Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
366/21.9JELSB-A.L1-9
Relator: JORGE ROSAS DE CASTRO
Descritores: DECISÃO SUMÁRIA
RECURSO
DEVER DE ALEGAÇÃO
MEDIDAS DE COACÇÃO
PERIGOS
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO INTERNACIONAL DE ESTUPEFACIENTES
PROVA OBTIDA NO ESTRANGEIRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1. Se o Arguido entende que há prova nula nos autos e que afeta ainda o valor probatório de outra prova a que se chegou a partir daquela, a ele compete invocá-lo, o que passa por identificar a questão no plano concreto, por referência precisa e individualizada aos meios de prova que considera estarem viciados.
2. O Arguido não cumpre essa exigência se o que faz é alegar de forma genérica que tudo o que seja informação relativa a metadados e geolocalização não é admitido como prova à luz da nossa jurisprudência constitucional, sem cuidar de identificar nos autos e em particular no despacho recorrido, qual a exata informação com essa proveniência ou nela baseada direta ou indiretamente.
3. Não compete com efeito ao Tribunal da Relação fazer uma incursão teórico-dogmática em abstrato sobre esta matéria e depois, como que encetando uma análise dos autos por varrimento geral, averiguar, ele próprio, se em concreto há ou não algum elemento de prova que escape aos cânones legais sob o prisma invocado e se teve ou tem alguma repercussão decisória.
4. Nada obsta à partida a que se admita como prova o que resulta da investigação realizada por autoridades estrangeiras e que veio a ser partilhada com estes autos na sequência de uma carta rogatória e de uma decisão europeia de investigação.
5. Assim poderia não ser se, olhados os elementos partilhados, pudéssemos concluir que a sua produção pelas autoridades estrangeiras congéneres tivera lugar com violação de regras imperativas de aplicação tendencialmente universal, como as que se prendem com a proibição de tortura ou tratamentos desumanos ou degradantes, com o respeito por garantias básicas de defesa e/ou com intervenções arbitrárias na vida privada, nos termos plasmados nomeadamente nos arts. 7º, 14º e 17º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, ou com métodos de obtenção de prova que ferissem princípios materiais essenciais do direito probatório português, como os estabelecidos no art.º 126º do Código de Processo Penal.
6. O tráfico intercontinental de estupefacientes convoca a intervenção de várias pessoas, cada qual com um papel, de cujo desempenho depende o sucesso do plano geral a que todos aderem.
7. Se alguém envia a substância estupefaciente do continente americano para o europeu e é o Arguido quem tem tudo pronto para a receber, de tal sorte que aquele envio só ocorre porque há a garantia da sua intervenção, pode dizer-se, à luz das características próprias do tráfico intercontinental de droga, que o Arguido aderiu ao plano e tomou parte direta na sua execução, na medida em que oferecia a atenção, a disponibilidade e a prontidão (sua e das pessoas da sua confiança que trabalhavam no interior do aeroporto) necessárias para que a mercadoria pudesse ser posta a circular por via aérea.
8. Nessa medida, pode o Arguido ser apontado como coautor do crime, na vertente do «fazer transitar», que basta para a subsunção ao tipo legal do art.º 21º, nº 1, do D.L. nº 15/93, de 22 de janeiro.
(Sumário da responsabilidade do relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: 1 – RELATÓRIO

Por decisão sumária proferida em 23 de agosto de 2024, a nossa Exma. Colega (anterior Relatora, entretanto movimentada para outro Tribunal da Relação) rejeitou por manifesta improcedência o recurso interposto pelo AA, com os demais sinais identificativos constantes dos autos.
Inconformado, o Arguido reclamou para a conferência, invocando para o efeito o disposto no art.º 417º, nº 8 do Código de Processo Penal.
Tem aquela decisão sumária o seguinte teor (transcrição):
«Relatório:
No âmbito do Processo de Inquérito n.º 366/21.9JELSB a correr termos no Juízo de Instrução Criminal de Lisboa – Juiz 8 – foi decidido a 8.5.2024:
“Face ao exposto, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 191º, 192º, 193º, 194º,195º, 196º, 202º nº 1 als. a) e c) e 204º nº 1 als. a), b) e c) todos do Código de Processo Penal determino que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito, além do Termo de Identidade e Residência já prestado nos autos, à medida de coação de prisão preventiva.”
***
Desta decisão veio o arguido interpor recurso, nos termos e com os fundamentos expostos nos autos, terminando com as seguintes conclusões:
“1º - Não existem fortes indícios da prática dos factos elencados no despacho recorrido e subsumidos ao art.º 21º do dl. 15/93 de 22-1, o que existe são meros indícios ou indícios que não têm a virtualidade de serem fortes indícios, nos termos assinalados na motivação que antecede e para efeitos do art.º 202º do CPP.
2º - Os elementos probatórios que credenciaram judicialmente a existência de fortes indícios da factualidade imputada são parcos e insuficientes para o efeito.
3º - Não se verificam os perigos, em concreto, traduzidos pelo art.º 204º do CPP, nos termos constantes na motivação que antecede.
4º - Atendendo aos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade e suficiência, deve a situação coativa ser revista e ser aplicada outra medida de coação menos gravosa nos termos preconizados na motivação que antecede.
V. Excelências, analisando e decidindo, Melhor dirão, E assim se fará Justiça.”
***
O MºPº na 1ª instância respondeu da seguinte forma, apresentando as seguintes conclusões:
1. No dia 19 de novembro de 2021, no Aeroporto de Lisboa, a Polícia Judiciária apreendeu uma mala de viagem com 30 blocos de cocaína e com o peso global de 32,600 quilogramas, na qual estava colocada um sinalizador GPS;
2. Da prova resulta a existência de um grupo da aplicação Whatsapp que era utilizado por um grupo para comunicarem sobre a remessa das malas com cocaína. Nesse grupo os indivíduos brasileiros, donos da cocaína, questionaram um indivíduo espanhol sobre a mala acima referida. Para justificar o desaparecimento da mala o mesmo indivíduo admitiu o arguido AA tendo este, por mensagem de voz, justificado que a mala com cocaína tinha sido apreendida pela polícia judiciária no Aeroporto;
3. Mais justificou o arguido, que um indivíduo às suas ordens tinha tentado retirar a mala do aeroporto, mas não o conseguiu fazer porque no local estavam elementos da Polícia Judiciária e colocou uma fotografia de uma mala que indicou ser a mesma e que tal fotografia tinha sido realizada pelo indivíduo a seu serviço que não logrou retirar a mala de cocaína;
4. Realizada perícia pelo Laboratório de Polícia Científica de comparação entre a voz do arguido AA, resultante das escutas telefónicas, com a mensagem de voz acima referida, conclui-se que a voz era a mesma, i.e. do arguido AA;
5. Realizou-se outra perícia pelo Laboratório de Polícia Científica entre a fotografia da mala colocada pelo arguido AA no grupo de Whatsapp e a mala com cocaína com cocaína que foi apreendida e concluiu-se que a mala era a mesma;
6. Resulta da prova que, no dia 22 de Janeiro de 2022, no Aeroporto de Lisboa, a Polícia Judiciária apreendeu duas malas de viagem com 41 blocos de cocaína e com o peso global de 49,300 quilogramas;
7. Também resulta da prova que o indivíduo espanhol já acima referido e que colocou o arguido AA no referido grupo de Whatsapp para justificar o desaparecimento da mala com cocaína referiu, em contacto com terceiro, que o mesmo arguido tinha perdido mais estas duas malas;
8. Atendendo à absoluta semelhança de procedimentos e de locais operacionais para o transporte das malas com cocaína, bem como à identidade do indivíduo espanhol e do arguido, não podem existir dúvidas sobre a intervenção do arguido AA nestas duas malas de cocaína;
9. No dia 7 de maio de 2024, pelas 08H00, o arguido AA guardava no interior da sua residência sita na ...º, drt.º, no ..., 8,53 gramas de canábis;
10. A existência de indícios ressalta dos meios de prova referidos pela Mm.a Sr.a Juíza a quo a fls. 853, cuja concreta concatenação à luz das regras da experiência comum e segundo juízos de normalidade e de adequação social conduz de forma cristalina à ideia que o recorrente AA era quem, em Portugal, assumiu o encargo de receber a cocaína e de a entregar ao indivíduo espanhol;
11. 0 recorrente que invoca a inexistência dos referidos indícios como fundamento para a substituição da prisão preventiva por outra medida de coacção, quando é certo que todas as medidas de coacção exigem, para ser concretamente aplicadas, a verificação dos mesmos perigos (cfr. art.º 204.º do CPP);
12.Os factos que a Mm.a JIC considerou fortemente indiciados revelam que o recorrente e os outros residentes no Brasil e em Espanha transportavam cocaína da América do Sul para a Europa;
13. O arguido agiu no quadro de um grupo dedicado ao tráfico internacional de estupefacientes, grupo este surgido no âmbito da esfera social e de amizade do recorrente, razão pela qual, em liberdade ou em obrigação de permanência na habitação, o recorrente teria fácil acesso ao seu grupo de amigos/conhecidos podendo continuar a actividade criminosa;
14. O arguido apresenta um elevado nível de vida, um quadro profissional instável e não lhe são conhecidos meios lícitos de prover ao seu próprio sustento, razão pela qual é forte a tentação de continuar a praticar crimes para prover ao seu sustento, o que é reforçado pelo facto do arguido ser consumidor de canábis e não apresentar meios financeiros para prover a esta adição;
15. O recorrente, ao justificar o desaparecimento da mala de cocaína, referiu que deviam confiar na sua versão porque trabalhavam juntos há muito tempo, o que revela reiteração no tráfico de cocaína;
16. O arguido tem nacionalidade guineense, tem residência em Portugal e em Espanha, e desloca-se frequentemente para o estrangeiro, sendo manifesto o perigo de fuga. Conhecendo agora a investigação contra si e os fortíssimos meios de prova existentes, em liberdade, o arguido poderá facilmente ausentar-se para local de onde será impossível extraditá-lo;
17. O transporte de cocaína da América do Sul para a Europa é o mais forte perigo criminoso e de segurança pública para os países do sul da Europa, ao que acresce a elevada perigosidade da criminalidade organizada que transporta a cocaína para a Europa, circunstâncias estas que geram um elevado alarme social e forte perturbação comunitária;
18. Resulta dos documentos remetidos pelas autoridades judiciárias brasileiras que o recorrente age no âmbito de uma rede organizada e estruturada de importação de cocaína e presta contas do seu serviço, razão pela qual, em liberdade, ser-lhe-ia fácil articular versões e dificultar a recolha da prova e a sua veracidade, o que poderia mesmo ocorrer por via de coacção do próprio arguido;
19. Não podemos deixar de concordar com a Mm.a JIC e afirmar que, em concreto, se verificam os perigos de continuação da actividade criminosa, de fuga, de perturbação da ordem e da tranquilidade pública e de perturbação para a aquisição e veracidade da prova;
20. O recorrente está fortemente indiciado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, na forma consumada, p.p. no art.º 21.º n.º 1 Decreto-lei n.15/93 de 22 de Janeiro, sendo que o crime tem uma moldura abstracta de 4 a 12 anos de prisão;
21. Os factos apurados nos autos configuram uma elevada ilicitude material da conduta do recorrente, o qual, juntamente com outros dois indivíduos, delinearam, prepararam e puseram em execução um plano para introduzir elevadas quantidades de cocaína na Europa e dessa actividade retirarem elevados proventos financeiros;
22. A obrigação de permanência na habitação ou qualquer outra medida de coacção que não a prisão preventiva, não se mostra idónea a acautelar os perigos enunciados no despacho recorrido, uma vez que o recorrente teria fácil acesso ao seu meio social e a meios de comunicação, podendo continuar a actividade criminosa, gerindo a recepção de malas de cocaína e a sua entrega a terceiros;
23. O arguido apresenta um quadro profissional instável e não lhe são conhecidos meios lícitos de prover ao seu próprio sustento, razão pela qual é forte a tentação de continuar a praticar crimes para prover ao seu sustento;
24. Afigura-se-nos que as elevadas exigências cautelares do caso vertente justificam a aplicação ao recorrente da prisão preventiva, sendo esta a única medida de coacção que se mostra adequada e proporcional às circunstâncias do caso concreto e a elas responde de forma cabal.
Nestes termos, pelos fundamentos expostos, deverá negar-se provimento ao recurso e confirmar-se in totum a decisão recorrida.”
***
Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que aduziu o seu entendimento de que o recurso deve ser julgado improcedente.
Face às conclusões apresentadas pelo recorrente e da análise do próprio objeto do recurso, entendemos ser caso para decisão sumária nos termos do art.º 417.º, n.º 6, al. b) do CPPenal: o recurso deve ser rejeitado, por manifesta improcedência (art.º 420, nº.1, al. a) do CPP).
***
Fundamentos do recurso:
Questões a decidir no recurso:
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).
Questões que cumpre apreciar:
1-Inexistência de indícios suficientes da prática do crime p. e p. pelo art.º 21º do DL 15/93, de 22.1, para que seja aplicada ao recorrente a medida de coacção de prisão preventiva;
2-Não verificação dos perigos de continuação da actividade criminosa, de fuga, de perturbação da ordem e tranquilidade publicas e de perturbação para a aquisição e veracidade da prova;
3-Violação dos princípios da necessidade, da proporcionalidade e da adequação, devendo a medida de coacção de prisão preventiva ser alterada para medida de coação não privativa da liberdade ou, pelo menos, alterada para obrigação de permanência na habitação com utilização de meios de controlo à distância.
Analisemos então.
Inexistência de indícios suficientes da prática do crime p. e p. pelo art.º 21º do DL 15/93, de 22.1, para que seja aplicada ao recorrente a medida de coacção de prisão preventiva.
A decisão recorrida fundamentou a sujeição do arguido à medida de prisão preventiva na existência, por um lado, de fortes indícios da prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21º, n.º 1 do DL 15/93, de 22.1, punível com pena de prisão de quatro a doze anos, e, por outro, dos perigos a que alude o art.º 204.º do CPP, concretamente, o perigo de continuação da actividade criminosa, o perigo de fuga, o perigo de perturbação do inquérito e o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
Considerando, pois, os referidos fundamentos, relativos à indiciação e à verificação dos requisitos, há que averiguar da conveniência da aplicação da medida de prisão preventiva, designadamente, em razão do disposto no art.º 193.º do mesmo código.
Analisemos, então, as razões que o recorrente apresenta para sustentar a não aplicação da medida de prisão preventiva.
O recorrente manifesta discordância relativamente ao que se consignou como factualmente indiciado, mas apenas no que respeita à interpretação da prova que é feita pelo tribunal e que entende que não é suficiente para ligar o arguido às malas apreendidas e ao seu respectivo conteúdo e, consequentemente à prática do crime de tráfico.
Vejamos.
É manifesto que não assiste qualquer razão ao recorrente.
Resulta dos autos que no dia 19 de Novembro de 2021, no Aeroporto de Lisboa, a Polícia Judiciária apreendeu uma mala de viagem com 30 blocos de cocaína e com o peso global de 32,600 quilogramas, na qual estava colocada um sinalizador GPS.
Resulta ainda a existência de um grupo da aplicação Whatsapp denominado "troca de ideia" que era utilizado por um grupo para comunicar sobre a remessa das malas com cocaína.
Nesse grupo os indivíduos brasileiros, donos da cocaína, questionaram um indivíduo espanhol sobre a mala acima referida por suspeitarem que esse indivíduo tinha recebido a mala com cocaína, mas não pretendia fazer o pagamento. Para justificar o desaparecimento da mala, o mesmo indivíduo espanhol informou os brasileiros que iria colocar no grupo o português que estava encarregue de retirar a mala do aeroporto de Lisboa. Então essa pessoa admitiu o arguido AA nesse grupo da aplicação Whatsapp com o nome "troca de ideia", tendo este, por mensagem de voz, justificado que a mala com cocaína tinha sido apreendida pela polícia judiciária no Aeroporto. E explicou ainda que um indivíduo às suas ordens tinha tentado retirar a mala do aeroporto, mas não o conseguiu fazer porque no local estavam elementos da Polícia Judiciária. O recorrente colocou nesse grupo de Whatsapp uma fotografia de uma mala que indicou ser a mesma e que tal fotografia tinha sido realizada pelo indivíduo a seu serviço que não logrou retirar a mala de cocaína.
Realizada perícia pelo Laboratório de Polícia Científica de comparação entre a voz do arguido AA, resultante das escutas telefónicas, com a mensagem de voz acima referida, concluiu-se que a voz era a de AA, razão pela qual não pode haver dúvidas que foi este arguido quem procurou justificar o desaparecimento da mala com cocaína.
Como bem explica o MºPº na sua resposta ao recurso, “realizou-se outra perícia pelo Laboratório de Polícia Científica entre a fotografia (com uma mala) colocada pelo arguido AA no referido grupo de Whatsapp e a mala com cocaína que foi apreendida e concluiu-se que a mala era a mesma, pelo que não podem existir dúvidas que foi o arguido quem, em colaboração com terceiro, tentou retirar a mala do aeroporto, o que não logrou concretizar devido à intervenção da Polícia Judiciária.
Também resulta da prova que, no dia 22 de Janeiro de 2022, no Aeroporto de Lisboa, a Polícia Judiciária apreendeu duas malas de viagem com 41 blocos de cocaína e com o peso global de 49,300 quilogramas (cfr. auto de apreensão e teste rápido citados pela Mm.a Sr.ª JIC a fls.853).
Do expediente remetido pelas autoridades judiciárias espanholas e cuja utilização como meio de prova nestes autos foi devidamente autorizada pela Mm.a Sr.ª JIC, resulta que o indivíduo espanhol já acima referido e que colocou o arguido AA no referido grupo de Whatsapp para justificar o desaparecimento da mala com cocaína referiu, com contacto com terceiro, que o mesmo arguido tinha perdido mais estas duas malas. Ora, atendendo à absoluta semelhança de procedimentos e de locais operacionais para o transporte das malas com cocaína, bem como à identidade do indivíduo espanhol e do arguido, não podem existir dúvidas sobre a intervenção do arguido AA nestas duas malas de cocaína.
Ainda resulta da prova que, no dia 7 de maio de 2024, pelas 08H00, o arguido AA guardava no interior da sua residência sita na ...º, drt.º, no ..., 8,53 gramas de canábis.”
A existência de fortes indícios, do crime de tráfico agravado de estupefacientes, na forma consumada, p.p. no art.º 21.º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, resulta, pois, óbvia.
Ao contrário do que o recorrente afirma a prova é abundante e aponta no sentido de que o arguido se dedicava (até ser preso) ao tráfico de estupefacientes. Veja-se, por exemplo o auto de entrega de fls. 7 do apenso 1; o auto de pesagem e teste rápido de fls. 8 do apenso 1; as fotografias de fls. 10 a 17 do apenso 1; os autos de apreensão de fls. 9 do apenso 1; os documentos de fls. 18 do apenso 1; os autos de visionamento de fls. 35 a 51 do apenso 1; os documentos vários de fls. 19 a 53 do apenso A; os documentos de fls. 58 a 310 do apenso B; as transcrições de interceções do apenso C; o auto de notícia/detenção de fls. 2, 3, 17 e 18; os autos de apreensão de fls. 4 e 18, 745, 746, 762, 766, 772, 759, 791, 792, 794, 798 e 802; as fotografias de fls. 5 a 8 e 20 a 23, 747 a 758, 763, 767, 768, 774, 795 a 797 e 800; os documentos de fls. 9, 24, 42 a 46, 148 a 167, 205 a 247, 249 a 266, 271 a 275, 279 a 299, 422 a 425, 565 a 572, 596 a 600, 674 a 682, 742 a 743, 759, 781 a 783, 805 a 805 e 823 a 826; o auto de inquirição de fls. 683; os autos de pesagem e teste rápido de fls. 10, 28 e 760 e os relatórios periciais de fls. 101, 102, 109, 110, 130, 132 e 504 a 506.
A juíza a quo teceu as considerações necessárias sobre a prova produzida e a matéria que resultou indiciada, concluindo, a nosso ver bem, que dos elementos dos autos resulta que os factos descritos estão fortemente (suficientemente) indiciados.
Do que ficou explanado e do mais que consta do despacho de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva suportado pelos elementos recolhidos pela investigação, concluímos que existem fortes indícios da prática pelo arguido AA de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Encontrando-se suficientemente indiciados os factos, não assiste, pois, razão ao recorrente.
No que respeita ao perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente para aquisição, conservação ou veracidade da prova, a M.ma Juíza refere-se a esse perigo nomeadamente quando diz “(…) Por último, a quantidade elevada de produto estupefaciente apreendidos e as circunstâncias em que ocorreram os factos, inculcam ao Tribunal a ideia de que o arguido agiu integrado numa rede de tráfico de estupefacientes internacional, existindo o receio de que o mesmo possa vir a ser importunado e pressionado por outros indivíduos no sentido de ocultar provas, verificando-se assim também o perigo concreto de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente o perigo para a aquisição da prova a que alude o art.º 204ª, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal”.
Permanece, pois a nosso ver, perigo de que eventuais testemunhas sejam influenciadas por atitude que envolva perturbação para a aquisição ou produção da prova ou que outros suspeitos sejam informados do estado dos autos e dificilmente venham a ser identificados e constituídos arguidos.
No que respeita ao perigo de continuação da actividade criminosa, Maia Costa, em Código de Processo Penal, Comentado, Almedina, 2016, 2ª edição revista a p. 822, em comentário ao artigo 204º do CPP escreve “O perigo de continuação criminosa deverá referir-se à prática de crimes de natureza idêntica ao imputado no processo. Assim, Germano Marques da Silva, Curso de Processo penal, II, 4ª edição, p. 301.
Para respeitar o princípio da presunção de inocência, a medida de coação deverá fundar-se num juízo muito rigoroso e preciso de plausibilidade de reiteração criminosa, apoiado nas circunstâncias do caso e na personalidade revelada pelo arguido”.
É certo que o arguido não tem antecedentes criminais em Portugal. No entanto, como bem escreve a M.ma Juíza a quo, estamos perante um crime com dimensão no espectro de tráfico internacional, que proporciona a angariação de quantias monetárias elevadas, consabidos que são os fáceis e aliciantes lucros obtidos com o desenvolvimento da atividade de tráfico de estupefacientes, sendo facto notório que a comercialização de cocaína é uma atividade muito rentável, pelo que naturalmente que a tentação de o arguido obter dinheiro fácil e avultado é elevada, além de que o nível de vida apresentado pelo mesmo não se afigura compatível com os rendimentos lícitos que o mesmo declara auferir, pelo que se considera verificado o perigo concreto de continuação da atividade criminosa, a que alude o artigo 204º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal.
No caso dos autos é claro o perigo de continuação da actividade criminosa, uma vez que será relativamente fácil o arguido voltar a ser contactado pelos indivíduos que o contrataram para desenvolver novamente a actividade de tráfico organizado.
Relativamente ao perigo de fuga, é verdade que não basta que o perigo de fuga, para assumir relevo suficiente para aplicação de medida privativa da liberdade, seja visto de forma meramente abstracta, isto é, sem minimamente se suportar no que, em concreto, decorra indiciado e, sobretudo, na vertente dos contornos da prática dos imputados crimes, da personalidade e das condições do arguido, analisadas em função das regras da experiência. No entanto, face ao crime praticado, ao modus operandi, ao contexto, ao facto de o arguido ser guineense, ter residência em Portugal e em Espanha e se deslocar com alguma frequência para fora de Portugal, entendemos que se regista em concreto perigo de fuga.
Relativamente ao perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas tem-se entendido que se exige a verificação de circunstâncias particulares que em concreto tornem previsível a alteração da ordem e tranquilidade públicas, não bastando a convicção de que certo tipo de crimes pode, em abstracto, causar emoção ou perturbação públicas.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal, p. 602, «só é relevante o perigo baseado em factos capazes de mostrar que a libertação do arguido poderia efectivamente “perturbar”, isto é, alterar negativamente a ordem pública”, acrescentado que “A ordem e tranquilidade “pública” não é a do grupo social a que pertence o arguido ou o ofendido, mas a ordem ou a tranquilidade da sociedade em geral».
Atendendo que se trata de “uma rede” que envolve, pelo menos, indivíduos situados em três países diferentes, à forma encontrada para transportar o produto estupefaciente e à quantidade transportada, justifica-se o entendimento da existência de algum perigo de alarme social ou de perturbação da tranquilidade pública.
Por último, qualquer outra medida de coação, incluindo a medida de obrigação de permanência na habitação, não responde satisfatoriamente ao perigo de continuação da actividade criminosa, seja através dos contactos que o arguido detém, seja a partir da sua própria residência, pelo que, face ao quadro existente nos autos, só a prisão preventiva pode desempenhar cabalmente aquela função. Atento o tipo de criminalidade em investigação, a forma como a actividade delituosa se desenvolveu, a elevada ilicitude dos factos e o perigo concretamente verificado, só a medida de coação de prisão preventiva permitirá satisfazer as necessidades cautelares do caso.
Entendemos, assim, que resulta dos elementos até agora recolhidos nos autos a inadequação e insuficiência das outras medidas de coação, conforme impõe a natureza subsidiária da prisão preventiva positivamente afirmada nos arts. 193º nº2 e 202º nº 1 do CPP.
Impõe-se, pois, manter a medida de coação aplicada ao arguido AA.
Pelo exposto, improcede in totum o recurso interposto.
O recorrente coloca em crise, de forma manifestamente infundada, nos termos e para os efeitos do artigo 420º, n.º 1 do CPPenal, a decisão que lhe aplicou a medida de coacção de prisão preventiva. Concluindo, o recurso revela-se manifestamente improcedente.
Nestes termos, sumariamente se decide, ao abrigo do disposto nos artigos 420º, n. º1, alínea a) e 417º, n. º 6, alínea b) CPPenal, pela rejeição do recurso.»
O Arguido formulou então a presente reclamação, a qual tem o seguinte teor (transcrição):
«A / Liminarmente:
O recurso foi decidido por Decisão sumária por ser superiormente entendido que deve ser rejeitado por ser manifesta a sua improcedência, como acima se disse e resulta da mesma Decisão, nos termos dos artºs 417º-6-b) e 420º-1-a) do CPP.
A manifesta improcedência em que se estriba a rejeição do recurso, tanto pode resultar de uma pretensão sem cabimento evidente como da manifestação evidente de expedientes dilatórios.
São disso exemplos, respetivamente, pedir-se uma absolvição perante factos que inequivocamente demonstram a culpa e a existência do crime, ou a debilidade da fundamentação ou a pregressa atuação processual do recorrente (nesse sentido, CPP – Comentado, 2014, pág. 1445, Cons. Pereira Madeira, Almedina).
Embora se salvaguarde o devido respeito por melhor opinião, o interposto recurso não abarca nem uma nem outra das situações; não foi invocada ou deduzida pretensão sem cabimento e nem se utilizou expediente dilatório algum.
Por seu turno, para além da rejeição formal existe a possibilidade da rejeição substantiva, que já tem a ver com a matéria de fundo, com o próprio objeto do recurso e que o legislador expressou na fórmula “improcedência manifesta do recurso”.
Ante o silêncio da lei sobre o alcance da expressão, tem sido confiada à doutrina e principalmente à jurisprudência a tarefa de dizer como e quando estamos perante uma situação deste tipo.
E em ambos os casos se converge para a ideia de que há manifesta improcedência do recurso quando for claro, evidente, que o recurso, em concreto, está desde logo condenado ao malogro, porque é flagrante que o recorrente não tem razão alguma para impugnar aquela decisão, pelo que cabe ao tribunal obstar a que prossigam atos que de antemão se reconhece não poderem proceder (nesse sentido, Noções de Processo Penal, Simas Santos, Leal Henriques e João Simas Santos, pág. 521 e 522, 2010, Rei dos Livros).
Trata-se de situações em que é patente a sem razão do recorrente, sem necessidade de ulterior e mais detalhada discussão jurídica sobre o que vem impugnado (nesse sentido veja-se Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, pág. 123 – citados na obra anterior).
O recurso é manifestamente improcedente quando, através de uma avaliação sumária dos seus fundamentos, se pode concluir, sem margem para dúvidas, que ele está votado ao insucesso (Ac. STJ de 1/3/2000, Procº12/00-3ª – citado na mencionada obra).
Que os seus fundamentos sejam inatendíveis.
Retornados aos termos do recurso, o recorrente motivou porque entende que inexistem fortes indícios da prática do crime e até em diversos segmentos:
“Do elenco de factos indiciados resulta, fundamentalmente, que é imputado ao arguido ter contactos com amigos e conhecidos no “handling” do aeroporto de Lisboa, todos prestando serviços para grupos e indivíduos que transportam cocaína da América do Sul para a Europa, serviço que consiste em retirar as malas previamente indicadas e que contêm cocaína e entregá-las a terceiros, sendo que as mesmas, por vezes são dotadas de sinalizador GPS a fim daqueles indivíduos ou grupos poderem conhecer e seguir o respetivo trajeto.
Esses indivíduos avisam o recorrente das características das ditas malas e este, por seu turno, agiliza a retirada das mesmas com os amigos ou conhecidos que trabalham naquele setor, como lhe é dito a quem entrega posteriormente as malas, após as mesmas lhes serem entregues já no exterior do aeroporto, pagando-lhes o arguido por isso e sendo remunerado pelos outros também por isso.
Ou seja, os factos indiciados colocam o arguido recorrente como alguém que tem a incumbência de dar indicação sobre as malas visadas para que lhes sejam entregues e para entregar a terceiros.
Além de tais considerações ao nível factual imputado, os factos cingem-se a 2 momentos temporais distintos, no dia 19 de novembro de 2021 por via de uma mala contendo 32,600 kgs de cocaína e no dia 22 de janeiro de 2022 uma mala contendo 49,300 kgs de cocaína, aquela provinda de São Paulo, Brasil e esta de Punta Cana, República Dominicana.
Tanto uma como a outra das malas referenciadas foram apreendidas pela intervenção policial e, por isso, os factos inicialmente referidos quanto à dinâmica exposta não se verificaram, alegadamente, porque pelo receio da polícia o esquema assinalado não existiu em termos de concretização.
Portanto, quanto a essas duas circunstâncias delimitadas temporalmente, as mesmas não secundam nem corroboram os factos antes indiciados, pois diferentemente do que é dito, as malas não foram, como antes é dito, retiradas e entregues ao arguido e posteriormente a terceiros.
Logo por aí se verifica que a forte indicação em relação a parte dos factos não tem suporte direto e visível; bastaria que na longa investigação que decorre desde, pelo menos, 2021, se constatasse essa matéria factual, sendo que para isso acontecer bastaria, então, que existissem indícios visíveis de chegada de um voo, da retirada de malas, sua entrega ao arguido recorrente e posterior entrega das mesmas a terceiros.
Estes eram os fortes indícios que iriam evidenciar a situação factual invocada pelo MP e decidida pela Mta Senhora JIC.
Ao invés, nenhuma mala foi, afinal, retirada do seu curso, se é que foi sinalizada, muito menos entregue ao arguido recorrente e posteriormente a terceiros.
Na verdade, a forte indiciação considerada pelo tribunal advém de parte dos demais factos elencados nos factos indiciados, como seja o arguido ter passado a fazer parte de um grupo da aplicação watsapp chamado: “troca de ideia” e por via das mensagens se inferir a situação em termos globais apresentados, conjugando essa circunstância com os demais elementos probatórios vertidos a fls. 11 do despacho recorrido, como seja as interceções do apenso c.
Diz-se que as apreensões, vigilâncias, interceções e gravações efetuadas, em conjugação com as regras de experiência comum e da normalidade social, atendendo ao modus operandi do arguido, revestem virtualidade suficiente para o tribunal considerar fortemente indiciada a prática dos factos assinalados.
E esta é a questão; ante a investigação já duradoura e desde 2021, a realidade é que nenhuma mala foi apreendida contendo cocaína na posse do arguido e por este entregue a terceiros.
Mais, nenhuma das duas malas assinaladas foi sequer abordada pelos amigos ou conhecidos do arguido, para que lha fizessem chegar.
Naturalmente que, desde logo, se tem de assentar numa lacuna no domínio da investigação, pois a razão alegada para isso não ter acontecido seria a presença da PJ nas imediações, sendo detetada, o que teria inibido os amigos ou conhecidos do arguido, que trabalhavam no “handling” a empreenderem, pelo menos, diga-se, parte da conduta visada.
Portanto o que existe ao nível da livre apreciação da prova na valoração dos meios de prova é uma inferência através quer das mensagens do grupo do watsapp quer por via de interceções telefónicas, o mesmo é dizer prova indireta.
E neste aspeto há que enfocar a jurisprudência recente do TC no que tange aos metadados em tudo o que tenha, na vertida investigação, toque que seja com prova proibida, no segmento em que não é atendível a prova obtida em violação da reserva da vida privada, sendo uma ingerência, nos termos daquele conhecido aresto em linha com a jurisprudência Europeia.
Fundamentalmente ao nível da obtenção da localização celular conservada e tudo aquilo que se vise provar violando o sumariado em jurisprudência sucessiva e posterior ao Ac. TC 268/2022 de 19-4-2022 que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do art.º 4º em conjugação com o art.º 6º e do art.º 9º da Lei dos Metadados, pois a conservação generalizada e indiferenciada dos “dados de tráfego” e de todos os dados de localização de quaisquer assinantes e utilizadores registados em relação a todos os meios de comunicação eletrónica revelavam a qualquer momento aspetos da vida privada e familiar de todos os cidadãos, independentemente, de serem suspeitos, constituindo uma agressão aos seus direitos fundamentais (nesse sentido Ac. TRE de 9-5-2023 e Ac. TRC de 12-10-2022, Procº 538/22.9JALRA.C1).
Mas além disso, trata-se de uma prova débil, porque admite conjeturar em diversos sentidos e desde logo colocar em causa que tenha sido o arguido diretamente a participar no grupo “troca de ideias” ou até a ser escutado, para além dum vasto campo de probabilidades que se podem encetar a tal mote.
Nada foi apreendido ao arguido que secunde a versão indiciariamente decidida.
Pelo que se trata da existência de indícios, mas não de fortes indícios.
Indício significa vestígio, sinal, rasto, elemento de investigação de um crime (Dicionário Universal da Língua Portuguesa, Texto Editora, 1995, pág. 832).
Naturalmente que a forma plural do substantivo converte os sinónimos igualmente à forma plural, o que significaria vestígios, sinais, rastos.
Por seu turno forte significa que tem força, valente, robusto, corpulento, rijo, sólido poderoso, possante, consistente, etc. (ídem, pág. 707).
A aceção de fortes indícios, atenta a preponderância da expressão e na matriz criminal, traduz sólidos e consistentes vestígios.
Não se quedam os fortes indícios, por meros vestígios, sinais ou rastos.
Trata-se de vestígios robustos e poderosos.
Isto porque a aplicação da medida de coação mais grave e gravosa do ordenamento jurídico-penal implica a existência dos fortes indícios, de robustos e poderosos vestígios, sinais ou rastos.
Não se queda a exigência pela mera existência de suspeitas.
De indícios ou até de indícios suficientes.
Trata-se, como se disse, de radicalizar a asserção dos indícios, como eivados de evidência.
Fortes indícios são sólidas evidências.
A prova indiciária indicada no despacho recorrido não sedimenta a forte indiciação, mas a mera indiciação, em latitude bem diversa da que exige o previsto no art.º 202º do CPP.
Portanto, definida a situação que está na génese da aplicação da medida de coação mais grave nos termos do art.º 202º do CPP, cumpre então assinalar que, diferentemente do que foi judicialmente considerado, não existem fortes indícios para efeitos das alíneas a) e c) do nº 1 daquele dispositivo legal atinente à aplicação da prisão preventiva.
E isso é o que basta para que a medida de coação deva ser revogada e substituída por medida de coação não privativa da liberdade.
O magistrado tem de ter presente que a prisão preventiva é uma medida excecional, que nunca é obrigatória e que não pode ser utilizado para fins punitivos (O novo Código de Processo Penal, Livraria Almedina, Coimbra, CEJ, 1997, Odete Maria de Oliveira, pág. 183).”
Ou seja, e retomando, existe a referência respeitante a duas malas contendo estupefacientes, que foram apreendidas.
E existem conversações mantidas através de um grupo de watsap que gera a maior perplexidade, desde logo ao nível de credenciação de tal prova, porque não basta ser a mesma validada pela Mtª Senhora JIC, existem vastas outras formalidades e requisitos em termos legais.
Como existem elementos probatórios atinentes a outras jurisdições, sem que se saiba se contêm a virtualidade de serem prova valorada no nosso ordenamento jurídico.
Pelo menos que se saiba não foi despoletado o mecanismo da cooperação judiciária internacional, em termos que possam as provas ser validadas por outras diversas ordens jurídicas e serem então, direta e automaticamente, acolhidas pelo nosso ordenamento jurídico.
Como a jurisprudência vem salientando, a prova obtida através de escutas ou interceções de mensagens em redes sociais é parca.
E a realidade é que as mensagens, ainda assim, não revelam com um grau fiável que o que das mesmas possa resultar tenha efetivamente acontecido, da forma que foi entendida.
Por isso se alegou que inexistem fortes indícios, existindo meros indícios ou suspeitas.
É que inclusivamente a própria suspeita da intervenção do recorrente é fornecida por um indivíduo Espanhol, que se lembrou de afirmar que iria incluir no grupo o responsável pela retirada das malas, o recorrente.
E a ser o recorrente que participa nas conversações não se logra saber, com segurança, se as suas mensagens foram todas elas remetidas por si próprio ou por terceiros.
E igualmente se não sabe se fala verdade ou não, a ser o mesmo, se encobre alguém ou não, se assume factos que não praticou.
Pelo que a questão que previamente se suscita é relativamente à validade desse meio de prova, de um grupo criado por cidadãos brasileiros, chamado “troca de ideia”, em termos de ser aferido se esse meio de prova é atendível e cumpre os requisitos de prova válida e legal face ao nosso ordenamento, porque a investigação e indiciação do recorrente é daí simplesmente que nasce e frutifica.
Urge descortinar em que termos a investigação acede a esse meio de prova, se de forma válida e legalmente prescrita ou de forma que a contamina sucessivamente, de forma semelhante à teoria do fruto apodrecido, gerando o efeito probatório da catarse, em termos de pedras de dominó que caem sucessivamente.
E foi nesse sentido que se motivou, porque esse meio de obtenção de prova se encontra previsto na lei, de forma cirúrgica, nos termos dos art.ºs 187º, 188º, 189º e 190º do CPP.
Pelo que se mantém a invocação de se estar em presença de prova nula, que não seguiu a formalidade exigente consignada naqueles preceitos legais, concretamente violando os art.ºs 187º-1 (corpo inicial), 2, 3, 4, 7 do CPP e 188º.
Já quanto à existência dos perigos, motivou-se:
Além da questão da indiciação antes exposta, a Mta Senhora JIC entendeu existirem os perigos de perigo concreto de perturbação grave da ordem e tranquilidade pública, de continuação da atividade criminosa, de fuga e de perturbação do decurso do inquérito, ou seja, entendeu pela existência de todos os perigos constantes no art.º 204º do CPP.
Já o detentor da ação penal se quedou, conforme resulta do auto de interrogatório, aos perigos de fuga e de continuação da atividade criminosa.
Na verdade, não existe perigo para a ordem ou tranquilidade pública, muito menos em face da natureza e gravidade do crime, não sendo isso que gera qualquer alarme social e sentimento de insegurança.
O que dita essa eventualidade é a situação processual ser divulgada quando os autos se encontrarão em segredo de justiça, é isso que alarma as pessoas, de forma desnecessária e evitável.
Como já foi decidido em sentido semelhante em diversos arestos tal perigo deverá sustentar-se em factos dos quais seja possível inferir que a permanência do arguido em liberdade é potencialmente geradora de tal perturbação e deverá reportar-se ao previsível comportamento do arguido no futuro imediato e não ao crime por ele indiciariamente cometido, nem à reação que possa gerar-se na comunidade (Ac. TRE, Proc.º 96/20.9GFELV-A,E1 de 23-11-2021, Rel. Des. Maria Clara Figueiredo, in www.dgsi.pt e Ac. TRE de 23-1-2024, Procº116/23.5GAVVC-B.E1, Rel. Des. Margarida Bacelar).
Também o perigo de continuação da atividade criminosa não pode ser, meramente, inferido, em face dos proventos que possa gerar a atividade em causa, este perigo a existir tem de resultar em termos concretos, sendo esse o denominador comum em relação às previsões contidas no art.º 204º do CPP.
Tem de resultar da natureza e das circunstâncias do crime, aqui se denotando que a investigação em lado algum refere que tipo de montantes auferidos estejam em causa, nem as regras de experiência comum permitem dilucidar essa matéria, para se poder dizer que gera lucros ou proveitos de tal forma que só por si isso funda o perigo em questão.
Igualmente a personalidade do arguido nada permite decifrar ou inteligir, apenas se sabendo que não tem qualquer registo criminal conforme é assumido no despacho recorrido.
Portanto, sem grande dificuldade, em termos concretos, não resulta que exista perigo algum de continuação da atividade criminosa; isso seria branquear o impacto da intervenção estadual e da intervenção da justiça no momento atual em que o arguido foi detido e constituído arguido.
Nem se vislumbra de onde advém a referência ao nível de vida do arguido sem correspondência que seja com a sua atividade laboral de empreiteiro/pedreiro, sendo que aí o despacho judicial nada aduz ou complementa ou justifica para retirar essa conclusão.
Não se pode tratar a situação processual acontecida como uma situação abstrata, significando-se que ainda que resultando das regras de experiência comum que a atividade ilícita gera proventos que podem ser pronunciados, como isso se diga que automaticamente existe perigo de continuação da atividade criminosa.
O perigo de fuga motivado por via do arguido ser nacional de outro Estado e ter deslocações a Países diversos igualmente o não corrobora, uma vez que não reveste a virtualidade de evidenciar um perigo concreto nessa matéria e desvaloriza a realidade atual através da cooperação judiciária internacional, se acaso se verificasse fuga alguma.
Fuga é um conceito que contempla uma componente simultaneamente objetiva e subjetiva, encerra um conteúdo transitivo que implica a ideia de deslocação de um certo local para outro e pressupõe a intenção de subtração. De desvio, a determinado evento ou ocasião ou circunstância, sendo um conceito finalisticamente orientado no sentido de alcançar um espaço de segurança entre a iminente confrontação ou submissão a algo que constitui uma ameaça e que a todo o custo de pretende evitar ou inviabilizar (nesse sentido Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos fundamentais, Almedina, junho 2004, págs. 109 e 110, Frederico Isasca).
Trata-se de visar impedir a ação da justiça.
Trata-se, temporal e materialmente, um perigo concreto, como se disse, deve ser real e iminente, não meramente hipotético, virtual ou longínquo (obra antes citada, pág. 109).
Aliás, o arguido é empreiteiro e tem a sua vida estabilizada em Portugal onde reside com a companheira e tem filhos.
O seu centro de interesses vitais situa-se em Portugal, não na Guiné, nem em Espanha nem no Brasil.
Pelo que igualmente se articula pela inexistência de tal perigo, sendo que sem o passaporte não é viável, de qualquer forma, pelo menos viajar para a Guiné ou Brasil, sabendo-se que uma eventual fuga para Espanha ou dentro da Europa será visada pela cooperação comunitária e resolvida pela emissão de MDE.
Dir-se-ia que eximir-se à justiça fugindo para Espanha, ou França ou qualquer outro País do espaço Shengen é o mesmo que fugir dentro do País, atendendo aos mecanismos de eficácia generalizada fornecidos pela Cooperação judiciária internacional e, concretamente, Europeia.
Importa ainda ter presente que a lei não presume o perigo de fuga, exige que esse perigo seja concreto, o que significa que não basta a mera probabilidade de fuga deduzida de abstratas e genéricas presunções, v. g., da gravidade do crime, mas que se deve fundamentar sobre elementos de facto que indiciem concretamente aquele perigo, nomeadamente porque revelam a preparação para a fuga (Processo Penal, Vol. II, 3ª edição, pág. 265, Germano Marques da Silva).
As ligações do arguido com pessoas de fora do País não constituem motivo suficiente se não se provar que essas ligações facilitariam a fuga (Ac. TEDH no caso Calleja v. Malta), como também não o é o simples facto de a pessoa ser cidadão estrangeiro (Comentário ao CPP, 2ª edição, pág. 575, Paulo Pinto de Albuquerque).
Por fim, é referido o perigo de perturbação do inquérito alegadamente porque possa ser importunado e pressionado por outros indivíduos no sentido de ocultar provas, por se inferir estar o mesmo agregado a uma rede internacional de tráfico.
Também sobre esta matéria e em concreto, o despacho não justifica a conclusão retirada, indicando, pelo menos, que tipo de provas pudesse ele ser pressionado a ocultar.
Também quanto a este perigo, a lei não o presume, não bastando a mera probabilidade dessa situação.
É, pois, necessário que, em concreto, se demonstre tal perigo, através de factos objetivos ou circunstâncias concretas que o indiciem, e ainda que o recurso a outros meios é insuficiente para evitar tal perturbação (A Prisão preventiva e as restantes medidas de coação, Almedina, novembro de 2003, Fernando Gonçalves e Manuel João Alves, pág. 95).
Parece que o despacho recorrido se justificaria à luz da segurança do arguido, mas essa não é previsão do art.º 204º do CPP.
Em suma resultará, salvo o devido respeito e melhor opinião, que inexistem fundamentos, concretos, gerais e específicos, para a manutenção da prisão preventiva do arguido, nos sobreditos termos.
Trata-se de arguido primário.
Que oportunamente prestará declarações em sede própria.
Existem medidas de coação de menor gravidade que diluem os receios processuais premonitórios.
Desde logo a entrega do passaporte.
A proibição de contactos com pessoas relacionadas com estupefacientes.
E as apresentações periódicas junto do OPC, em 3 vezes por semana.
Ou o pagamento de caução.
Ou, decaindo parte da argumentação que antecede, no limite, a OPHSVE, sendo que se irá requerer a informação prevista no art.º 7º da Lei da vigilância eletrónica e se aguardará decisão judicial sobre a pretensão, uma vez que o despacho recorrido considera que não resulta inequivocamente demonstrada a existência de condições, quer logísticas, quer de apoio humano, para a implementar, o que poderá ser ultrapassado pela mesma.
Não resulta de forma alguma, poder considerar-se o recurso manifestamente improcedente, assim o rejeitando e decidindo por Decisão sumária.
Pode o mesmo improceder, mas a manifesta improcedência trata outra realidade.
A colegialidade na composição do Tribunal não pode ser afastada através da pretensa manifesta improcedência do recurso, salvo o muito devido respeito, sob pena de ser cometida a nulidade insanável quanto à composição natural do Tribunal.
E quanto a se violarem as garantias da Defesa, mormente no exercício do direito ao recurso na plenitude.
Recurso sobre uma medida de coação de prisão preventiva.
Mal se andaria, se perante uma decisão proferida que submete qualquer indivíduo a prisão preventiva, não pudesse o mesmo recorrer, ou visse vedado o direito respetivo, ante a aposição posterior da manifesta improcedência…
Por isso se reclama para a Conferência, uma vez que não sendo o recurso manifestamente improcedente, pela mesma deverá ser analisado e decidido, nas precisas questões apostas, que fundamentam as conclusões.
Acreditando-se na efetividade das decisões colegiais, que superiormente decidirão, conforme for de justiça e de direito.
*
B / Em Conclusões:
1º - O interposto recurso não é manifestamente improcedente, pelo que deve ser analisado e decidido na forma colegial;
2º - Inexistem fortes indícios da prática do crime imputado nos termos e para efeitos do art.º 202º do CPP, nos precisos termos que da motivação resultam e que aqui se reproduziu para todos os efeitos legais, questões que devem ser examinadas judicialmente e decididas conforme for de direito;
3º - Não resulta dos factos indiciados que o recorrente tenha logrado retirar mala alguma do aeroporto contendo produto estupefaciente, antes o que resulta é uma mera suspeita, de que pudesse estar envolvido nessa tentativa, gorada e motivada por parcos elementos probatórios, cuja validade é dúbia nos sobreditos termos invocados e motivados, para os quais se remete;
3º - O recurso deve ser julgado provido, igualmente por se não verificarem os perigos vertidos no art.º 204º do CPP, todos eles devendo ser examinados e decididos nessa conformidade.»
Os autos foram remetidos aos vistos e realizou-se a conferência.
*
2 – FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Questões a tratar
O que se discute neste momento é saber se deve ou não proceder a reclamação para a conferência deduzida pelo AA relativamente à decisão sumária proferida, que o mesmo é dizer, se deve ou não acolher-se o que em tal decisão sumária se decidiu, na medida em que, considerando manifestamente improcedente o recurso, confirma o despacho recorrido que determinara a sujeição daquele a prisão preventiva.
Para tanto, haverá então necessariamente que ponderar se há ou não fortes indícios do envolvimento do Arguido, nos termos descritos na decisão reclamada e no despacho recorrido, na prática de um crime de tráfico de estupefacientes e, na afirmativa, se estão do mesmo passo presentes as exigências cautelares aí identificadas e se a prisão preventiva é uma resposta adequada, necessária e proporcional.
*
2.2 O despacho recorrido
Tem o despacho recorrido o seguinte teor (transcrição):
«Indiciam fortemente os presentes autos os seguintes factos concretamente imputados ao arguido AA:
1 - O arguido AA tem contactos com indivíduos seus amigos e conhecidos que trabalham em diversas áreas do aeroporto Humberto Delgado, sito em Lisboa, nomeadamente no "handling", que são os serviços de suporte dos aviões em solo, operando, entre outros, com bagagem aérea.
2 - O arguido AA e esses seus amigos e conhecidos que trabalham no aeroporto Humberto Delgado prestam serviços para grupos e indivíduos que transportam cocaína da América do Sul para a Europa, o qual consiste em retirar malas com cocaína do aeroporto e em entregá-las a terceiros.
3 - No desenvolvimento desta atividade, indivíduos residentes na América do Sul colocam cocaína no interior de malas de viagem e, por via aérea, remetem tais malas para o aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa.
4 - Por vezes estas malas são dotadas de sinalizador GPS a fim de os indivíduos residentes na América do Sul, o arguido AA e/ou os destinatários das malas, poderem conhecer e seguir o seu trajeto.
5 - Esses indivíduos avisam o arguido AA das características das malas com cocaína e do voo em que as mesmas são transportadas, bem como do indivíduo a quem as malas devem ser entregues.
6 - Por sua vez, o arguido AA avisa os seus amigos e conhecidos que trabalham no aeroporto Humberto Delgado das malas com cocaína e do voo em que as mesmas são transportadas.
7 - Logo que o avião aterra no aeroporto Humberto Delgado, um dos amigos ou dos conhecidos do arguido AA, que esteja a trabalhar nesse momento, desloca-se para a zona de recolha da bagagem e recolhe as malas que, tal como informação prévia do referido arguido, contêm cocaína no seu interior.
8 - De seguida, o mesmo indivíduo transporta a mala com cocaína para o exterior do aeroporto e entrega-a ao arguido AA que, em contrapartida, lhe paga indeterminado montante em dinheiro.
9 - Ato contínuo, o arguido AA transporta as malas para local desconhecido e entrega-as ao indivíduo indicado pelos sul-americanos que, em contrapartida, lhe paga indeterminado montante em dinheiro.
10 - No dia 19 de novembro de 2021, indeterminado indivíduo, em São Paulo - Brasil, colocou no interior de uma mala de viagem 30 (trinta) blocos de cocaína com o peso global de 32,600 quilogramas e colocou um sinalizador GPS na mesma mala.
11 - De seguida, o mesmo indivíduo logrou colocar tal mala num voo destinado ao aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, e informou o arguido AA das características da mala com cocaína, do voo em que a mesma era transportada e do indivíduo a quem a mala deveria ser entregue.
12 - O arguido AA informou um dos seus amigos e conhecidos que trabalhavam no aeroporto Humberto Delgado das características da mala com cocaína e do voo em que a mesma era transportada.
13 - Logo que o avião aterrou em Lisboa, esse indivíduo deslocou-se para a zona de recolha da bagagem a fim de recolher a mesma mala, o que apenas não fez, por temer ser detetado e detido por inspetores da Polícia Judiciária que se encontravam no local em vigilância.
14 - Os inspectores da Polícia Judiciária apreenderam a mala e a cocaína no seu interior.
15 - A comunicação social não relatou a ocorrência da mesma apreensão, razão pela qual os indivíduos da América do Sul que tinham remetido a cocaína pensaram que o arguido AA se tinha apropriado da mala e da cocaína e exigiram explicações ao mesmo.
16 - O arguido AA foi admitido num grupo da aplicação Whatsapp denominado "troca de ideia" que era utilizado pelo mesmo grupo para comunicarem sobre a remessa das malas com cocaína.
17 - O arguido AA foi admitido neste grupo de Whatsapp apenas para prestar esclarecimentos sobre o desaparecimento da mala e da cocaína e, efetivamente, informou que o seu contacto não tinha conseguido recolher a mala e que a polícia tinha apreendido a mala e a cocaína.
18 - No dia 22 de janeiro de 2022, indeterminado indivíduo, em Punta Cana - República Dominicana, colocou no interior de duas malas 41 (quarenta e um) blocos de cocaína, com o peso global de 49,300 quilogramas de cocaína.
19 - De seguida, o mesmo indivíduo logrou colocar tais malas num voo destinado ao aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, e informou o arguido AA das características das malas com cocaína, do voo em que as mesmas eram transportadas e do indivíduo a quem as malas deveriam ser entregues.
20 - O arguido AA informou um dos seus amigos e conhecidos que trabalhavam no aeroporto Humberto Delgado das características das malas com cocaína e do voo em que as mesmas eram transportadas.
21 - Logo que o avião aterrou em Lisboa, esse indivíduo deslocou-se para a zona de recolha da bagagem a fim de recolher as duas malas, o que apenas não fez, por temer ser detetado e detido por inspetores da Polícia Judiciária ou de outra entidade policial.
22 - Os inspetores da Polícia Judiciária apreenderam as duas malas e a cocaína no seu interior.
23 - No dia 7 de maio de 2024, pelas 08,00 horas, o arguido AA guardava no interior da sua residência sita na ...º drt.º, no ..., 8,53 gramas de canábis.
24 - O arguido AA, conhecendo as características da cocaína, representou e quis os factos acima descritos, designadamente aceitou receber, fazer transitar e entregar a terceiros cocaína, e agiu com a intenção de concretizar tais intentos, o que logrou alcançar.
25 - Mais sabia o arguido AA que a detenção de cocaína, compra, venda, cedência, oferta, distribuição, transporte, importação e exportação, o fazer transitar e o seu recebimento a qualquer título, são condutas proibidas e punidas por lei, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente.
26 - O arguido é casado e tem cinco filhos.
27 - O arguido reside com o seu cônjuge, a sua sogra e um dos seus filhos em casa própria.
28 - O arguido é empresário, auferindo mensalmente, pelo menos, a quantia de € 1.350,00 (mil, trezentos e cinquenta euros).
29 - Como habilitações literárias, o arguido possui o 12º ano de escolaridade.
30 - Do certificado de registo criminal do arguido não consta averbada qualquer condenação.
*
A forte indiciação dos factos supra assinalados, pese embora o silêncio do arguido, resulta inequívoca dos elementos probatórios constantes dos autos e respetivos apensos, designadamente o auto de notícia/detenção de fls. 2 a 5 do apenso 1; o auto de entrega de fls. 7 do apenso 1; o auto de pesagem e teste rápido de fls. 8 do apenso 1; as fotografias de fls. 10 a 17 do apenso 1; os autos de apreensão de fls. 9 do apenso 1; os documentos de fls. 18 do apenso 1; os autos de visionamento de fls. 35 a 51 do apenso 1; os documentos vários de fls. 19 a 53 do apenso A; os documentos de fls. 58 a 310 do apenso B; as transcrições de interceções do apenso C; o auto de notícia/detenção de fls. 2, 3, 17 e 18; os autos de apreensão de fls. 4 e 18, 745, 746, 762, 766, 772, 759, 791, 792, 794, 798 e 802; as fotografias de fls. 5 a 8 e 20 a 23, 747 a 758, 763, 767, 768, 774, 795 a 797 e 800; os documentos de fls. 9, 24, 42 a 46, 148 a 167, 205 a 247, 249 a 266, 271 a 275, 279 a 299, 422 a 425, 565 a 572, 596 a 600, 674 a 682, 742 a 743, 759, 781 a 783, 805 a 805 e 823 a 826; o auto de inquirição de fls. 683; os auto de pesagem e teste rápido de fls. 10, 28 e 760 e os relatórios periciais de fls. 101, 102, 109, 110, 130, 132 e 504 a 506.
Com efeito, tais elementos probatórios, designadamente as apreensões, vigilâncias, interceções e gravações efetuadas, em conjugação com as regras da experiência comum e da normalidade social, atendendo ao "modus operandi" do arguido, revestem virtualidade suficiente para o Tribunal considerar fortemente indiciada a prática por parte do arguido de todos os factos supra assinalados.
Os factos atinentes à situação pessoal e condição económica do arguido resultam das declarações por este prestadas perante o Tribunal.
O certificado de registo criminal do arguido, constante dos autos serviu para atestar a ausência de antecedentes criminais do arguido.
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Os factos fortemente indiciados nos autos são suscetíveis de integrar a prática pelo arguido, em autoria material e na forma consumada, do crime de tráfico de estupefacientes, previsto pelo artigo 21º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, tendo por referência a Tabela I-B anexa ao mesmo diploma legal, punível com pena de prisão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.
Este tipo legal de crime integra o conceito de criminalidade altamente organizada previsto no artigo 1º, alínea m) do Código de Processo Penal, sendo punível, em abstrato, com pena de prisão superior a cinco anos.
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Importa averiguar se se verificam em concreto os perigos a que alude o artigo 204º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a fim de decidir se é necessária, adequada e proporcional a aplicação ao arguido AA de uma medida de coação distinta do Termo de Identidade e Residência já prestado nos autos.
A aplicação das medidas de coação obedece aos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade em refração do princípio constitucional da presunção da inocência consagrado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
De acordo com o artigo 191º, n.º 1 do Código de Processo Penal, "a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei".
O artigo 193º do Código de Processo Penal, por sua vez, estabelece, no seu n.º 1, que "as medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas".
Nos termos do artigo 193º, n.º 2 do Código de Processo Penal, "a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação".
Os princípios constitucionais da exceção e da necessidade de qualquer medida privativa da liberdade, atenta a natureza de medida gravosa, conferem-lhe o caráter de meio excecional e subsidiário, que se restringe aos casos em que as restantes medidas de coação se mostrem inadequadas e insuficientes, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 27º, n.º 3 e 28º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e 193º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
*
O crime fortemente indiciado nos autos, pela sua própria natureza e gravidade, atento o seu modo de execução, a quantidade elevada de produtos estupefacientes apreendidos e os bens jurídicos em causa, gera um forte alarme social e um grande sentimento de insegurança, o que permite concluir pela existência de um perigo concreto de perturbação grave da ordem e da tranquilidade pública, a que alude o artigo 204º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal.
Por outro lado, estamos perante um crime com dimensão no espectro de tráfico internacional, que proporciona a angariação de quantias monetárias elevadas, consabidos que são os fáceis e aliciantes lucros obtidos com o desenvolvimento da atividade de tráfico de estupefacientes, sendo facto notório que a comercialização de cocaína é uma atividade muito rentável, pelo que naturalmente que a tentação de o arguido obter dinheiro fácil e avultado é elevada, além de que o nível de vida apresentado pelo mesmo não se afigura compatível com os rendimentos lícitos que o mesmo declara auferir, pelo que se considera verificado o perigo concreto de continuação da atividade criminosa, a que alude o artigo 204º, n.º1, alínea c) do Código de Processo Penal.
Acresce que o arguido é guineense, tem residência em Portugal e em Espanha e desloca-se com frequência para o estrangeiro, pelo que naturalmente que, caso não seja impedido de circular, a probabilidade de se pôr em fuga e de se eximir à justiça é elevada, tal como o é a probabilidade de lhe vir a ser aplicada uma pena de prisão efetiva em sede de julgamento, por força das fortes exigências de prevenção geral que o caso reclama, o que permite considerar verificado o perigo concreto de fuga a que alude o artigo 204º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.
Por último, a quantidade elevada de produtos estupefacientes apreendidos e as circunstâncias em que ocorreram os factos inculcam ao Tribunal a ideia de que o arguido agiu integrado numa rede de tráfico de estupefacientes internacional, existindo o receio de que o mesmo possa vir a ser importunado e pressionado por outros indivíduos no sentido de ocultar provas, verificando-se assim também o perigo concreto de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente, o perigo para a aquisição da prova a que alude o artigo 204º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal.
O Tribunal deve assim aplicar uma medida de coação adequada e necessária a obstar aos aludidos perigos decorrentes da perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, de continuação da atividade criminosa, de fuga e de perturbação do inquérito, sendo evidente que apenas uma medida de coação de natureza detentiva se mostra apta a acautelar tais perigos, não se bastando as exigências cautelares do processo com a aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica.
Por um lado, não resulta inequivocamente demonstrada nos autos a existência de condições, quer logísticas, quer de apoio humano, para implementar com o mínimo de eficácia a execução da medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, garantindo uma efetiva contenção dos movimentos do arguido.
Por outro lado, tal medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica não se afigura eficaz para prevenir os aludidos perigos de perturbação do inquérito e de continuação da atividade criminosa, na medida em que não impediria que o arguido fosse contactado e/ou contactasse terceiros no sentido de prosseguir a atividade criminosa de tráfico de estupefacientes a partir da sua residência e/ou condicionar e ocultar provas.
Nestes termos, tudo ponderado, e pese embora a ausência de antecedentes criminais do arguido, afigura-se que a única medida ajustada e apta a acautelar os aludidos perigos é a medida de coação de prisão preventiva, por ser a única adequada e necessária às exigências reclamadas nos autos e também proporcional à sanção que previsivelmente lhe virá a ser aplicada em sede de audiência de julgamento.
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Face ao exposto, ao abrigo do preceituado nos artigos 191º, 192º, 193º, 194º, 195º, 196º, 202º, n.º 1, alíneas a) e c) e 204º, n.º 1, alíneas a), b) e c), todos do Código de Processo Penal, determino que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito, além do Termo de Identidade e Residência já prestado nos autos, à medida de coação de prisão preventiva.»
2.3 O recurso interposto – as suas conclusões
No recurso que interpôs, formulou o Arguido as seguintes conclusões (transcrição):
«1º - Não existem fortes indícios da prática dos factos elencados no despacho recorrido e subsumidos ao art.º 21º do dl. 15/93 de 22-1, o que existe são meros indícios ou indícios que não têm a virtualidade de serem fortes indícios nos termos assinalados na motivação que antecede e para efeitos do art.º 202º do CPP.
2º - Os elementos probatórios que credenciaram judicialmente a existência de fortes indícios da factualidade imputada são parcos e insuficientes para o efeito.
3º - Não se verificam os perigos, em concreto, traduzidos pelo art.º 204º do CPP, nos termos constantes na motivação que antecede.
4º - Atendendo aos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade e suficiência, deve a situação coativa ser revista e ser aplicada outra medida de coação menos gravosa nos termos preconizados na motivação que antecede.»
2.4 Conhecendo da reclamação
Desde já anunciamos que confirmar-se-á no fundo a decisão reclamada, acompanhando as soluções por esta apontadas, seja quanto à enunciação dos factos considerados fortemente indiciados, seja quanto à sua integração jurídico-substantiva, seja quanto às exigências cautelares identificadas (sem prejuízo de algumas ressalvas a que adiante aludiremos), seja quanto à necessidade, adequação e proporcionalidade da prisão preventiva aplicada, com o que, em suma, resultará também confirmado o despacho recorrido.
Expliquemos porquê.
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2.4.1 Os factos indiciados
§ 1 – A prova indireta
É naturalmente desejável que a prova seja direta, no sentido em que o meio de prova permita afirmar, por si só, isto é, perdoando-se-nos o pleonasmo, diretamente, o facto relevante em discussão.
Em processo penal a prova não tem todavia que ser toda ela direta, evidente e inequívoca; justifica-se na verdade que atentemos à natureza e ao valor da chamada prova indireta, indiciária ou por presunções.
A prova indireta, indiciária ou por presunções tem um lugar da maior importância no processo penal, há muito reconhecido (Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, II, pg. 289 e Ana Maria Barata de Brito, «A valoração da prova e a prova indirecta», Criminalidade Económico-Financeira, tomo III, Cadernos do CEJ, in http://www.cej.mj.pt/).
Está com efeito consolidado o entendimento de que a prova não tem que ser direta, podendo antes resultar de indícios, verificados que estejam cumulativamente vários requisitos (Ac. RG de 19/01/2009, Proc. nº 2025/08.2, relatado por Cruz Bucho, in www.dgsi.pt): (a) os indícios deverão estar demonstrados por meio de prova direta; (b) deve existir uma pluralidade de indícios, só em casos excecionais se admitindo como suficiente um único indício; (c) e entre os indícios provados e os factos que deles se inferem deve existir um nexo preciso, direto e lógico.
O próprio Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já afirmou que a prova pode decorrer da coexistência de suficientemente fortes, claros e concordantes indícios ou de não abaladas presunções de facto de natureza idêntica (Ac. Hajnal c/ Sérvia, 19/06/2012, § 82; alinhando no mesmo diapasão, vide ainda os Acs. Willcox e Hurford c/ Reino Unido, 8/01/2013, § 96 Salabiaku c/França, 7/10/1988, § 28 e Janosevic c/ Suécia, 23/07/2002, § 101 – todos os acórdãos do TEDH podem ser consultados in http://hudoc.echr.coe.int/).
Convocando aqui a posição assumida pelo legislador italiano, a que aludimos apenas pelo esforço de síntese que a mesmo concita, dir-se-á, à semelhança do plasmado no art.º 192º, nº 2 do Código de Processo Penal Italiano, que «a existência de um facto não pode ser deduzida de indícios a menos que estes sejam graves, precisos e concordantes» (tradução livre).
Do que vimos de dizer resulta, para a situação de que aqui cuidamos, que a demonstração indiciária dos factos não pode passar pela necessária exigência, por exemplo, de uma confissão do Arguido, ou do depoimento prestado por quem o tenha visto ou encontrado na posse efetiva das substâncias estupefacientes ou em execução de uma etapa crucial do percurso ilícito de tais substâncias.
Uma tal demonstração pode bem resultar da análise de um conjunto variado de elementos de prova, ainda que de perfil indireto, desde que concatenados entre si e à luz das regras da lógica, do normal acontecer e da experiência comum, como adiante melhor veremos.
§ 2 A prova produzida em ordens jurídicas estrangeiras
No recurso que interpôs e na reclamação que deduziu, o Recorrente questiona a validade legal de prova disponível nos autos.
Diz a esse respeito na motivação de recurso o seguinte:
«(…)
Portanto o que existe ao nível da livre apreciação da prova na valoração dos meios de prova é uma inferência através quer das mensagens do grupo do watsapp quer por via de interceções telefónicas, o mesmo é dizer prova indireta.
E neste aspeto há que enfocar a jurisprudência recente do TC no que tange aos metadados em tudo o que tenha, na vertida investigação, toque que seja com prova proibida, no segmento em que não é atendível a prova obtida em violação da reserva da vida privada, sendo uma ingerência, nos termos daquele conhecido aresto em linha com a jurisprudência Europeia.
Fundamentalmente ao nível da obtenção da localização celular conservada e tudo aquilo que se vise provar violando o sumariado em jurisprudência sucessiva e posterior ao Ac. TC 268/2022 de 19-4-2022 que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do art.º 4º em conjugação com o art.º 6º e do art.º 9º da Lei dos metadados, pois a conservação generalizada e indiferenciada dos “dados de tráfego” e de todos os dados de localização de quaisquer assinantes e utilizadores registados em relação a todos os meios de comunicação eletrónica revelavam a qualquer momento aspetos da vida privada e familiar de todos os cidadãos, independentemente, de serem suspeitos, constituindo uma agressão aos seus direitos fundamentais (nesse sentido Ac. TRE de 9-5-2023 e Ac. TRC de 12-10-2022, Procº 538/22.9JALRA.C1).
Mas além disso, trata-se de uma prova débil, porque admite conjeturar em diversos sentidos e desde logo colocar em causa que tenha sido o arguido diretamente a participar no grupo “troca de ideias” ou até a ser escutado, para além dum vasto campo de probabilidades que se podem encetar a tal mote.
Nada foi apreendido ao arguido que secunde a versão indiciariamente decidida.
Pelo que se trata da existência de indícios, mas não de fortes indícios.
(…)»
E na reclamação em apreço diz o Arguido a este propósito o seguinte:
«(…)
E existem conversações mantidas através de um grupo de watsap que gera a maior perplexidade, desde logo ao nível de credenciação de tal prova, porque não basta ser a mesma validada pela Mtª Senhora JIC, existem vastas outras formalidades e requisitos em termos legais.
Como existem elementos probatórios atinentes a outras jurisdições, sem que se saiba se contêm a virtualidade de serem prova valorada no nosso ordenamento jurídico.
Pelo menos que se saiba não foi despoletado o mecanismo da cooperação judiciária internacional, em termos que possam provas ser validadas por outras diversas ordens jurídicas e serem então, direta e automaticamente, acolhidas pelo nosso ordenamento jurídico.
Como a jurisprudência vem salientando, a prova obtida através de escutas ou interceções de mensagens em redes sociais é parca.
E a realidade é que as mensagens, ainda assim, não revelam com um grau fiável que o que das mesmas possa resultar tenha efetivamente acontecido, da forma que foi entendida.
Por isso se alegou que inexistem fortes indícios, existindo meros indícios ou suspeitas.
É que inclusivamente a própria suspeita da intervenção do recorrente é fornecida por um indivíduo Espanhol, que se lembrou de afirmar que iria incluir no grupo o responsável pela retirada das malas, o recorrente.
E a ser o recorrente que participa nas conversações não se logra saber, com segurança, se as suas mensagens foram todas elas remetidas por si próprio ou por terceiros.
E igualmente se não sabe se fala verdade ou não, a ser o mesmo, se encobre alguém ou não, se assume factos que não praticou.
Pelo que a questão que previamente se suscita é relativamente à validade desse meio de prova, de um grupo criado por cidadãos brasileiros, chamado “troca de ideia”, em termos de ser aferido se esse meio de prova é atendível e cumpre os requisitos de prova válida e legal face ao nosso ordenamento, porque a investigação e indiciação do recorrente é daí simplesmente que nasce e frutifica.
Urge descortinar em que termos a investigação acede a esse meio de prova, se de forma válida e legalmente prescrita ou de forma que a contamina sucessivamente, de forma semelhante à teoria do fruto apodrecido, gerando o efeito probatório da catarse, em termos de pedras de dominó que caem sucessivamente.
E foi nesse sentido que se motivou, porque esse meio de obtenção de prova se encontra previsto na lei, de forma cirúrgica, nos termos dos art.ºs 187º, 188º, 189º e 190º do CPP.
Pelo que se mantém a invocação de se estar em presença de prova nula, que não seguiu a formalidade exigente consignada naqueles preceitos legais, concretamente violando os art.ºs 187º-1 (corpo inicial), 2, 3, 4, 7 do CPP e 188º.
(…)»
Resulta do exposto que o Arguido pretende, por um lado, pôr em crise a validade legal da prova proveniente das autoridades estrangeiras, e pretende ainda, por outro lado, mesmo admitindo-se uma tal valia, pôr em crise a leitura que de tal prova resulta, ou pelo menos que dela resultem mais que meros (e não fortes) indícios dos factos descritos.
Concentremo-nos por ora naquele primeiro aspeto: estamos ou não diante prova nula?
A este respeito não podemos deixar de sublinhar um aspeto preliminar que é o que se prende com uma divergência entre aquilo que o Arguido invoca no recurso e aquilo que diz na reclamação.
Olhando às passagens que nesta matéria relevam, o que o Arguido diz no recurso reporta-se aos «metadados» e «fundamentalmente ao nível da obtenção da localização celular conservada».
E o que diz na reclamação vai além disso, no sentido em que alude às «conversações mantidas através de um grupo de watsap que gera a maior perplexidade, desde logo ao nível da credenciação de tal prova, porque não basta ser a mesma validada pela Mtª Senhora JIC, existem vastas outras formalidades e requisitos legais», que «urge descortinar em que termos a investigação acede a esse meio de prova, se de forma válida e legalmente prescrita ou de forma que a contamina sucessivamente (…)», «pelo que se mantém a invocação de se estar em presença de prova nula (…)».
Ora, o que resulta do que vimos de expor é que o Arguido, por via da reclamação que deduziu, como que procura objetivamente alargar o objeto do recurso que formulara: onde antes questionava o uso nestes autos de informação obtida e conservada por autoridades estrangeiras em matéria de metadados e geolocalização, pretende agora ver apreciado não só isso, mas ainda a validade da prova relativa às conversações e mensagens produzidas na rede social WhatsApp e acedidas por autoridades estrangeiras.
Tal não tem apoio processual – o objeto do recurso continua a ser o mesmo, isto é, o definido inicialmente (sem prejuízo da possibilidade, que sempre estará ao alcance do Tribunal, de conhecer oficiosamente da existência nos autos de provas proibidas, o que não é o caso).
Assim é que apreciaremos a questão que fora suscitada aquando do recurso interposto e sobre a qual a decisão sumária pôde conhecer, que se prende com a problemática do uso nestes autos de informação obtida e conservada por autoridades estrangeiras em matéria de metadados e geolocalização.
Dito isto, cumpre notar que no recurso que interpôs o Arguido não individualiza de forma específica e concreta os elementos de prova cuja validade legal pretende questionar, como não individualiza de forma específica e concreta a relevância probatória de tais elementos nos factos descritos no despacho recorrido como indiciados.
O que o Arguido faz é alegar de forma genérica que tudo o que seja informação relativa a metadados e geolocalização não é admitido como prova à luz da nossa jurisprudência constitucional, sem cuidar de identificar nos autos e em particular no despacho recorrido, qual a exata informação com essa proveniência ou nela baseada direta ou indiretamente.
Ora, não compete a este Tribunal fazer uma incursão teórico-dogmática em abstrato sobre esta matéria e depois, como que encetando uma análise dos autos por varrimento geral, averiguar, ele próprio, se em concreto há ou não algum elemento de prova que escape aos cânones legais sob o prisma invocado e se teve ou tem alguma repercussão decisória a extirpar.
Se o Arguido entende que há uma nulidade, a ele compete argui-la, o que passa por identificar a questão no plano concreto, por referência precisa e individualizada aos meios de prova que considera estarem viciados.
Não o faz, o que nos leva até a considerar, em bom rigor, que o recurso está neste segmento destituído de objeto.
Sem prejuízo disto que se deixou dito, sempre acrescentaremos duas notas adicionais em relação a esta matéria dos metadados e geolocalização, mas que tem também aplicação geral à demais prova recolhida por autoridades estrangeiras e nomeadamente ao conteúdo de conversações e mensagens na rede WhatsApp a que acederam.
A primeira nota para sublinhar que nos autos foi proferido um despacho judicial, com data de 15 de setembro de 2023 (referência eletrónica nº 8536117), pelo qual foi admitida «(…) a utilização nos presentes autos, como meio de prova, da prova produzida no âmbito dos autos que correm termos em Espanha e no Brasil remetida na carta rogatória e na DEI, nos termos requeridos», despacho esse a que o Arguido aliás alude em sede de reclamação e que não terá sido (ainda) objeto de recurso ou em relação ao qual haja sido invocado expressamente algum vício, e nessa medida tem por ora o dito despacho a valia formal correspondente. E esse despacho judicial, acrescente-se, foi proferido na sequência de um outro, datado de 27 de outubro de 2022 (referência eletrónica nº 8104263), que autorizara «o Ministério Público a expedir carta rogatória e DEI, a solicitar a remessa dos elementos probatórios…».
A segunda nota para dizer que a informação probatória proveniente do Brasil e de Espanha já se acharia na posse das correspondentes autoridades nacionais, obtida e recolhida no contexto das investigações aí desenvolvidas, ou seja, trata-se de prova que não resultou de medidas de investigação cuja realização as autoridades portuguesas tivessem solicitado às suas congéneres brasileiras e espanholas - àquelas em carta rogatória e a estas por via de uma DEI. Se se tratasse de medidas de investigação solicitadas pelas autoridades portuguesas, poderia na verdade equacionar-se se a essa solicitação haveria de presidir um juízo de admissibilidade das diligências probatórias à luz do direito interno português, pois esse juízo teria sido inerente ao que levara à determinação de que fosse expedida uma carta rogatória e uma DEI.
Não. O que sucedeu foi que no Brasil e em Espanha foram desenvolvidas diligências de obtenção de prova no contexto de investigações próprias aí em curso, e tê-lo-ão feito ao abrigo das normas localmente aplicáveis, como não podemos deixar de presumir à luz de princípios ligados ao reconhecimento e confiança mútua entre sistemas nacionais soberanos, e na certeza, aliás, de que não se mostra invocada ou sugerida com um mínimo de consistência qualquer ilegalidade que aí possa ter sido praticada; e dessas diligências resultou um determinado acervo probatório que entretanto, a solicitação das autoridades portuguesas, foi partilhado com estes autos, o que tem à partida a plena cobertura dos instrumentos de cooperação judiciária em matéria penal: quanto à Decisão Europeia de Investigação, desde logo no art.º 23º, nº 1 (parte final) da Lei nº 88/2017, de 21/08 e, quanto à carta rogatória, nos arts. 1º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b) e 18º do Tratado de Auxílio Mútuo em Matéria Penal entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil (cfr. ainda o Aviso nº 329/94, in DR, I Série A, de 24/11/1994).
E não vemos por ora nada que obste a que esses elementos sejam aqui probatoriamente valorados, como o não viu o despacho judicial de 15 de setembro de 2023 atrás referido. É que, não o ignoremos, são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, de acordo com o que nos diz o art.º 125º do Código de Processo Penal, e não vemos norma que imponha semelhante proibição. Assim poderia eventualmente não ser se, olhados os elementos partilhados, pudéssemos concluir que a sua produção pelas autoridades congéneres estrangeiras tivera lugar com violação de regras imperativas de aplicação tendencialmente universal, como as que se prendem com a proibição de tortura ou tratamentos desumanos ou degradantes, com o respeito por garantias básicas de defesa e/ou com intervenções arbitrárias na vida privada, nos termos plasmados nos arts. 7º, 14º e 17º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, ou com métodos de obtenção de prova que ferissem princípios materiais essenciais do direito probatório português, como os estabelecidos no art.º 126º do Código de Processo Penal.
Nada disso vemos aqui, com o que improcede este segmento do recurso.
§ 3 – Os indícios no caso concreto
Afigura-se-nos acertada a leitura que a decisão reclamada faz dos indícios existentes; aqui damos, em suma, como reproduzidos os fundamentos que expressou, que nos merecem adesão.
Em qualquer caso, olhemos as coisas como elas se nos apresentam.
É óbvio que os autos documentam a existência de duas apreensões de cocaína no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, o que o Arguido não põe em causa: no dia 19 de novembro de 2021, de uma mala com 32,600 quilogramas de cocaína e no dia 22 de janeiro de 2022 de duas malas com um total de 49,300 quilogramas – a primeira proveniente de São Paulo, no Brasil, e as duas últimas de Punta Cana, na República Dominicana.
É sabido, e também não contestado, que no momento das apreensões as malas estavam desacompanhadas.
A questão que em geral se põe é então a de saber a história destas malas e se o Arguido tinha nela um papel e em concreto aquele que lhe apontam a decisão recorrida e a decisão sumária reclamada.
Estamos em crer que a narrativa vertida nessas decisões tem na verdade forte apoio nos elementos de prova aí citados.
Primeiro aspeto: as mensagens escritas e áudio cuja transcrição consta dos autos.
Resulta da carta rogatória devolvida pelas autoridades brasileiras que estas haviam desenvolvido em dado passo uma operação policial na qual foi apreendido um smartphone pertencente a uma pessoa suspeita de integrar uma associação sediada em São Paulo, dedicada ao tráfico internacional de estupefacientes, conhecida como PCC (Primeiro Comando da Capital), smartphone esse de cujo conteúdo pôde extrair-se informação pertinente, como conversações de WhatsApp: vejam-se nesta matéria o auto de análise dos dados fornecidos pelas autoridades brasileiras, constante de fls. 99 e seguintes da certidão com a referência eletrónica nº 8967123 e o extrato completo das mensagens trocadas no grupo WhatsApp “Troca de Ideia”, que figura a fls. 71 e seguintes da certidão com a referência eletrónica nº 8967127 e cuja tradução de alguma das partes mais relevantes consta a fls. 125 e sgs. da certidão com a referência eletrónica nº 8967127 e fls. 1 e sgs. da certidão eletrónica nº 8967127.
Resulta manifesto dos elementos disponíveis que este grupo de conversação foi constituído no dia 23 de novembro de 2021, ou seja, quatro dias depois da apreensão de 19 de novembro, com o propósito de os seus elementos discutirem o que acontecera à substância estupefaciente, que ao tempo, ao que tudo indica, não tinham ainda a certeza de ter sido apreendida, já que a dita substância não chegara aos seus destinatários e não houvera ainda notícia pública de qualquer apreensão.
É patente, da análise dessas conversações, que quem enviara a substância queria «provas» de que ocorrera uma apreensão policial, visto suspeitar, na ausência de notícia pública da mesma, que não existira qualquer intervenção policial e que alguém desviara a substância; é patente também que em dado passo surge, da parte de quem aparentemente receberia a final a substância, a referência a um tal «Aa», como sendo a pessoa responsável por retirar a mala do aeroporto, com recurso a pessoas dos serviços de handling que com ele colaboravam e que foi introduzido no grupo de conversação; e das próprias intervenções deste «Aa» no grupo, a começar pela primeira delas, é facilmente percetível que o mesmo assume ser esse o seu papel, nomeadamente quando se refere à fotografia que pediu «aos rapazes para fazer, para mostrar que a coisa chegou» e quando diz «envia GPS que é para saber, nós também estamos aí, porque eu não trabalho aí dentro não». E recorde-se que nos autos, como se salienta na decisão sumária, foi feito um exame pericial que concluiu que a mala que surge na mencionada fotografia é a que fora apreendida.
Tudo indica que seria uma das pessoas do handling que recolheria a mala e cuidaria de a entregar ao tal «Aa», procedimento aliás que não seria a primeira vez que se realizava, segundo se percebe também claramente das conversações e inclusive do que o próprio «Aa» diz, nomeadamente quando refere que «todos os trabalhos que vêm, vêm com GPS», ou «E nunca aconteceu isso não» ou «é a primeira vez da minha parte que isso aconteceu», ou «Perguntem aí aos vossos amigos cuantas malas deles que já recebi da república nunca falta uma só pela», «peça» e «levo 32 anos nessa vida» (fls. 68 e seguintes da certidão com a referência eletrónica nº 8967123).
O envolvimento e o papel de «Aa» resulta ainda expresso de conversações como a registada em Espanha sob os nºs 839 e 1432, de 18 de dezembro de 2021 e 23 de janeiro de 2022, respetivamente (fls. 1 e 37 da certidão com a referência eletrónica nº 8967129).
Algo terá acontecido na verdade para que a mala do dia 19 de novembro de 2021 não tivesse sido levantada do tapete de recolha de bagagens onde se sabe ter estado a circular, como resulta do auto de inquirição de fls. 51 e sgs. da certidão com a referência eletrónica nº 8967125, tudo indicando, a partir do teor desse depoimento, que o que muito provavelmente sucedeu foi que a pessoa incumbida de recolher a mala, da confiança de «AA», terá compreendido que o local se encontrava comprometido por vigilância policial e decidiu fazer abortar a sua missão.
Ora, e é o Arguido este «Aa»?
Há fortes indícios nesse sentido.
Antes de mais, o Arguido tem como primeiro nome precisamente «AA», o que, não sendo obviamente suficiente para que o associemos ao caso, constitui um elemento já com algum, embora em si mesmo escasso, interesse indiciário, visto não ser um nome comum.
Bem mais relevante que isso é, contudo, o sabermos que se trata de pessoa a quem foi apreendido um veículo tipo SUV, marca Mercedes Benz, modelo GLC, branco, de matrícula AD-..-JV (fls. 5 e sgs. da certidão com a referência eletrónica nº 8967126); veículo que os Srs. Inspetores da Polícia Judiciária o viram a conduzir (fls. 59 e sgs. da certidão com a referência eletrónica nº 8967124); e no qual entrou, em Madrid, no dia 3 de novembro de 2021, como observado pela Polícia Espanhola, uma pessoa conhecida por «Coyote», suspeito, em Espanha, de ser um dos responsáveis pela distribuição do estupefaciente nesse país e que se mostrava profundamente conhecedor dos procedimentos a seguir no aeroporto de Lisboa para garantir o levantamento daquele (fls. 40 da certidão com a referência eletrónica nº 8967130 e fls. 31 e sg. da certidão com a referência eletrónica nº 8967128), «Coyote» esse que, ao que tudo indica, veio a Lisboa no dia 17 de dezembro de 2021 para uma reunião com o Arguido, a qual foi objeto de vigilância por parte da Polícia Judiciária (fls. 25 e sgs. da certidão com a referência eletrónica nº 8967130), sendo que já no dia 23 de novembro de 2021 surgira no grupo WhatsApp a ideia de fazer uma reunião «com Aa y el equipo» (fls. 119 da certidão com a referência eletrónica nº 89671213).
E por outro lado sabemos, a partir de análise pericial comparativa que foi feita nestes autos entre a voz dos áudios colocados no acima mencionado grupo WhatsApp e a que se ouve nas interceções telefónicas de que o aqui Arguido foi alvo, que é de uma mesma pessoa que se trata, ou seja, do Arguido (fls. 1 e seguintes da certidão com a referência eletrónica nº 8967125).
Não tem assim sustentação lógica, à luz das regras da experiência comum e do mundo das probabilidades, a hipótese, que o Arguido no recurso aventa nesta matéria, de poder ser outra pessoa (que não identifica) que não ele a participar nas conversações daquele grupo ou a falar aquando das interceções telefónicas.
Por fim, importa ter presente, a respeito da segunda apreensão, datada de 22 de janeiro de 2022, que o Arguido também teria o mesmo papel que aquando do transporte anterior, como se percebe da conversação registada em 23 de janeiro de 2022, na qual é dito que «Aa» está a fazer todos os possíveis e que teriam tido o mesmo problema da outra vez (fls. 90 da certidão eletrónica nº 8967124); e que, tendo as malas ficado por levantar, estaria a diligenciar no sentido de convencer o passageiro a cujo nome vinham associadas a ir ao Aeroporto tentar levantá-las, como se percebe da conversação registada em Espanha sob o nº 1420, de 23 de janeiro de 2022 (fls. 90 da certidão com a referência eletrónica nº 8967124).
Temos em conclusão como fortemente indiciados os factos imputados ao Arguido.
Objeta o Arguido dizendo que a prova por interceções telefónicas e por acesso a conversações em redes online é insuficiente.
Trata-se de um argumento ponderoso, mas cuja valia depende em larga medida da inexistência de nada mais que isso mesmo – interceções e conversações online.
Ora, o que aqui temos é bem mais do que isso. Desde logo, as apreensões de cocaína em si mesmas, que prontamente tornam percetível que as conversações e mensagens a que se teve acesso e que constam dos autos não se situam no campo da metafísica, mas tem reporte óbvio a realidades concretas do mundo exterior e permitem estabelecer ligações entre as pessoas envolvidas e compreender, nas suas linhas essenciais, o papel de cada um na rede que tudo indica ser responsável pelo envio de quantidades apreciáveis de cocaína do continente americano para a Europa. Mas além disso há ainda vigilâncias policiais, que dão conta de encontros entre os intervenientes nas aludidas conversações, como já mencionámos atrás.
Por fim, acrescente-se ainda que não há notícia de o Arguido ou a sua companheira (cuja união de facto está registada em Espanha, cfr. fls. 31 da certidão com a referência eletrónica nº 8967124) terem à data rendimentos lícitos com um mínimo de expressão, e desde logo capazes de explicar as prováveis despesas próprias do apartamento em que habitavam (cujas imagens exteriores e interiores podem ver-se a fls. 55 e sgs. daquela certidão e fls. 65 a 83 da certidão com a referência eletrónica nº 8967125) e o uso quotidiano de um moderno SUV Mercedes (embora registado em nome de terceiro, a morada que figura no seguro é a do Arguido em Portugal, cfr. fls. 61 e sgs. da mesma certidão). Repare-se, neste contexto, nos extratos de remunerações de fls. 69 a 72 da citada certidão e nos de fls. 39 a 45 da certidão com a referência eletrónica nº 8967125.
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2.4.2 O enquadramento jurídico-substantivo das condutas indiciadas
Considera a decisão reclamada que os factos configuram a prática, pelo Arguido, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 21º, nº 1, do D.L. nº 15/93, de 22 de janeiro, tendo por referência a Tabela I-B anexa ao mesmo diploma.
Afigura-se-nos que uma tal qualificação está com efeito acertada.
O que os factos fortemente indiciados revelam, nas suas linhas essenciais, é um esquema que convoca a intervenção de várias pessoas, cada qual com um papel, de cujo desempenho depende o sucesso do plano geral a que todos aderem. No caso do Arguido, do que se tratava era de alguém que comandava quem, do interior do aeroporto, acederia às malas, as retiraria para o exterior e lhas entregaria, assegurando em seguida o Arguido o adequado encaminhamento para Espanha.
Alguém envia a substância estupefaciente do continente americano para o europeu e é o Arguido quem tem tudo pronto para a receber, de tal sorte que é manifesto que aquele envio só ocorre porque há a garantia da intervenção do Arguido e da sua «equipa». Nesse sentido e à luz das características próprias do tráfico intercontinental de droga, podemos dizer que o Arguido aderiu ao plano e tomou parte direta na sua execução, na medida em que oferecia a atenção, a disponibilidade e a prontidão (sua e das pessoas da sua confiança que trabalhavam no interior do aeroporto) necessárias para que a mercadoria pudesse ser posta a circular por via aérea. Pode destarte o Arguido ser apontado como coautor do crime, na vertente do «fazer transitar», que basta para a subsunção ao tipo legal (cfr. arts. 26º do Código Penal e 21º do D.L. nº 15/93, de 22 de janeiro).
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2.4.3 As exigências cautelares
No contexto do art.º 204º, nº 1 do Código de Processo Penal, a decisão reclamada considerou presentes as seguintes exigências cautelares:
i. Perigo de fuga, já que o Arguido é guineense, tem residência em Portugal e em Espanha e desloca-se com frequência ao estrangeiro, pelo que é elevada a probabilidade de se pôr em fuga, tal como o é a de lhe vir a ser aplicada uma pena de prisão efetiva;
ii. Perigo de continuação da atividade criminosa, tendo em conta que se trata de atividade que gera fáceis e avultados lucros, que o Arguido será tentado a repetir, tanto mais que o seu nível de vida não se afigura compatível com os rendimentos lícitos que declara auferir;
iii. Perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, face ao forte alarme social e ao grande sentimento de insegurança, atendendo à natureza, à gravidade e ao modo de execução do crime indiciado;
iv. Perigo de perturbação do decurso do inquérito, já que os factos traduzem o envolvimento do Arguido numa rede de tráfico de estupefacientes internacional, existindo o receio de que possa vir a ser importunado e pressionado por outros indivíduos no sentido de ocultar provas.
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Comecemos pelo invocado perigo de fuga.
O perigo de fuga, leia-se, o risco de a pessoa visada pelo processo penal se alhear deste e em particular de escapar às medidas e penas que no seu âmbito possa vir a ter-se como pertinente aplicar-lhe, está tendencialmente sempre presente, em abstrato, sejam quais forem as circunstâncias do crime indiciado e as consequências dele decorrentes em termos de pena previsível, e independentemente, ainda, da nacionalidade do agente e das suas condições físicas, sociais e económicas e possibilidades de movimentação geográfica.
Um sistema processual penal baseado no princípio da liberdade e no seu corolário da excecionalidade de medidas restritivas da liberdade não pode deixar de conviver com esse risco genérico, como tem também que estar disponível para acomodar factos comuns dos nossos dias, como o seja o de os cidadãos se movimentarem e viverem e trabalharem, quantas vezes, em países que não o do seu nascimento ou aquele de que são nacionais.
Assim é que o facto de o Arguido ter nacionalidade não portuguesa - no caso, guineense -, não constitui em si mesmo razão suficiente para termos por relevantemente preenchido o perigo de fuga para que aponta o legislador e ainda para mais quando, como aparentemente aqui sucede, a pessoa em causa tem alguma ligação estável ao nosso país, por ser titular de autorização de residência e aqui ter uma morada conhecida – isso mesmo nos dizem as boas práticas internacionalmente reconhecidas [cfr. ponto 9, § 2 da Recomendação Rec(2006) 13 do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a «remand in custody», in https://dgrsp.justica.gov.pt/Portals/16/Legislacao/Justica%20Penal/RPEuropeias.pdf?ver=2020-08-06-161754-313 ].
Também não constitui razão em si mesma suficiente para ver desenhado um perigo relevante de fuga a gravidade do crime indiciado e das sanções que previsivelmente virão a ser aplicadas em sede de condenação final – fosse este um critério bastante e a apreciação do perigo de fuga não desceria ao concreto das coisas, persistindo ao invés numa análise superficial e estereotipada de pendor abstrato, que aqui se não toleraria [cfr. Ac. do TEDH Merabishvili v. Georgia (GC), nº 72508/13, § 222, de 28/11/2017]; e que muito facilmente redundaria na aplicação sistemática de medidas de coação privativas da liberdade sempre que os crimes indiciados tivessem uma gravidade significativa, caso em que a medida de coação se transformaria, em termos prático-jurídicos, numa antecipação da peça definitiva, resultado e abordagem que é consensual dever afastar-se.
Se a nacionalidade não portuguesa e extraeuropeia do Arguido e a severidade da pena em que poderá incorrer não constituem, cada uma de per se, razões suficientes para concluir pela existência de perigo de fuga, também não podem, do mesmo passo, ser ignoradas.
O que há a fazer é ponderar, de forma global, o conjunto de todas as circunstâncias particulares do caso concreto, nas quais se inserem, entre outras, a severidade da pena que se antevê venha a ser aplicada ao Arguido (Acs. do TEDH Idalov v. Russia (GC), nº 5826/03, § 145, de 22/05/2012 e Panchenko v. Russia, nº 45100/98, § 106, de 8/02/2005) e a sua nacionalidade extraeuropeia.
Ora, estamos diante o indiciado transporte de quantidade expressiva de cocaína, a saber, mais de 32 quilogramas numa ocasião e mais de 49 noutra -, o que equivale, sem prejuízo de melhor contabilização que possa vir a fazer-se ulteriormente nos autos, a um total de cerca de 405.000 doses médias individuais diárias, tendo presente o mapa anexo à Portaria nº 94/96, de 26/03. E se a isso acrescentarmos uma referência à estrutura internacional da atividade imputada ao Arguido, que os factos ilustram, temos reunido um quadro fáctico que na realidade torna previsível, face à moldura legal aplicável (entre 4 e 12 anos), que a pena venha a ser efetiva, atentas desde logo as exigências da prevenção geral positiva que o caso convoca.
Essa onerosidade da pena, se por si só não justifica o perigo de fuga, não deixa destarte de constituir um elemento relevante se associado a outros fatores; e um deles é justamente a matriz internacional do crime indiciado - estamos diante um ilícito cujo cometimento tem uma vertente intercontinental que previsivelmente demanda, por isso mesmo e pela natureza e quantidade em causa de estupefaciente, conexões muito próximas com o mundo do crime organizado no exterior do país, e nomeadamente, no caso concreto, no Brasil, na República Dominicana e em Espanha. Esse contexto leva-nos a pensar que o Arguido, tendo essa oportunidade, poderia facilmente fazer uso de tais conexões para se furtar à ação da Justiça portuguesa, isoladamente ou em conjugação até com ligações que previsivelmente terá ainda com o seu País natal.
Acresce que a nacionalidade extraeuropeia do Recorrente e a concomitante e previsível facilidade de mudança de residência para um quadrante geográfico muito distante, também adensam os riscos de fuga e desaparecimento.
Note-se aliás que o Arguido, para além de ter nacionalidade guineense, é titular de autorização de residência em Portugal e em Espanha (fls. 15 e 17 a 19 da certidão com a referência eletrónica nº 8967126); e sabemos que é pessoa que viaja com frequência – repare-se que só no segundo semestre de 2023 terá ido ao estrangeiro pelo menos oito vezes, sete das quais a Espanha e uma a França (fls. 33 e 34 da certidão com a referência eletrónica nº 8967125).
Tudo visto e ponderado, estamos em crer que é com efeito possível afirmar no caso a presença, em concreto, de um intenso perigo de fuga do Arguido.
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Atentemos agora ao alegado perigo de continuação da atividade criminosa.
Temos este perigo como manifesto.
A natureza da substância apreendida, a sua quantidade expressiva e o modo internacional de cometimento do ilícito indiciado sugerem muito consistentemente um grau de envolvimento e de empenho do Arguido na atividade em causa que torna bem plausível que muito dificilmente a abandonaria a curto/médio prazo, até pelos proventos que com a mesma previsivelmente auferiria.
Não terá sido ao acaso que o circuito internacional do tráfico de droga confiou ao Arguido a incumbência que os factos indiciados retratam e que se traduziria no acesso a mais de 80 quilogramas de cocaína.
A natureza do papel assumido pelo Arguido na introdução da cocaína na Europa e a quantidade bastante expressiva de substância convergem para uma forte suspeita de que se trata de alguém que goza de elevada confiança dentro da organização criminosa; e essa suspeita adensa-se quando pensamos que temos, não uma, mas duas situações concretas.
Para além disso, é o próprio Arguido quem, como salientámos há pouco, invoca um histórico longo de situações da mesma natureza, o que terá feito por certo em benefício da afirmação da sua credibilidade junto de quem, ao tempo, queria «provas» de que a cocaína do primeiro envio fora efetivamente apreendida numa operação policial.
Ocorre, pois, concluir que tudo indica que o Arguido, tendo essa oportunidade, regressaria rapidamente à mesma atividade.
Também aqui não nos merece censura a decisão reclamada.
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Olhemos agora ao perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas.
Neste ponto não acompanhamos a decisão reclamada, por ausência de factos concretos que integrem a previsão correspondente do art.º 204º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal.
Expliquemos a nossa posição.
A redação originária da alínea em apreço era a seguinte: «c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da atividade criminosa.»
E a atual redação, introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29/08, é a seguinte: «c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas
O que ao que tudo indica esteve na base desta alteração de redação foi o propósito de pôr-se fim a dúvidas que se colocavam à luz da redação originária do preceito sobre o seu alcance, nomeadamente sobre se o que estava em causa era prevenir o comportamento futuro do arguido suscetível de desencadear uma perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, ou antes ou também uma eventual perturbação dessa natureza independente da vontade do arguido. Ficou então esclarecido que a norma cuida do perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas devida a um previsível comportamento futuro do arguido (cfr. Vítor Sequinho dos Santos, Medidas de Coacção, Revista do CEJ, 1º semestre de 2008, nº 9 Especial, pág. 131 e os Acs. da RE de 21-11-2023, relatado por Artur Vargues).
Não basta pois a convicção de que certo tipo de crimes poderá, em abstrato, causar emoção, inquietação ou perturbação públicas; isto é, subjacente a tal perigo não poderão estar questões ligadas à prevenção geral positiva, que se reconduzem às finalidades próprias das penas, dado que daí resultaria a atribuição às medidas de coação em geral de finalidades próprias das penas e não finalidades estritamente processuais, como exige o artigo 191º do Código de Processo Penal (Acs. da RE de 5-04-2022, relatado por Fátima Bernardes, este disponível apenas sob a forma de sumário, e da RC de 22-03-2023, relatado por Helena Bolieiro).
Por outro lado, esse perigo tem que estar baseado em factos que o evidenciem (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pg. 602).
Ora, não vemos com efeito que haja factos dos quais possa fazer-se derivar o perigo de que o Arguido viesse, pelo seu comportamento, a perturbar gravemente a ordem ou a tranquilidade públicas.
Nessa medida, não temos presente esta exigência cautelar.
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Vejamos agora, por fim, o alegado perigo de perturbação do decurso do inquérito.
Justifica a decisão recorrida a afirmação deste perigo, considerando que os factos traduzem o envolvimento do Arguido numa rede internacional de tráfico de estupefacientes, existindo o receio de que possa vir a ser importunado e pressionado por outros indivíduos no sentido de ocultar provas; e acrescenta a decisão reclamada que eventuais testemunhas poderão ser influenciadas e outros suspeitos informados do estado dos autos e, com isso, dificilmente virem a ser identificados e constituídos arguidos.
Não acolhemos esta motivação.
Não se vê que provas se espera virem a ser produzidas com o concurso do Arguido, Arguido que aliás se remeteu ao silêncio em interrogatório judicial, como é seu direito, nada garantindo que venha a modificar a sua posição; e se do que se tratar é de salvaguardar o Arguido e a sua liberdade de colaboração ativa com os autos, nesse sentido vítima de eventual pressão de terceiros, o caminho mais indicado a seguir não seria propriamente o de o sujeitar a medidas de coação, mas antes a medidas de proteção, nos termos previstos pelo art.º 1º, nº 1 e 2º, alíneas a) e b) da Lei nº 93/99, de 14 de julho.
E temos também alguma reserva em acompanhar na íntegra o que a decisão reclamada vem a acrescentar como justificação desta exigência cautelar: a ideia de que eventuais testemunhas poderão ser influenciadas e outros suspeitos informados do estado dos autos e, com isso, dificilmente virem a ser identificados e constituídos arguidos. Na verdade, o que aí se mostra nesta matéria dito, sendo embora razoável e congruente com as regras da experiência comum, coloca-se em relação a estes autos, pelo menos por ora, num plano em larga medida abstrato; e de resto, os terceiros intervenientes na rede em que o Arguido estava inserido já terão por certo conhecimento dos autos, pela circunstância objetiva da detenção daquele e da sua sujeição a prisão preventiva.
Acrescente-se, por fim, em jeito lateral, que não deixa de ser algo sintomático que em sede de primeiro interrogatório judicial o Digno Magistrado do Ministério Público, que previsivelmente maior sensibilidade terá ao perigo de perda ou perturbação de provas, pela natureza das suas funções e pela maior proximidade à investigação, não tenha invocado um tal perigo para justificar a prisão preventiva cuja aplicação promoveu (cfr. fls. 7 do auto de interrogatório de 8 de maio de 2024).
Seja como for, não vislumbramos na verdade elementos que deem pelo menos por ora suporte concreto a este perigo.
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2.4.4 Da necessidade, adequação e proporcionalidade da prisão preventiva
Assente que existem os perigos de fuga e de continuação da atividade criminosa, a questão a debater é a de saber se a prisão preventiva é, como defende o Arguido, excessiva; e se bastante seria o recurso a medidas menos gravosas, como as apresentações periódicas, a entrega do passaporte (leia-se, a proibição de ausência para o estrangeiro com entrega do passaporte), o pagamento de uma caução ou a sua sujeição a uma obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica.
Vejamos.
Afirma-se na decisão sumária reclamada que a prisão preventiva é a única medida que satisfaz eficazmente as exigências cautelares do caso, com isso afastando qualquer caminho alternativo à prisão preventiva.
Entendemos ser de acolher essa solução, tendo em mente as exigências cautelares que reconhecemos: perigo de continuação da atividade criminosa e perigo de fuga. Expliquemos porquê.
De acordo com o preceituado pelos arts. 191.º, n.º 1 e 193.º, n.ºs 1 a 3 do Código de Processo Penal:
i. todas as medidas de coação têm que ser necessárias e adequadas em face das exigências cautelares que motivam a sua aplicação;
ii. devem elas ser ainda proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente virão a final a ser aplicadas;
iii. a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação apenas podem ter lugar se as demais medidas de coação forem inadequadas ou insuficientes;
iv. e cabendo ao caso uma medida de coação privativa da liberdade, deve dar-se prevalência à obrigação de permanência na habitação, sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.
O que se mostra questionado pelo Arguido, neste segmento do seu recurso, é que seja necessária e proporcional a prisão preventiva e se não bastaria a imposição de medidas não privativas da liberdade ou, no limite, uma obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica.
Estamos em crer que a prisão preventiva é no caso adequada, necessária e proporcional.
É adequada, no sentido em que permite acorrer em medida de eficácia máxima às exigências cautelares que se identificaram.
E é também necessária. Com efeito, face ao grau de envolvimento e de empenho na atividade do tráfico internacional de estupefacientes que os factos evidenciam, nada impediria o Arguido, se em liberdade e mesmo ficando sujeito à obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, de voltar a desempenhar em breve funções idênticas às que temos documentadas que desempenhava, sabido como é que tem contactos com pessoas neste momento ainda não completamente identificadas que trabalham no interior do Aeroporto Humberto Delgado e que bem poderiam continuar sob o seu comando; decerto que, acedendo à retirada do estupefaciente das instalações do Aeroporto, nessas circunstâncias, enfrentaria o Arguido novos desafios no encaminhamento de tal estupefaciente para o seu destino final, mas antevê-se como viável que os poderia ultrapassar com relativa facilidade, bastando para tanto servir-se de alguém de confiança, como se sabe que tem.
Por outro lado, não é expectável que a intensidade do perigo de fuga que se deixou sinalizado pudesse ser acautelado com uma medida menos restritiva da liberdade; bastaria uma única infração ao estatuto coativo menos rigoroso que lhe fosse imposto e dificilmente seria o Arguido encontrado e trazido à Justiça em breve – uma única falha no cumprimento de eventual obrigação de apresentações ou uma única saída não autorizada da habitação a que ficasse confinado, por exemplo, e deparar-se-nos-ia uma situação em que o Arguido poderia abrigar-se em lugar seguro no nosso País, ou colocar-se em escassas horas em Espanha e, ante as fronteiras abertas do Espaço Schengen, em qualquer ponto deste e nomeadamente junto da sua fronteira leste, donde poderia, ainda que ilegalmente, partir para o exterior. Tendo presente a natureza, a quantidade e o valor de mercado que é do conhecimento geral que as substâncias em apreço têm, é altamente crível que o Arguido tivesse meios físicos e materiais para lograr uma fuga desse jaez, ou fosse municiado por outrem para o efeito.
Decerto que existem os mecanismos de cooperação judiciária a que o Arguido alude, que podem ser acionados para localizar e deter pessoas que estejam em fuga, mas o que se pretende com a implementação da prisão preventiva é precisamente que a fuga não ocorra; para além disso, importa não esquecer que aqueles mecanismos são sempre de resultado incerto e frequentemente moroso.
E a prisão preventiva passa por fim o teste de proporcionalidade face à gravidade do crime e à sanção que poderá previsivelmente vir a ser aplicada. É certo que o Arguido não tem antecedentes criminais registados e que isso naturalmente beneficiá-lo-á, mas certo é também que cuidamos aqui de gestos com uma particular gravidade e altamente desafiantes do ponto de vista das suas consequências sobre os dramas humanos a que dão origem nos consumidores, tudo se repercutindo em elevadas exigências de prevenção geral.
Assim é que o grau de gravidade do ilícito concretamente indiciado e as significativas exigências de prevenção geral que o tráfico de estupefacientes convoca na nossa sociedade, pela frequência com que é praticado e pelas repercussões que geram na saúde de terceiros, torna previsível que venha a ser aplicada ao Arguido uma pena de prisão efetiva e de duração expressiva.
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Diga-se, por fim, que a prisão preventiva tem evidentemente custos pessoais muito penosos, ou não fosse a medida de coação mais gravosa permitida pelo sistema jurídico; todavia, passados os crivos da aplicabilidade legal da medida e da necessidade, adequação e proporcionalidade da mesma, esses custos constituem uma consequência inevitável de uma situação que tem na sua origem factualidade que se tem como fortemente indiciado ter sido perpetrada pelo Arguido.
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Merece destarte adesão a decisão reclamada (bem assim como o despacho recorrido), embora por razões não inteiramente coincidentes com as que vinham aí vertidas.
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3 – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a reclamação e confirmar a sujeição do AA a prisão preventiva, embora por razões não inteiramente coincidentes com as vertidas na decisão sumária e no despacho recorrido.
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Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três UC (arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do Código de Processo Penal e 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III anexa).
Registe e notifique.
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Lisboa, 10 de outubro de 2024
(processado pelo Relator e por todos revisto)
Jorge Rosas de Castro
Paula Cristina Bizarro
Isabel Maria Trocado Monteiro