Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
352/18.7T8LRS.L1-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
SUB-ROGAÇÃO
CONDUTOR
HERDEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) O prazo de prescrição do direito decorrente da sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel nos direitos do lesado na medida da indemnização que satisfez é o de três anos, disposto no artigo 498.º, n.º 2, do Código Civil.

II) O termo inicial desse prazo de prescrição é a data do cumprimento; sendo este fraccionado o prazo de prescrição inicia-se na data do último pagamento.

III) O Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos dos lesados que se transferem de armas e bagagens para a esfera jurídica do Fundo, pelo que o reembolso pode ser exercido, desde logo, contra os responsáveis civis pelo acidente.

IV) A obrigação de reembolso recai ainda sobre os obrigados a celebrar o contrato de seguro obrigatório mesmo quando não lhes possa ser assacada responsabilidade civil pela ocorrência do acidente, no regime do Decreto-Lei 291/2007, como resulta da conjugação das normas dos n.ºs 1 e 3 do artigo 54.º desse diploma, ao que não se opõe a terceira Directiva (Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24-4-72).

V) Provando-se que, quando circulava, o veículo entrou em despiste e colidiu com a barreira acústica e barras de segurança da via, sem motivo aparente, não é possível imputar o acidente ao condutor a título de culpa efectiva; não estando alegada relação de comissão, também soçobra a imputação a título de culpa presumida, respondendo o condutor pelos riscos próprios da circulação do veículo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
ACORDAM na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I) RELATÓRIO (1)



FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL instaurou contra E… e A…, V.. e B… estes na qualidade de Herdeiros de JR..., todos com sinais nos autos, a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, pedindo a condenação dos Réus a pagarem-lhe a quantia total de € 13.112,94, acrescida de juros vincendos à taxa legal contados desde a citação até integral pagamento, e, bem assim, a reembolsarem ao Autor as despesas com a presente lide, a liquidar em execução de sentença.

Alegou para tanto, em síntese, que no dia 18 de Junho de 2009, ocorreu um acidente de viação em que foi interveniente o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula XX-XX-XX, propriedade do 1º Réu, que circulava sem que tivesse sido celebrado contrato de seguro que garantisse o pagamento de indemnização por danos decorrentes dessa circulação, conduzido por JR..., o qual resultou do despiste do XX-XX-XX e consequente colisão nas guardas de segurança e barreira acústica existentes no local, que ficaram danificadas, sendo que os danos no pavimento da A1 se ficaram a dever à utilização imprudente da viatura por parte de JR..., que a utilizava sem se precaver de que aquela estava em condições de segurança.

Como causa direta e necessária do acidente ficaram danificadas 20 guardas flexíveis tipo C, 16 guardas flexíveis tipo B, 2 delineadores e 1 barreira acústica, cuja reparação ascendia € 12.482,39 €.

A Brisa Concessão Rodoviária, S.A. intentou ação judicial contra o ora Autor, a Axa Seguros e o proprietário, ora 1º Réu, que deu origem ao processo 5006/12.4TCLRS, do extinto 4º Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Loures, na qual foi celebrada transação entre a Brisa e o ora Autor, tendo-se este comprometido a pagar àquela o valor de 11.600 €.

Considerada a responsabilidade do condutor na produção do acidente e o facto de não ter sido localizado seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel válido para o veículo XX-XX-XX, o Autor, no âmbito das suas atribuições legais, reconheceu a sua obrigação indemnizatória e atendeu o pedido de indemnização apresentado, pagou a indemnização em 30 de Maio de 2017 e assumiu as despesas com a instrução do processo, num total de € 12.746,95.

O Réu E... apresentou contestação aceitando a versão do acidente proposta pelo Autor, bem como o pagamento da indemnização e a ausência de seguro automóvel, alegando que adquiriu a viatura com intenção de fazer um favor a um “amigo”, tendo a transferência de propriedade apenas o intuito de evitar que o automóvel fosse apreendido no âmbito do processo de insolvência da sociedade por quotas desse amigo, nunca tendo o Réu tido qualquer relação com a viatura que, quando ocorreu o acidente, estava a ser utilizada na sociedade ENI Transportes Lda., criada em 2005, após a insolvência da empresa da qual o Réu era sócio apenas para fazer um favor ao seu nomeado amigo, não sabendo que o veículo circulava sem seguro.

A..., V... e B..., deduziram igualmente contestação aceitando parcialmente a versão do acidente proposta pela Autora, bem como a ausência de seguro automóvel e o pagamento da indemnização por parte do Fundo de Garantia Automóvel e defendendo que não é possível estabelecer um nexo causal entre o acidente e a conduta do condutor da viatura sinistrada. Invocaram a prescrição do crédito accionado por decurso do prazo de três anos.

Em sede de saneamento foi julgada improcedente a invocada excepção de prescrição.

Cumprido o demais legal, houve audiência de julgamento após a qual foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção.

A Ré A… interpôs o presente recurso dessa sentença e, alegando, concluiu como segue as suas alegações:
A) Foi indevidamente julgada improcedente a excepção da prescrição do exercício do direito de regresso alegada pela R./Recorrente no que concerne à mora no tempo entre o conhecimento do dano e a apresentação da acção intentada.
B) A doença do mandatário da Brisa alegada pela A. para o decorrer do período de tempo entre o conhecimento do dano, a homologação do acordo de pagamento entre a Autora e a Brisa e a acção apresentada pelo Fundo de Garantia Automóvel contra os RR., vai contra a intenção do prazo de 3 (três) dado pelo legislador para o exercício do direito de regresso, nem pode ser aproveitada para isso.
C) Não existe nos autos prova que o pagamento dos danos à Brisa pelo Fundo de Garantia Automóvel se tenha efectivado a 30/05/2027, conforme alegado, ou qualquer prova de pagamento.
D) É ilegítimo o exercício de um direito fundado numa mera alegação ou negligência.
E) A recorrente tem em crer que esta alegação da A. (doença do mandatário), não pode servir para causar maior empobrecimento à R., nem a Lei pode servir para encobrir lapsos, esquecimentos ou quaisquer outras “desculpas”.
F) A responsabilidade na mora do pagamento da A. à Brisa não pode prejudicar os RR no que concerne ao prazo da propositura da acção.
G) Os factos dados como provados na douta sentença, ora em crise, designadamente os pontos 5. e 16., foram erradamente julgados uma vez que, foi apresentada prova bastante (documental e testemunhal) pelos RR. por forma a afastar qualquer culpa ou negligência do condutor no acidente que originou os danos.
H) A prova apresentada pelos RR. afastam por completo qualquer culpa ou negligência do condutor no acidente causador dos danos.
I) Não existe um nexo de causalidade entre a culpa, negligência ou ilicitude do condutor e o acidente causador dos danos. Mas,
J) É dado como assente em sede de inquérito crime que, a causa do acidente se deveu ao rebentamento de um pneu que, por sua via impossibilitou que o condutor imobilizasse o veiculo de forma segura e capaz de evitar o acidente.
K) O acidente foi causado por um imprevisto (rebentamento de pneu), excluindo assim a culpa e a responsabilidade do condutor pelo pagamento dos danos causados pelo acidente.
L) Todos os factos supra enunciados impunham decisão diferente pelo Tribunal a quo, sempre no sentido da absolvição dos RR.
Nestes termos e nos demais de direito, devem V. Exas, Venerandos Juízes Desembargadores proferir decisão que revogue a douta sentença recorrida, proferindo-se decisão que absolva os RR. do peticionado pela Autora Fundo de Garantia Automóvel, COMO É DE DIREITO E INTEIRA JUSTIÇA!!

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, por não ter sido prestada caução como anunciado.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II) OBJECTO DO RECURSO

Tendo em atenção as conclusões da Recorrente - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC -, cumpre apreciar as seguintes questões:
1) Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
2) Da prescrição.
3) Da sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel quanto aos Réus herdeiros do condutor.

III) FUNDAMENTAÇÃO


1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1.1. Da impugnação
Defende a Recorrente que o Tribunal a quo não deveria ter julgado provados os factos constantes nos números 5. e 6. da decisão.
Decorre da alegação que se refere ao facto 16, que transcreve, sendo que os factos 1 e 6 são incontroversos, pelo que nesses termos se apreciará a impugnação.
São do seguinte teor os factos impugnados:
5.Sem motivo aparente, o XX-XX-XX entrou em despiste e foi colidir com as guardas de segurança e barreira acústica existente no local.
16. Por despacho datado de 21/07/2010, da I. Procuradora Adjunta do Ministério Público, foi concluído arquivar-se o processo crime n.º 3310/09.8TALRS, por se entender que não existem “indícios suficientes de que a morte de JR... se deveu à ação ou omissão de terceiro que deva por ela ser criminalmente censurado”.

1.2. Apreciação
1.2.1. No que se refere ao facto 5 alega a Recorrente que o despacho de arquivamento do inquérito criminal refere também e, sem réstia de dúvidas que “podemos dar como assente que o despiste, do qual veio a resultar o embate nos rail’s se deveu ao rebentamento do pneu frontal direito e, consequentemente dificuldade/impossibilidade do condutor segurar o veículo e imobiliza-lo em segurança, tudo indicando que o despiste teve causa acidental”.
Entende por isso a Recorrente que o Tribunal recorrido não analisou de forma isenta, mas sim penalizadora, o despacho de arquivamento proferido e junto pela recorrente, favorecendo a A. em detrimento dos RR.
Apreciando se dirá que a decisão recorrida indica como facto assente que no despacho final do inquérito o magistrado do Ministério Público indicou como razão do arquivamento a sua conclusão pela inexistência de indícios de acção ou omissão de terceiro que pudesse ser responsabilizado criminalmente.
A Recorrente não defende que tal não seja facto assente, entende que deve aditar-se a matéria de facto quanto a outros elementos constantes do mesmo despacho. Sem razão, todavia, uma vez que as conclusões extraídas pelo Ministério Público nos autos de inquérito em nada relevam para a decisão dos presentes autos.
Improcede nesta parte a impugnação.

1.2.2. No que se refere ao ponto 16 entende a Recorrente que, tendo dado este ponto como provado, o Tribunal a quo mais não faz que, atribuir implicitamente a culpa do acidente ao falecido condutor JR....
Questiona-se a recorrente, porque é que dos vários fundamentos apresentados no despacho de arquivamento o Mm. Juiz a quo só menciona estes? Porque não considera o “rebentamento do pneu” como “causa acidental” e “impossibilidade do condutor segurar o veículo e imobiliza-lo em segurança”?
O que se referiu quanto à impugnação do ponto 5 aplica-se quanto à impugnação deste aspecto.
Mesmo quando se entendesse que o Tribunal retirava a consequência aludida do despacho de arquivamento, a questão seria de direito – (ir)relevância do que conste desse despacho e não de facto.
Improcede também nesta parte a reclamação.

1.3. Da fixação da matéria de facto
Estão assentes os seguintes factos constantes da decisão de primeira instância, na ausência de impugnação procedente ou reapreciação oficiosa:
1. No dia 18-06-2009, cerca das 14:50 horas, na A1, ao km 3,970, em São João da Talha, concelho de Loures, circulava o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula XX-XX-XX;
2. A propriedade do automóvel referido anteriormente está registada a favor do 1º Réu;
3. No dia, hora e local referidos em 1.º, JR… era o condutor do veículo ligeiro de mercadorias de matrícula XX-XX-XX;
4. O local do acidente caracteriza-se por ser uma reta com boa visibilidade, com o piso em bom estado de conservação e naquele momento estava seco;
5. Sem motivo aparente, o XX-XX-XX entrou em despiste e foi colidir com as guardas de segurança e barreira acústica existente no local;
6. O condutor do IH veio a falecer em 18-06-2009, na sequência do referido acidente;
7. O veículo XX-XX-XX não dispunha de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel válido que garantisse à data do acidente os danos decorrentes da sua circulação;
8. Em consequência da colisão do IH ficaram danificadas 20 guardas flexíveis tipo C, 16 guardas flexíveis tipo B, 2 delineadores e 1 barreira acústica;
9. De acordo com o orçamento apresentado pela Brisa - Concessão Rodoviária, S.A., concessionária para a construção, conservação e exploração da A1, o valor do conserto dos estragos ascendia a 12.482,39 €;
10. A Brisa Concessão Rodoviária, S.A. intentou ação judicial contra o ora Autor, a Axa Seguros e o proprietário, ora 1º Réu, que deu origem ao processo 5006/12.4TCLRS, do extinto 4º Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Loures;
11. Nessa ação foi celebrada transação entre a Brisa e o ora Autor, tendo-se este comprometido a pagar àquela o valor de 11.600 €;
12. A transação judicial foi homologada por sentença, a qual já transitou em julgado;
13. Em 30-05-2017, e assumindo ainda as despesas com a instrução do processo, a A. despendeu as seguintes quantias:
a. A titulo de indemnização: 11.911,45 €
b. A titulo de despesas com instrução: 835,50 €
i. TOTAL 12.746,95 €;
14. O Réu E… adquiriu a viatura em causa nos autos à sociedade Transjupiter Transportes Lda., por documento assinado em 20.04.2005;
15. Para efeitos de celebração do acordo, foi elaborado em 20.04.2005 um termo de reconhecimento de assinatura por semelhança, que teve por objeto a assinatura de L…, que é identificado como sendo gerente da empresa Transjupiter Transportes Lda.;
16. Por despacho datado de 21/07/2010, da I. Procuradora Adjunta do Ministério Público, foi concluído arquivar-se o processo crime n.º 3310/09.8TALRS, por se entender que não existem “indícios suficientes de que a morte de JR... se deveu à ação ou omissão de terceiro que deva por ela ser criminalmente censurado”.
17. Por missiva datada de 28-06-2017, na sequência da transação celebrada com a “Brisa”, o Autor solicitou aos Réus o pagamento dos valores referentes à regularização do sinistro em causa na presente ação.

3. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1. Da Prescrição
Defende a Recorrente que não existem nos autos elementos quanto à data em que o Fundo de Garantia Automóvel pagou indemnização pelos danos decorrentes do acidente de viação e que, de todo o modo, deve atender-se à data do acidente, não àquela, como termo inicial do prazo de três anos estabelecido para a prescrição do direito que o Autor pretende fazer valer.

Adiante-se que entendemos que não tem razão pelo que seguidamente referimos.

Resultou provado nos autos que o Fundo de Garantia Automóvel despendeu as quantias indemnizatórias em 30 de Maio de 2017 (ponto 13 dos factos assentes que não foi impugnado). O que infirma a asserção da Recorrente de não existem elementos quanto à data de pagamento.

Aduz a Recorrente argumentação no sentido de que a dilação temporal entre a data de homologação da transacção e a de pagamento da quantia indemnizatória não se justifica pela alegada doença do mandatário, uma vez que outrem em seu lugar podia ter recebido a indemnização.

A relevância jurídica de tal argumentação, que a Recorrente não indica, poderia encontrar-se na integração do comportamento dilatório no instituto do abuso de direito consagrado no artigo 334.º, do Código Civil.

No entanto, a Recorrente limitou-se a indicar a dilação e a estranhá-la, nada alegou no sentido de que a mesma se devesse a um comportamento voluntário do Fundo de Garantia Automóvel susceptível de exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social desse direito.

Não existem quaisquer elementos que permitam considerá-lo, ou norma jurídica que faça relevar a dilação como extinção do direito, o que determina a irrelevância da linha argumentativa.

Por último, a Recorrente defende que a prescrição ocorreu por ter decorrido o prazo de três anos contado desde a data do acidente. A decisão recorrida entendeu que tal prazo se contava da data do pagamento. Esta a questão que importa dilucidar.

O acidente aconteceu em 18 de Junho de 2009. Na data vigorava o Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, diploma que é, assim, aplicável.

Nos termos do artigo 47.º, n.º 1, deste diploma compete ao Fundo de Garantia Automóvel garantir a reparação dos danos causados (…) por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel. Segundo o disposto nos artigos 48.º, n.º 1, alínea a), e 49.º, n.º 1, alínea b), o Fundo de Garantia Automóvel satisfaz (…) as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório que se destinem a reparar, no que ao caso concerne, danos materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz.

No caso dos autos o veículo circulava sem seguro, sendo seu dono o Réu E..., e causou estragos em bens materiais da via por onde circulava, estragos que o Fundo de Garantia Automóvel indemnizou pelo pagamento das quantias referidas no mencionado ponto 13 da matéria de facto.

O artigo 54.º, n.º 1, do mesmo diploma, estabelece que, satisfeita a indemnização, o Fundo Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso.

É este o direito que o Autor pretende fazer valer nos autos, o decorrente da sub-rogação legal em razão da satisfação da indemnização, dispondo a mesma norma que a este direito é aplicável o disposto no artigo 498.º, n.º 2, do Código Civil, norma que estabelece a prescrição do direito de regresso entre os responsáveis no prazo de três anos.

Dúvidas não existem, e nos autos elas também não surgiram quanto a ser este o prazo aplicável.

A mesma norma do artigo 498.º, n.º 2, estatui que o termo inicial do prazo de prescrição a que alude é o do cumprimento, sendo que o artigo 54.º, n.º 6, do Decreto-Lei 291/2007, para que dúvidas não houvesse (como já houve), estabelece que, em caso de pagamentos fraccionados, o prazo de prescrição por lesado ou a mais de um lesado se inicia na data do último pagamento.

As dúvidas surgidas no domínio do regime anterior (2), o do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, levaram o legislador a acautelar todas as hipóteses (se isso é possível) a respeito do prazo prescricional do direito do Fundo de Garantia Automóvel, tanto quanto à duração do mesmo prazo, como quanto ao seu termo inicial em diversa circunstância.

Tendo o pagamento ocorrido em 30 de Maio de 2017, os Réus foram citados para os termos da presente acção em data anterior à do termo do prazo prescricional que ocorreria a 30 de Maio de 2020, uma vez que o foram em Abril de 2019 – artigo 323.º, n.º 1, do Código Civil.

Porque a Recorrente insistiu na dilação do pagamento, poderia considerar-se uma hipótese de relevância desse facto defendendo o entendimento de que, ao referir a data do cumprimento como termo inicial do prazo prescricional, o legislador pretendia referir-se à data em que o cumprimento seria devido e não à data em que foi efectuado. O que se refere para efeitos meramente argumentativos e de exaustão de razões, uma vez que entendemos que tal tese não tem qualquer possibilidade de acolhimento.

Assim, a data do cumprimento é, tratando-se de sub-rogação, a data em que o direito surge na esfera jurídica do sub-rogado. Na verdade, a sub-rogação constitui um modo de transmissão de créditos, nascendo o crédito na esfera jurídica do garante (no caso dos autos que é de sub-rogação legal – artigo 592.º, n.º 1, do Código Civil) na medida e momento da satisfação dada ao direito do credor (artigo 593.º, n.º 1, do Código Civil).

Apenas após esse “nascimento” poderia o direito ser exercido, o que impossibilita a hipótese que para efeitos argumentativos se colocou.

Improcede assim o recurso na dimensão referente à decisão que julgou improcedente a excepção de prescrição.

2. Da sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel contra os Réus herdeiros do condutor

2.1. No que se refere à sub-rogação invocada pelo Autor, defende a Recorrente que a mesma não pode ser exercida contra os herdeiros do condutor por não estar demonstrada a culpa deste na ocorrência do acidente. É esta a questão suscitada no recurso.

2.2. Rege quanto à sub-rogação legal do Fundo de Garantia Automóvel o artigo 54.º, do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto. É o seguinte o seu teor:
1 - Satisfeita a indemnização, o Fundo Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso.
2 - No caso de insolvência, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado apenas contra a empresa de seguros insolvente.
3 - São solidariamente responsáveis pelo pagamento ao Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do n.º 1, o detentor, o proprietário e o condutor do veículo cuja utilização causou o acidente, independentemente de sobre qual deles recaia a obrigação de seguro.
4 - São subsidiariamente responsáveis pelo pagamento ao Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do n.º 1, os que tenham contribuído para o erro ou vício determinante da anulabilidade ou nulidade do contrato de seguro e ainda o comerciante de veículos automóveis que não cumpra as formalidades de venda relativas à obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel.
5 - As entidades que reembolsem o Fundo nos termos dos n.os 3 e 4 beneficiam de direito de regresso contra outros responsáveis, se os houver, relativamente ao que tiverem pago.
6 - Aos direitos do Fundo de Garantia Automóvel previstos nos números anteriores é aplicável o n.º 2 do artigo 498.º do Código Civil, sendo relevante para o efeito, em caso de pagamentos fraccionados por lesado ou a mais do que um lesado, a data do último pagamento efectuado pelo Fundo de Garantia Automóvel.
A primeira nota a salientar é a de que o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos dos lesados que se transferem de armas e bagagens (3) para a esfera jurídica do Fundo.
Em consequência, o reembolso do Fundo pode ser exercido, sem dúvida, contra os responsáveis civis pelo acidente, nos mesmos termos em que o direito a indemnização podia ser exercido contra os mesmos responsáveis nos termos da responsabilidade civil extra-contratual estabelecida nos artigos 500.º e 503.º do Código Civil. É aliás o que resulta da natureza da própria sub-rogação legal (4).

Uma primeira consequência se retira do regime que apreciamos: os responsáveis civis pelo acidente estão obrigados a reembolsar o Fundo de Garantia Automóvel das quantias despendidas no cumprimento da sua obrigação de indemnizar terceiros lesados em caso de inexistência de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Uma outra questão é a de saber se para além dos responsáveis civis pelo acidente, essa obrigação de reembolso recai ainda sobre os obrigados a celebrar o contrato de seguro obrigatório quando não lhes possa ser assacada responsabilidade civil pela ocorrência do acidente.

Esta a questão que mereceu resposta negativa no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Novembro de 2018 a caso em que era aplicável o Decreto-Lei 522/85.

Importa saber se tal mereceu alteração no regime aplicável do Decreto-Lei 291/2007, questão aliás que, como se referiu em nota, aquele aresto já enuncia, embora não a dilucide por estranha ao objecto do processo.

Para tal há que conjugar as normas que resultam dos n.ºs 1 e 3 do artigo 54.º acima transcrito.

Do n.º 1 resulta que o Fundo fica sub-rogado nos direitos do lesado cuja indemnização satisfez. Sem mais, seria de considerar que o reembolso do Fundo se mantinha dentro dos limites dos direitos do lesado que se lhe haviam transmitido pela sub-rogação.

Todavia, o n.º 3 vem estabelecer que são solidariamente responsáveis o detentor, o proprietário e o condutor do veículo cuja utilização causou o acidente, independentemente de sobre qual deles recaia a obrigação de seguro (5).

Esta norma estabelece a obrigação de reembolso em relação com a obrigação de segurar, para além de consagrar a solidariedade entre os obrigados ao reembolso.

Refere a respeito o Autor (6) que vimos seguindo que teria sido em rigor despicienda uma tal previsão se no n.º 1 o legislador claramente tivesse estabelecido que (como não pode deixar de ser) os direitos do lesado nos quais o FGA se sub-roga são os direitos contra o responsável civil (e não contra o obrigado ao seguro) – sendo então a solidariedade devida nos termos do art. 497 CC.

Solução alternativa seria o n.º 1 claramente prever sub-rogação nos direitos do lesado contra o responsável civil e o obrigado ao seguro, caso em que o art. 497.º CC já não teria sido suficiente e, portanto, justificava-se a previsão ex professo da solidariedade.

Donde, por um argumento de preservação da utilidade da expressa menção da solidariedade no n.º 3 do art. 54.º, teremos de concluir no sentido de que os direitos do lesado a que se refere o n.º 1 do mesmo são os direitos contra o responsável civil e o obrigado ao seguro.

Também não vemos que a interpretação no sentido da obrigação circunscrita aos responsáveis civis mantendo o regime do Decreto-Lei 522/85 satisfaça a regra da utilidade da intervenção legislativa consistente na introdução do n.º 3 do artigo, pelo que concluímos que o Fundo de Garantia Automóvel tem direito a reembolso também – para além dos responsáveis civis – quanto aos obrigados à celebração do seguro obrigatório que não tenham cumprido com essa obrigação. Anote-se que a tal estatuição das legislações nacionais não se opõe a terceira Directiva (Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24-4-72), nos termos da resposta ao reenvio prejudicial no processo do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Novembro de 2018.

Em conclusão, para além da apreciação da responsabilidade do condutor do veículo nos termos dos artigos 500.º e 503.º do Código Civil, importa saber se o condutor se encontrava sujeito a obrigação de segurar.

2.3. Quanto à obrigação de segurar (estando excluída qualquer intervenção de garagista), estabelece o artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei 291/2007, que a obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário.
Não se provou que o condutor do veículo integrasse alguma destas categorias pelo que não se verifica esta hipótese da sua responsabilidade pelo reembolso do Fundo de Garantia Automóvel.

2.4. Os factos assentes nos autos com relevo para a apreciação da responsabilidade civil pelo acidente são, desde logo, os de que o veículo é propriedade do primeiro Réu e era conduzido por JR....

Quanto a JR... provou-se ainda que a dada altura, quando circulava, o veículo por ele conduzido entrou em despiste e colidiu com a barreira acústica e barras de segurança da via, sem motivo aparente.

A imputação ao condutor do facto a título de ilicitude e culpa implica que a sua conduta integre violação de normas destinadas a proteger o interesse alheio (artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil), como o são as normas estradais, e a demonstração de que outra conduta lhe era exigível e possível (artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil).

A respeito da violação de normas estradais provou-se que o veículo conduzido por JR... saiu da faixa de rodagem da auto-estrada e colidiu com a barreira acústica e as barras de segurança. Tal determina que tenha violado o disposto no artigo 13.º, n.º 1, do Código da Estrada, na redacção vigente à data do acidente.

Nada se provou quanto ao motivo dessa violação, pelo que não pode considerar-se provada culpa efectiva do condutor do veículo.

A condução de um veículo por quem dele não é dono pode ocorrer, em termos meramente lógicos, no interesse de outrem ou do próprio. A relevância jurídica implica que a condução no interesse de outrem apenas se distingue da que é feita no interesse próprio quando se verifique uma relação de comissão.

Nos termos do artigo 503.º, n.º 3, 1.ª parte, aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte, com o que a norma estabelece uma presunção de culpa do comissário.

Não esqueçamos que nada se provou nestes autos quanto à existência de uma relação de comissão, pelo que também a este título não pode considerar-se verificada culpa do condutor, na modalidade de culpa presumida.

2.5. A responsabilidade decorrente da circulação de veículos automóveis consagra uma excepção à regra do artigo 487.º, n.º 2, 1.ª parte, ao estabelecer diversas situações de imputação de responsabilidade objectiva pelo risco próprio da circulação de veículos independentemente de culpa.

Com pertinência para o caso dos autos pode convocar-se o regime da 2.ª parte do n.º 3, do artigo 503.º do Código Civil, norma que estabelece: se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do n.º 1, ou seja, pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo.

Ou seja, existindo uma relação de comissão, mas sendo o veículo conduzido pelo comissário fora do exercício dessas funções, o condutor é responsável pelos danos decorrentes dos riscos próprios da circulação do veículo, nos termos do artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil.

Não existindo a relação de comissão, o condutor do veículo conduz o veículo no seu próprio interesse integrando a previsão da mesma norma, que estatui: aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.

Em suma, conclui-se que a matéria de facto apurada permite decidir pela responsabilidade objectiva do condutor do veículo, ao abrigo do disposto no artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil, o que o constitui responsável civil pelo acidente e, por isso, obrigado a reembolsar o Fundo de Garantia Automóvel.

Pelo exposto, improcede o recurso.

IV) DECISÃO

Pelo exposto, ACORDAM em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie – artigo 527.º, n.º 2, do CPC.


Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (supra transcrito)


Data constante das assinaturas electrónicas
(Ana de Azeredo Coelho)
(Eduardo Petersen Silva)
(Cristina Neves)



(1)- Beneficia do relatório da sentença recorrida
(2)- No que se refere a essas dúvidas veja-se o que consta do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Janeiro de 2018, proferido no processo 1195/08.0TVLSB.E1.S1 (MARIA DO ROSÁRIO MORGADO), tirado em caso a que se aplicável o regime anterior, consideravelmente modificado na espécie.
(3)- Citação de texto do Professor Antunes Varela por Arnaldo Filipe da Costa Oliveira in Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Almedina, 2008, p. 101
(4)- A respeito veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Novembro de 2018, proferido no processo 770/12.3TBSXL.L1.S1 (Abrantes Geraldes) e a sua exaustiva explanação das consequências da sub-rogação do Fundo e dos obrigados ao reembolso. Tirado quanto ao regime pretérito do Decreto-Lei 522/1985, aborda na nota final a possível diferença entre esse regime e o aplicável nestes autos, contendo ainda o resultado de consulta ao TJUE sobre a transposição da 3.ª Directiva de interesse no caso. .
(5)- Seguimos de perto Arnaldo Oliveira, op. cit., p. 99..
(6)- Op. cit., p. 99-100