Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
265/17.9T8OER.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FIANÇA
CESSAÇÃO DO CONTRATO
SANÇÃO PECUNIÁRIA
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário: 1- A fiança genérica ou “omnibus” será válida se, à data da sua prestação, e em relação aos débitos não constituídos, existem elementos que permitam inferir, com segurança, a origem, o prazo, os possíveis montantes e as relações entre os outorgantes, permissivas do enquadramento do crédito na fiança prestada.
2- Tendo a fiança sido prestada pela sócia da sociedade afiançada e, posteriormente, vindo aquela a perder tal qualidade de sócia, por ter cedido as suas quotas, não fica colocada em causa a fiança prestada, mantendo-se válida e eficaz.
3- No que respeita à denúncia, se o arrendatário pretende colocar termo ao contrato antes do final do prazo de duração inicial do mesmo ou da sua renovação, e não respeita a antecedência mínima para tanto, não deixa de se considerar o contrato cessado na data indicada pelo mesmo, mas fica obrigado ao pagamento da sanção pecuniária devida pela violação da obrigação de pré-aviso, calculada por referência ao valor da renda mensal.
4- O direito à indemnização prevista no art.º 1041º, nº 1, do Código Civil existe quando se verifique mora do locatário no pagamento das rendas, ainda que a cessação do contrato se fundamente em acto eficaz de revogação por parte de locatário, só sendo afastada quando o próprio locador opte pela cessação do contrato, invocando essa falta de pagamento para pedir a resolução do contrato de arrendamento.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

S., Ld.ª intentou acção declarativa com forma comum contra SL__, pedindo a condenação da R. no pagamento das seguintes quantias:
a) € 27.347,12, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos até integral e efectivo pagamento, e relativa a contrapartidas em dívida e correspondentes indemnizações de 50%;
b) € 11.816,64, a título de indemnização no valor igual a seis meses de contrapartidas, em virtude de a denúncia não ter respeitado o prazo do pré-aviso estabelecido no contrato;
c) € 5,000,00, a título do valor das obras realizadas no locado após desocupação.
Alega para tanto, e em síntese, que:
- Em 1/10/2012 celebrou com a sociedade “S.R., Lda.” e com a R. um contrato de cessão de exploração de duas fracções autónomas de que é locatária financeira, pelo prazo de três anos renovável automaticamente, com início em 1/10/2012, e contra o pagamento da contrapartida mensal de € 1.950,00 acrescida de IVA, tendo no momento da assinatura do contrato recebido da cessionária a quantia de € 3.000,00 a título de caução;
- Ficou aí estabelecido que a oposição à renovação poderia ser realizada por qualquer uma das partes, com pré-aviso de pelo menos seis meses antes do termo do contrato ou da renovação;
- Mais ficou estabelecido que a denúncia realizada pela cessionária antes do termo do período inicial ou da renovação seria objecto de indemnização, em valor igual a seis meses da contrapartida mensal;
- A R. outorgou nesse contrato na qualidade de fiadora e principal pagadora;
- Em 2/8/2013 foi acordada a redução da contrapartida mensal para € 1.650,00, acrescida de IVA, sob condição do cumprimento pontual de todas as obrigações, designadamente o pagamento da contrapartida impreterivelmente até dia oito do mês a que respeitasse;
- Em Fevereiro de 2015 a cessionária não liquidou o valor da contrapartida mensal, tendo a A. interpelado a mesma, por carta de 6/3/2015, para o pagamento dessa contrapartida acrescida de 50% pelo atraso, e mais lhe declarando que em razão desse incumprimento contratual a contrapartida mensal voltava a ser no valor mensal de € 1.969,44 acrescida de IVA;
- Em 23/3/2015 a A. recebeu uma carta da cessionária pela qual esta lhe comunicava a rescisão imediata do contrato, tendo a A. informado a cessionária e a R. que era devido o pagamento das contrapartidas mensais até final de Setembro de 2015, e sendo devolvido o valor da caução, nesse mês, sob condição de todos os equipamentos da A. se encontrarem nas devidas condições de funcionamento e de estarem liquidadas as despesas com água e electricidade;
- Em 11/9/2015 a A. enviou cartas registadas para a cessionária e para a R., interpelando para o pagamento das contrapartidas mensais vencidas e não pagas de Fevereiro a Abril, acrescidas da indemnização pelo atraso no pagamento, bem como para o pagamento das contrapartidas mensais devidas até Setembro, e bem ainda para o pagamento da quantia de € 5.000,00 relativa ao remanescente do valor de € 8.000,00 pago pelas obras realizadas para repor o locado no estado de conservação em que se encontrava no início do contrato, tudo no valor de € 27.423,52, nada tendo sido pago, e sendo que a carta dirigida à R. veio devolvida com a indicação de não reclamada.
Citada a R., apresentou contestação onde, em síntese, impugna a existência da condição para a redução da retribuição e a realização das obras, mais sustentando:
- a inexigibilidade de 50% das retribuições em caso de atraso no pagamento das mesmas, por assim não ter sido convencionado no contrato;
- o excesso da cláusula do contrato relativa à indemnização correspondente a seis meses de retribuições, por ter a A. assegurado novo contrato com terceiro, não existindo qualquer prejuízo decorrente da saída da cessionária;
- a nulidade da fiança por si prestada, por indeterminabilidade das obrigações que garante;
- a caducidade da fiança por si prestada, por ter deixado de ser sócia da cessionária;
- a sua falta de interpelação e o exercício abusivo do direito de crédito, por ter a A. aguardado um ano e dez meses após a resolução do contrato para propor a acção, e apenas contra a A., sem nunca a ter contactado previamente e fazendo com que não possa exercer qualquer direito de regresso, face à extinção da cessionária. Conclui pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.
A A. exerceu o contraditório quanto às excepções suscitadas pela R. na contestação, defendendo a improcedência das mesmas e concluindo como na P.I.
A A. apresentou ainda P.I. aperfeiçoada, na sequência de convite para tanto, concretizando a factualidade relativa à entrega do estabelecimento comercial instalado nas fracções, ao estado do mesmo e às obras realizadas.
A R. exerceu o contraditório quanto a tal articulado, concluindo como na contestação.
Em audiência prévia foi proferido despacho saneador, mais sendo identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, sem reclamações.
Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
Nestes termos e com tais fundamentos julgo a presente acção parcialmente procedente por provada e, em consequência condeno a Ré no pagamento à Autora das seguintes quantias:
a) condena-se a R.  no pagamento da quantia relativa a rendas em dívida de Janeiro a Setembro de 2015, no montante de € 1 650,00, acrescida dos acréscimos legais desde Abril de 2015, crescida de IVA correspondentes indemnizações de 50%,), acrescida dos respectivos juros de mora vencidos até 04.01.2017, calculados à taxa legal de 4% e dos vincendos até integral e efectivo pagamento;
b) condena-se a Ré ao pagamento de indemnização no valor igual a seis meses de renda, no montante € 1650,00 cada, com os acréscimos legais desde Abril de 2015 em virtude de a denúncia realizada pela “S.R., Lda.” não ter respeitado o prazo do pré-aviso estabelecido no contrato”.
A R. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem (com correcção dos lapsos de escrita):
A. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença de fls… dos autos, que julgou parcialmente procedente a acção intentada pela Recorrida e, nessa medida, condenou a Recorrente no pagamento: da quantia relativa a rendas em dívida de Janeiro a Setembro de 2015, no montante de € 1.650,00 acrescida dos acréscimos legais desde Abril de 2015, acrescida de Iva correspondentes indemnizações de 50%, acrescida dos respectivos juros de mora vencidos até 04.01.2017 calculados à taxa legal de 4% e dos vincendos até efectivo e integral pagamento e a título de indeminização no valor igual a seis meses de renda, no montante de € 1.650,00 cada, com o acréscimo legal desde Abril de 2015 em virtude da denúncia realizada pela “S.R., Lda.”
B. Salvo o devido respeito, entende a Recorrente que o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou de forma evidente as normas substantivas aplicáveis, operando um errado julgamento da causa, estribado numa errada apreciação da prova produzida, com efeito na decisão quanto à matéria de facto, decisão essa que inquinou a decisão final, bem como, sem prejuízo do acima exposto, sempre fez errada aplicação do direito.
C. Considerando que da motivação o Tribunal considerou o depoimento das testemunhas credível, coerente e assente em razão de ciência justificada
D. Pois bem deu o tribunal a quo como provados os factos que se seguem e que não poderiam ter sido dados como provados.
E. Relativamente à Caução “No momento de assinatura do contrato a “S.R., Lda. entregou à A. (…) a título de caução a quantia de € 3.900,00 (três mil e novecentos euros)
F. “Solicitou o pagamento de € 5.000,00 (cinco mil euros) relativo ao remanescente do valor pago pelas obras realizadas no locado no valor de € 8.000,00 (oito mil euros) descontando o valor de € 3.000,00 (três mil euros) entregue a título de caução.
G. Ora claramente não pode o Tribunal dar como provado que a caução entregue foi de € 3.900,00 e ao mesmo tempo dar como provado que foi descontado o valor de € 3.000,00 da caução.
H. O legal representante da A., PD__ : (Gravação nº 20200928110536_3888333_2871360) minutos 11:57 a 12:20 Juíza: Agora eu estou a fazer perguntas sobre o contrato, sobre as cláusulas do contrato que o senhor disse que assinou e que aceita estas cláusulas.
I. A R. (…) (Gravação nº 20201012141752_3888333_2871360) minutos 18:14 a 18:32 SL__: Uma questão relativamente à caução, é de € 3.900,00 conforme escrito no contrato e não de € 3.000,00 que tem sido mencionado. Minutos 1:30:33 a 1:30:50 Advogada: Olhando para a cláusula terceira n.º 3 do contrato confirma que recebeu este dinheiro? PD__ : Julgo que sim. 11:57 a 12:20
J. Confessando assim o A. que a caução entregue foi de € 3.900,00 e não de € 3.000,00. Confirmado ainda pela R. o valor de € 3.900,00, não podendo assim ser dado como provado que o A. descontou € 3.000,00 da caução teria sim que se ter concluído que o valor foi de € 3.900,00, dando-se como não provado o valor de € 3.000,00 a título de caução.
K. Devia assim o douto Tribunal ter dado como provados os seguintes factos, sendo que tais factos constam dos temas da prova
L. Que a 25 de Março de 2014 a R. deixou de ser sócia da “S.R., Lda.”, e que nunca foi gerente da sociedade., tal resulta do documento 1 junto com a contestação “certidão comercial” que a A. não impugnou.
M. Que a R. apenas teve conhecimento dos montantes em dívida, aquando da citação da presente acção, nunca tendo sido notificada para pagamento de qualquer quantia antes de tal data.
N. Apenas foi junto um documento quanto à interpelação da R. para pagamento das quantias em dívida, mais concretamente missiva datada de 11 de Setembro de 2015, junta com a petição inicial documentos 7 a 9;
O. Acontece que, resulta de tal documento que a R. não recebeu tal missiva, tendo a mesma sido remetida aos mandatários da A.
P. Quanto às declarações da R. (…) (Gravação nº 20201012141752_3888333_2871360) Minutos 47:53 a 48:50 Juíza: é dito aqui pela senhora que numa altura em que não era sócia, em momento algum a A., já depois da Senhora ter cessado a sua ligação à empresa, se alguma vez o Sr. PD__ veio falar consigo? SL__ (…): Ele nunca mais falou comigo sobre nada do bar. A única vez que eu voltei a falar com ele foi quando fui notificada em 2017, porque tinha um processo em tribunal e a primeira coisa que fiz foi ligar ao Sr. PD__ Uma questão relativamente à caução, é de € 3.900,00 conforme escrito no contrato e não de € 3.000,00 que tem sido mencionado. Minutos 49:09 a 49:34 Juíza: Em 8 de Setembro de 2015 muito antes de ter sido proposta a acção diz aqui que foi remetida uma carta para si através dos Drs. Advogados, mas não recebeu essa carta? SL__ (…): Desconheço, não recebi.
Q. Que o imóvel foi desocupado pela S.R., Lda. em Março de 2015.
R. Ora, foi transmitido à A. que não renovariam o contrato a 23 de Março de 2015, com efeitos imediatos conforme carta enviada e resposta datada a 1 de Abril de 2015, junta sob o documento 3 com a petição inicial.
S. Acresce ainda que logo no início do mês de Abril de 2015, já o imóvel se encontrava desocupado uma vez que o A. estava a efectuar remodelações no locado conforme documentos 10 a 10 L (facturas com data de Abril de 2015) juntos com o requerimento da A. com a referência 27335758 de 13 de Novembro de 2017
T. Que da Clausula 2ª do contrato de cessão de exploração resulta que em caso de denúncia a indemnização a pagar é em singelo correspondente a 6 meses, não acrescendo o valor das rendas até final do contrato.
U. Tal resulta da própria cláusula, ou seja, mesmo desocupando o locado antes de decorrido 6 meses seria devia a indemnização, mas não seriam devidas as rendas desses 6 meses, uma vez que a cláusula refere-se independentemente da data de desocupação do locado
V. Que o locado foi novamente objecto de cessão de exploração, imediatamente à saída da S.R., Lda., tendo novos locatários a partir de Julho de 2015.
W. Nesse sentido veja-se o depoimento de IaP__ (Gravação nº 20201012163016_3888333_2871360) minuto 26:35 a 26:54 IaP__: Quem pediu alteração da cor, foi o novo cliente que entrava. Advogada;: Não se lembra quem era o cliente se era um senhor ou uma senhora? IaP__: Era um senhor e uma senhora, imperceptível, ultimamente aparecia lá mais naquela altura, eu acho que uma vez ainda almocei, pedi almoço ao Senhor lá. Minuto 30:02 a 30:10 IaP__ – fizemos umas alterações nas colunas reforço na parede Advogada: Quem pediu isso? IaP__: Foi o novo cliente
X. Bem como o depoimento da testemunha GB__ (Gravação nº 20201012163016_3888333_2871360) minuto 17:43 17:52 Advogada: O Senhor disse que foi mais ou menos há 5 anos que o Sr. AR__ fechou as portas. Foi logo a seguir ao Sr. AR__ fechar as portas que abriu outra coisa? Foi muito tempo depois. GB__: Eu creio que foi 2 ou 3 meses, não foi mais do que isso.
Y. Que a A. teve conhecimento da saída da R. como sócia da sociedade em Outubro de 2013.
Z. Que com a saída da R. como sócia da sociedade S.R., Lda. a fiança caducou.
AA. Tal tem suporte na prova documental junta aos autos nomeadamente o documento 1 junto pela R. com a referência 27488719 de 29 de Novembro de 2017 o documento 1 junto pela A. com a referência 27593 de 11 de Dezembro de 2017 do qual consta que a R. havia informado o Legal representante da A. da sua saída.
BB. Não obstante de a cessão de quotas estar registada em Março de 2014, já em 2013 a R. preparava para ceder as quotas
CC. No mail da R. para o legal representante da A, datado de 2-10-2013 consta que: “Boa Tarde PD__, Diga-me pf qual a melhor forma pare retirar o meu nome do contrato de arrendamento, uma vez que vou deixar de ter qualquer coisa a ver com a empresa S.R., Lda. Prefere carta de rescisão de contrato e depois faz novo contrato com AR__ ou pode já haver alteração?
DD. Respondeu o legal representante da A. a 3 de Outubro de 2013 nos seguintes termos: “Bom dia SL__, Qual a alternativa para o fiador?
EE. A 5 de Novembro de 2013 o legal representante remete mail à R. com o seguinte:
FF. Bom dia SL__. Já regressei. Em anexo envio a factura de Setembro e já a de Outubro. Quando tiver as coisas resolvidas com o AR__ e na posse da acta, diga-me para fazermos as alterações contratuais que solicitou
GG. A 2 de Setembro de 2014, a R. envia novo mail ao legal representante da A. no qual indaga “Desculpe incomodar mas no que respeita ao contrato do sabura, pf marque com o AR__ e com o RP__ para procederem à alteração em eu deixar de ser fiadora desse contrato de arrendamento.
HH. Das declarações da R. SL__ (…) (Gravação nº 20201012163016_3888333_2871360) Minuto 23:42 a 23:50 SL__ (…): Eu fazia parte da empresa e depois fui fiadora porque estava a ser fiadora da uma empresa que era minha não é, enquanto fazia parte da empresa Minuto 29:50 a 30:13 SL__ (…): Eu sai em 2013, em 2014 e 2015 foram outras pessoas que tiveram no meu lugar na empresa S.R., Lda.. Teria ficado um deles, o RP__ como fiador, mas que nunca alteraram efectivamente esse contrato Minuto 42:50 a 43:05 Juíza: Parte da quota para o Sr. AR__ e a outra parte para o Sr. RP__. SL__ (…): Exacto seria o RP__ a ficar tanto na empresa como na fiança do contrato Minuto 43:10 a 43:38 SL__ (…): Foi com o conhecimento do Sr. PD__ da S., Ld.ª, que sempre disse que sim e que se mostrou disponível, mas depois nunca realizou inclusive temos e-mails, troca de e-mails nesse sentido. Onde eu envio a documentação do Sr. RP__ e onde o Sr. PD__ sempre se mostra disponível para tal Minuto 1:41:47 a 1:42:06 Juíza: Neste segmento. Para fazer todas as alterações contratuais que solicitou refere-se a quê? Exactamente a quê? SL__ (…): Aqui eu iria sair tanto da empresa como de fiadora.
II. Do depoimento da testemunha RP__ (Gravação nº 20201109161903_3888333_2871360) Minuto 9:14 a 9:47 Advogada: O Sr. ia assumir as mesmas funções que a SL__? RP__: Sim Advogada: E obrigações RP__: Sim Advogada: Sabia ou foi-lhe comunicado que a SL__ era fiadora desse contrato RP__ : Sim Advogada: Sabia? RP__: Sim Advogada: Sabia que ela era fiadora e relativamente a esse facto que ela era fiadora o que é que vocês acordaram? RP__: Que ela ia sair que ia sair em tudo, até como fiadora. Advogada: Até como fiadora? RP__: Sim Minuto 10:30 a 10:32 Advogada: Quem ia ser o fiador? RP__: Ia ser eu
JJ. Dos factos não provados consta da sentença que não se deu por provado que não se encontrava no estado de conservação que se verificava à data da entrega, esta coincidente com a data de início do contrato. Ora por maioria de razão teria que ser dado como não provado: Que a A. tinha gasto € 8.000,00 referente a obras e que a caução entregue foi para suportar parcialmente as obras.
KK. Ora, resulta evidente, estamos em crer, que a R. não deveria ser condenada no pagamento das quantias constantes da sentença. Reportando aos factos que deveriam ter sido dados como provados facilmente se verifica, também, que não se podem compreender as conclusões retiradas em sede da sentença
LL. O que foi corroborado, não só pelas declarações e prova testemunhal mas também pelos documentos resulta que a R. deveria ter sido absolvida do pedido
MM. Considerou o douto Tribunal que não está provado o estado do imóvel à data da entrega, quer no momento da sua desocupação, inexistindo qualquer meio de prova que permitisse aferir da desconformidade apontada pela A.
NN. Todavia, resulta da sentença que tais obras realizadas pela A. devam ser suportadas pelo menos parcialmente pelo valor da caução entre pela S.R., Lda.
OO. Ora, tal não faz qualquer sentido, pois não estando provado que a A. tenha feito obras pelo estado em que o imóvel se encontrava à data da desocupação, nem estando provado o valor despendido, nenhuma quantia terá que ser suportada, devendo a caução ser restituída.
PP. Nem tem fundamento legal que a liquidatária da S.R., Lda. venha a receber qualquer quantia, quanto muito a quantia entregue a título de caução seria para pagamento das quantias em dívida decorrentes do contrato.
QQ. Não se compreende que o douto Tribunal tenha condenado a R. no pagamento de rendas desde Janeiro a Setembro de 2015, desde logo porque consta provado que a S.R., Lda. cumpriu com o pagamento das rendas até Janeiro de 2015, veja-se 7.º parágrafo da matéria dada como provada não constando qualquer prova que tal renda não haja sido paga.
RR. Andou mal o Tribunal a quo ao condenar o pagamento da renda de Janeiro de 2015, juros e indemnização.
SS. Por outro lado, não pode o Tribunal a quo condenar a R. no pagamento de rendas de Janeiro a Setembro de 2015, acrescida na indemnização de 6 meses.
TT. Ficou provado e considerou-se que o contrato foi resolvido a 23 de Março de 2015, através de missiva enviada à A. pela S.R., Lda., tendo o contrato cessado os seus efeitos em tal data, não se podendo exigir o pagamento de rendas desde a cessação do mesmo até final do contrato.
UU. Aliás, o contrato estava extinto antes de ser intentada a presente acção, não sendo possível requerer rendas que deixaram de se vencer com a cessação do contrato.
VV. Mais em todas as missivas de interpelação da A. são peticionadas as rendas de Fevereiro de 2015 a Abril de 2015 acrescidas dos 50%.
WW. Estando resolvido o contrato, e recebido o locado apenas serão devidas as rendas vencidas, não tendo o senhorio direito às rendas que se venceriam futuramente se o contrato se mantivesse em vigor, nem a indemnização correspondente ao valor global de tais rendas até final do contrato. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo n.º 758/13.7TVPRT.P1 de 12-01-2016 em www.dgsi.pt
XX. A cumulação da disponibilidade do locado com o recebimento de rendas futuras corresponderia à total exoneração da prestação a cargo do senhorio, com a simultânea manutenção da contraprestação da outra parte que teria perdido os seus direitos decorrentes do contrato extinto e continuaria responsável pelo pagamento de rendas futuras, o que é manifestamente excessivo e contrário ao princípio da boa fé. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo n.º 758/13.7TVPRT.P1 de 12-01-2016 em www.dgsi.pt
YY. Considerando ainda que o locado foi imediatamente arrendado Sem conceder a cláusula aposta no contrato de arrendamento que, caso pretenda denunciar o contrato terá como obrigação pagar a totalidade das rendas pelo período fixado para o contrato é nula por contrária à ordem pública, artigo 280.º n.º 2 do CC
ZZ. Ademais não se provou qualquer dano ao senhorio tendo este celebrado novo contrato imediatamente à desocupação do local em Março de 2015. Não sendo devidas as rendas de Janeiro a Setembro de 2015, em tempo algum seriam devidos os juros de mora e 50% de atraso no pagamento das rendas.
AAA. Acresce ainda que, já sendo ressarcido o senhorio com os 50% sobre o valor da renda, não são devidos juros de mora desde a data de vencimento das rendas.
BBB. Andou mal em condenar a R. no pagamento de 6 meses de renda desde Abril de 2015, quando deu-se por provado que a denúncia ocorreu em Março de 2015, pois, nem se fez prova que hajam tido prejuízos que determinassem o pagamento de uma indemnização.
CCC. Por cautela e tal montante sendo devido em tempo algum acresceria o IVA, como não poderá ser ignorado e para efeitos de IVA, a tributação de uma determinada operação pressupõe a existência de uma contraprestação, associada a uma transmissão de bens ou a uma prestação de serviços, enquanto expressão da actividade económica de cada operador económico.
DDD. Sendo o Iva um imposto sobre o consumo, directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006 e as indemnizações apenas sancionarem a lesão de um interesse, sem carácter remuneratório, porque não remuneram qualquer operação, antes se destinam a ressarcir um dano, não são tributáveis em IVA, na medida em que não têm subjacente uma operação tributável.
EEE. No que se reporta à fiança para além de se entender que a mesma é nula por ser indeterminável, entende-se igualmente que havia caducado a fiança, como defendido por Henrique Mesquita, Fiança, CJ XI, IV, pg 23 a 29 defende que sempre que um sócio de uma sociedade declare que garantirá como fiador o cumprimento das obrigações da sociedade a que pertence venha a assumir no futuro tal declaração deve ser interpretada mesmo que nela não se contenha essa restrição ou ressalva, no sentido de que a garantia prestada abrange apenas as obrigações que venham a ser assumidas pela devedora enquanto o garante for sócio dela e tal só assim não será se houver inequívoca manifestação de vontade no sentido de a declaração valer mesmo para as obrigações que a sociedade venha a assumir depois do sócio deixar de o ser, importando a cessação da qualidade de sócio a caducidade automática da garantia prestada;
FFF. Evaristo Mendes em Garantias Bancárias, pp 457-458 também vai no mesmo sentido que Henrique Mesquita:
GGG. “Em relação às garantias prestadas pelos sócios a favor dos credores da respectiva sociedade, afigura-se-me natural uma interpretação da declaração negocial no sentido de que os mesmos pretendem responsabilizar-se apenas pelas obrigações da sua sociedade, ou seja, contraídas por esta também no seu interesse, enquanto membros ou titulares de participação social da mesma.
HHH. Não foi a R. interpelada enquanto fiadora o que determina que não possa ser responsabilizada pelo pagamento das quantias em dívida, dispondo o artigo 1041.º n.º 5 e 6 do Código Civil que caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora, nos termos do n.º 2, o senhorio deve, nos 90 dias seguintes notificar o fiador da mora e das quantia em dívida. Apenas pode o senhorio exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito após efectuar a notificação prevista no n.º 5.
III. Ora, o senhorio não notificou a R. nos 90 dias seguintes, nem posteriormente, apenas com a acção judicial veio a R. tomar conhecimento que haviam quantias em dívida.
JJJ. Pelo que, não poderá ser exigido à R. enquanto fiadora o pagamento das quantias peticionadas.
A A. apresentou alegação de resposta, sustentando a manutenção da sentença recorrida.
*
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões (organizadas pela forma lógica como devem ser conhecidas, e não pela ordem sequencial que consta das referidas conclusões), prendem‑se com:
a) A alteração da matéria de facto;
b) A validade da fiança prestada pela R. (por referência às invocadas nulidade e caducidade)
c) A verificação da obrigação de pagamento das contrapartidas mensais, após a cessação dos efeitos do contrato;
d) A verificação da obrigação de indemnizar prevista contratualmente;
e) As consequências do atraso no pagamento das contrapartidas mensais;
f) A imputação da caução;
g) A inexigibilidade da obrigação da R. por falta de interpelação.
*
Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto (procede-se à numeração em falta, corrigem-se os lapsos de escrita e os erros de transcrição e referenciação, e eliminam-se as referências a elementos estranhos à factualidade elencada, tudo nos termos dos art.º 662º, nº 1 e 607º, nº 4, ex vi art.º 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil):
1. Em 01.10.2012 a A., representada pelo sócio gerente PD__., celebrou com “S.R., Lda.”, representada pelo sócio gerente AR__ R., um contrato de cessão de exploração das fracções designadas pelas letras A e B sitas na Rua das Janelas Verdes (…).
2. A R. outorgou tal contrato na qualidade de fiadora e principal pagadora obrigando-se nos exactos seguintes termos: “OS FIADORES E PRINCIPAIS PAGADORES declaram que renunciam ao benefício da excussão prévia e assumem solidariamente com o Inquilino a obrigação do fiel cumprimento de todas as cláusulas deste contrato, seus aditamentos legais e suas renovações até à efectiva restituição livre, devoluto e nas condições estipuladas, ainda que haja alteração da renda”.
3. Consta da cláusula 2ª do contrato, quanto à data do início, prazo e renovação, o seguinte “O prazo da cessão de exploração  é de TRÊS ANOS e tem o seu início em 01/10/2012 (um de Outubro do ano de dois mil e doze), renovável automaticamente por períodos iguais, caso nenhum das partes se oponha à renovação com pré-aviso de pelo menos SEIS MESES, sendo que qualquer denúncia por parte dos inquilinos para antes do termo de qualquer dos períodos, inicial ou de renovação, será objecto de indemnização ao senhorio no valor igual a seis meses da renda vigente, independentemente do prazo e quantias legalmente exigíveis à data da desocupação do locado”.
4. Acordaram as partes que a contrapartida mensal pela cessão, no valor de € 1.950,00, devia ser paga pela “S.R., Lda.” até ao dia oito do mês a que dissesse respeito.
5. No momento da assinatura do contrato, a “S.R., Lda.” entregou à A., a título de caução, a quantia de € 3.900,00.
6. Em 02.08.2013, a A. e a “S.R., Lda.” acordaram na redução do valor da contrapartida mensal inicialmente acordada.
7. Até Janeiro de 2015 a “S.R., Lda.” cumpriu pontualmente as obrigações estabelecidas no contrato.
8. Em 06.03.2015, a A. enviou uma carta para “S.R., Lda.” (para a morada da Rua das Janelas Verdes (…)), com o seguinte teor:
Na sequência do vosso pedido de baixar o valor da cessão de exploração, na altura em 1.950€+IVA e numa postura de colaboração da nossa parte, acordámos reduzir esse valor para € 1.650€+IVA, em reunião de 2 de Agosto de 2013. Essa redução teve como pressuposto o cumprimento rigoroso das vossas obrigações, incluindo o pagamento impreterivelmente até o dia 8 de cada mês. O que não tem acontecido, mas que temos tolerado.
À data de hoje encontra-se ainda pendente o pagamento da renda do mês de Fevereiro, ao qual acresce o valor de 50 % pelo atraso, tendo V. Exas indicado o dia 25 de Fevereiro de 2015 para a sua liquidação. O que não fizeram, não efectuando qualquer contacto para novo acordo. Consideramos estes incumprimentos intoleráveis, sem qualquer justificação ou aviso da vossa parte.
Visto não terem cumprido os pressupostos que sustentaram a diminuição o valor da renda passará para ao valor anteriormente acordado, € 1950+IVA.
Não se enquadra, igualmente não efectuar a actualização anual da renda, com até agora. O factor de actualização cifra-se em 2015 nos 0,9969%, ficando assim o valor da cessão de exploração, a partir de Março de 2015, em 1969,44€+IVA.
O valor total da dívida ascenderá, assim, no dia 8 de Março de 2015, a 5.466,66€ correspondentes a:
Cessão de Exploração Fevereiro 2015+IVA=1.650€+IVA=2.209,5€
Atraso Cessão de Exploração Fevereiro 2015+IVA=825€+IVA=1014,75€.
Cessão de exploração Fevereiro 2015+IVA=1.969,44€+IVA=2.422,41€”.
9. Em 23.03.2015 a A. recebeu uma carta assinada pela gerência da sociedade “S.R., Lda.”, pela qual informaram que rescindiam o contrato nessa data (23.03.2015).
10. Em 01.04.2015, a A. respondeu por carta, enviada em três vias para a sociedade “S.R., Lda.” (para a morada da Rua das Janelas Verdes (…)), para AR__ R. (para a morada da Rua Gonçalves Crespo (…)) e ainda para a R. (para a morada da Rua Nuno Álvares Botelho (…)) com o seguinte teor:
Acuso a recepção da vossa carta de 23 de Março de 2015 a anunciar a não renovação do contrato de cessão de exploração prevista para 1 de Outubro de 2015, cessando assim o contrato a 30 de Setembro de 2015.
Serão assim devidos os pagamentos até ao mês de Setembro de 2015, inclusive. Nessa data, e estando todas as condições reunidas e pagamentos efectuados, inclusive água e electricidade, e a devolução, mas devidas condições de funcionamento, dos equipamentos nossa propriedade, será devolvida a caução.
O valor total da dívida ascende, no dia de hoje, a 9.100,27 € (…)” e conforme tabela inserta na carta.
11. Os valores indicados na carta identificada em 10. não foram liquidados.
12. Em 11.09.2015 a A. enviou três cartas registadas com aviso de recepção, endereçadas respectivamente à sociedade “S.R., Lda.” e à R. (ambas para a morada da Rua Bernardim Ribeiro (…)) e a AR__ R. (para a morada da Rua Gonçalves Crespo (…)), a pedir o pagamento do valor das contrapartidas vencidas e não pagas relativas aos meses de Fevereiro, Março e Abril de 2015, acrescido de IVA, e a correspondente indemnização pelo atraso no pagamento, acrescido de IVA, o que naquela data totalizava € 10.311,47.
13. Nas mesmas cartas solicitou ainda o pagamento de € 12.112,05, relativo às contrapartidas devidas até final do mês de Setembro e IVA, em resultado da rescisão do contrato.
14. Solicitou o pagamento de € 5.000,00, relativo ao remanescente do valor pago pelas obras realizadas no locado no valor de € 8,000,00, descontando o valor de € 3.000,00 entregue a título de caução. (alterado, nos termos adiante decididos)
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Na sentença recorrida considerou-se ainda como não provado que:
a) Face à dificuldade no cumprimento pontual do contrato, a “S.R., Lda.” requereu à A. a redução do valor da contrapartida mensal inicialmente estabelecida no contrato;
b) Ficou claramente assumido entre as partes que a condição para a redução da contrapartida mensal era o cumprimento pontual de todas as obrigações, designadamente o pagamento da contrapartida impreterivelmente até ao dia oito do mês a que respeitasse;
c) [o envio da carta identificada em 8. dos factos provados ocorreu] na sequência do incumprimento contratual correspondente à não liquidação pela “S.R., Lda.” do valor da contrapartida mensal de € 1.650,00, acrescida de IVA, em Fevereiro de 2015;
d) O locado à data da desocupação pela “S.R., Lda.” não se encontrava no estado de conservação que se verificava à data da entrega, esta coincidente com a data do início do contrato.
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Da alteração da matéria de facto
Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 196-197):
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
E, mais adiante, afirma (pág. 199-200) a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 770) afirmam que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objecto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões (art. 635º)”, mais afirmando que “relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder apresentar a respectiva transcrição”.
E, do mesmo modo, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29/10/2015, relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”.
Por outro lado, e impondo-se a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há-de a mesma reportar-se, em primeira linha, ao conjunto de factos constitutivos da causa de pedir e das excepções invocadas. É que, face ao disposto no nº 1 do art.º 5º do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto tem por objecto, desde logo, os factos essenciais alegados pelas partes, quer integrantes da causa de pedir, quer integrantes das excepções invocadas. Todavia, e porque do nº 2 do mesmo art.º 5º resulta que o tribunal deve ainda considerar os factos instrumentais, bem como os factos complementares e concretizadores daqueles que as partes hajam alegado, e que resultem da instrução da causa, daí decorre que na decisão da matéria de facto devem esses factos ser tidos em consideração.
Tal não significa, no entanto, que a decisão da matéria de facto (provada e não provada) deve comportar toda a matéria alegada pelas partes e bem ainda aquela que resulte da prova produzida, já que apenas a factualidade que assuma juridicidade relevante em razão das questões a conhecer é que deve ser objecto dessa decisão.
Isso mesmo enfatizam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 721),  quando explicam que o juiz da causa deve optar “por uma descrição mais ou menos pormenorizada ou concretizada, de acordo com as necessidades do pleito, desde que seja assegurada uma descrição natural e inteligível da realidade que, para além de revelar o contexto jurídico em que se integra, permita a qualquer das partes a sua impugnação”. E mais explicam (pág. 722) que “o regime consagrado no CPC de 2013 propugna uma verdadeira concentração naquilo que é essencial, depreciando o acessório, sendo importante que o juiz consiga traduzir em linguagem normal a realidade apreendida, explicitando, depois, os motivos que o determinaram, com destaque para a explanação dos factos instrumentais que o levaram a extrair as ilações ou presunções judiciais”.
Assim, e como tal delimitação deve estar igualmente presente na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/2017, relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt, quando conclui que “o princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo”, e bem ainda que “nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir”), só há lugar à apreciação dos pontos indicados como impugnados na medida em que, não só devam constar do elenco de factos provados e não provados, no respeito pelo disposto no art.º 5º, nº 1 e nº 2, al b), do Código de Processo Civil, mas igualmente correspondam a factos com efectivo interesse para a decisão do recurso.
Por outro lado, e a respeito da enunciação dos factos instrumentais, decorre do nº 4 do art.º 607º do Código de Processo Civil que os mesmos não carecem de ser discriminados no elenco de factos provados, mas apenas referidos na medida das ilações que forem tiradas dos mesmos, para a demonstração dos factos essenciais alegados pelas partes.
Isso mesmo explicam igualmente António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 718‑719), afirmando a necessidade de enunciação dos “factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as excepções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a acção ou a excepção proceda”, bem como a necessidade de “enunciação dos factos concretizadores da factualidade que se apresente mais difusa” (e sendo que “a enunciação dos factos complementares e concretizadores far-se-á desde que se revelem imprescindíveis para a procedência da acção ou da defesa, tendo em conta os diversos segmentos normativos relevantes para o caso”), mas afirmando igualmente que, quanto aos factos instrumentais, “atenta a função secundária que desempenham no processo, tendente a justificar simplesmente a prova dos factos essenciais, para além de, em regra, não integrarem os temas da prova, nem sequer deverão ser objecto de um juízo probatório específico”, já que “o seu relevo estará limitado à motivação da decisão sobre os restantes factos, designadamente quando a convicção sobre a sua prova resulte da assunção de presunções judiciais”.
Revertendo tais considerações para o caso concreto, constata-se que a R. deu cumprimento ao referido ónus de especificação, quer na sua vertente primária de delimitação do objecto do recurso (identificando nas conclusões da sua alegação a matéria que deve passar a constar dos factos provados, bem como os pontos que devem ser excluídos do elenco desses factos provados), quer na sua vertente secundária (de indicação dos meios de prova que conduzem ao resultado pretendido e, no que respeita à prova gravada, com suficiente identificação das passagens das gravações que entende conduzirem às alterações pretendidas).
Assim, é em relação à factualidade indicada nas conclusões E., F., L., Q., V. e Y que há que conhecer desta parte do recurso relativa à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Já no que respeita às conclusões M., T. e Z., torna-se manifesto que não se está perante matéria de facto, mas antes perante conclusões de índole jurídica a retirar da factualidade apurada (relacionadas com a interpelação da R., com o direito ao recebimento das contrapartidas até final de Setembro de 2015 e com a caducidade da fiança), pelo que não devem figurar no elenco de factos provados, mas antes ser objecto de apreciação aquando do conhecimento das restantes questões acima elencadas.
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Relativamente à matéria dos pontos 5. e 14. dos factos provados (que correspondem aos reproduzidos nas conclusões E. e F.), entende a R. que, estando confessado pela A. (através do seu representante, no depoimento de parte prestado na audiência final) que o valor recebido a título de caução foi o de € 3.900,00 identificado no ponto 5., não podia ficar a figurar no ponto 14. que o valor que a A. considerou descontado no valor das obras que alegou ter efectuado foi de € 3.000,00.
A questão coloca-se em dois patamares distintos. Com efeito, não obstante o alegado pela A. no art.º 8º da P.I., não sofre qualquer controvérsia que a matéria do ponto 5. está correcta, quanto à indicação do valor de € 3.900,00 como tendo sido aquele entregue pela sociedade cessionária à A., porque resulta do nº 3 da cláusula 3ª do contrato de cessão de exploração (documento 1 junto com a P.I.), confirmada pelas declarações da R. e do representante da A., prestadas na audiência final. Mas igualmente não sofre qualquer controvérsia que nas cartas da A. enviadas em 11/9/2015 (identificadas no ponto 12. dos factos provados, e que com o teor que consta dos documentos 7 a 9 juntos com a P.I.) esta referiu estar a considerar, nos cálculos que aí apresentou, o desconto de “€ 3.000,00 (…) entregue a título de caução”. Pelo que, logicamente, concluía que a dívida que respeitava às obras ascendia a € 5.000,00, na medida em que declarava ter pago pelas mesmas € 8.000,00.
Ou seja, embora seja manifesto que a A. devia ter considerado o valor de € 3.900,00, e não apenas o valor de € 3.000,00, não deixa de ser verdade que a A. solicitou à R. (e aos demais destinatários das cartas), não só os valores identificados em 12. e 13. dos factos provados, mas igualmente o valor de € 5.000,00 identificado em 14. dos factos provados, considerando (erradamente) que o valor que lhe tinha sido entregue a título de caução havia sido de € 3.000,00. Mas como isso não significa que nesse mesmo ponto 14. esteja afirmado que o valor entregue à A. a título de caução não tenha sido aquele identificado no ponto 5. (€ 3.900,00), mas o de € 3.000,00, não há que eliminar tal ponto 14. do elenco dos factos provados. Todavia, e para total clareza da factualidade em questão, torna-se necessário acrescentar a tal ponto 14. que essa solicitação ocorreu nas mesmas cartas identificadas em 12., reproduzindo o seu teor, na parte que aqui releva.
Assim, o ponto 14. passa a ter a seguinte redacção:
14. Nas mesmas cartas identificadas em 12. a A. solicitou o pagamento de € 5.000,00, “referente ao remanescente do valor pago pelas obras realizadas no locado no montante de € 8,000,00 (…) descontando o valor de € 3.000,00 (…) entregue a título de caução”.
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Mais pretende a R. que se dê como provado que em 25/3/2014 deixou de ser sócia da sociedade cessionária, e que nunca foi gerente da mesma (conclusão L.), e bem ainda que a A. teve conhecimento dessa saída da R. como sócia da sociedade cessionária, em Outubro de 2013 (conclusão Y.).
No art.º 57º da contestação a R. alegou que o registo da cessão da sua participação no capital social da cessionária ocorreu em 25/3/2014, mais tendo alegado (art.º 58º) que nessa altura entrou em contacto com a A. para que o contrato fosse alterado, no sentido de deixar de ser fiadora, uma vez que já não estava ligada à sociedade cessionária, e tendo recebido da A. a informação que iria proceder à alteração (art.º 59º).
O registo em questão está demonstrado pela certidão do registo comercial junta com a contestação como documento 1, do mesmo modo que o conhecimento, pela A., da cessão de quotas pela R. resulta da troca de mensagens de correio electrónico a que se reportam os documentos juntos com os requerimentos de 29/11/2017 (da R.) e de 11/12/2017 (da A.).
Assim, constata-se que em 2/10/2013 a R. comunicou ao gerente da A. (PD__.) que “vou deixar de ter qualquer coisa a ver com a empresa S.R., Lda. Prefere carta de rescisão de contrato e depois faz novo contrato com o AR__ ou pode já haver alteração?”, tendo no dia seguinte recebido, em resposta, a questão sobre quem era a “alternativa para fiador”.
Mais se constata que em 5/11/2013 o referido gerente da A. comunicou à R. que “quando tiver as coisas resolvidas com o AR__ e na posse da acta, diga-me para fazermos as alterações contratuais que solicitou”.
Ou seja, não só a A. teve conhecimento, logo em Outubro de 2013, que a R. iria deixar de ser sócia da cessionária, como respondeu afirmativamente à solicitação da mesma para deixar de ser fiadora no contrato de 1/10/2012, já que lhe declarou aceitar fazer “as alterações contratuais que solicitou”, quando a cessão de quotas estivesse formalizada.
Assim, e porque tais factos relevam para o conhecimento da excepção de caducidade da fiança, importa aditar à factualidade provada os dois pontos seguintes:
15. Em Outubro de 2013 a R. deu conhecimento à A. de que ia deixar de ser sócia da sociedade “S.R., Lda.”.
16. Com data de apresentação de 25/3/2014 foi inscrita no registo comercial a transmissão da quota da R. de € 4.000,00 no capital social da sociedade “S.R., Lda.”, por divisão da mesma em duas quotas, uma de € 1.500,00, cedida a AR__ R., e uma de € 2.500,00, cedida a RF., respectivamente.
Já no que respeita à afirmação de que a R. nunca foi gerente da sociedade cessionária, tal factualidade não apresenta qualquer relevo para o conhecimento das questões suscitadas pelo recurso da R., na medida em que a factualidade que a mesma alegou, com relevo para o conhecimento da questão relacionada com a caducidade da fiança, prende-se tão só com a sua posição de sócia da sociedade cessionária.
Pelo que, nesta parte, não há que efectuar qualquer aditamento ao elenco de factos provados.
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Por último, pretende a R. que se dê como provado que o imóvel (melhor dizendo, o estabelecimento instalado nas duas fracções autónomas) foi desocupado pela cessionária (a sociedade “S.R., Lda.”) em Março de 2015 (conclusão Q.) e que foi novamente objecto de cessão de exploração, imediatamente a seguir à saída dessa sociedade cessionária, tendo novos cessionários a partir de Julho de 2015 (conclusão V.)
Quanto à desocupação em Março de 2015, é a própria A. que alega tal facto na sua P.I. aperfeiçoada (art.º 23º a 26º), embora qualificando tal desocupação como uma “fuga”, por si detectada e ocorrida entre a data da carta que lhe foi enviada pela sociedade cessionária (em 23/3/2015) e momento (não concretizado) do mês de Abril em que se deslocou ao estabelecimento e constatou não haver vestígios da exploração, tendo mudado a fechadura. E como em 4/4/2015 já estava a adquirir materiais de construção para realizar intervenções nas fracções onde está instalado o estabelecimento (assim o demonstra a sua alegação dos art.º 32º e 33º da P.I. aperfeiçoada, conjugada com o teor da factura a que corresponde o documento 10 junto com esse mesmo articulado), as regras da experiência comum permitem concluir que a desocupação do estabelecimento ocorreu no final de Março de 2015.
Assim, e porque tal facto assume relevância para o conhecimento das questões acima elencadas que se prendem com as obrigações pecuniárias da R. importa aditar um novo ponto ao elenco de factos provados, com a seguinte redacção:
17. O estabelecimento foi desocupado pela sociedade “S.R., Lda.” no final de Março de 2015.
Quanto à existência de novos cessionários, a partir de Julho de 2015, em 2/9/2019 a A. juntou cópia de um contrato de cessão de exploração outorgado em 10/9/2015, em tudo idêntico àquele referido no ponto 1. dos factos provados, mas tendo por cessionária uma outra sociedade comercial. E da cláusula 2ª desse contrato resulta que a cessão de exploração em questão tem o seu início em 1/10/2015.
Os depoimentos das testemunhas IaP__ e GB__, na parte em que se pronunciaram sobre a nova exploração do estabelecimento, depois da sociedade “S.R., Lda.” ter desocupado o mesmo (no final de Março de 2015), são demasiado vagos para a afirmação de que tal nova exploração foi iniciada em Julho de 2015, desde logo não se logrando obter explicação para a circunstância de, a ser assim, a A. só começar a receber a contrapartida dessa exploração a partir de 1/10/2015 (de acordo com o referido contrato outorgado em 10/9/2015).
Ou seja, apenas é possível dar como provado que o estabelecimento foi objecto de novo contrato de cessão de exploração, após ter sido desocupado, com início em 1/10/2015.
Assim, adita-se à factualidade provada o seguinte ponto:
18. Após ter sido desocupado o estabelecimento foi objecto de novo contrato de cessão de exploração, celebrado em 10/9/2015 entre a A. e outra sociedade comercial, e iniciando-se os efeitos do mesmo em 1/10/2015.
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Em suma, procedem as conclusões do recurso da R. no que respeita à alteração do ponto 14. dos factos provados e ao aditamento dos quatro pontos acima identificados ao elenco de factos provados, mantendo-se, no mais, a decisão do tribunal recorrido sobre a factualidade provada, com as alterações de redacção já introduzidas anteriormente.
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Da validade da fiança
Não sofre qualquer controvérsia que a fiança de obrigações futuras e indetermináveis é nula, face ao disposto no nº 1 do art.º 280º do Código Civil. Isso mesmo decorre, há muito, do AUJ 4/2001 (publicado no D.R. 57/2001, série I-A, de 8/3/2001), em cujo sumário se pode ler que “é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha”.
Todavia, a indeterminabilidade do objecto da fiança não se confunde com a falta de determinação desse mesmo objecto, no momento de constituição da fiança.
Isso mesmo vem referindo o Supremo Tribunal de Justiça, como no acórdão de 19/12/2006 (relatado por Sebastião Póvoas e disponível em www.dgsi.pt), quando conclui que:
1) A determinabilidade do objecto negocial afere-se no apurar se o mesmo pode ser concretizado inicial ou posteriormente, com apelo a critérios negociais ou legais, sendo que é nulo o negócio jurídico absolutamente indeterminado e indeterminável.
2) O “distinguo” entre fiança geral e fiança “omnibus”, ou genérica, está em que aquela é prestada para todas as obrigações do devedor principal, decorrentes de qualquer causa ou qualquer título, enquanto a fiança genérica, ou “omnibus”, garante as obrigações futuras resultantes de certa ou certas relações negociais.
3) A fiança “omnibus” será válida se, à data da sua prestação, e em relação aos débitos não constituídos, existem elementos que permitam inferir, com segurança, a origem, o prazo, os possíveis montantes e as relações entre os outorgantes, permissivas do enquadramento do crédito na fiança prestada”.
Do mesmo modo, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 24/9/2015 (relatado por Maria Manuela Gomes e disponível em www.dgsi.pt), conclui-se que “sendo possível a determinação do seu objecto, com base em critérios estabelecidos pela lei ou pelas partes, não padece a fiança do vício de indeterminabilidade gerador da sua nulidade”, para tanto se afirmando que a jurisprudência e a doutrina vêm entendendo “que o conteúdo da prestação deve ser determinado ou determinável, isto é, impõe-se que esteja determinado, desde a celebração do contrato, tudo aquilo que o devedor deve prestar ou, não o estando, que essa determinação seja possível em momento ulterior, com base em critérios estabelecidos pelas partes ou pela lei (cfr. Galvão Teles, Direito da Obrigações, 1997, 41 e, por exemplo, os Acórdãos do STJ, de 16.2.92, 15.6.94 e 11.5.93, os dois primeiros no BMJ-418/751 e 438/471, respectivamente, e o último in CJ, I-99)”.
Assim, quando a fiança é constituída no âmbito de um contrato gerador de obrigações de diversa ordem para o afiançado, é da interpretação dessa relação contratual que se torna possível afirmar a determinabilidade das obrigações contratuais futuras, na medida em que seja possível encontrar os referidos elementos caracterizadores da origem, prazo e possíveis montantes das mesmas.
No caso concreto dos autos é exactamente isso que sucede, já que a fiança prestada pela R. garante a satisfação das obrigações da sociedade cessionária, emergentes do contrato de cessão de exploração celebrado com a A.
E tais obrigações estão perfeitamente identificadas, correspondendo, não só à obrigação de pagamento das contrapartidas mensais convencionadas (e das indemnizações pela mora no cumprimento dessa obrigação, nos termos legais), mas também à obrigação de pagamento da indemnização convencionada pela cessação do contrato por denúncia do cessionário, antes do termo do mesmo (expressa na cláusula 2ª do contrato).
Ou seja, é possível apreender a origem (contratual e legal) das obrigações em questão, o prazo em que as mesmas devem ser cumpridas e os possíveis montantes das prestações pecuniárias respectivas (porque sempre indexados ao valor da contrapartida mensal convencionada).
E se a circunstância de se tratar de débitos futuros conduz a que, no momento da constituição da fiança, não fosse possível determinar quantitativamente os mesmos, tal não obsta a afirmar a sua determinabilidade, para efeitos de ser afastado o entendimento visado pela A., no sentido da nulidade da fiança que prestou.
Do mesmo modo, e no que respeita à extinção da fiança, é certo que a doutrina citada pela R. defende a caducidade automática da fiança omnibus prestada pelo sócio à sociedade, caso ocorra a perda dessa qualidade de sócio (assim a define Henrique Mesquita, no parecer citado pela R.), ou ainda a resolução da fiança por justa causa (é esta a tese sustentada por Evaristo Mendes, na obra identificada pela R.).
Todavia, qualquer um destes entendimentos não é acompanhado pela jurisprudência.
Assim, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29/3/2011 (relatado por Manuel Capelo e disponível em www.dgsi.pt) ficou afirmado que “a jurisprudência orienta-se unanimemente no sentido de que a perda das qualidades de sócio ou de gerente por parte do fiador não determina a caducidade da fiança prestada desde que a sua subsistência se não mostre condicionada à manutenção de qualquer daquelas qualidades”, aí se identificando as diversas decisões que sustentam tal afirmação, para concluir que “de acordo com as características apontadas para a fiança e tendo presentes todos os interesses em causa, nomeadamente o de que a garantia é decalcada sobre a obrigação principal e, em regra, coincide com ela, extinguindo-se apenas com o seu cumprimento, a solução sustentada pela jurisprudência é a que melhor responde à problemática enunciada e a que com mais certeza e segurança valora a liberdade contratual e a exigência do cumprimento pontual dos contratos”.
Do mesmo modo, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 21/2/2013 (relatado por Jorge Leal e disponível em www.dgsi.pt) ficou afirmado que “a alegação, pelo fiador, para fundar a extinção da fiança, de alteração anormal das circunstâncias em virtude da cessão de quotas da sociedade afiançada, deixando o fiador de ter laços familiares com os sócios, improcede se apenas se provou a ocorrência da cessão de quotas”, mais se afirmando que se se considerar que se verifica um agravamento sensível dos riscos da fiança, decorrente da cessão de quotas pelo sócio que prestou fiança à sociedade, o direito que assiste ao mesmo é o de “exigir a sua liberação, nos termos do art.º 648.º, alínea b), do Código Civil”, mas ressalvando-se que “tal direito deveria ser exercido contra o devedor, não contra o credor, cujo acordo de resto seria necessário para que a liberação operasse (cfr., v.g., Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, volume I, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 633)”.
Com efeito, e como também vem referido na sentença recorrida, citando-se o afirmado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 5/3/2018 (relatado por Carlos Querido e disponível em www.dgsi.pt), “a situação de ‘risco’ e de ‘debilidade’ em que se coloca o fiador não o exime das responsabilidades que o seu estatuto legal lhe confere, proclamadas no artigo 634.º do Código Civil com inquestionável limpidez: «A fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor»”, assim exigindo do fiador “uma atitude de diligência vigilante (…), informando-se junto do afiançado sobre o pontual cumprimento das prestações (…), a fim de evitar surpresas quando ocorre um incumprimento ainda que temporário (mora) susceptível de gerar responsabilidades que não recaem apenas na esfera jurídica do afiançado mas também na do fiador”, e sem que a perda da sua qualidade de sócio da sociedade afiançada permita afirmar a impossibilidade (superveniente) de actuar com a referida diligência.
Ou, dito por outra forma, o investimento de confiança do credor decorrente do estabelecimento da fiança não pode ser traído por uma qualquer conduta do fiador, desde logo a que conduz ao fim da relação inerente à constituição daquele vínculo pelo qual o fiador se obrigou pessoalmente perante o credor, garantindo acessoriamente o cumprimento da obrigação do devedor.
O que é o mesmo que dizer que, num caso como o dos autos, em que a fiança foi prestada pela sócia da sociedade afiançada e, posteriormente, aquela veio a perder tal qualidade de sócia, por ter cedido as suas quotas, não fica colocada em causa a fiança prestada, mantendo-se válida e eficaz.
Assim, porque não se verifica a invocada nulidade ou extinção por caducidade da fiança prestada pela R., improcedem as conclusões do seu recurso, quanto a estas questões, nada obstando, por esta via, a que a mesma responda pelas obrigações pecuniárias assumidas pela sociedade cessionária da exploração do estabelecimento comercial da A., através do contrato de cessão de exploração no qual a R. prestou a fiança.
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Das obrigações contratuais e da mora
Na sentença recorrida ficou afirmada a constituição da obrigação da sociedade cessionária afiançada de pagamento das “rendas em dívida de Janeiro a Setembro de 2015, no montante de € 1 650,00, acrescida dos acréscimos legais desde Abril de 2015, crescida de IVA correspondentes indemnizações de 50%,), acrescida dos respectivos juros de mora vencidos até 04.01.2017, calculados à taxa legal de 4% e dos vincendos até integral e efectivo pagamento”, a par do pagamento da “indemnização no valor igual a seis meses de renda, no montante € 1650,00 cada, com os acréscimos legais desde Abril de 2015”.
Para tanto ficou aí sustentado que tais créditos decorrem das estipulações contratuais, mais se salientando que as retribuições mensais devidas a título de renda tinham prazo certo de vencimento, o que releva para o cálculo dos “acréscimos legais” e juros de mora.
No contrato de cessão de exploração outorgado em 1/10/2012 ficou convencionado o pagamento da retribuição mensal de € 1.950,00 (acrescida de IVA), como contrapartida da cessão da exploração do estabelecimento comercial da A., por um prazo de três anos, com início naquela mesma data de 1/10/2012.
Mais ficou convencionado (cláusula 2ª) que tal prazo era “renovável automaticamente por períodos iguais, caso nenhum das partes se oponha à renovação com pré-aviso de pelo menos SEIS MESES, sendo que qualquer denúncia por parte dos inquilinos para antes do termo de qualquer dos períodos, inicial ou de renovação, será objecto de indemnização ao senhorio no valor igual a seis meses da renda vigente, independentemente do prazo e quantias legalmente exigíveis à data da desocupação do locado”.
Mais do que o teor literal da referida cláusula, a interpretação da mesma não dispensa o recurso ao disposto nos art.º 236º a 238º do Código Civil, desde logo o recurso à teoria da impressão do destinatário que emerge do art.º 236º. É que, como explicam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, volume I, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra, 1987, pág. 223), o “objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir”.
Assim, e tradicionalmente, a figura da denúncia assenta na existência de uma declaração unilateral receptícia, dirigida à outra parte, destinada a colocar fim a um contrato sem prazo de duração. Pelo contrário, nos contratos com prazo certo de duração é o decurso desse prazo que determina a caducidade do mesmo, de forma automática e sem necessidade de qualquer declaração de vontade nesse sentido.
Todavia, se está prevista (legal ou contratualmente) a renovação automática do prazo, pode o contrato prolongar-se por tempo indeterminado, sendo então necessária uma declaração de vontade de qualquer uma das partes para que tal renovação não se verifique, extinguindo-se a relação contratual no termo do prazo (ou da sua renovação).
É o que sucede no caso dos arrendamentos urbanos habitacionais com prazo certo, sujeitos a renovação automática (salvo estipulação em contrário), como resulta do art.º 1096º do Código Civil.
E por isso é que se estabelece a favor de cada um dos contratantes (senhorio e arrendatário) o direito à cessação do contrato por oposição à renovação automática, a exercer nos termos dos art.º 1097º e 1098º do Código Civil.
Isso mesmo explica Pinto Furtado (Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, 2019, pág. 398), ao referir que “a denúncia, na acepção actual da nossa lei, já não aguarda, pois, pelo termo de duração contratual para aferir da data da cessação da sua eficácia, como é próprio, agora, da assim chamada oposição à renovação; é um direito que, em certos casos, assiste ao seu autor, de voluntariamente pôr termo à relação contratual, umas vezes em qualquer altura da sua vigência e outras apenas depois de algum tempo decorrido sobre o início desta, mas sempre mediante um pré‑aviso”. E mais explica que “nos próprios contratos de arrendamento urbano com prazo certo, o arrendatário – e só ele – tem a possibilidade de denunciá-lo após decorrido um terço do prazo inicial do contrato ou da sua renovação, mediante aviso prévio de 120 dias, se o prazo do contrato for superior a um ano, ou de 60 dias se a duração for inferior (art. 1098º/2 do CC)”.
Por outro lado, tal disciplina é igualmente aplicada aos arrendamentos urbanos não habitacionais, supletivamente, na medida em que resulta do nº 1 do art.º 1110º do Código Civil que “as regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais são livremente estabelecidas pelas partes, aplicando-se, na falta de estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para habitação, sem prejuízo do disposto no presente artigo e no seguinte”.
E, do mesmo modo, é aplicada à cessão de exploração de estabelecimento comercial como a que está em causa nos autos (também denominada locação de estabelecimento), por força do disposto no art.º 1109º do Código Civil (exactamente epigrafado de locação de estabelecimento).
Ou seja, a interpretação da cláusula 2ª do contrato em questão nos autos não dispensa os contributos conceptuais que emergem do regime legal acima exposto, na medida em que resulta claro do teor de tal cláusula a vontade das partes contratantes de recorrer às figuras típicas desse mesmo regime legal, como a da oposição à renovação e a da denúncia.
Assim, desde logo importa atentar no teor do nº 1 do art.º 1098º do Código Civil, de onde resulta que a oposição à renovação pelo arrendatário carece de ser declarada com determinada antecedência mínima em relação ao prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação, para que o contrato se tenha por cessado no termo desse prazo. Já a denúncia (nº 3) pode ser efectuada a todo o tempo (desde que tenha decorrido um terço do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação), com determinada antecedência mínima em relação ao termo pretendido.
E em ambos os casos resulta do nº 6 do mesmo art.º 1098º que a inobservância da antecedência mínima respectiva não obsta à cessação do contrato, mas obriga ao pagamento da contrapartida mensal correspondente ao período de pré-aviso em falta.
Ou seja, e no que respeita à denúncia, se o arrendatário pretende colocar termo ao contrato antes do final do prazo de duração inicial do mesmo ou da sua renovação, e não respeita a antecedência mínima para tanto, não deixa de se considerar o contrato cessado na data indicada pelo mesmo, mas fica obrigado ao pagamento da contrapartida mensal pelo tempo em que tal antecedência mínima não foi respeitada. Pelo que já não se pode falar em contrapartida mensal devida pela cedência do gozo do locado, na medida em que tal contrapartida mensal (a renda) já não é devida, por ter desaparecido o sinalagma contratual a que a mesma respeitava, mas antes é devida uma sanção pecuniária pela violação da obrigação de pré-aviso, calculada por referência ao valor da renda mensal.
Reconduzindo tudo o acima exposto ao caso concreto, é forçoso interpretar a cláusula 2ª do contrato no sentido de abarcar duas situações distintas. Por um lado, fixando a antecedência mínima (seis meses) para ser declarada a oposição à renovação do contrato, por qualquer uma das partes. Por outro lado, estabelecendo as circunstâncias em que a sociedade cessionária podia fazer cessar o contrato a qualquer tempo (ou seja, por denúncia), estipulando que a mesma sempre ficaria obrigada a entregar à A. a quantia equivalente a seis contrapartidas mensais, independentemente da data da desocupação do locado. E tendo presente o regime legal acima referido, aplicável ao desrespeito pelo período de pré‑aviso e suas consequências (o pagamento de uma sanção pecuniária calculada por referência ao valor da renda mensal e devida pelo tempo em que o pré-aviso não foi respeitado), é possível afirmar que aquilo que as partes contratantes quiseram, em consonância com o regime pelo qual se orientaram, foi afirmar que a denúncia por parte da sociedade cessionária devia ocorrer com uma antecedência de seis meses em relação à data em que pretendesse ver cessado o contrato, e obrigando-se a mesma a indemnizar a A. em caso de violação do período desse pré-aviso, por forma em tudo semelhante à regra constante do nº 6 do art.º 1098º do Código Civil, harmonizando ambas as circunstâncias em que o contrato podia cessar por vontade de uma das partes (por oposição à renovação e por denúncia da sociedade cessionária).
Mas, do mesmo modo, há que interpretar tal cláusula no sentido, coincidente com o regime legal, de a cessação do contrato não obrigar ao pagamento de qualquer outra quantia (que não as contrapartidas mensais eventualmente em atraso ao tempo da desocupação do estabelecimento comercial pela sociedade cessionária), para além da eventual indemnização pela inobservância do período do pré‑aviso previsto para a oposição à renovação ou para a denúncia, contabilizado nos mesmos termos previstos no nº 6 do art.º 1098º do Código Civil.
Assim, e tendo presente que em 23/3/2015 a sociedade cessionária comunicou à A. que rescindia o contrato nessa mesma data, desde logo resulta que a mesma não respeitou a antecedência mínima de seis meses para efectuar tal aviso da denúncia do contrato.
Por outro lado resulta demonstrado que tal cessação do contrato por denúncia se concretizou nesse mesmo mês de Março de 2015, pois que a sociedade cessionária desocupou o estabelecimento no final desse mês (assim passando a A. a ter a disponibilidade do mesmo em Abril de 2015).
Ou seja, o desrespeito pelo período do referido aviso prévio de denúncia abrange a totalidade do mesmo (seis meses).
Mas, do mesmo modo, cessando o contrato no final de Março de 2015, nesse momento apenas se encontravam por pagar as contrapartidas mensais relativas aos meses de Fevereiro e Março de 2015 (sobre esta questão as partes nunca estiveram em litígio, não se alcançando como é que o tribunal recorrido concluiu que a contrapartida mensal relativa a Janeiro de 2015 estava por liquidar, quando deu como provado que até tal mês todas as obrigações da sociedade cessionária estavam pontualmente cumpridas).
Ou seja, não só a sociedade cessionária ficou em dívida para com a A. com tais contrapartidas mensais relativas a Fevereiro e Março de 2015, como igualmente se constituiu devedora da indemnização correspondente a seis meses dessa contrapartida mensal.
Por outro lado, com a declaração de denúncia e com a restituição do estabelecimento à A. cessaram quaisquer outros efeitos do contrato de cessão de exploração, designadamente deixando de se verificar a obrigação de a sociedade cessionária pagar a contrapartida mensal devida pela cedência do gozo do estabelecimento.
É certo que a A. sustentou o entendimento de a declaração da sociedade cessionária de 23/3/2015 corresponder à manifestação de vontade de oposição à renovação do contrato, para o termo do seu prazo inicial, assim considerando que o mesmo se mantinha em vigor até ao final de Setembro de 2015 e, nessa medida, considerando continuar a cessionária obrigada ao pagamento da contrapartida mensal, durante cada um desses seis meses.
Todavia, a ser assim, não fazia sentido estar a afirmar a obrigação de a mesma dever pagar a indemnização prevista na cláusula 2ª, desde logo porque o período de seis meses do pré-aviso, aí estipulado, havia sido totalmente respeitado.
De todo o modo, a afirmação expressa da sociedade cessionária, no sentido de colocar fim ao contrato a partir da data da comunicação, não deixa margem para quaisquer dúvidas, quanto à vontade daquela de fazer cessar de imediato os seus efeitos, o que equivale à denúncia, e não à declaração de oposição à renovação do mesmo.
Assim, não pode subsistir o decidido pelo tribunal recorrido, no sentido da afirmação do direito da A. a receber o valor das contrapartidas mensais relativas aos meses de Abril a Setembro de 2015.
Já quanto ao atraso da sociedade cessionária no pagamento das contrapartidas mensais de Fevereiro e Março de 2015, resulta do nº 1 do art.º 1041º do Código Civil (na redacção em vigor à data) que “constituindo-se o locatário em mora, o locador tem o direito de exigir, além das rendas ou alugueres em atraso, uma indemnização igual a 50% do que for devido, salvo se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento”.
Resulta claro deste preceito legal que não assiste ao locador o direito à indemnização correspondente a 50% do valor da renda em atraso, se resolver o contrato, com fundamento nessa falta de pagamento atempado.
Todavia, se o locador opta por não resolver o contrato com fundamento no incumprimento dessa obrigação pecuniária do locatário, surge na sua esfera jurídica o direito ao recebimento de uma indemnização, correspondente a 50% do valor da renda em atraso.
E é indiferente que o contrato de arrendamento cesse por qualquer uma das outras formas a que alude o art.º 1079º do Código Civil, designadamente a denúncia ou a revogação por oposição à renovação, promovidas pelo arrendatário.
Tal interpretação é a que decorre da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como no seu acórdão de 10/4/2014 (relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt), ao concluir que “o senhorio tem direito à indemnização agravada prevista no nº1 do art. 1041º do CC, correspondente a 50% das rendas em dívida, quando, não tendo  exercido o direito à resolução do arrendamento com fundamento em incumprimento contratual imputável à contraparte, a iniciativa e o interesse prioritário na cessação da relação locatícia são próprios e pessoais  do inquilino que, ao entregar as chaves do locado, manifestou claramente a sua desistência na manutenção da relação de arrendamento em curso”, já que “constituiria solução arbitrária e desprovida de fundamento material bastante a que se traduzisse, neste quadro factual, em onerar a posição do senhorio, postergando o específico direito à indemnização conferido ao locador num caso em que este opta por não resolver o contrato, cessando a relação contratual com base exclusivamente em acto da iniciativa e interesse do locatário”, e mais estando aí identificadas decisões anteriores, no mesmo sentido interpretativo.
Do mesmo modo, este Tribunal da Relação de Lisboa também vem afirmando repetidamente tal entendimento, como no acórdão de 16/9/2008 (relatado por Ana Grácio e disponível em www.dgsi.pt), ao referir que “a indemnização do art 1041º nº1 do CC é consequência da mora no pagamento das rendas e só não é devida se o contrato for resolvido com esse fundamento, mantendo‑se, porém, quando o locatário, voluntariamente, ainda que na pendência da acção de despejo, abandonar ou entregar o locado”.
Do mesmo modo, ainda, no acórdão de 24/6/2010 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Carlos Marinho e disponível em www.dgsi.pt) ficou afirmado que “perante a falta de pagamento de rendas, o senhorio tem duas vias legais diante de si. Se enveredar por uma, obtém a resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas e o valor destas em singelo. Se for pela outra, protege o contrato, deixando-o subsistente, e cobra, além das rendas, uma indemnização correspondente a 50% do seu valor”, mais se referindo que “a parte final do n.º 1 do Artigo 1041.º do Código Civil apenas exclui a indemnização se ocorrer, cumulativamente: a) a resolução do contrato e b) essa resolução se tiver fundado na omissão do pagamento das rendas de emanação contratual”.
Do mesmo modo, ainda, no acórdão de 7/10/2014 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por João Ramos de Sousa e disponível em www.dgsi.pt), ficou afirmado que “no seguimento do já decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça (vg. Acórdão de 22/06/1999, Revista nº 486/99 – 1ª, e Acórdão de 11/10/2005, Revista nº 4383/04 – 7ª, in www.stj.pt), entende-se que o direito a essa indemnização [prevista no art.º 1041º, nº 1, do Código Civil] existe quando se verifique mora do locatário no pagamento das rendas, ainda que a resolução do contrato se fundamente em acto eficaz de revogação por parte de locatário, só sendo afastada quando o próprio locador opte pela cessação do contrato, invocando essa falta de pagamento para pedir a resolução do contrato de arrendamento”.
E do mesmo modo, ainda, no acórdão de 18/11/2021 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Gabriela de Fátima Marques e disponível em www.dgsi.pt), ficou afirmado que “o pagamento da indemnização prevista no art.º 1041º do CC não depende de a circunstância do locatário manter ou pretender manter o arrendamento, pelo que o referido direito do locador não se extingue mesmo no caso de o locatário voluntariamente abandonar ou entregar o locado”.
Assim, para além da obrigação de pagamento das contrapartidas mensais de Fevereiro e de Março de 2015, bem como da obrigação de pagamento da indemnização correspondente a seis contrapartidas mensais, ficou ainda a sociedade cessionária obrigada ao pagamento da quantia correspondente a 50% de cada uma das duas contrapartidas mensais em atraso.
Mas já no que respeita ao cálculo de juros de mora, nos termos do art.º 806º do Código Civil, torna-se evidente que não há lugar a tal cálculo, nos termos constantes da P.I. e reproduzidos na sentença recorrida, desde logo porque as consequências da mora são aquelas que emergem do nº 1 do art.º 1041º do Código Civil, e não as que resultam do art.º 806º, que apenas é aplicável na falta de norma que fixe directamente a indemnização moratória.
Pelo que, relativamente às questões que se prendem com a verificação da obrigação de pagamento das contrapartidas mensais e atraso no seu cumprimento, bem como com a verificação da obrigação de indemnizar pelo desrespeito do período do pré‑aviso da denúncia do contrato, procedem as conclusões do recurso da R., ainda que só parcialmente, havendo que liquidar as contrapartidas mensais de Fevereiro e de Março de 2015 e respectivas indemnizações pela mora em € 4.950,00, acrescido de IVA (tendo presente que em 2/8/2013 o valor da contrapartida mensal foi reduzido, por acordo da A. e da sociedade cessionária, para € 1.650,00, acrescido de IVA). E quanto à indemnização pelo desrespeito do prazo do pré-aviso, corresponde a mesma ao valor de € 9.900,00 (não havendo que acrescer à mesma qualquer IVA, porque não se trata de uma remuneração emergente da actividade comercial da A.).
Assim, a obrigação pecuniária da sociedade cessionária que a R. garante, enquanto fiadora da mesma, ascende aos referidos montantes de € 4.950,00, acrescido de IVA, e de € 9.900,00.
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Da imputação da caução
Quanto a esta questão ficou afirmado na sentença recorrida que:
Não resulta provado (…), quer o estado do imóvel à data da entrega, quer no momento da sua desocupação, inexistindo qualquer meio de prova que permitisse aferir da desconformidade apontada pela Autora, pelo que resulta inexacta a conclusão alcançada pela Autora no sentido de que no momento da desocupação do locado, este não se encontrava nas condições que se verificavam à data da entrega, não cumprindo os inquilinos com a obrigação assumida na clausula 4.º do Contrato, e que, por isso, a A. San Nick realizou obras no valor de EUR 8,000,00 (oito mil euros) de modo a restituir as condições que se verificavam à data da sua entrega.
Do exposto decorre que as obras realizadas pela Autora devam ser suportadas, pelo menos parcialmente, pelo valor da caução que foi entregue pela 1.ª outorgante do contrato, devendo, em conformidade, ser entregue aos Liquidatários da Ré, se outro fundamento inexistir que permita a sua retenção pela Autora a título legítimo”.
Como bem se refere na sentença recorrida, da matéria de facto provada não resulta que a sociedade cessionária haja incumprido com a sua obrigação de restituir o estabelecimento nas condições que se verificavam, quando o mesmo lhe foi entregue.
Mas, do mesmo modo, não resulta provado que a A. efectuou quaisquer obras no estabelecimento, e que competisse à sociedade cessionária efectuar.
Com efeito, não é por estar demonstrado que a A. solicitou à sociedade cessionária (e à R., enquanto fiadora daquela) o pagamento de € 5.000,00, remanescente do valor de € 8.000,00, afirmando corresponder este último ao valor de obras realizadas nas fracções onde se situa o estabelecimento cuja exploração foi cedida, que se pode afirmar que tais obras foram realizadas, e por aquele valor declarado pela A. (ou mesmo por qualquer outro, igual ou superior ao valor da quantia de € 3.900,00 que a sociedade cessionária lhe entregou, no início do contrato).
Por outro lado, resulta da factualidade apurada que tal quantia de € 3.900,00 foi entregue à A. a título de caução.
Assim, e como resulta dos art.º 666º e seguintes do Código Civil, a entrega dessa quantia à A., a esse título, tem em visa permitir à mesma que se pagasse do seu crédito emergente do contrato, ainda que futuro, com preferência sobre os demais credores da sociedade cessionária.
Desta forma, vencidas as obrigações pecuniárias acima identificadas, assistia à A. o direito a fazer sua a referida quantia de € 3.900,00, mas apenas na estrita medida da satisfação do crédito detido sobre a sociedade cessionária.
Carece assim de todo e qualquer fundamento o afirmado na sentença recorrida, sobre a circunstância de a A. poder suportar o valor de obras que haja realizado através da referida quantia. Do mesmo modo que carece de todo e qualquer fundamento o afirmado na sentença recorrida, sobre a circunstância de a A. se manter depositária de tal quantia e estar obrigada a entregá-la aos liquidatários da sociedade cessionária (não obstante a liquidação da mesma já estar encerrada e já ter sido declarada a sua extinção) “se outro fundamento inexistir que permita a sua retenção pela Autora a título legítimo”.
Com efeito, o único título que legitima a actuação da A., fazendo sua tal quantia, após a cessação dos efeitos do contrato celebrado em 1/10/2012, é a circunstância de a mesma servir para a A. considerar cumpridas, ainda que parcialmente, as obrigações vencidas e não cumpridas pela sociedade cessionária, emergentes do contrato. O que é o mesmo que dizer que ao referido montante de € 4.950,00 há que deduzir o referido montante de € 3.900,00, pelo que a obrigação de pagamento das contrapartidas mensais de Fevereiro e de Março de 2015, acrescida da indemnização de 50% pela mora, ascende tão só ao montante de € 1.050,00, acrescido de IVA.
Ou seja, também quanto a esta questão procedem as conclusões do recurso da R., com a imputação do valor caucionado à satisfação das obrigações vencidas e não cumpridas, garantidas pela R. através da fiança prestada.
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Da falta de interpelação
Por último, sustenta a R. que não foi interpelada para satisfazer as prestações em falta da sociedade sua afiançada, pelo que, por aplicação do disposto nos nº 5 e 6 do art.º 1041º do Código Civil, não lhe são exigíveis os montantes acima liquidados.
Importa salientar que a redacção dos nº 5 e 6 em questão decorre da Lei 13/2019, de 12/2, diploma pelo qual foram introduzidas no regime do arrendamento urbano “medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade”. Tal diploma só entrou em vigor em 13/2/2019, não sendo os preceitos a que respeitam os referidos nº 5 e 6 do art.º 1041º aplicáveis a dívidas constituídas em momento anterior (é isso que resulta claramente, a contrario, do nº 1 do art.º 14º da referida Lei 13/2019).
Por outro lado, ainda que fosse de considerar o disposto no referido nº 6 do art.º 1041º do Código Civil, entendido no sentido de a A. apenas poder exigir da R. fiadora a satisfação dos seus direitos de crédito, após notificar a mesma da mora e das quantias em dívida, sempre haveria que considerar que tal notificação se deve considerar realizada com a citação da R. para os termos da acção (ocorrida ainda antes da entrada em vigor da referida alteração ao art.º 1041º). O que sempre equivale a afirmar a possibilidade de a A. exigir da R. o cumprimento das obrigações pecuniárias acima referidas, nos termos peticionados pela presente acção.
Por outro lado, ainda, e como resulta do art.º 805º do Código Civil, a interpelação para o cumprimento não tem por fim fazer surgir a obrigação, mas desencadear o incumprimento da mesma e constituir o devedor em mora.
Ou seja, não estando em causa a constituição da obrigação da R. perante a A., enquanto fiadora da sociedade cessionária, garantindo a satisfação do direito de crédito que a A. detém sobre esta devedora, nos termos declarados no contrato celebrado de 1/10/2012, para que se possa afirmar que a R. se constituiu em mora quanto ao cumprimento das prestações da sociedade cessionária acima identificadas, necessário se torna que tenha sido interpelada para tanto, pois que só a partir daí haverá lugar à contagem dos juros a que respeita o art.º 806º do Código Civil.
Tal interpelação não carece de ser apenas a que resulta da citação, podendo ser efectuada por via extrajudicial, como resulta claro do nº 1 do art.º 805º do Código Civil.
Assim, e no caso concreto, há-de considerar-se que a R. se deve considerar interpelada para efectuar o pagamento das quantias em dívida, face à carta da A. de 11/9/2015, enviada para a morada que a R. indicou aquando da outorga do contrato, em 1/10/2012.
A não concretização da entrega da carta pelos serviços de distribuição postal, por não ter sido reclamada pelo seu destinatário (a R.), não determina a ineficácia da declaração interpelatória nela contida, já que, como vem sendo afirmado repetidamente pela jurisprudência, do disposto no nº 2 do art.º 224º do Código Civil decorre que o destinatário de uma declaração fica vinculado pela mesma quando ela é colocada ao seu alcance e só não chega ao seu conhecimento efectivo porque uma atitude do mesmo o impediu de adquirir esse conhecimento.
Isso mesmo é afirmado, por exemplo, no acórdão de 18/2/2019 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Sousa Grandão e disponível em www.dgsi.pt), quando se refere que “o declaratário fica vinculado (…) logo que a declaração chegue ao seu poder, à sua esfera pessoal, ainda que não tome conhecimento dela.
O que releva é que a declaração seja colocada ao alcance do destinatário, que este seja posto em condições de, só com a sua actividade, conhecer o seu conteúdo.
A solução legal visa, naturalmente, evitar fraudes e intencionais alheamentos por banda do destinatário: é por isso que se considera eficaz a declaração que não foi recebida por culpa do destinatário, como sucede quando ele se ausenta para parte incerta, se recusa a receber a carta negocial ou não a levante em eventual apartado que possua”.
Assim, não só não se pode afirmar ser inexigível à R. a satisfação das quantias devidas pela sociedade cessionária à A., como se deve afirmar que a R. se deve considerar interpelada para satisfazer esse direito de crédito pela carta de 11/9/2015, pelo que a partir de então se constituiu em mora quanto ao cumprimento das prestações pecuniárias respectivas, daí decorrendo ter de responder pela mesma mora, pagando juros à taxa legal sobre os montantes em questão, desde tal interpelação e até ao pagamento integral das quantias em dívida.
Pelo que, também quanto a esta questão, improcedem as conclusões do recurso da R.
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Em suma, na parcial procedência das conclusões do recurso da R., nos termos acima referidos, não se pode manter o decidido na sentença recorrida, que carece de ser substituída por decisão condenatória da R. no pagamento dos montantes acima liquidados (€ 1.050,00, acrescido de IVA, e € 9.900,00), bem como dos juros de mora à taxa legal sobre cada um desses montantes, contados desde 11/9/2015 e até efectivo e integral pagamento, e sendo absolvida do pedido no mais que foi peticionado pela A.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se procedente o recurso e revoga-se a sentença recorrida, que se substitui por esta outra decisão em que, na parcial procedência da acção, se condena a R. a pagar à A.:
- o montante de € 1.050,00 (mil e cinquenta euros), acrescido de IVA, bem como juros de mora à taxa legal sobre esse montante, contados desde 11/9/2015 e até efectivo e integral pagamento;
- o montante de € 9.900,00 (nove mil e novecentos euros), bem como juros de mora à taxa legal sobre esse montante, contados desde 11/9/2015 e até efectivo e integral pagamento.
No mais que excede a medida da presente condenação, vai a R. absolvida do pedido.
Custas (na acção e no recurso) por A. e R., na proporção do respectivo decaimento.

Lisboa, 10 de Novembro de 2022
António Moreira
Carlos Castelo Branco
Orlando Nascimento