Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | FÁTIMA REIS SILVA | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE CREDITOS TRIBUTÁRIOS DIRECTIVA (UE) 20191023 | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/15/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | 1 - O facto de do texto da Lei nº 9/2022 não constar qualquer justificação para a manutenção da regra da não exoneração dos créditos tributários (245º nº2, al. d) do CIRE) não determina, sem mais, que tenha sido violada a obrigação de transposição da Diretiva 2019/1023. 2 – De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, a regra do art. 23º nº4 da Diretiva, que elenca categorias de créditos suscetíveis de serem excluídas do perdão e que não inclui os créditos tributários é exemplificativa; logo, outros créditos, além dos elencados podem ser excluídos, nas circunstâncias mencionadas nos considerandos 78 e 81, desde que: i) o devedor seja desonesto ou tenha atuado de má-fé; ou ii) exista um motivo devidamente justificado ao abrigo do direito nacional. A justificação não tem que constar do ato de transposição e não tem que ser coeva do referido ato. 3 - A razão de ser da exclusão de determinados créditos da exoneração não está subordinada, nem no direito nacional nem face ao direito comunitário, ao não prejuízo dos objetivos do instituto, refletindo antes a especial natureza dos interesses dos titulares dos créditos. 4 - As regras que consagram especial natureza e regime dos créditos tributários (como os arts. 103º da CRP, 5º, 8º e 30º da LGT) são justificação suficiente para que os créditos tributários possam ser objeto de um tratamento diferenciado por parte do legislador, porque uma vez constituídos, são créditos “de todos os cidadãos”, que assumem uma finalidade coletiva e pública, estando assim, devidamente justificada, no ordenamento jurídico nacional, a manutenção da exceção à exoneração destes créditos. 5 – Não é possível a discussão, em sede de recurso do despacho final de concessão da exoneração do passivo restante, sobre a inexistência ou inexigibilidade dos créditos tributários já verificados e graduados no processo de insolvência, por sentença transitada em julgado no apenso de reclamação de créditos, a que acresce não se tratar de argumento feito valer nas alegações de recurso, cujas conclusões conformam o objeto do recurso. 6 - A Diretiva 2019/1023 não contém qualquer regra incondicional, clara e precisa que proíba a exclusão da exoneração devidamente justificada de outros créditos que não os ali enumerados, que possa ser considerada como tendo efeito direto vertical. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa 1. Relatório PBV apresentou-se à insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante. A insolvência do requerente foi declarada por sentença de 27/11/2019. O pedido de exoneração não teve oposição do Administrador da Insolvência em relatório. Foi dispensada a realização de assembleia de apreciação do relatório. Por decisão de 29/06/2020 foi proferido o despacho liminar relativo ao pedido de exoneração do passivo restante, tendo sido admitido e declarado excluído do valor a ceder o equivalente a um salário mínimo nacional, acrescido de €650,00, que o devedor comprove mensalmente entregar aos filhos a título de pensão de alimentos. Procedeu-se à apreensão e liquidação de bens. Em 27/05/2020 foi proferida, no apenso respetivo, sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado, nos termos da qual foram julgados verificados os créditos reclamados, entre os quais um crédito garantido por hipoteca sobre o único bem imóvel apreendido e liquidado sendo os demais créditos comuns, entre os quais um crédito reclamado pela Fazenda Nacional, por IVA e custas no valor de € 45.649,29. Por despacho de 09/06/2021 foram declarados o encerramento do processo após realização do rateio final e o carater fortuito da insolvência. Em 27/06/2023 o Sr. Fiduciário juntou relatório final nos termos do art. 244º do CIRE, informando terem sido pontualmente entregues os rendimentos a ceder em todo o período de cessão e emitindo parecer no sentido da concessão da exoneração. Foi cumprido o disposto na parte inicial do nº1 do art. 244º do CIRE. Em 17/07/2023 o insolvente veio requerer que a exoneração abranja os créditos tributários, invocando o reenvio prejudicial efetuado pelo Tribunal da Relação do Porto no processo nº 2139/18.7T8OAZ.P1. Por despacho de 28/09/2023, indeferindo o requerimento formulado por contrariar norma legal expressa, o tribunal decidiu: «Face ao exposto, e pelos motivos invocados, ao abrigo do disposto no art. 244.º e n.º 245.º, do C.I.R.E., concedo a exoneração do passivo restante de que é devedor o insolvente, PBV, e, consequentemente, declaro extintos todos os créditos sobre a insolvência que subsistam na presente data, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados. Para os devidos efeitos se consigna que, de acordo com o estatuído no art. 245º, nº 2 do CIRE, a exoneração do passivo restante não abrange os créditos por alimentos, as indemnizações por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade, os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações e os créditos tributários e da segurança social. Notifique, registe e publique, nos termos previstos no art. 247.º do C.I.R.E.» Inconformado apelou o insolvente pedindo a revogação da decisão recorrida, sendo ordenada a alteração do despacho final de exoneração do passivo restante passando a incluir também a extinção de todas as dividas tributárias que impendem sobre o insolvente, formulando as seguintes conclusões: “1 – A Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas dispõe, nomeadamente, entre outros artigo 20º nº 1: Os Estados-Membros asseguram que os empresários insolventes tenham acesso a, pelo menos, um processo suscetível de conduzir ao perdão total da dívida em conformidade com a presente diretiva; 2 – 20 nº 2 Os Estados-Membros em que o perdão total da dívida tenha como condição o reembolso parcial da dívida pelo empresário asseguram que a obrigação de reembolso tenha por base a situação individual do empresário e, em especial, que seja proporcional aos seus rendimentos e ativos disponíveis ou suscetíveis de serem apreendidos durante o prazo para o perdão e tenha em conta o interesse equitativo dos credores; 3 - 21º nº 1 Os Estados-Membros asseguram que o período após o qual os empresários insolventes podem beneficiar de um perdão total das suas dívidas não seja superior a três anos (…) 4 - 23º nº 2 os Estados-Membros podem manter ou introduzir disposições que recusem ou limitem o acesso ao perdão de dívidas ou revoguem o benefício do perdão, ou prevejam prazos mais longos para obter um perdão total da dívida ou períodos de inibição mais prolongados em determinadas circunstâncias bem definidas e se tais derrogações forem devidamente justificadas, e; 5 - 23 nº 4 Os Estados-Membros podem excluir determinadas categorias de dívida do perdão da dívida, ou restringir o acesso ao perdão da dívida ou fixar um prazo para o perdão mais prolongado, caso essas exclusões, restrições ou prolongamentos de prazos sejam devidamente justificados 6 – A Lei 9/2022 de 9 de Janeiro é completamente omissa, nomeadamente ao que diz respeito ao artigo 22º nº 3 e nº 4 da diretiva: 7 – No caso dos autos não estamos perante quaisquer dividas tributárias decorrentes de actividades delituosas ou que tenham sido praticados actos em benefício do insolvente; 8 – A divida tributária existente e reclamada decorre tão somente de liquidações oficiosas de Iva por falta de junção atempada da declaração de encerramento de actividade da empresa não tendo existido quaisquer transações económicas, benefício para o insolvente ou prejuízo para o estado; 9- A Lei 9/2022 de 9 de Janeiro e o artigo 245º nº 2 alínea d) do CIRE violam de forma clara o que dispõe, nomeadamente os artigos 20 nº 1 e nº 2, 21 nº , 23 nº 2 e 23 nº 4 da directiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas o que se requer se decrete. 10 – O parecer dos serviços jurídicos da Comissão Europeia é claro ao defender que apenas se podem excluir algumas categorias de dividas para além das que se encontram elencadas nas alíneas a) a f ) do artigo 23 nº 4 da directiva contando que tal exclusão não comprometa a realização do objectivo da directiva de proporcionar uma segunda oportunidade efectiva aos empresários sobreendividados o que não foi feito 11 - Não estando em causa qualquer actividade "penal" ou "delitual" mas tão somente o apuramento, a liquidação, a titulo oficioso, por falta de entrega atempada da declaração de cessação de actividade da empresa, sem qualquer correspondência com a atividade económica efetivamente realizada, estamos perante reação desproporcionada, que afecta os direitos fundamentais do insolvente, nos termos do artigo 52.º da CDFUE e da jurisprudência do TJUE relativa às liberdades económicas que se impõe se conheça e declare também. 12 – conforme acórdão do Tribunal da Relação de Évora já citado Encontrando-se verificados todos os requisitos dos quais depende a atribuição de efeito direto vertical às Diretivas e considerando o primado do Direito da União constitucionalmente reconhecido pelo artigo 8º, nº 4 da CRP, somos a concluir que as Diretivas n.ºs 2010/64/EU e n.º 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, concretamente as normas constantes dos artigos 1º a 3º da Diretiva n.º 2010/64/EU e 3.º da Diretiva n.º2012/13/EU, têm efeito direto vertical em Portugal, pelo que poderão ser aplicadas nos presentes autos, impondo-se e prevalecendo sobre o direito interno. 13 – Assim sendo, e como também este é o caso da directiva invocada nos autos, estão preenchidos todos os requisitos para que se decrete, como se requer que a Lei 9/2022 de 9 de Janeiro e o artigo 245º nº 2 alínea d) do CIRE violam de forma clara o que dispõe, nomeadamente os artigos 20 nº 1 e nº 2, 21 nº , 23 nº 2 e 23 nº 4 da directiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, e que o despacho final de exoneração do passivo, já deferido, inclua também as dividas tributárias do insolvente.” O Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, respondeu ao recurso, pedindo a manutenção da decisão recorrida e apresentando as seguintes conclusões: “A) A Diretiva Europeia 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, estabeleceu medidas de harmonização comunitária destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, insolvência e ao perdão de dívidas, de forma não totalmente fechada, demonstrando flexibilidade na definição dos mecanismos e regras a adoptar por cada Estado, permitindo soluções diferentes a nível nacional, entre as quais, definir as dívidas que são excluídas da exoneração. B) A Lei 9/2022 de 22 de janeiro contendo medidas de agilização do processo de insolvência, deu corpo às alterações exigidas Diretiva 2019/1023 e manteve a dignidade e autonomização dos créditos estatuídos no nº 2 do artigo 245º do CIRE, cuja ínsita justificação é a protecção de créditos, entre os quais os tributários, que resulta claramente da defesa de valores constitucionais fundamentais / indisponíveis e / punitivos ou públicos / comunitários, extravasando o mero trato comercial. C) Nestes termos, a norma do nº 2 do artº 245º do CIRE, não viola qualquer norma de direito comunitário, pelo que, concedida a final a exoneração do passivo restante, os créditos tributários mantém a sua excepcional e justificada inexorabilidade. D) Assim, o douto despacho recorrido ao conceder a exoneração do passivo restante de que é devedor o insolvente, PBV, consignando que a mesma não abrange os previstos no artigo 245º, nº 2 do CIRE, nos quais se incluem os créditos tributários, não violou qualquer normativo legal, designadamente da ordem comunitária e nacional.” Não foram apresentadas outras contra-alegações. O recurso foi admitido por despacho de 20/11/2023 (ref.ª 430336941). * Por despacho de 22/12/2023, e após audição das partes, foi declarada suspensa a instância até decisão do reenvio prejudicial efetuado no processo nº 2139/18.7T8OAZ.P1, aceite pelo TJUE, mas então ainda não decidido. Naqueles autos foram decididas submeter à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) as seguintes questões: 1) O nº 4 do art.º 23º da Diretiva deve ser interpretado no sentido que só é permitida a exclusão de outras dívidas (além das elencadas nas alíneas) quando estiverem “devidamente justificados”? 2) A possibilidade de os Estados-Membros excluírem determinadas categorias de dívidas do perdão da dívida (desde que tal exclusão seja devidamente justificada, tal como previsto no artigo 23º, n.º 4, da Diretiva 2019/1023) deve ser interpretada no sentido de permitir que os Estados-Membros excluam os créditos tributários (não indicados no respetivo artigo), criando uma situação privilegiada para si próprios? 3) Se porventura a resposta a estas questões for positiva, importa saber que critérios satisfariam tal exigência de justificação, na aceção do direito da União Europeia, por forma a respeitarem (tais justificações) os princípios gerais do direito da União e a proteção dos direitos fundamentais, aos quais o legislador europeu e nacional estão sujeitos ["não discriminação em razão da nacionalidade" (artigo 18.º do TFUE) e "liberdade de empresa" (artigo 16º da CDFUE), para além das liberdades económicas fundamentais do mercado interno]. 4) Se porventura a resposta àquela questão for negativa, importa saber se a definição (na aceção do direito da União Europeia e para os efeitos de interpretação da diretiva em apreço) de "dívidas decorrentes de sanções penais ou com elas relacionadas", bem como de "dívidas decorrentes de “responsabilidade delitual", abrange também as dívidas tributárias, tal como prevê o ato legislativo interno de transposição da Diretiva 2019/1023 (Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro). O TJUE decidiu o reenvio, por acórdão de 08/05/2024, nos seguintes termos: 1) O artigo 23º nº 4 da Diretiva (EU) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (EU) 2017/1132 (Diretiva sobre a reestruturação e insolvência), deve ser interpretado no sentido de que: Só é possível a exclusão do perdão da dívida de uma determinada categoria de dívida diferente das inumeradas nessa disposição quando estiver devidamente justificada ao abrigo do direito nacional. 2) O artigo 23º nº 4 da Diretiva 2019/1023 deve ser interpretado no sentido de que: Os Estados Membros têm a faculdade de excluir do perdão da dívida determinadas categorias de dívida, tais como os créditos tributários e da segurança social, atribuindo-lhes, assim, um estatuto privilegiado, desde que essa exclusão seja devidamente justificada ao abrigo do direito nacional. Foram ouvidas as partes no tocante à decisão do reenvio prejudicial. O recorrente veio pronunciar-se alegando que a exclusão das dividas tributárias, atenta a ausência ou deficiente fundamentação por parte do legislador, permite e impõe aos tribunais superiores que façam uma avaliação casuística dos pressupostos da sua efetiva existência e só após decidam pela inclusão ou exclusão dos créditos tributários em obediência ao princípio da justiça material, em suma a verdadeira justiça para o cidadão comum e pedindo que o Tribunal se pronuncie favoravelmente quanto à pretensão do recorrente assim se fazendo justiça. O Ministério Público veio pronunciar-se, pedindo a total improcedência do recurso e alegando, em síntese que aquando da transposição da Diretiva o legislador nacional não viu necessidade de introduzir qualquer justificação para o tratamento especial dos créditos tributários por tal tratamento estar já devidamente fundamentado no direito nacional, na Constituição da República Portuguesa (art. 103º), na Lei Geral Tributária (arts. 5º, 8º, 30º e 36º), e no CPPT (arts. 85º, 196º e 199º) pelo princípio da legalidade tributária. Este tratamento especial tem outros afloramentos, como os privilégios creditórios, o direito de constituição de hipoteca e penhor, a reclamação, o recurso hierárquico, entre outros. Mais alega que não é esta a sede para discutir a inexistência da dívida por reversão, dado o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos. * Foram colhidos os vistos. Cumpre apreciar. * 2. Objeto do recurso Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma. Consideradas as conclusões acima transcritas a única questão a decidir é a da verificação de se os créditos tributários reclamados e verificados nos autos devem ser abrangidos pela exoneração do passivo restante, o que passa pela aferição da conformidade da regra do art. 245º, nº2, al. d) do CIRE com a Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019. * 3. Fundamentos de facto: Os factos com relevo para a decisão do recurso são os que constam do relatório. * 4. Fundamentos do recurso: A exoneração do passivo restante é um instituto introduzido, de forma inovatória, em 2004, pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, e que confere aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo – o fresh start. Nos termos do disposto no art. 235.º do CIRE[1]: «Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.» “A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.”[2] É, antes de mais, uma medida de proteção do devedor, mas que joga com dois interesses conflituantes: a lógica de segunda oportunidade e a proteção imediata dos interesses dos credores atuais do insolvente. Não esqueçamos que o processo de insolvência «…tem como finalidade a satisfação dos credores…» como se prescreve logo no art. 1º do CIRE. Este instituto posterga essa finalidade em nome não apenas do benefício direto (exoneração e segunda oportunidade) do devedor, mas de uma série de interesses de índole mais geral: a possibilidade de exoneração estimula a apresentação tempestiva dos devedores à insolvência, permite a tendencial uniformização entre os efeitos da insolvência para pessoas jurídicas e pessoas singulares e, em última análise, beneficia a economia em geral, provocando, a contração do crédito mas gerando maior responsabilidade e responsabilidade na concessão do mesmo.[3] Essa tensão entre dois interesses opostos reflete-se nas várias normas que regulam a exoneração, desde logo na opção do nosso legislador pelo regime do earned start, ou reabilitação (por contraposição ao fresh start puro), ou seja, fazendo o devedor passar por um período de prova e concedendo o benefício apenas se o devedor o merecer. É também o modelo eleito a nível europeu, como resulta da Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 (sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas)[4], já transposta[5], e que, em matéria de exoneração ou perdão, na linguagem da diretiva, previu o acesso ao perdão total da dívida aos empresários, deixando aos Estados a opção de o aplicar aos consumidores (cfr. considerando 21), após um prazo não superior a três anos, possibilitando a reserva a devedores de boa-fé e à verificação do cumprimento de determinadas condições – cfr. arts. 20º a 24º da diretiva, em especial o artigo 22º. No presente caso, precisamente, a única questão a decidir é a de se os créditos tributários reclamados, verificados e graduados nos autos devem ou não ser abrangidos pela exoneração do passivo restante, já concedida, por decisão, nesta parte coberta pelo caso julgado. No caso concreto a exoneração foi concedida, sendo objeto do recurso a parcela da decisão que expressamente enquadrou como crédito excluído da exoneração concedida o crédito reclamado e verificado nos autos ao credor Estado Fazenda Nacional, por dívidas de IVA e custas, ou seja, um crédito tributário. Estabelece o art. 245º do CIRE, sob a epígrafe Efeitos da exoneração: «1 - A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º 2 - A exoneração não abrange, porém: a) Os créditos por alimentos; b) As indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade; c) Os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações; d) Os créditos tributários e da segurança social.» A regra geral é a de que, como efeito típico, a exoneração acarreta a extinção dos créditos sobre a insolvência que subsistam à data, incluindo os que não hajam sido reclamados e verificados. O nº2 do preceito é a exceção e, como tal, é uniformemente entendido como uma enumeração taxativa[6], o que resulta não só da letra da lei como da finalidade e filosofia do instituto. Como refere Catarina Serra[7] a propósito da interpretação da al. b), existe um “princípio de que as ressalvas ao efeito da exoneração devem reduzir-se ao mínimo, sob pena de se comprometer o propósito da exoneração (a concessão de um fresh start ao devedor).” São gerais as críticas ao preceito, sendo notado que as exceções podem diminuir grandemente o interesse na figura[8], críticas essas centradas em especial na previsão da al. d)[9]. Tratam-se de exceções que o legislador entendeu manter em função da “especial natureza dos interesses dos seus titulares”[10]. A norma é expressa, como referido no despacho recorrido, apenas havendo que efetuar a ponderação apontada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. Sendo esta uma norma que vem da redação originária do CIRE, a questão colocada a juízo foi a sua conformidade com os objetivos da Diretiva 2019/1023 que foi transposta, entre nós pela Lei nº 9/2022 de 11 de janeiro. A questão como vinha originariamente posta no recurso pautava-se pelos seguintes argumentos: - o legislador português, na transposição da Diretiva – que prevê o perdão nos arts. 20º a 23º - manteve intocada a redação da al. d) do nº2 do art. 245º do CIRE, prevendo uma regra distinta para os créditos tributários e da segurança social; - fê-lo sem apresentar qualquer justificação, omissão que implica uma violação do art. 22º nºs 3 e 4 da Diretiva; - sendo recorrente o argumento de que os créditos tributários são prestações em favor da comunidade, necessárias para a prestação de serviços públicos, devem ser distinguidas as dívidas fiscais originadas por prática criminosa das que decorrem dos riscos da atividade económica ou de erros sem intenção de lesar o estado que não beneficiaram o infrator; - no caso dos autos a dívida tributária resulta de reversão de dívidas de IVA de empresa de que era gerente o recorrente, relativas a liquidações oficiosas quanto a período em que a empresa já não tinha atividade mas em que, por lapso, a declaração não foi entregue, pelo que inexistiu qualquer benefício para si ou para a sociedade; - a manutenção desta dívida põe em causa o fresh start por ser impossível aceder ao plano de pagamentos proposto pela Autoridade Tributária após sair de um processo de insolvência; - o parecer dos serviços jurídicos da Comissão Europeia considerou esta exclusão demasiado ampla e de difícil justificação; - a diretiva impõe que a exclusão de outras categorias de dividas seja devidamente justificada e fundamentada (o que não foi), contando que tal exclusão não comprometa a realização do objetivo da diretiva de proporcionar uma segunda oportunidade efetiva aos empresários sobre endividados (o que compromete) e a menos que sejam concomitantemente adotadas medidas atenuantes que limitem o impacto que uma ampla exclusão de dividas tem na eficácia de um mecanismo de segunda oportunidade (o que não foi feito); - impõe-se declarar ter ocorrido uma incorreta transposição da Diretiva; Alude ainda ao Ac. TRE de 08/03/2022, relativo ao efeito vertical das Diretivas, mas sem qualquer enfoque em relação ao caso concreto. O Ministério Público defendeu que, não obstante o propósito de harmonização comunitária promovido pela diretiva, esta deixou margem de decisão aos Estados Membros, designadamente para definir as dívidas que são excluídas da exoneração, entre as quais, no caso nacional, os créditos tributários. As exceções previstas no nº 2 do art. 245º do CIRE, inalteradas, colhem justificação na proteção de créditos que resultam da defesa de valores constitucionais fundamentais/ indisponíveis e / punitivos ou públicos / comunitários, extravasando o mero trato comercial, tendo o legislador nacional mantido a prevalência do interesse público sobre o interesse do insolvente. O Ac. TJUE de 08/05/2024, respondendo às questões prejudiciais colocadas, começou por frisar que a lista de categorias de dívidas passíveis de exclusão do perdão constante do nº4 do art. 23º da Diretiva é exemplificativa[11]. Afirmou que a Diretiva não exige que a justificação da exclusão seja facultada no próprio ato da transposição (§ 36), podendo a justificação resultar dos elementos de direito nacional relativos à previsão legal (como preambulo e trabalhos preparatórios), como de outras disposições legais diferentes da que contém a exclusão: “a referida justificação pode também figurar noutras disposições do direito nacional além da que contém essa exclusão, como uma disposição constitucional, legislativa ou regulamentar nacional.” Cfr. §37 do Ac. TJUE. O TJUE reconheceu afigurar-se a existência, no direito português, de justificação da exclusão, à luz dos arts. 103º nº1 da CRP e dos arts. 5º e 30º da LGT, indicando, porém, que “cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, que tem competência exclusiva para interpretar e aplicar o direito nacional, apreciar se a referida exclusão está devidamente justificada ao abrigo do direito nacional.” – cfr. §38 do aresto. Quanto à segunda questão colocadas – tendo sido a primeira e a segunda as únicas respondidas – o TJUE decidiu que os Estados Membros podem legitimamente considerar que os credores institucionais públicos não se encontram em situação comparável aos demais credores, comerciais e privados, sendo a pedra de toque a existência de justificação. Notificado do Acórdão em causa o recorrente veio pedir sejam os créditos tributários incluídos no perdão, alegando: - que o Acórdão não responde totalmente às questões colocadas, tendo omitido resposta à questão fundamental que é a da fundamentação e compatibilização das categorias de dívidas excecionadas da exoneração com o objetivo final da exoneração do passivo restante; - deixando expresso que a dívida à AT não existe e nunca existiu; trataram-se de liquidações oficiosas de períodos em que a empresa não tinha atividade e em que, por lapso, não foi declarada a cessação de atividade, que foi revertida para o recorrente; tais factos são do conhecimento da AT que, após audiência prévia do recorrente, recusou reverter a sua decisão; - no presente os tribunais tributários já não admitem este tipo de atuação da AT, como resulta dos Acs. TCAS de 08/07/2021, TCAS de 22/05/2019 e TCAN de 08/07/2021; - a posição do Advogado Geral, o Ac. TJUE de 08/05/2024 e a posição da AT estão erradas quanto à suposta justificação da exclusão das dívidas tributárias; - o memorando de entendimento com a troika previa a revisão do CIRE com vista à remoção dos impedimentos à reestruturação voluntária de dívidas e melhorias nos procedimentos de insolvência das pessoas singulares, mas as alterações do CIRE não cumpriram os objetivos assumidos; - a AT pretende fazer crer que cumpre os critérios legais de justificação da exclusão dos créditos tributários remetendo para normativos legais sem qualquer fundamentação ou densificação; - não existe justificação no caso, dado que o art. 103º da CRP não foi violado, por não existir facto tributário sujeito a tributação; também não foram colocados em causa os arts. 5º e 30º da LGT, nomeadamente o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários dado que o crédito não existe, sendo fruto de uma liquidação oficiosa virtual; o princípio da legalidade porque não há facto tributário e o princípio da igualdade pois será resposta a igualdade entre contribuintes por não ter sido praticado qualquer facto tributário sujeito a imposto. O Ministério Público pronunciou-se no sentido de o diferente tratamento dado aos créditos tributários se encontrar devidamente fundamentado no ordenamento jurídico português e não ser esta a sede própria para discutir a existência do crédito, verificado e graduado por sentença transitada em julgado. Apreciando: A única questão a decidir no presente recurso, como assinalado é a de se os créditos tributários devem ser excluídos da exoneração, nos termos da al. d) do nº2 do art. 245º do CIRE, ou se esta regra deve ser desaplicada por violar a obrigação de do Estado Português de transposição da Diretiva 2019/1023. A questão como vinha inicialmente colocada apontava a violação da obrigação de transposição concretamente ao facto de o legislador português ter mantido esta norma sem, no instrumento de transposição (a Lei nº 9/2022) ou simultaneamente (por exemplo no preambulo ou nos trabalhos preparatórios), justificar a manutenção da regra. A esta questão o TJUE respondeu assertivamente: a regra do art. 23º nº4 da Diretiva, que elenca categorias de créditos suscetíveis de serem excluídas do perdão e que não inclui os créditos tributários é exemplificativa; logo, outros créditos, além dos elencados podem ser excluídos, nas circunstâncias mencionadas nos considerandos 78 e 81[12] desde que i) o devedor seja desonesto ou tenha atuado de má-fé; ii) exista um motivo devidamente justificado ao abrigo do direito nacional. A justificação não tem que constar do ato de transposição e não tem que ser coeva do referido ato. Assim, e quanto ao primeiro fundamento do recurso, tratando-se de interpretação de direito comunitário, a decisão do TJUE determina a sua improcedência: o facto de na Lei nº 9/2022 não constar qualquer justificação para a manutenção da regra não determina, sem mais, que tenha sido violada a obrigação de transposição. Ponto seguinte é o esclarecimento de que não estamos perante um caso de desonestidade ou má-fé do devedor, sendo estritamente uma questão de aplicação abstrata da lei. Assim, a única questão a responder é a de se, como assinalado pelo TJUE, há justificação bastante no direito nacional para a manutenção da regra. O TJUE assinalou que se afigurava que a resposta a esta questão era positiva, mas que é ao tribunal nacional que cabe interpretar a lei nacional (e não ao TJUE), remetendo a decisão para aquele, ou seja, para este tribunal. O recorrente, notificado do Acórdão do Tribunal de Justiça veio avançar um novo argumento que não havia alegado no seu requerimento de interposição de recurso. Alega agora que o crédito tributário, cuja exclusão da exoneração pretende, não existe nem nunca existiu, citando jurisprudência tributária. Trata-se de argumento que não pode ser sequer considerado por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, não se trata de argumento trazido ao presente recurso nas respetivas alegações, cujas conclusões delimitam o seu objeto – o que ali foi alegado foi que o montante seria excessivo para liquidações oficiosas de uma empresa sem atividade, nunca a inexistência da dívida. Em segundo lugar, a dívida foi reclamada no processo de insolvência e não foi impugnada em sede de reclamação de créditos, tendo sido verificada por sentença transitada em julgado e não sendo mais possível discutir a sua existência nos presentes autos. Tal como não é possível discutir a existência da dívida, também não é possível extrair qualquer argumento dessa sua suposta inexistência, pelo que todas as considerações efetuadas pelo recorrente no requerimento de 23/05/2024 relacionadas ou fundadas nesta inexistência da dívida tributária são inócuas e não serão conhecidas. Voltando à questão da justificação para a manutenção da exclusão, também nós, com o Tribunal de Justiça da União Europeia, entendemos que a regra encontra a sua justificação em regras do direito nacional. Como já referimos antes, a razão de ser da exclusão de determinados créditos da exoneração não está subordinada, no direito nacional, ao não prejuízo dos objetivos do instituto, refletindo antes a especial natureza dos interesses dos titulares dos créditos. Na verdade, é também assim face ao direito comunitário, não tendo razão o recorrente ao referir que apenas seria justificação bastante aquela que evidenciasse que a exclusão não contraria os objetivos do perdão. Tal exigência não consta nem do texto nem dos considerandos da Diretiva. Mas mais importante, e recordando o elenco do nº4 do art. 23º da Diretiva[13] verificamos que também ali temos categorias de créditos em que releva o interesse dos respetivos titulares, independentemente de tal exclusão pôr ou não em causa o fresh start do devedor: o exemplo mais flagrante é o da possibilidade de exclusão do perdão dos créditos garantidos[14], opção não tomada pelo nosso legislador, noção deixada aos ordenamentos jurídicos nacionais, apenas por esse facto. A exclusão da exoneração de um crédito hipotecário, apenas pelo facto de o ser, porá em causa o fresh start do devedor numa percentagem muito alta de devedores singulares, só para referir um dos claros casos de créditos garantidos. Acresce que, de acordo com a lei nacional, são considerados garantidos os créditos dotados de privilégios especiais[15] pelo que tal exclusão, a ter sido acolhida, seria muito mais vasta do que aparenta. Dando outro exemplo, também nos créditos por obrigações de alimentos releva o interesse de sobrevivência digna dos titulares do crédito, ao qual é indiferente o interesse na recuperação do devedor. Assim, a justificação a encontrar, ao abrigo do direito comunitário, não tem que valorizar, sobre os interesses dos titulares dos créditos, o interesse na recuperação do devedor. E essa é a razão pela qual se entende que o que há que determinar é se existe justificação para que os créditos tributários, em geral, possam ser excluídos da exoneração e não caso a caso, crédito a crédito, se este específico crédito – aqui por reversão de IVA – é suscetível de exoneração ou não. Entendemos mesmo que a circunstância – não apurada nos autos nem suscetível de prova neste momento – de o recorrente não ter colhido qualquer benefício do ato de omissão de pagamento do imposto, é também indiferente para este efeito. A lei prevê a exclusão da exoneração dos créditos tributários, em geral e sem qualquer outro requisito. O que temos que determinar é se a legislação nacional justifica devidamente esta exclusão genérica, tal como a lei a faz, e não derrogar a lei ao sabor do caso concreto. Resulta do art. 103º nº1 da CRP[16] que o primeiro objetivo do sistema fiscal é a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas. É também objetivo, social, a repartição justa dos rendimentos e da riqueza, acrescendo ainda os objetivos de política económica. Em conformidade, os art.º 5º e 8º da LGT preveem que a tributação visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado com vista a promover a justiça social, a igualdade de oportunidades e as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, respeitando os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material. É em virtude destes objetivos que os créditos tributários têm um regime diverso dos demais créditos do giro económico. É a subordinação à satisfação das necessidades financeiras públicas – que incluem o ensino público, o sistema nacional de saúde, a justiça, etc. – que os créditos tributários, adquirida essa qualidade, são indisponíveis – cfr. arts. 30º nºs 2 e 3 da LGT. Como refere Sara Luís Dias[17] “O crédito tributário, por ser do Estado, é também de todos os cidadãos. E é em nome dos seus cidadãos que o Estado, personificado na AT, tem de proteger este crédito e acautelar o interesse público, não podendo discricionariamente modificar a relação jurídica tributária e, assim, dispor livre e autonomamente dos seus créditos. (…) A consagração legal deste princípio não se prende apenas com a necessidade de dotar o Estado de receitas suficientes para fazer face às necessidades coletivas, mas também com a proteção dos direitos e interesses constitucionalmente consagrados dos cidadãos através da preservação do dever geral de contribuir, o que se procura quer pelo facto de a derrogação deste princípio apenas ser possível verificada que seja a igualdade tributária, ou seja, em casos legalmente previstos para todos os que se encontrem em determinada situação, quer porque, ao reafirmar a indisponibilidade do crédito tributário, se visa dar um bom exemplo aos contribuintes, que não se depararão com situações de perdão injustificado de créditos, motivados por interesses que são totalmente alheios à justiça fiscal…” Ou seja, a questão não é a de se a exoneração dos créditos tributários num determinado caso concreto viola ou não o art. 103º da CRP, mas antes de compreender que é por os objetivos dos créditos tributários serem estes, proclamados pela nossa Lei Fundamental, que os créditos tributários se tornam merecedores de um tratamento diverso dos demais créditos. E a resposta à questão é positiva: estas regras são precisamente o necessário para justificar que os créditos tributários possam ser objeto de um tratamento diferenciado por parte do legislador, porque uma vez constituído o crédito (e a sua constituição pode ser contraditada, quer junto da AT, quer na própria reclamação de créditos em insolvência) ele passa a ser um crédito “de todos os cidadãos”. Como refere, mais uma vez, Sara Luís Dias[18] a exclusão dos créditos tributários da exoneração do passivo restante é “o caso mais paradigmático de manifestação do princípio geral de não disponibilidade do crédito tributário no processo de insolvência.” A autora percorre as críticas e assume que pese embora as consequências desfavoráveis ao fresh start, que reconhece, a posição excecional dos credores tributários “se justifica pela especial natureza que os seus créditos assumem, pela finalidade coletiva e pública que lhes está subjacente. Concordamos com a conclusão da autora que vimos citando de que, em determinados casos, se poderia justificar a não exclusão da exoneração, precisamente por colocarem em crise o fresh start e, em especial nas situações de reversão, mas que, enquanto não se encontrar na lei a possibilidade expressa de um perdão fiscal nestas situações, a lei tem que ser respeitada. A igual conclusão se chegou no Ac. TRP de 20/06/2024[19], (Isabel Silva) tirado precisamente no processo no qual se efetuou o reenvio (2139/18.7T8OAZ.P1) no qual, na sequência do Ac. TJUE de 08/05/2024, se concluiu ser de manter a exclusão da exoneração dos créditos, no caso, da Segurança Social. Argumenta o recorrente que devem ser distinguidas as dívidas fiscais originadas por prática criminosa das que decorrem dos riscos da atividade económica ou de erros sem intenção de lesar o estado que não beneficiaram o infrator. No entanto, trata-se de uma distinção que a própria lei e o texto da Diretiva afastam. Os créditos originados em práticas criminosas já estão abrangidos nas als. b) e c) do art. 245º e 23º nº4, als. b) e c) da Diretiva, não havendo qualquer razão para quando se tratem de créditos tributários nestas condições, não estarem aqui abrangidos. Finalmente alude o recorrente ao efeito vertical da Diretiva. A Diretiva 2019/1023, transposta pela Lei nº 9/2022 de 11/01, contém uma norma exemplificativa de categorias de créditos passíveis de serem excluídos do perdão, e ainda, como vimos, a indicação de que, devidamente justificado, outras categorias de crédito podem ser excluídas (considerando 81). Ou seja, e como referido pelo Ministério Público, trata-se de matéria em que a Diretiva deixou margem de conformação aos Estados membros. Estabelece o art. 8º nº4 da CRP que «As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.» Resulta com clareza do texto constitucional que “é ao direito da União que cabe definir os termos da aplicação das normas dos tratados e das demais normas jurídicas emanadas das suas instituições.”[20] A questão do efeito ou da aplicabilidade do Direito da União Europeia possui uma matriz fundadora e tem sido objeto de larga atenção por parte da jurisprudência e da doutrina comunitárias[21]. Com o acórdão van Gend en Loos[22], o Tribunal de Justiça elaborou os primeiros enunciados do que se viria a afirmar como princípio “constitucional”: “a Comunidade constitui uma nova ordem jurídica de direito internacional, em benefício da qual os Estados limitaram, ainda que em domínios restritos, os seus direitos soberanos, de que são sujeitos não só os Estados-Membros mas também os seus nacionais.”. Por consequência, “o direito comunitário, independentemente das legislações dos Estados-Membros, ao mesmo tempo que cria deveres aos particulares, destina-se também a engendrar direitos que entram no seu património jurídico (...).” Trata-se do reconhecimento do efeito direto do Direito da União Europeia, um princípio fundamental do Direito da União Europeia. O princípio do efeito direto não obedece, porém, ao mesmo regime em relação aos diversos atos da União Europeia. O Tribunal de Justiça aceitou para alguns atos um efeito direto horizontal[23] e vertical[24] mas para outros apenas um efeito direto vertical como sucede, precisamente, no caso das Diretivas. Recorde-se que as Diretivas, de acordo com o estabelecido no § 3º do art. 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, vinculam os Estados-Membros, deixando-lhes a competência quanto à forma e aos meios. “Com as Diretivas, a União Europeia procurou dotar-se de um instrumento que permitisse, por um lado, harmonizar regras vigentes em todo o espaço da União Europeia e, por outro lado, facultar aos Estados-Membros a possibilidade de as adaptar ao ordenamento jurídico interno.” O Acórdão Van Duyn[25] reconheceu o efeito direto de disposições claras, incondicionais e suficientemente precisas de Diretivas, jurisprudência que reafirmou no Acórdão Ratti[26], decidindo que «uma jurisdição nacional requerida por um particular para não aplicar uma disposição nacional incompatível com a dita diretiva não transposta para a ordem interna de um Estado incumpridor, deve deferir ao pedido, se a obrigação em causa for incondicional e suficientemente precisa.» No caso Português, as Diretivas devem ser transpostas por lei, decreto-lei ou decreto legislativo regional (cfr. artigo 112.º, n.º 8 da Constituição). Veja-se, neste exato sentido o Ac. TRE de 08/03/2022 (Maria Clara Figueiredo – 53/19), no qual se escreveu “Segundo a Jurisprudência do Tribunal de Justiça o efeito direto vertical de uma Diretiva, ou seja, o que é feito valer pelos particulares perante os poderes públicos (neste caso, o tribunal e o Estado português), existirá posto que se encontrem preenchidos cumulativamente determinados pressupostos, a saber: - Que não tenha sido efetuada a sua transposição para a legislação nacional ou que a mesma tenha sido objeto de transposição incorreta; - Que as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas; - Que as disposições da Diretiva confiram direitos a particulares; - Que esteja esgotado o prazo de transposição.” Estamos, precisamente ante uma Diretiva, que foi transposta. A matéria em causa é a exclusão de uma categoria de dívidas do perdão ali previsto, que o nosso ordenamento já previa e adaptou. Ora como vimos, a Diretiva apenas prevê, quanto a este ponto, que acima se deixou referido, ou seja, a obrigação dos Estados-Membros de assegurar que a previsão de outras categorias de dívidas excluídas da exoneração seja justificada, podendo sê-lo, já nas palavras do TJUE, por outras normas de direito nacional. Não existe assim, qualquer regra incondicional, clara e precisa que proíba a exclusão da exoneração de outros créditos que seja devidamente justificada, por forma a que o ora recorrente o pudesse invocar, acompanhando a sua alegação com a demonstração da incorreta transposição. A apelação improcede, assim, integralmente, sendo de manter na íntegra a decisão recorrida * O apelante, porque vencido, suportará integralmente as custas do presente recurso que, in casu se traduzem apenas nas custas de parte devidas, porquanto se mostra paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual do recurso e este não envolveu diligências geradoras de despesas – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil[27]. * 5. Decisão Pelo exposto, julgando integralmente improcedente a apelação, decide-se manter a decisão recorrida. * Custas de parte na presente instância recursiva pelo recorrente. Notifique. * Lisboa, 15 de outubro de 2024 Fátima Reis Silva Pedro Brighton Renata Linhares de Castro _______________________________________________________ [1] Na versão em vigor à data da prolação do despacho recorrido. [2] Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Abril de 2018, pg. 560. [3] Neste sentido Catarina Serra, local citado, pgs. 562 e 563. [4] Texto disponível in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019L1023&from=PT [5] Pela Lei nº 9/2022 de 11 de janeiro, que entrou em vigor no dia 11 de abril de 2022. [6] Carvalho Fernandes e João Labareda, em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, 2015, pg. 871. [7] Em Lições…, já citado, pg. 576. [8] Menezes Leitão, referindo-se à exceção dos créditos tributários, em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 10ª edição, Almedina, 2018, pg. 294. [9] Assim Catarina Serra, local citado, pg. 576, Luís Miguel Martins em Recuperação de Pessoas Singulares, Almedina, 2011, pg. 92 e Letícia Marques Costa em A insolvência de pessoas singulares, Almedina, Coleção Teses, 2021, pgs. 153 a 157, entre outros. [10] Labareda e Carvalho Fernandes, local citado, pg. 871. [11] Nas palavras do aresto “decorre da redação da referida disposição que as determinadas categorias de dívida não são enumeradas de forma exaustiva [v., neste sentido, Acórdão de 11 de abril de 2024, Agencia Estatal de la Administración Tributaria (Exclusão dos créditos de direito público do perdão de dívidas), C-687/22, EU:C:2024:287, n.° 37].” – cfr. § 31. [12] Respetivamente derrogação da regra do perdão total da dívida “nos casos em que o devedor for desonesto ou tiver atuado de má-fé” e exclusão de “outras categorias de dívida, quando devidamente justificado” ao abrigo do direito nacional – respetivamente considerandos 78 e 81. [13] “4. Os Estados-Membros podem excluir determinadas categorias de dívida do perdão da dívida, ou restringir o acesso ao perdão da dívida ou fixar um prazo para o perdão mais prolongado, caso essas exclusões, restrições ou prolongamentos de prazos sejam devidamente justificados, nomeadamente no caso: a) Das dívidas garantidas; b) Das dívidas decorrentes de sanções penais ou com elas relacionadas; c) Das dívidas decorrentes de responsabilidade delitual; d) Das dívidas respeitantes a obrigações de alimentos decorrentes de uma relação familiar, parentesco, casamento ou afinidade; e) Das dívidas contraídas após a apresentação do pedido de abertura de um processo conducente a um perdão da dívida ou após a abertura de tal processo; e f) Das dívidas decorrentes da obrigação de pagar as custas do processo conducente a um perdão da dívida.” [14] Até ao limite da garantia, de acordo com o considerando 81. [15] Art. 47º nº4, al. a) do CIRE. [16] Seguimos de perto Gomes Canotilho e Vital Moreira em Constituição da República Portuguesa Anotada, I Vol., Coimbra Editora, 2007, pg. 1088 e ss. [17] Em A afetação do crédito tributário no plano de recuperação da empresa insolvente, Revista de direito da Insolvência, nº0, Almedina, 2016, pg. 249. [18] Agora em O Crédito Tributário no Processo de Insolvência e nos Processos Judiciais de Recuperação, Almedina, 2021, pg. 194 e ss. [19] Disponível em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/8b3c5ae5bd84da9480258b5d0032b11d?OpenDocument. [20] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, pg. 265. [21] Seguimos de perto Nuno Cunha Rodrigues em Sobre a inexistência de efeito direto horizontal de Diretivas: o seguro automóvel, Revista de Direito Comercial, disponível em https://www.revistadedireitocomercial.com/sobre-a-inexistencia-de-efeito-direto-horizontal-de-diretivas-o-seguro-automovel. [22] Acórdão Van Gend en Loos, proc. 26/62, de 5 de Fevereiro de 1963. [23] O efeito direto horizontal exerce-se nas relações entre particulares, o que quer dizer que um particular pode invocar aquelas disposições em relação a outro particular desde que as normas em apreço sejam suficientemente claras, precisas e incondicionais. [24] O efeito direto vertical efetiva-se nas relações entre os particulares e o Estado ou as autoridades públicas, significando que os particulares podem invocar disposições de Direito da União Europeia contra o Estado e qualquer entidade pública, desde que se tratem de normas claras, precisas e incondicionais. [25] Cfr. acórdão Van Duyn, proc. 41/74, de 4 de dezembro de 1974. [26] Cfr. acórdão Ratti, proc. 148/78, de 5 de abril de 1979. [27] Vide neste sentido Salvador da Costa in Responsabilidade das partes pelo pagamento das custas nas ações e nos recursos, disponível em https://blogippc.blogspot.com/. |