Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8665/24.1T8LSB -A.L1-5
Relator: MARIA JOSÉ MACHADO
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
IMPEDIMENTO
CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/11/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DIRIMIDO
Sumário: Sumário (da responsabilidade da relatora):
I. Não existe um conflito de competência entre tribunais, nem mesmo atípico, quando a juíza titular do processo se declara impedida nos autos para o julgamento e determina a sua apresentação ao juiz substituto legal e este se declara incompetente por discordar do fundamento invocado para a declaração do impedimento por parte daquela.
II. A incompetência do tribunal não se confunde com o impedimento do juiz, que se traduz numa incapacidade de exercício da função jurisdicional num determinado processo, para o qual não deixa de ser competente, mas para o qual não é subjectivamente capaz, por existir uma determinada situação, imposta legalmente por razões de imparcialidade, que impede que o mesmo possa ter participação nesse determinado processo.
III. O Código de Processo Penal prevê um elenco taxativo de impedimentos do juiz nos seus artigos 39.º e 40.º. O juiz que tiver qualquer um dos impedimentos aí previstos declara-o imediatamente por despacho nos autos (artigo 41.º, n.º1) sendo esse despacho irrecorrível nos termos do n.º1 (primeira parte) do artigo 42.º do mesmo Código.
IV. Ainda que a senhora juíza substituta legal discorde da declaração de impedimento da senhora juíza titular do processo, não compete ao tribunal da Relação, por respeito ao caso julgado, pronunciar-se sobre a valia de tal declaração de impedimento.
V. O que temos nos autos é um despacho irrecorrível através do qual a senhora juíza titular se declarou impedida de intervir nos autos, para o qual a lei estabelece, independentemente da sua valia, que não pode ser sindicada por este tribunal, um mecanismo de substituição legal para a tramitação subsequente dos autos, que é o da sua atribuição ao substituto legal do juiz titular que se declarou impedido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I –Relatório

1. No âmbito do processo comum, com intervenção de tribunal colectivo, n.º 8665/24.1T8LSB, do Juízo Central Criminal de Lisboa, a senhora juíza titular a quem o processo foi distribuído (juiz 19), declarou-se impedida para intervir no julgamento, nos termos do artigo 40.º alínea a) do Código de Processo Penal e determinou que os autos fossem apresentados à sua substituta legal (juiz 20), a qual se declarou incompetente, por entender não se verificar motivo de impedimento por parte da titular, suscitando a este tribunal a resolução do alegado conflito de competência entre ambas.
2. Cumprido que foi o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de se atribuir a competência para a realização do julgamento à Senhora juíza que suscitou o conflito (juiz 20) e o arguido nada veio alegar sobre o conflito.
3. Sendo este o tribunal competente, cumpre apreciar e decidir.
II – Apreciação
O despacho proferido em 18/09/2024, em que a Exma. Juiz (juiz 20) se declarou incompetente é do seguinte teor: (transcrição)
«Os presentes autos foram – após separação de processos relativamente aos arguidos AA, BB e CC – distribuídos para julgamento ao Juiz 19 deste JCC de Lisboa.
Na sequência da detenção do arguido AA (em cumprimento dos mandados de detenção europeus emitidos) a Mma. Juiz titular do Juiz 19 procedeu à audição daquele em primeiro interrogatório de arguido detido (realizado a 12.06.2024), tendo-lhe aplicado a medida de coacção de prisão preventiva.
Posteriormente, por despacho de 13.07.2024, foi determinada a extracção de certidão para constituição de novo processo autónomo quanto aos arguidos BB e CC.
No mesmo despacho, a Mma. Juiz titular do Juiz 19 declarou-se impedida de intervir no julgamento dos presentes autos (que passaram a respeitar apenas ao arguido AA), nos termos do disposto nos artigos 40º/1, al. a) e 41º/1, do Código de Processo Penal, em virtude de ter aplicado ao Arguido a medida de coacção de prisão preventiva, determinando a apresentação dos autos à sua substituta legal.
Ora, o impedimento para intervir, designadamente – e para o que aqui importa – em julgamento, por parte de juiz que tenha aplicado, no mesmo processo, uma das medidas de coacção previstas nos artigos 200º a 202º, do CPP (cfr. art. 40º/1, al. a), do mesmo diploma), visa evitar o risco de interferência, nessa fase do julgamento, de pré-juízos desfavoráveis ao arguido, por forma a assegurar a salvaguarda dos princípios constitucionais relacionados com as garantias de imparcialidade e isenção do tribunal.
O referido risco verifica-se, efectivamente, quanto a juiz que, nas fases anteriores do processo (inquérito ou instrução) tenha aplicado ao arguido uma de tais medidas de coacção, uma vez que essa aplicação implica uma análise sobre a existência (para além de um dos perigos previstos no art. 204º do CPP) de fortes indícios da prática de crime (cfr. artigos 200º a 202º do CPP).
O mesmo já não sucede, em nosso entender, e com o devido respeito por posição diversa, quanto ao juiz a quem os autos sejam distribuídos para julgamento e que, já nessa fase, aplique uma das medidas de coacção em causa.
Com efeito, na fase de julgamento, o juízo indiciário forte sobre a existência de indícios da prática do crime encontra-se já consolidado pela dedução de acusação ou – como sucede nos presentes autos – prolação de despacho de pronúncia, cabendo, em consonância, e nos termos legais, ao juiz do julgamento, proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, (art. 213.º do CPP) e decidir sobre a manutenção, revogação ou substituição das medidas de coacção (artigos 212º e 213º, do CPP).
Assim, e salvaguardando-se sempre o devido respeito por entendimento diferente, entendemos que o impedimento em causa, previsto no art. 40º/1, al. a), do CPP, não se verifica quanto ao juiz a quem os autos tenham sido distribuídos para julgamento e que, já nessa fase processual de julgamento, tenha aplicado uma das medidas de coacção previstas nos artigos 200º a 202º, do CPP.
Nesse sentido, e entre outra jurisprudência (designadamente, decisões do TRE de 14.03.2018, proc. n.º 32/18.2YREVR e do STJ de 19.05.2010, proc. n.º 36/09.6GAGMR.G1-A.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt) pronunciou-se o Tribunal da Relação de Lisboa, em decisão de conflito de competência de 17.02.2021 (proc. 964/16.2PBLSB-A.L1-5, in www.dgsi.pt), onde entre o mais se refere que:
Na fase de julgamento compete ao juiz a quem o processo tiver sido distribuído proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, no prazo a que alude o artigo 213.° do CPP, sem que a decisão que venha a ser proferida nesse âmbito – seja ela de manutenção, revogação ou de substituição por qualquer outra medida de coação, incluindo a prevista no artigo 200.° -tenha como consequência o impedimento a que alude a al. a) do artigo 40.° do CPP, por não se reportar a uma intervenção em fase anterior do processo. (…)
(…) tendo em conta as alterações que o art. 40º do C. Processo Penal tem sofrido desde a sua versão original, o legislador assumiu como critério para definir as situações em que a imparcialidade do juiz, que já participou em fase anterior do processo é objectivamente posta em causa, o do grau de intensidade da sua intervenção.
Assim, pode dizer-se que, em regra, o impedimento do art. 40º, a), do C. Processo Penal, na actual redacção, ocorre quando intervém como juiz do julgamento de um arguido, o juiz de instrução que, na fase do inquérito ou da instrução, lhe aplicou medida de coacção prevista nos arts. 200º a 202º, do C. Processo Penal. (…) – sublinhado nosso.
Em face de tudo o exposto, entendemos que, nos presentes autos, não se verifica o impedimento previsto no art. 40º/1, al. a), do CPP, quanto à Mma. Juiz titular do Juiz 19, a quem o processo foi distribuído para julgamento e que, já nesta fase, aplicou ao Arguido a medida de coacção de prisão preventiva.
Consequentemente, entendemos igualmente carecer este Juiz 20 do JCC de Lisboa de competência para o julgamento dos presentes autos, o que se declara.
Conforme igualmente referido na decisão de 17.02.2021 do TRL, acima citada, e também na de 14.03.2018 do TRE – as quais apreciaram situações equiparáveis à presente – não está em causa um conflito negativo de competência em sentido próprio, ou rigoroso, uma vez que as posições divergentemente assumidas pela signatária e pela Mma. Juiz que se declarou impedida não respeitam directamente à competência do Tribunal, mas à verificação ou não de uma situação pessoal de impedimento.
Contudo, e como igualmente se sustenta em tais decisões, o conflito negativo de competência, ainda que atípico, será o meio próprio – ou o único – para se dirimir a questão em apreço que, por força da verificação ou não do impedimento declarado, acabará por levar à decisão sobre qual o tribunal competente para o julgamento.
Impõe-se, deste modo, suscitar o conflito de competência, nos termos do preceituado nos artigos 34º e 35º do CPP.
Assim, e em cumprimento de tais dispositivos legais, determino que se autue apenso de conflito negativo de competência, com indicação do Ministério Público, do Arguido e da Ilustre Defensora, e instrua o mesmo com certidão:
- do despacho de pronúncia, do despacho proferido em audiência de julgamento a 14.03.2024 e do despacho de 02.04.2024 (todos do proc. 2226/19.4JFLSB, no qual tiveram origem os presentes autos);
- do auto de primeiro interrogatório de arguido detido de 12.06.2024; - do despacho de 13.07.2024;
- do presente despacho.
Após, remeta o presente conflito negativo de competência ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa – cfr. art. 12º/5, al. a). do C.P.P..»
O despacho proferido a 13/07/2024 mediante o qual a Exma. Juíza titular do processo se havia declarado impedida é do seguinte teor:
«Extraia certidão para constituição de processo autónomo em nome de BB e CC nos termos do despacho proferido a fls. 144 (último parágrafo).
Nos presentes autos irá ser submetido a julgamento, o Arguido AA.
Este arguido foi ouvido por mim em sede de 1º Interrogatório Judicial de Arguido detido findo o qual lhe foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, nos termos previstos no artigo 202º nº 1 do CPP, como melhor resulta de fls. 161 e seguintes.
Assim, em face do supra exposto, e nos termos do disposto nos artigos 40º nº1 alínea a) e 41º nº1 do CPP, declaro-me impedida de intervir no julgamento dos presentes autos, devendo os mesmos ser de imediato apresentados à minha substituta legal – Juiz 20.
Notifique.»
Em face de tais despachos cumpre verificar se estamos perante um conflito negativo de competência que caiba a este tribunal dirimir.
Estabelece o artigo 34.º do Código de Processo Penal:
«1. Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando, em qualquer estado do processo, dois ou mais tribunais, de diferente ou da mesma espécie, se considerarem competentes ou incompetentes para conhecer do mesmo crime imputado ao mesmo arguido».
2. O conflito cessa logo que um dos tribunais se declarar, mesmo oficiosamente, incompetente ou competente, segundo o caso.»
A lei é clara quanto aos pressupostos legais do conflito. Traduz-se numa divergência entre dois ou mais tribunais, de diferente ou da mesma espécie, em relação ao conhecimento de um feito jurídico-criminal e surge, em processo penal, quando mais do que um tribunal se reconhecem ou não se reconhecem competentes para conhecer quanto à existência de um crime cuja prática é atribuída ao mesmo arguido.
Se todos os tribunais em oposição se arrogam competentes estamos perante conflito positivo; se declinam a competência ocorre conflito negativo.
A incompetência do tribunal não se confunde com o impedimento do juiz que se traduz numa incapacidade de exercício da função jurisdicional num determinado processo – o juiz é competente para tramitar determinado processo, mas não é subjectivamente capaz, por existir uma determinada situação, imposta legalmente por razões de imparcialidade, que impede que o mesmo possa ter participação num determinado processo.
O Código de Processo Penal prevê um elenco taxativo de impedimentos do juiz nos seus artigos 39.º e 40.º. O juiz que tiver qualquer um dos impedimentos aí previstos declara-o imediatamente por despacho nos autos (artigo 41.º, n.º1) sendo esse despacho irrecorrível nos termos do n.º1 (primeira parte) do artigo 42.º do mesmo Código.
Ainda que no geral se concorde, com as considerações da senhora juíza que proferiu o último despacho e suscitou o conflito (juiz 20), não pode acolher-se a sua posição pela seguinte ordem de razões.
Não estamos, no caso dos autos, perante um conflito de competência entre tribunais, mas sim perante uma declaração de impedimento por parte da Juíza titular a quem o processo foi distribuído para o julgamento (que não uma declaração de incompetência) e uma declaração de incompetência por parte da senhora juíza substituta a quem o processo foi apresentado por força daquela declaração de impedimento da titular que nem sequer consubstancia qualquer incompetência do tribunal a que a mesma preside, mas antes a não-aceitação quanto à validade do fundamento para o impedimento declarado nos autos pela juíza titular do processo.
Ao suscitar o conflito de competência, com fundamento de que não existe fundamento legal para o declarado impedimento, a senhora juíza pretende que este tribunal sindique um despacho que a própria lei declarou ser irrecorrível e que, por isso, transitou em julgado, e não a competência do tribunal onde o processo deve ser julgado.
Ora, não compete a este tribunal da Relação, por respeito ao caso julgado, pronunciar-se sobre a valia do despacho em que a senhora juíza titular dos autos (juiz 19) se declarou impedida para o julgamento, e é isso que no fundo se pretende e está em causa, mas antes decidir quanto à competência material ou territorial do tribunal, que nunca foi posta em causa por nenhuma das intervenientes no conflito.
Sempre se dirá, contudo, que o impedimento declarado pela senhora juíza (juiz 19) surge porque a mesma procedeu ao interrogatório do arguido detido na sequência de um MDE, já na fase do julgamento, e por ter a mesma se pronunciado, então, sobre os indícios da prática dos crimes imputados ao arguido, no despacho mediante o qual lhe aplicou a medida de prisão preventiva, numa fase em que essa questão já não se colocava, por o arguido estar já pronunciado pela prática dos crimes pelos quais vai ser julgado. A senhora juíza apenas se deveria ter pronunciado sobre a existência dos perigos previstos no artigo 204.º do CPP e sobre a medida de coação adequada a acautelar tais perigos e daí não decorreria qualquer impedimento para o julgamento.
Considerar-se que estamos perante um conflito negativo atípico, como único meio para se dirimir a questão de quem tem de realizar o julgamento, como se considerou na decisão de 17.02.2012 deste tribunal (no processo nº 964/16.2PBLSB-A.L1-5) e na decisão do Tribunal da Relação de Évora de 14.03.2018 (processo n.º32/18.2YREVR), citadas pela senhora Juíza que suscitou o conflito, e das quais se discorda, é não só tratar como conflito questões substancialmente diferentes – incompetência e impedimento – mas, sobretudo, atentar contra o caso julgado do despacho em que a senhora juíza, bem ou mal, se declarou impedida, permitindo a reapreciação pelo tribunal superior de um despacho que a lei expressamente diz ser irrecorrível.
Não existe, pois, qualquer questão a dirimir em sede de conflito negativo de competência. Ainda que a senhora juíza substituta discorde da declaração de impedimento da senhora juíza titular do processo, está a mesma obrigada, não por força de qualquer obediência a tal decisão, mas por força da sua irrecorribilidade e das regras da substituição legal previstas na Lei de Organização do Sistema Judiciário (artigo 86.º da Lei n.º62/2013, de 26/08) a assumir a tramitação dos autos e a presidir ao julgamento.
Face ao exposto, ainda que se pudesse discordar do fundamento invocado pela senhora juíza titular do processo (juiz 19) para se declarar impedida para intervir no julgamento, não podemos dizer que exista entre ambos os despachos um conflito negativo de competência, que deva ser decidido por este tribunal.
O que temos é um despacho irrecorrível através do qual a senhora juíza titular se declarou impedida de intervir nos autos, para o qual a lei estabelece, independentemente da sua valia, que não pode ser sindicada por este tribunal, um mecanismo de substituição legal para a tramitação subsequente dos autos, que é o da sua atribuição ao substituto legal do juiz titular que se declarou impedido.
III – Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se que não existe nos autos qualquer conflito negativo de competência entre dois tribunais que mútua e reciprocamente a atribuam para a realização do julgamento que importa realizar nos autos, declinando a sua própria, que tenha de ser dirimido por este tribunal.
Sem tributação.
Cumpra-se o artigo 36.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.

Lisboa, 11/10/2024
(processei e revi – art.º 94, n.º2 do C.P.P.)
Maria José Machado