da expressão concretamente dirigida ao ofendido, pelo que também não se equaciona qualquer erro na apreciação da prova. O arguido elabora também sobre o contexto de animosidade e discussão entre si e o ofendido, bem como o facto de ao tempo todos os intervenientes utilizarem máscara, no contexto das medidas preventivas da Covid-19, o que dificultava a perceção das expressões utilizadas, sendo certo que tal expressão só terá sido percecionada pela testemunha que era funcionário judicial, sem que nem sequer o ofendido a tenha mencionado. Como é bom de ver, também aqui não é apontado qualquer excerto da decisão que revele o vício previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. c) do CPP, mas tão só a alegação de argumentos que revelam a discordância do arguido com o sentido da mesma. Por outro lado, lida a sentença, verifica-se que esta deu como provado no seu ponto 3, que “no decurso da diligência de inspeção ao local em ..., o arguido abeirou-se do ofendido e proferiu-lhe as seguintes palavras: «tonto»”. E justifica a prova deste facto de forma bastante detalhada, assinalando que existiu uma discrepância nas declarações do arguido demandante e testemunhas quanto às expressões concretamente ditas pelo arguido, resumindo as declarações e depoimentos, assinalando o carácter interessado da generalidade das testemunhas, com exceção de FF, funcionário judicial que assistia à diligência, para concluir que as declarações e depoimentos só convergiram na identificação da expressão «és um tonto» que foi referida por todos, exceto pelo demandante. Importa, pois, concluir que o Tribunal justificou a sua decisão de forma lógica e coerente, não se vislumbrando qualquer vício de raciocínio ou incongruência manifesta que revele um erro manifesto na apreciação da prova. É de notar, por outro lado, que o facto de o ofendido não ter reproduzido a expressão “tonto” em audiência não invalida que a mesma tenha sido dada como provada, sendo bastante a fundamentação apontada, pelo que nada existe de contraditório no facto de terem sido considerados provados os danos morais sofridos pelo demandante. O arguido invoca o erro manifesto na apreciação da prova, mas as suas alegações não tomam em consideração o teor da fundamentação de facto, que justificou a demonstração da aludida expressão dirigida ao ofendido. Em suma: não se deteta qualquer erro manifesto na apreciação da prova na decisão recorrida, nem o recurso o indica, pelo que não se verifica o vício previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. c) do CPP. A discordância do arguido com a apreciação da prova e a inerente decisão de facto também não releva para efeitos de impugnação da matéria de facto, pois não estão verificados os requisitos previstos no art.º 412.º, n.º 3 do CPP. O recurso improcede nesta parte. b) Da verificação do crime de injúria agravada/absolvição O arguido foi condenado pela prática de um crime de injúria agravada, previsto e punível pelos artigos 14º nº1, 26º (1ª parte), 30.º, 77.º, 181.º, n.º 1 e 184.º, com referência à al. l) do n.º 2 do art.º 132.º, todos do Código Penal. Para o efeito, o Tribunal recorrido considerou que o arguido, no decurso de uma diligência de inspeção judicial em ..., apodou o ofendido, advogado que se encontrava em exercício de funções, de “tonto”. A questão que se coloca é a de saber se esta expressão preenche o elemento objetivo do tipo de injúria, ou seja, se pode considerar-se ofensiva da honra ou consideração do ofendido (cfr. o art.º 181.º, n.º 1 do Código Penal). Como refere António Jorge de Oliveira Mendes (O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, 1996, p. 38) existe em todas as comunidades um sentido comum, aceite por todos ou pelo menos pela maioria, sobre o comportamento que cada um deve adotar para que a vida em sociedade se processe com normalidade. «Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros». O comportamento ofensivo, que não se confunde com a infração de regras de educação ou cortesia («o direito penal, neste particular, não deve nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências»), surge quando é ultrapassado o mínimo de respeito a que correspondem aqueles limites (idem, p. 39), A doutrina e a jurisprudência ressaltam que as palavras e expressões têm de ser apreciadas no seu contexto situacional. Mesmo palavras comunitariamente tidas por obscenas ou soezes podem não ter o sentido ofensivo ou pejorativo que normalmente se lhes reconhece ditas em determinado contexto (cfr. José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, p. 630). «Do mesmo modo que um vocábulo linguístico só adquire sentido no contexto em que é utilizado, por maioria de razão a relevância penal de qualquer expressão só pode ser aferida contextualizadamente» (Acórdão do STJ de 13/03/2024, P. 253/21.0T9GDM.P1.S1 em www.dgsi.pt). Como o legislador não instituiu qualquer limite ou regra para definir a linha entre o que se considera e não considera ofensa à honra, cabe à jurisprudência fazer essa apreciação, fazendo uso de sensibilidade e bom senso para ativar o Direito e procurar nos princípios da fragmentariedade, da intervenção mínima e da proporcionalidade do direito penal, a insignificância e a adequação social das palavras pronunciadas (cfr. o Acórdão da Relação de Lisboa de 04/12/2019, P. 4477/14.9TDLSB.L1-3, em www.dgsi.pt). Ora, a jurisprudência vem entendendo que é próprio da vida em sociedade existir alguma conflitualidade entre as pessoas, que se traduz em animosidade e tem expressão ao nível da linguagem, o que pode revelar-se na utilização de palavras azedas, acintosas ou agressivas. «E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função» (cfr. o Acórdão da Relação do Porto de 12/06/2002, citado no Acórdão da Relação do Porto de 19/12/2007, P. 0715118; e Relação de Lisboa de 13/10/2020, P. 686/17.7PGLRS.L1-5 em www.dgsi.pt). Como se diz no Acórdão do STJ de 13/03/2024, supra citado, os crimes contra a honra são tipos particularmente submetidos à erosão dos tempos, sofrendo o desgaste da interação social, acrescendo que a linguagem, como forma de manifestação da liberdade de expressão, consente alguma margem de aspereza. No caso dos autos, está em causa a expressão “tonto”, que o arguido dirigiu ao demandante. Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Porto Editora, tonto tem os seguintes significados: «adj. 1 Que tem tonturas ou vertigens 2 perturbado do ponto de vista mental 3 aturdido 4 atónito 5 atrapalhado, perturbado 6 que não tem nexo ou significação; disparatado 7 que revela falta de reflexão 8 que tem ideias falsas sobre a realidade 9 leviano // n.m. 1 pessoa considerada insensata e/ou pouco inteligente 2 pessoa ingénua, a quem é fácil enganar e prejudicar». Por conseguinte, trata-se de uma expressão com vários significados, essencialmente depreciativos para a pessoa a quem se reporta. Quanto ao circunstancialismo em que a expressão foi dita, resulta da matéria de facto provada que tal sucedeu: - No decurso de uma diligência judicial; - O ofendido, advogado, exercia o mandato na respetiva ação, em representação dos Réus; - O arguido abeirou-se do ofendido e dirigiu-lhe a referida palavra de forma audível; - A expressão “tonto” foi proferida em frente do Tribunal, onde o demandante pratica a sua profissão e estava a atuar enquanto mandatário judicial, no decurso de diligencia judicial, à frente de Juiz, advogados colegas e oficial de justiça; - O arguido era autor na ação judicial no âmbito da qual decorria a diligência de inspeção ao local. As diligências judiciais caracterizam-se pela solenidade e formalismo, devendo imperar o respeito, correção e urbanidade entre todos os intervenientes. Neste contexto, a expressão assinalada tem um caráter acintoso, vexatório, diminutiva da consideração devida ao ofendido, que se encontrava no exercício das suas funções profissionais perante o Tribunal, pelo que se identifica claramente como ofensiva. O arguido invoca a existência de um clima de conflitualidade com o ofendido, à luz do qual a expressão poderia considerar-se socialmente aceitável. No entanto, não resulta da matéria de facto provada na sentença que a expressão tenha sido dita num ambiente informal, no quadro de uma discussão, no meio familiar, no círculo de amigos ou outro em que a mesma pudesse ser tida como socialmente adequada. Acresce que o arguido é licenciado, sendo funcionário público e empresário, pelo que não se vê que a expressão possa ser entendida como normal, atenta a sua formação e nível sócio-económico. Por outro lado, não tendo o recorrente procedido à impugnação ampla da matéria de facto, não é possível alterar a decisão de facto, nem considerar os factos (não provados) à luz dos quais este pretendia justificar a sua conduta. Nestes termos, o recurso deve ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida. DECISÃO Nestes termos, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar o recurso totalmente improcedente, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 (três) UC a taxa de justiça. Lisboa, 22 de outubro de 2024 Rui Poças Paulo Barreto Alda Tomé Casimiro |