Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2380/21.5T8VFX.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: ACÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO DE FACTO
TRIBUNAL COMPETENTE
JUÍZOS CÍVEIS
LEI DA NACIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - A acção para reconhecimento da situação da união de facto com vista à aquisição da nacionalidade não é um processo de jurisdição voluntária.
II – O tribunal cível é o competente em razão da matéria para julgar essa acção.
(Pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
S… e F…instauraram acção declarativa comum em 04/08/2021 contra o Estado Português no Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, pedindo que seja reconhecida situação da união de facto entre os autores nos termos do art. 3º nº 3 da Lei 37/81 de 03/10 e para os efeitos do art. 14º nº 2 e 4 do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, Decreto Lei 237-A/2006 de 14/12.
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O Ministério Público foi citado em representação do Estado Português, tendo apresentado contestação em que concluiu:
«Deve a presente acção prosseguir os seus ulteriores termos, e ser julgada em conformidade com os factos que se vierem a apurar em sede de audiência de discussão e julgamento».
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Após ouvidas as partes, foi oficiosamente proferida decisão sobre a competência em razão da matéria em 18/12/2021, declarando incompetente o Juízo de Família e Menores e absolvendo o réu da instância. Mais foi ordenada a remessa dos autos, após trânsito em julgado, aos juízes cíveis para distribuição.
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Não foi interposto recurso e em 16/02/2022 foi proferida a seguinte decisão pelo Juízo Local Cível de Vila Franca de Xira, Juiz 1:
«Conforme decorre da decisão de indeferimento liminar proferida no processo nº 2054/21.7T8VFX deste Juízo, J1, que os AA. Previamente instauraram com o mesmo objeto que os presentes, e cujo teor consta de fls. 41- 41v, considera-se o presente Juízo materialmente incompetente, remetendo-se para os respetivos fundamentos e para os arestos naquela citados.
A incompetência material é exceção dilatória que importa a absolvição da instância, nos termos dos artºs 96º, al. a), 97º, nº 1, 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. a) e 578º do C.P. Civil.
Termos em que, face ao exposto, julga-se o presente Juízo incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolve-se o R. da instância.
Notifique e dê baixa.
Transitada a decisão acima referida conclua.».
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Inconformados, apelaram os autores, terminando a alegação com estas conclusões:
A) Os ora Apelantes intentaram ação declarativa, com processo comum, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízos de Família e Menores de Vila Franca de Xira, tendo a ação sido distribuída ao Juízo 2, pedindo o reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa pelo Autor , ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade.
B) No decorrer da ação o Juiz titular do processo deu-se conta de que havia sido publicado o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 17/06/2021 no processo n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt, que considera os Juízos de Família e Menores incompetentes em razão da matéria e competentes os Juízos Cíveis.
C) Depois de ouvir as partes, decidiu o Meritíssimo Juiz declarar a incompetência do respetivo Juízo de Família e Menores em razão da matéria absolvendo o Réu da instância e determinando a remessa do processo para o Juízo Local Cível por ser este o competente.
D) Distribuído o processo no Juízo Local Cível de Vila Franca de Xira – Juiz 1 - veio o Meritíssimo Juiz proferir Douta sentença, datada de 16/02/2022, na qual considera o Juízo Cível incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolve o Réu da Instância.
E) Os Autores, ora Apelantes, não se conformam com tal decisão e daí o presente recurso.
F) Não desconhecem os Apelantes, as dúvidas que se têm feito sentir quer na jurisprudência, quer na doutrina, no que respeita à competência dos tribunais em razão da matéria para efeitos do reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista a obtenção da nacionalidade portuguesa, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade.
G) Quer a jurisprudência, quer a Doutrina, se têm dividido, ora considerando competentes em razão da matéria os Juízos de Família e Menores, ora considerando competentes os Juízos Cíveis.
H) Recentemente os Tribunais da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça têm vindo a considerar que para a preparação e julgamento de uma ação em que é pedido o reconhecimento da existência da união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade, são competentes os tribunais / Juízos cíveis e não os Juízos de Família e Menores – ver por todos Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa tirado no processo n.º 12142/20.1T8LSB.L1-2, datado de 16/12/2021, que teve como Relator o Excelentíssimo Juiz Desembargador Carlos Castelo Branco, votado por unanimidade; e ainda Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça tirado no processo n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1 (2.ª Secção), datado de 17/06/2021, que teve como Relator o Excelentíssimo Juiz Conselheiro João Cura Mariano, votado por unanimidade, ambos acessíveis em acessível em www.dgsi.pt
I) Sobre a competência em razão da matéria para julgar a presente ação, têm sido considerados diversos diplomas legais, nomeadamente a Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) – Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, e a Lei da Nacionalidade, aprovada pela Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, sendo que o primeiro dos diplomas é uma lei geral e o segundo uma é lei especial.
J) Conforme resulta do n.º 3 do artigo 7.º do Código Civil, “A lei geral posterior não revoga a lei especial, exceto se outra for a intenção inequívoca do legislador” e o n.º 2 e 3 do artigo 9.º do mesmo diploma referem: “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (n.º 2);
“A fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (n.º 3).
K) Na verdade impõe-se, além do mais, ao intérprete e ao aplicador do direito o respeito pelo princípio geral de que “Lex posterior generali non derogate legi priori speciali” (“norma geral posterior não revoga norma especial anterior”, com a salvaguarda da derrogação inequívoca referida anteriormente).
L) E se é verdade que dispõe o n.º 1, alínea b), do artigo 122.º da LOSJ que “Compete aos tribunais de família e menores preparar e julgar processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum”, é também verdade que a Lei da Nacionalidade aprovada pela Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, com a alteração da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17/04 (aqui com interesse), dispõe no n.º 1 do artigo 3.º que “O estrangeiro
casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio”; e no seu n.º 3 que: “O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.”
M) Ora, a opção do legislador ao atribuir expressamente ao tribunal cível a competência material para preparar e julgar este tipo de ação impõe-se ao intérprete-aplicador quer por via do elemento literal, que expressamente refere tribunal cível, quer porque no conflito de normas gerais e especiais em que prevalece a lei especial.
N) Ademais, dispondo o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, específica e expressamente, que a competência pertence aos tribunais cíveis, não é possível aplicar a regra geral constante do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ, e considerar competentes os Juízos de Família e Menores, pois sendo o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade uma norma especial ela prevalece sobre uma norma geral, razão suficiente para concluir que se mostra vigente a atribuição aos tribunais cíveis a competência material para julgar as ações de reconhecimento de união de facto, com duração superior a 3 (três) anos, como requisito de aquisição da nacionalidade portuguesa.
O) Também não pode considerar-se que a norma especial foi tacitamente revogada pela alteração que ocorreu na distribuição de competências pela lei geral de enquadramento e organização do sistema judiciário (LOSJ).
P) Como se retira do Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça “O legislador quando previu a possibilidade de a união de facto com cidadão nacional ser fator de aquisição da nacionalidade portuguesa, optou por definir expressa e inequivocamente, a competência para o reconhecimento dessas situações de união de facto, atribuindo-a aos tribunais cíveis”
Assim sendo, o disposto no referido artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade mantém-se vigente e aplicável, definindo uma competência específica dos tribunais, em razão da matéria, para o julgamento das ações de reconhecimento das situações de facto, com duração superior a três anos, como requisito de aquisição da nacionalidade portuguesa, por declaração, passando a constituir uma exceção às novas regras gerais da distribuição de competências dos tribunais judiciais entretanto aprovadas.
Ora, dispondo este preceito, especificamente que a competência pertence aos tribunais cíveis, não é possível aplicar a regra geral constante do artigo 122.º, n.º 1, g), da LOTSJ, e considerar competente os juízos de família e menores, uma vez que o disposto numa norma especial prevalece sobre uma norma geral”.
Q) É pois, o Juízo Local Cível – Juiz 1 (Tribunal a quo) o Tribunal competente, em razão da matéria, para apreciar e decidir da ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, para aquisição de nacionalidade portuguesas, a que se referem o artigo 3.º, n.º 3, da da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na sua atual redação, e o artigo 14.º, n.ºs 2 e 4, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro.
R) A decisão recorrida, violou o artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na sua atual redação, o artigo 14.º, n.ºs 2 e 4, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro, e o artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto na interpretação e aplicação que fez de tais preceitos.
Violou ainda os artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 576, n.ºs 1 e 2, 577.º , alínea a) e 578.º do C. P. C.
S) Destarte, por errada interpretação e aplicação da lei, a sentença recorrida que declarou o Juízo Cível de Vila Franca de Xira – Juiz 1 - incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolveu o Réu da instância, deve ser revogada e determinada a devolução do processo àquele Juízo Cível, pois que é o Tribunal a quo o competente para preparar e julgar a presente ação.
Nestes termos,
Deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a Douta sentença recorrida que declarou o Juízo Cível de Vila Franca de Xira – Juiz 1 - incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolveu o Réu da instância, e determinada a devolução do processo àquele Juízo Cível, pois que é o Tribunal a quo o competente para preparar e julgar a presente ação.
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Não há contra-alegação.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos apelantes, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, pelo que a questão a decidir é:
- qual o tribunal competente em razão da matéria
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III – Fundamentação
O art. 3º nº 3 da Lei da Nacionalidade (Lei 37/81 de 03/10) estatui:
«O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.».
Por sua vez, o art. 14º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (DL 237-A/2006, de 14/12) estabelece, na parte que ora interessa:
«(…)
2 - O estrangeiro que coabite há mais de três anos com português em condições análogas às dos cônjuges, independentemente do sexo, se quiser adquirir a nacionalidade deve declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto.
(…)
4 - No caso previsto no n.º 2, a declaração é instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do cidadão português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto.
(…).».
O art 130º da Lei 62/2013, de 26 de Agosto/Lei da Organização e Funcionamento do Sistema Judiciário, estabelece, na parte que ora interessa:
«1- Os juízos locais cíveis, (…) possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.
2 - Os juízos locais cíveis, (…) possuem ainda competência para:
(…)
f) Exercer as demais competências conferidas por lei.
(…)».
E o art. 122º dessa Lei dispõe, na parte que ora interessa:
«1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:
a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;
b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;
(…)
g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.
(…)».
Os processos de jurisdição voluntária relativos aos cônjuges estão previstos no Título XV (Dos Processos de Jurisdição Voluntária) do Livro V (Dos Processos Especiais) do Código do Processo Civil, estabelecendo o art. 990º nº 1:
«Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.».
E no que respeita às situações de união de facto, temos a considerar que a Lei 7/2001 de 11/05 consagra a protecção da casa de morada de família em caso de ruptura nestes termos:
«O disposto nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil é aplicável, com as necessárias adaptações, em caso de ruptura da união de facto.».
Portanto, a acção para atribuição da casa de morada de família em caso de ruptura da união de facto é um processo de jurisdição voluntária.
Ora, a acção para reconhecimento da situação da união de facto com vista à aquisição da nacionalidade não é um processo de jurisdição voluntária, pelo que é evidente que não se enquadra na previsão do art. 122º nº 1 al. b) da LOFSJ (Lei da Organização e Funcionamento do Sistema Judiciário), sendo certo também que não respeita ao estado civil das pessoas.
Portanto, a LOFSJ não atribui competência aos juízos de família para julgar as acções para reconhecimento da situação da união de facto com vista à aquisição da nacionalidade.
Mas ainda que o contrário se entendesse, impõe-se ter presente que o art.  3º nº 3 da Lei da Nacionalidade é lei especial e atribui expressamente a competência ao tribunal cível.
Ora, o art. 7º nº 3 do Código Civil estatui: «A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador». Por isso, também por esta razão, a competência em razão da matéria para julgar esta acção cabe ao juízo cível, como aliás se decidiu no Ac do STJ de 17/06/2021 (P. 286/20.4T8VCD.P1.S1- in www.dgs.pt).
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IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e decidindo-se que o juízo local cível de Vila Franca de Xira, Juiz 1, é competente em razão da matéria para julgar esta causa.
Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 23 de Junho de 2022
Anabela Calafate
António Manuel Fernandes dos Santos
Ana de Azeredo Coelho