Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
28757/23.3T8LSB.L1-1
Relator: PAULA CARDOSO
Descritores: PER
HOMOLOGAÇÃO
RECUSA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- Aprovado pelos credores o plano de recuperação, deve depois o juiz decidir se o homologa ou se recusa a sua homologação, tal como resulta do n.º 7 do art.º 17.º-F do CIRE.
II- Nesse controle que faz, o juiz está vinculado ao dever de aferir da legalidade do plano aprovado pelos credores, devendo recusar a sua homologação, mesmo oficiosamente, quando ocorrer violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo.
III- Dentre as normas de conteúdo aplicáveis ao plano, encontra-se o art.º 194.º do CIRE, que consagra o princípio da igualdade entre os credores, e que, em caso de violação, tratando-se de norma imperativa, ter-se-á como não negligenciável conducente assim à recusa da homologação do aludido plano.
IV- Aferindo-se a violação desse princípio na ponderação global de cada caso concreto, viola os princípios da igualdade, e também da proporcionalidade, o plano de recuperação que não permite sustentar em critérios objetivos e razoáveis a diferenciação de tratamento de credores, traduzida no perdão de 90% do capital dos créditos comuns de fornecedores de bens e serviços, e pagamento de 100% do capital dos restantes credores bancários (comuns e garantido).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I-/ Relatório:
A Sociedade AA, S.A., pessoa coletiva com sede em Lisboa, veio, ao abrigo do disposto no art.º 17.º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), intentar o presente processo especial de revitalização.
Por despacho de 29/11/2023 foi nomeado administrador judicial provisório.
A lista provisória de credores foi junta aos autos a 03/01/2024 e publicada no portal Citius na mesma data.
Por despacho de 22/01/2024 determinou-se que o crédito de AA, no valor de 5.405.129,39€, fosse reconhecido como subordinado, com fundamento no disposto no art.º 49.º, nº 2, alínea c), do CIRE.
O prazo de conclusão das negociações foi prorrogado, mediante acordo prévio e escrito entre devedora e administrador judicial provisório por um mês, o qual foi publicado a 08/03/2024.
A devedora depositou o plano de recuperação, nos termos do art.º 17.º F, n.º 1, do CIRE, em 08/04/2024, o qual foi publicitado por anúncio a 09/04/2024.
A devedora não apresentou, ao abrigo do disposto no art.º 17.º F, n.º 2, do CIRE, nova versão do plano, informação que foi publicada a 23/04/2024.
O plano de recuperação foi votado pelos credores e o Sr. Administrador apresentou nos autos o resultado da votação, considerando o plano aprovado, em 06/05/2024.
Em anexo o Sr. Administrador remeteu os votos emitidos pelos credores e o seu parecer sobre o plano, nos termos do n.º 6, do artigo 17.ºF, do CIRE.
As credoras Unipessoal, Lda., Sociedade de Advogados, RL, Banco Comercial Português, S.A., e SVP - Sociedade de Gestão Hospitalar, S.A. vieram aos autos requerer a não homologação do plano, nos termos do art.º 17.º-F, n.º 3 do CIRE, essencialmente por violação não negligenciável das regras aplicáveis ao seu conteúdo.
Por sentença proferida nos autos em 16/5/2024, foi homologado o plano de recuperação.
Inconformada, a credora Sociedade de Advogados, RL, interpôs recurso, que finalizou com as seguintes conclusões:
«A. O Tribunal a quo, ao homologar o plano especial de revitalização aprovado, violou, por errónea aplicação/subsunção, os artigos 17º-F, n.º 7 e 194º, n.º 1 do CIRE.
B. O Plano aprovado vem beneficiar, precisamente, as entidades bancárias que concederam os financiamentos à Devedora que determinaram a sua incapacidade económica para responder perante todos os credores (conforme, aliás, é reconhecido pela própria Devedora no Plano aprovado).
C. A causa que determinou a necessidade de a Devedora recorrer ao presente processo especial de revitalização é, pois, erigida como fator de discriminação.
D. Não se compreende por que razão terão as entidades bancárias um tratamento mais favorável, em detrimento dos demais credores comuns.
a) O Plano aprovado não pressupõe que a revitalização da Devedora passa pela “manutenção dos financiamentos”, nem tão-pouco estabelece uma relação causal entre a possível revitalização da Devedora e as reduções previstas para os créditos das entidades bancárias (em 50% dos juros vencidos e vincendos) e para os créditos dos demais credores comuns (em 90% do valor nominal).
b) Bem, pois, andou o Tribunal a quo quando refere que “No que concerne aos financiamentos, nada há a referir considerando que o plano não prevê quaisquer naturezas”, pena é que daí não tenha retirado a conclusão, que se impunha, quanto à não justificação da profunda desigualdade de tratamento.
E. Em todo o caso, sempre se dirá que o “pressuposto argumentativo” da Devedora, de que a diferenciação entre as entidades bancárias e os restantes credores comuns “assenta no facto destas assegurarem o financiamento de apoio e continuidade da atividade da empresa”, além de carecer de alegação e prova, é absolutamente falso, uma vez que:
a) A situação patrimonial atual da Devedora não é consequência da sua incapacidade para gerar capital (a atividade que constitui objeto da sociedade, tal como reconhece a própria Devedora no Plano, é “economicamente viável”), mas tão-só das inúmeras responsabilidades que foi assumindo ao longo dos anos, na área do imobiliário.
b) Uma vez cumpridas todas as suas obrigações perante os credores, terá a Devedora capital (mais que) suficiente para assegurar a continuidade da sua atividade, sem necessidade de recorrer a qualquer financiamento.
F. Sem prejuízo, ainda que se pudesse entender a Devedora carece de financiamento para assegurar a continuidade da sua atividade, a verdade é que a Devedora, em momento algum, descreveu as condições e o montante dos (pretensos) financiamentos.
a) Inexiste no Plano qualquer menção à efetiva e programada vinculação das entidades bancárias a um financiamento de apoio à continuidade da atividade da Devedora.
b) Não se verifica, assim, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 194º, n.º 1 do CIRE (ex vi artigo 17º-F, n.º 7 do mesmo diploma), qualquer razão objetiva suscetível de justificar a diferenciação entre as entidades bancárias e os restantes credores comuns (vide, neste sentido, o Ac. do STJ, de 24.11.2015, proc. n.º 212/14.0TBACN.E1.S1).
G. Por outro lado, o Plano aprovado, ao prever uma redução em 90% do valor nominal dos créditos dos fornecedores de bens e prestadores de serviços, visando beneficiar as entidades bancárias, além de conferir um tratamento desigual entre credores comuns, ao não justificar o tratamento diferenciado, reflete uma manifesta desproporcionalidade de tratamento, prejudicando significativamente os interesses daqueles credores.
H. Razão pela qual, deveria o Tribunal a quo, ao abrigo do disposto nos artigos 17º-F, n.º 7, alínea f) e 194º, n.º 1 do CIRE, ter recusado a homologação do Plano aprovado.
I. Acresce que, a admitir-se (sem se admitir) uma diferenciação entre credores em idênticas circunstâncias, a verdade é que, à luz da fundamentação do Tribunal a quo, tal distinção apenas poderia abranger a Novo Banco, S.A. e não todas as demais entidades bancárias, uma vez que os financiamentos que a Devedora supostamente necessita para assegurar a continuidade da atividade não estão, de modo algum, relacionados com as restantes entidades bancárias que financiaram a Devedora (Lisgarante, BCP e Santander).
J. Não se pode ainda deixar de salientar que a diferenciação de tratamento prevista no Plano aprovado é iníqua ou mesmo perversa, uma vez que a atividade das entidades bancárias, ao contrário do que sucede quanto aos demais credores comuns, caracteriza-se – é da sua natureza – pelo risco de os investimentos dos seus clientes não correrem de acordo com as expetativas.
K. Sem prejuízo, ainda que se pudesse concluir que o Plano aprovado não viola o princípio da igualdade – o que somente se equaciona para efeito de raciocínio –, sempre teria de se concluir pela necessidade de inserção de uma cláusula de “salvo regresso de melhor fortuna”.
a) A procedência da ação judicial que a Devedora propôs contra a sociedade F – Unipessoal, Lda. permitirá a libertação de meios para o cumprimento das suas obrigações legais, sem que seja necessário proceder às reduções previstas no Plano aprovado.
b) À luz dos princípios subjacentes aos requisitos previstos no artigo 17º-F, n.º 7 do CIRE, fica evidente que o Tribunal a quo podia – e devia – ter apreciado: a necessidade de inserção de uma cláusula de “salvo regresso de melhor fortuna”.
c) Não sendo tal cláusula introduzida no Plano, a procedência da referida ação implicará um enriquecimento injustificado da Devedora, em claro detrimento dos interesses dos credores.
Nestes termos e nos demais de Direito, com o muito douto suprimento de V.Exas., requer-se seja concedido provimento ao presente recurso, devendo, em conformidade, ser revogada a sentença homologatória recorrida e, consequentemente, recusada a homologação do Plano de Revitalização aprovado.».
Inconformada, também a credora Unipessoal Lda., interpôs recurso, que finalizou com as seguintes conclusões:
«i. A douta sentença ora recorrida homologou o Plano de Revitalização da Devedora AA, S.A., a qual considerou não existir violação do princípio da igualdade dos credores, entendendo existirem critérios objetivos relevantes para as diferenciações de tratamento entre credores, especificamente na redução dos créditos comuns (os quais apenas veriam satisfeitos 10% dos respetivos créditos) em contraste com os credores financeiros / entidades bancárias (os quais, em contrapartida, teriam os seus créditos pagos na totalidade).
ii. Note-se que a Recorrente se opôs aos planos de recuperação sucessivamente apresentados pronunciando-se, por duas vezes, contra as versões apresentadas pela Devedora (Cfr. peças processuais com a Ref. 48144932 de 01/03/2024, Ref. 48609746 de 15/04/2024), contra o plano final (Ref. 48786599 de 02/05/2024), bem como em sede de votação da versão final do plano de recuperação aprovado e homologado pela decisão aqui em crise, votando contra o mesmo (Ref. 48786411 de 02/05/2024).
iii. Dispõe o art.º 215.º do CIRE, aplicável ao PER ex vi do art.º 17.º-F, n.º 7, do mesmo diploma legal, que o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, tendo sido um entendimento amplamente aceite tanto na doutrina quanto na jurisprudência que a necessidade de cumprir os comandos normativos abrange tanto os aspetos procedimentais quanto os aspetos de conteúdo do plano.
iv. O plano homologado pela decisão de que ora se recorre prevê uma redução de 90% do valor nominal dos créditos dos fornecedores de bens e prestadores de serviços, enquanto os créditos das entidades bancárias que financiaram a empresa têm condições de reestruturação diferenciadas (Cfr. “Proposta de Classificação e Reestruturação dos Créditos”, página 15), traduzindo-se, portanto, na redução dos créditos comuns, os quais apenas verão satisfeitos 10% dos respetivos créditos, enquanto os credores financeiros / entidades bancárias (comuns e garantidos), em contrapartida, terão os seus créditos pagos na totalidade.
v. A Devedora, numa tentativa de justificar o tratamento diferenciado entre os credores, limita-se a inserir uma “nota” na coluna iii da “Proposta de Classificação e Reestruturação dos Créditos” na qual refere que “a diferenciação relativamente aos restantes credores comuns assenta no facto de estes assegurarem o financiamento de apoio e continuidade da atividade da empresa”, justificação que a decisão de homologação do plano acolheu, ao considerar que “Para a devedora assegurar a continuação da ativação, revelam-se mais importantes os financiamentos da empresa que os fornecedores e prestadores de serviços, cujos serviços e produtos não poderá manter, não tendo meios financeiros. Considerando a devedora, que a continuidade da atividade da empresa (objetivo principal do processo de revitalização) depende da manutenção dos financiamentos, em parte, explicado pela atividade principal da empresa, que consiste essencialmente na prestação de consultas de cirurgia plástica e medicina estética, para as quais a devedora depende das instalações (em locação financeira e/ou oneradas com hipoteca), bem como dos equipamentos, mais do que dos fornecedores e prestadores de serviços.”, revelando-se tal alegação manifestamente insuficiente para justificar o desproporcionado tratamento entre credores na medida em que não descreve quais as medidas concretas em que assentam tal alegado apoio nem as condições inerentes ao mesmo.
vi. Não bastará alegar que as entidades bancárias “merecem” ver os seus créditos satisfeitos na totalidade (designadamente, o credor Novo Banco, S.A, o qual, beneficiará da amortização integral da dívida, sendo este credor, o subscritor da declaração que permitiu à Devedora dar início ao presente processo), em virtude de, supostamente, “assegurarem o financiamento de apoio e continuidade da atividade da empresa”, carecendo absolutamente de concretização do montante desse financiamento, do destino que se pretende dar ao montante financiado e as demais condições inerentes ao mesmo, designadamente, prazo e taxas de juro, o que não ocorreu.
vii. Apesar de ser possível que o plano faça distinções entre os credores da insolvência, desde que essas diferenças sejam justificadas por razões objetivas, certo é que não é permitido, sem o acordo dos credores prejudicados, tratar de forma diferente credores que estejam em circunstâncias idênticas.
viii. Quando houver diferenciação, é necessário também respeitar o princípio da proporcionalidade. Isso significa que o tratamento desigual deve ser equilibrado. Após uma análise cuidadosa, deve-se concluir que as razões que justificam o tratamento diferenciado são suficientemente importantes para justificar esse tratamento específico no que diz respeito à sua natureza e extensão.
ix. Resulta ainda da análise que se faça do plano, no que tange aos credores comuns, que enquanto os credores financeiros/instituições financeiras, veem, de acordo com o plano, a totalidade do capital em dívida pago ao qual ainda acrescerá o pagamento de juros (embora reduzidos em 50%) vencidos e vincendos, já os credores fornecedores, veriam o capital esmagado em 90%, não tendo direito a juros.
x. Não se consegue aferir como o Tribunal ad quo entendeu que “explicado pela atividade principal da empresa, que consiste essencialmente na prestação de consultas de cirurgia plástica e medicina estética, para as quais a devedora depende das instalações (em locação financeira e/ou oneradas com hipoteca), bem como dos equipamentos, mais do que dos fornecedores e prestadores de serviços.”, porquanto, para além de não estar demonstrado nos autos que a atividade terá de continuar a ser desenvolvida nos imóveis objeto de locação financeira imobiliária ou que os aludidos equipamentos estejam a ser utilizados e que sejam essenciais à prossecução da atividade da devedora (já que nenhuma prova foi apresentada para sustentar uma tal afirmação), não está igualmente demonstrado que o referido credor seja o único capaz de lhe proporcionar a utilização desses supostos equipamentos (ou, mais rigorosamente, de equipamentos do mesmo tipo) e a verdade é que, seja como for e tal como o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a afirmar, designadamente no célebre Acórdão de 24-11-2015, proc. n.º 212/14.0TBACN.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt , “o carácter estratégico de alguns credores é, por si só, insuficiente para derrogar o princípio da igualdade dos credores de uma mesma classe.
xi. O que decorre do conteúdo do plano não é somente um tratamento diferenciado, mas antes um verdadeiro tratamento privilegiado de alguns credores relativamente a outros da mesma classe, sem que seja possível descortinar um fundamento racional e objetivo que justifique essa distinção.
xii. O princípio da igualdade estabelecido no citado artigo 194º do CIRE só pode ser derrogado por razões objetivas, as quais assentam em razões de proporcionalidade, princípio que igualmente goza de matriz constitucional, baseado em razões de adequação das medidas aos fins, necessidade ou exigibilidade das medidas e proporcionalidade em sentido estrito ou justa medida.
xiii. Prevendo o plano homologado uma redução de 90% do valor nominal dos créditos dos fornecedores de bens e prestadores de serviços, enquanto os créditos das entidades bancárias que financiaram a empresa têm condições de reestruturação diferenciadas, poderiam, pelo menos, ter sido tomadas medidas menos drásticas que poderiam ser igualmente eficazes na recuperação da Devedora, sem impor sacrifícios tão severos a uma classe específica de credores (créditos comuns dos fornecedores de bens e prestadores de serviços).
xiv. A proporcionalidade requer um equilíbrio entre os meios adotados e os fins pretendidos, e que, neste caso, o sacrifício imposto aos fornecedores de bens e serviços não está proporcionalmente balanceado com o benefício obtido para a Devedora e outros credores.
xv. O Plano de Revitalização homologado pela sentença recorrida viola o princípio da igualdade de credores, dúvidas não restam que, a sua afetação traduz sempre, seja qual for a perspetiva, uma violação grave – não negligenciável – das regras aplicáveis.
xvi. A reestruturação do passivo da Devedora, tal como apresentada no plano homologado, configura um tratamento mais desfavorável, discriminatório - pela negativa - e injustificado dos créditos comuns dos fornecedores de bens e prestadores de serviços, por comparação com os créditos dos credores financeiros / entidades bancárias, assim, se mostrando violado o princípio da igualdade entre credores, tal como plasmado no artigo 194.º do CIRE ex vi artigo 17º-F, nº 7 do mesmo Código, inexistindo qualquer razão objetiva para tal tratamento desfavorável, motivo pelo qual a sua homologação devia ter sido recusada, ao invés do decidido na decisão de que ora se recorre.
Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso, devendo, em conformidade, ser revogada a sentença homologatória recorrida e, consequentemente, recusada a homologação do Plano de Revitalização da Devedora AA, S.A., fazendo-se assim a acostumada Justiça».
Em contra-alegações, a devedora pronunciou-se, pugnando pela improcedência de ambos os recursos e confirmação da sentença de homologação proferida pelo Tribunal a quo.
Admitidos os recursos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, que, remetidos aos vistos, em conferência, cumpre agora apreciar e decidir.
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II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações das recorrentes, nas duas apelações deduzidas, como decorre dos arts.º 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões colocadas à apreciação deste tribunal consistem em aferir:
(i) se o plano apresentado nos autos pela devedora, objeto de homologação judicial, viola o princípio da igualdade entre credores, tal como plasmado no art.º 194.º do CIRE ex vi art.º 17º-F nº 7 do mesmo código;
(ii) se tal plano reflete também uma manifesta desproporcionalidade de tratamento entre os credores, sem qualquer razão objetiva nele evidenciada para justificar a diversidade de tal tratamento;
(iii) se, em consequência, a homologação do plano deve ser recusada;
(iv) se o tribunal a quo, concluindo que o plano aprovado não viola o princípio da igualdade, devia ter apreciado a necessidade de inserção no mesmo de uma cláusula de “salvo regresso de melhor fortuna”, o que, não o fazendo, sempre implicaria também que a homologação do plano fosse recusada.
***
III/- Fundamentação:
Com interesse para a decisão da causa, encontram-se provados os factos plasmados no relatório que antecede e cujo teor se dá por reproduzido.
Com interesse para a decisão, cumpre ainda registar que:
1/ Do plano apresentado nos autos, entre outros, consta que:
(…) A Clínica (…) foi fundada em 1997, pelo Dr. AA. É uma clínica privada dedicada às atividades de Cirurgia Plástica e Medicina Estética, e conta com mais de 25 anos de experiência e 50 000 clientes.
(…) Em 2015, a Clínica arrendou um imóvel em Santos com o objetivo de expandir as suas operações, tendo iniciado um projeto de adaptação e benfeitorias nesse imóvel, recorrendo ao capital liberto pela Clínica e a endividamento bancário.
Em 2020, com o objetivo de concluir as obras em Santos e reforçar a estrutura de capitais da Clínica, em face do endividamento que vinha somando, consequência das necessidades de financiamento das obras de adaptação do imóvel em Santos, dá-se a entrada da Soc. Lda. para a estrutura societária da Clínica, passando esta a deter 40% do capital e o Dr. AA, 60%.
Não obstante, o projeto de expansão da Clínica para a unidade de Santos não foi concluído por insuficiência de fundos, tendo as obras de adaptação, sido suspensas.
Em junho de 2023, face ao incumprimento do pagamento das rendas, a Empresa viu-se na situação de despejo e desocupação do imóvel de Santos.
À data do presente documento (abril de 2024), a Empresa continua a operar apenas na Clínica na R., ainda que existam responsabilidades em vigor associadas ao imóvel em Santos, nomeadamente financiamento bancário e dívidas a entidades várias ligadas à execução das benfeitorias no imóvel.
(…)
«Situação Patrimonial Atual
(…) A Situação Patrimonial Atual da Clínica reflete uma pré-falência Balanço técnica.
Com o registo da imparidade referente às benfeitorias realizadas no imóvel em Santos, o Capital Próprio da Empresa passou a registar um valor negativo.
Por outro lado, a capacidade de geração e libertação de capital pela Empresa apresenta-se insuficiente para cumprir com o pagamento das responsabilidades acumuladas perante as instituições financeiras, fornecedores e outros credores, como resultado da elevada descapitalização decorrente das rendas referentes ao imóvel de Santos, suas obras e do elevado financiamento contratado, o qual, com a subida das taxas de juro, tem vindo a gerar pressão adicional.
De facto, as responsabilidades em Balanço perante terceiros apresentam-se a 30 de setembro de 2023:
• Eur 5,4 Milhões de dívidas a instituições financeiras
• Eur 0,2 Milhões de dívidas a fornecedores
• Eur 1,6 Milhões de outros credores (dos quais Eur 0,6 Milhões respeitam à contraparte de Outros ativos correntes, referentes às rendas de Santos depositadas em tribunal).
Presentemente, os ativos fixos tangíveis, propriedade da Empresa, resumem-se a:
• Edifício Sede, na R., com Valor Líquido Contabilístico de Eur 1,7 Milhões, respeitante a 2 imóveis com artigos matriciais distintos, designadamente:
• Imóvel, com 1439m2 e um terraço com 152m2, em regime de locação financeira com o Novo Banco, com o artigo matricial número 2718- A a F
• Imóvel com cerca de 225 m2, com o artigo matricial número 2181-C, hipotecado ao Novo Banco
• Equipamento básico com Valor Líquido Contabilístico de Eur 31 mil euros, os quais se encontram em regime de locação financeira junto do Novo Banco
Os investimentos financeiros respeitam a uma dívida de recebimento improvável e os inventários a material de consumo clínico, dificilmente realizável. Os outros créditos a receber, respeitam ao montante de rendas referentes ao imóvel de Santos que se encontram depositados em tribunal, por motivos de ação judicial interposta. Este valor tem a correspondente contraparte no Outros passivos correntes.
(…)
Proposta de Classificação e Reestruturação dos Crédito
i. Trabalhadores
Os créditos dos trabalhadores não são alterados.
ii. Sócios
Extinção de todos os créditos subordinados, designadamente, os suprimentos, dívidas de ordenados ao sócio e dívidas a entidades controladas pelos sócios.
iii. Entidades Bancárias que financiaram a empresa
Nota: A diferenciação relativamente aos restantes credores comuns assenta no facto destas assegurarem o financiamento de apoio e continuidade da atividade da Empresa
Comuns – Consolidação da dívida comum, redução dos juros vencidos em 50%, estabelecimento de uma taxa de juros vincendos em 3,5%, com um prazo de carência de capital e juros de 12 meses e estabelecimento de um plano prestacional de 6 anos para amortização integral da dívida.
Garantido – (Novo Banco)
Notas: 1) Caso este empréstimo garantido se encontre em situação de incumprimento, redução dos juros vencidos em 50%.
Redução dos juros vencidos em 50% e estabelecimento de uma taxa de juros vincendos em 3,5%, com amortização integral da dívida com a celebração do acordo de sale and lease back.
Locação – Celebração de acordo com o locador financeiro (Novo Banco) das instalações das Laranjeiras, através de uma operação de aquisição antecipada do imóvel ao locador financeiro e simultaneamente celebração de um acordo de sale and lease back do referido imóvel a um investidor financeiro, afetando o produto da venda ao pagamento das rendas vincendas com um perdão de 2,5%.
iv. Fornecedores de bens e prestadores de serviços
Redução em 90% do valor nominal dos créditos detidos por fornecedores de bens e prestadores de serviços e plano prestacional de pagamento em 24 prestações mensais.
v. Credores públicos (SS e AT)
Os créditos dos credores públicos não são alterados.
(…)
Considerando a proposta de reestruturação, é esperado que se verifique uma redução total dos créditos da Empresa em Eur 1,6 Milhões.
O Plano de Recuperação assente na reestruturação dos créditos protege os trabalhadores.
Relativamente às Entidades Bancárias, a incidência da reestruturação incidirá sobre os juros vencidos com uma redução de 50%, juros vincendos reduzidos a 50% durante os primeiros 6 meses, aplicando-se a partir do 7.º mês uma taxa de 3,5%, prazo de 12 meses de carência de capital e reformulação do plano prestacional para 6 anos, proporcionando um alívio da pressão financeira atual e futura.
Os fornecedores de bens e serviços vêm os seus créditos reduzidos em 90%, sendo o remanescente pago em 24 meses.
O conjunto destas medidas permitirá à Clínica o restabelecimento do seu equilíbrio financeiro e a continuidade da operação futura.
Em suma, a proposta de reestruturação de créditos apresenta-se muito mais vantajosa para os credores, quando comparada com o cenário de insolvência, porquanto a proposta de restruturação estima uma redução de créditos de Eur 1,6 Milhões e o cenário de insolvência estima perdas de Eur 5,5 Milhões para os credores, acrescidos das indemnizações devidas aos trabalhadores».
***
IV-/ Do objeto do recurso:
O processo especial de revitalização, introduzido no nosso ordenamento jurídico pelo art.º 3.º da Lei 16/2012, de 20/04, tal como resulta do art.º 17.º-A do CIRE, designadamente o seu n.º 1, tem em vista permitir ao devedor - que se encontre numa situação económica difícil, com sérias dificuldades para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito (definição dada pelo seu artigo 17.º-B) ou em situação de insolvência iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação - estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização.
Este processo, que tem carácter urgente (art.º 17.º A n.º 3 do CIRE), reveste assim uma natureza negocial, sob a direção do administrador judicial provisório, com o objetivo de encontrar um acordo, materializado no plano de recuperação, que permita a recuperação da empresa em dificuldades económicas.
Concluídas que sejam as negociações, depositado o plano e publicado no portal Citius o anúncio advertindo da sua junção, o plano é votado, podendo depois ser, ou não, homologado pelo Tribunal.
Com efeito, operada a votação e aprovação do plano de recuperação, por parte dos credores, ao Juiz compete, no prazo de dez dias – art.º 17.º-F, n.º 7 do CIRE - dirimir, homologar ou recusar a sua homologação, vinculando os credores, observando-se, para o efeito, com as necessárias adaptações, as regras previstas no título ix, em especial o disposto nos arts.º 194.º a 197.º, no n.º 1 do art.º 198.º e nos arts.º 200.º a 202.º, 215.º e 216.º.
No caso dos autos, o tribunal recorrido, aprovado que foi o plano de recuperação apresentado pela devedora (à luz do art.º 17.º F, n.º 5, alínea c), do CIRE), homologou o mesmo por sentença, sendo dessa homologação que foram interpostos recursos pelas credoras Sociedade de Advogados, RL, e Soc. Unipessoal, Lda.
Essencialmente, as recorrentes insurgem-se contra aquela homologação por, nas suas teses recursivas, o plano configurar um tratamento mais desfavorável, e injustificado, dos créditos comuns dos fornecedores de bens e prestadores de serviços, por comparação com os créditos dos credores financeiros/entidades bancárias, assim se mostrando violado o princípio da igualdade entre credores, tal como plasmado no art.º 194.º do CIRE ex vi art.º 17º-F, nº 7 do mesmo código, inexistindo qualquer razão objetiva para tal tratamento desfavorável, que se afigura também desproporcional, sendo certo que, argumentam, considerando a devedora que a continuidade da atividade da empresa depende da manutenção dos financiamentos, certo é que, o plano carece absolutamente de concretização sobre o montante do financiamento invocado, seu destino e demais condições inerentes ao mesmo.
A credora Sociedade de Advogados, RL, defende ainda que, a admitir-se tal diferenciação, a mesma apenas poderia abranger a credora Novo Banco, S.A. e não todas as demais entidades bancárias, uma vez que os financiamentos que a devedora supostamente necessita para assegurar a continuidade da atividade não estão, de modo algum, relacionados com as restantes entidades bancárias que a financiaram (Lisgarante, BCP e Santander), argumentando ainda que à luz dos princípios subjacentes aos requisitos previstos no aludido art.º 17º-F, n.º 7 do CIRE, o Tribunal a quo podia – e devia – ter apreciado a necessidade de inserção no plano de uma cláusula de “salvo regresso de melhor fortuna”, pois que a procedência da ação judicial que a devedora propôs contra a sociedade Unip. Lda permitirá a libertação de meios para o cumprimento das suas obrigações legais, sem que seja necessário proceder às reduções previstas no plano aprovado, pelo que a não inserção daquela cláusula implicará um enriquecimento injustificado da devedora, em claro detrimento dos interesses dos credores.
Vejamos então.
Decorre do convocado art.º 215.º do CIRE, que «O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação».
A lei não define o que são «vícios não negligenciáveis», e tem-se entendido que revestem tal natureza todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza, diversamente se verificando quanto às infrações que afetem tão só as regras de tutela particular, que podem ser afastadas com o consentimento do protegido.
Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (no Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3.ª edição, QJ, pág. 781), sobre esta temática dizem que «4. Normas procedimentais são, pois, todas aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhes forem presentes – incluindo, por isso, as relativas à sua própria convocatória e funcionamento – e, bem assim, as relativas ao modo como ele deve ser elaborado e apresentado. Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as respeitantes às partes dispositivas do plano, mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar».
Dentre as normas de conteúdo aplicáveis ao plano e a que o mesmo deve obedecer, encontra-se o art.º 194.º, que, como norma imperativa, consagra o princípio da igualdade de tratamento entre os credores e cuja violação deve, como regra, ter-se como não negligenciável.
Regula então o art.º 194.º do CIRE que «1- O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas. 2- O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afetado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável. 3- É nulo qualquer acordo em que o administrador da insolvência, o devedor ou outrem confira vantagens a um credor não incluídas no plano de insolvência em contrapartida de determinado comportamento no âmbito do processo de insolvência, nomeadamente quanto ao exercício do direito de voto.»
Ainda que, como decorre da própria formulação daquele princípio, o mesmo não configure um direito absoluto, podendo, num regime de exceção, e em casos de situações objetivamente justificáveis, permitir tratamentos diferenciáveis entre os credores, certo é que, a sua violação, sem justificação que o permita, traduzirá sempre uma violação grave, que não pode ser negligenciada e que terá que conduzir à recusa da homologação do plano.
Sobre esta matéria, os autores acima citados, dizem-nos ainda (na mesma obra) que «O princípio da igualdade dos credores “configura-se como uma trave basilar e estruturante na regulação do plano de insolvência. A sua afetação traduz, por isso, seja qual for a perspetiva, uma violação grave - não negligenciável - das regras aplicáveis».
Aqui chegados, vemos que é consensual que o princípio da igualdade dos credores não proíbe que no plano não se façam distinções entre eles, proibindo-se apenas que essas ditas distinções não tenham fundamento material à luz do plano e não estejam no mesmo devidamente elucidadas e sustentadas em critérios objetivos e razoáveis.
Neste particular, também Carvalho Fernandes e João Labareda (na aludida obra, pág. 712) explicam que «4. A razão objetiva porventura mais clara que fundamenta a diferença de tratamento dos credores assenta na distinta classificação dos créditos, nos termos em que está agora assumida, no art.º 47.º, do Código. (….) Para além disso, dentro da mesma categoria há motivos para destrinçar, conforme o grau hierárquico que couber aos vários créditos. Mas a ponderação das circunstâncias de cada situação pode justificar outros alinhamentos, nomeadamente tendo em conta as fontes do crédito. (…)».
Ora, revertendo agora aos autos, da análise do plano apresentado verificamos que, no seu essencial, as diferenças nele insertas assentam, sobretudo, no pagamento aos bancos da totalidade do capital em dívida ao passo que aos demais credores está previsto o pagamento de apenas 10% do referido montante. Tal distinção seria, na alegação das apelantes, e como vimos, não só violadora do princípio de igualdade entre credores como passível de refletir um tratamento manifestamente desproporcional entre eles.
Cumpre aqui atentar que, de facto, para justificar aquele diferente tratamento, foi unicamente exarado no plano que «A diferenciação relativamente aos restantes credores comuns assenta no facto destas assegurarem o financiamento de apoio e continuidade da atividade da Empresa», consolidando-se a dívida comum e celebrando-se com o locador financeiro (Novo Banco) das instalações das Laranjeiras, um acordo através de uma operação de aquisição antecipada do imóvel ao locador financeiro e simultaneamente celebração de um acordo de sale and lease back do referido imóvel a um investidor financeiro, afetando o produto da venda ao pagamento das rendas vincendas com um perdão de 2,5%.
No entendimento da sentença recorrida, a justificação apresentada para o tratamento diferenciado, tal como sinalizado, afigura-se razoável e adequada à luz dos elementos disponíveis, tanto mais que o Sr. AJP apresentou parecer favorável ao plano, nos termos do n.º 6, do art.º 17.ºF, do CIRE, considerando que o mesmo apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa e garantir a sua viabilidade, permitindo à devedora os pagamentos aos credores de acordo com as regras do plano, assegurando assim uma maior capacidade de recuperação destes face aos que poderiam ocorrer em liquidação de ativo.
Colhendo o parecer favorável à homologação, consignou ainda a decisão recorrida que «Observado o quadro infra verifica-se que as entidades bancárias representam a quase totalidade da dívida da devedora, embora destas os créditos garantidos sejam a maior parcela. Para a devedora assegurar a continuação da atividade, revelam-se mais importantes os financiamentos da empresa que os fornecedores e prestadores de serviços, cujos serviços e produtos não poderá manter, não tendo meios financeiros. Considerando a devedora que a continuidade da atividade da empresa (objetivo principal do processo de revitalização) depende da manutenção dos financiamentos, em parte, explicado pela atividade principal da empresa, que consiste essencialmente na prestação de consultas de cirurgia plástica e medicina estética, para as quais a devedora depende das instalações (em locação financeira e/ou oneradas com hipoteca), bem como dos equipamentos, mais do que dos fornecedores e prestadores de serviços».
Não podemos acompanhar o raciocínio exposto na sentença recorrida e estamos em crer que as credoras recorrentes têm razão quando afirmam que o plano prevê um tratamento injustificado entre credores.
Com efeito, a simples leitura do plano permite logo atentar que as condições de pagamento que no mesmo são propostas para alguns dos credores comuns (fornecedores de bens e serviços: pagamento de apenas 10% do capital em dívida e em 24 prestações), são manifestamente, e desproporcionalmente, mais gravosas, do que para os restante credores comuns (bancários: pagamento da totalidade do capital em dívida, apenas com redução de 50% dos juros de mora vencidos e vincendos em 50% durante 6 meses).
E a justificação que a devedora apresenta para tal diferenciação não colhe, pois que não só não existe no plano qualquer alusão/concretização a um financiamento de apoio à continuidade da atividade da devedora por parte daquelas bancárias (Lisgarante, BCP e Santander), como também, do que decorre do plano, as mesmas apenas financiaram as obras das instalações que a devedora ocupava em Santos, e que, de resto, já não ocupa atualmente.
Com efeito, dos autos, ou melhor, do plano apresentado, resulta que a Clínica tem a sua sede e exerce a sua atividade em dois imóveis (“Edifício”) sitos em Lisboa, que funcionam como uma unidade, identificados por dois artigos matriciais distintos, um deles hipotecado ao Novo Banco e o outro em regime de locação financeira também com o Novo Banco, a que acresce que o equipamento básico utilizado na atividade desenvolvida na aludida clínica está também em regime de locação financeira, igualmente junto do Novo Banco.
Os financiamentos a que a devedora recorreu - junto da Lisgarante, Millenniumbcp e Santander – tiveram origem num arrendamento que fez, em 2015, de um imóvel em Santos, com o objetivo de expandir as suas operações, tendo então iniciado um projeto de adaptação e benfeitorias nesse imóvel, recorrendo ao capital liberto pela Clínica e a endividamento bancário. Em junho de 2023, face ao incumprimento do pagamento das rendas, viu-se na situação de despejo e desocupação do imóvel de Santos, mantendo-se, contudo, as responsabilidades assumidas com o financiamento bancário e dívidas ligadas à execução das benfeitorias no dito imóvel.
Neste circunstancialismo, apenas o Novo Banco, como entidade bancária, poderia ser alvo de diferente tratamento no plano, pois que os imóveis onde a devedora exerce de facto a sua atividade, estão hipotecados e em regime de locação financeira junto daquela entidade, que tem igualmente em locação financeira o equipamento básico da atividade desenvolvida pela devedora. Ou seja, apenas existiria uma justificação objetiva para um tratamento diferenciado do Novo Banco, pois que sem ele a devedora ficaria sem as instalações e sem equipamento, elementos essenciais para o desenvolvimento da sua atividade.
Donde, a diferença resultante do pagamento dos financiamentos da Lisgarante, Millennium e Santander - apenas com redução dos juros vencidos em 50% e vincendos em 50% durante 6 meses a partir da data do trânsito em julgado da decisão de homologação, com fixação da taxa de juro, carência de 12 meses de capital e reformulação do plano prestacional para amortização total da dívida nos 6 anos seguintes ao período de carência - contra o pagamento aos fornecedores de bens e serviços - de apenas 10% do capital em devida e em 24 prestações – não encontra, a nosso ver, fundamento material nem está devidamente elucidada e sustentada em critérios objetivos e razoáveis.
O tratamento desigual que é dado aos credores comum da devedora não está devidamente alicerçado como exige a lei em razões objetivas.
Por outro lado, ao prever-se no plano uma redução em 90% do valor nominal de apenas alguns credores comuns (fornecedores de bens e prestadores de serviços), enquanto se prevê o pagamento total do capital em dívida às entidades bancárias (quer credoras comuns quer garantida), verifica-se também que o plano reflete uma manifesta desproporcionalidade de tratamento entre os credores, prejudicando significativamente os interesses daqueles credores comuns, o que, à luz das disposições conjugadas 17º-F, n.º 7, alínea f) e 194.º, n.º 1 do CIRE, impunha a recusa da homologação do plano.
Nesta temática, e no sentido do aqui vertido, fazemos apelo ao acórdão do STJ de 24/11/2015, relatado por José Rainho, proferido no âmbito do proc. 212/14.0TBACN.E1.S1, disponível na dgsi, pela pertinência e clarificação da matéria em discussão, assim sumariado «I. Estabelecendo o plano de revitalização do devedor diferenciações entre os credores, é necessário que nele se justifique o diferente tratamento, com a indicação das razões objetivas que lhe estão subjacentes. II. A simples menção de que existe necessidade do devedor vir a ser apoiado financeiramente no futuro pelas instituições financeiras credoras, não constitui razão objetiva justificadora da desigualdade de tratamento estabelecido no plano, quando tal menção não está acompanhada de uma vinculação efetiva, concreta e programada de apoio por parte dessas instituições financeiras. III. A circunstância de alguns credores poderem ser estratégicos para a atividade do devedor não é, só por si, suficiente para derrogar o princípio da igualdade e o da proporcionalidade em prejuízo de outros credores. IV. As diferenciações entre credores não podem radicar na própria necessidade de aprovação do plano, pelo contrário, é este que tem que respeitar, tanto quanto possível, o princípio da igualdade entre os credores», e onde, em fundamentação, se consignou que «… mesmo que tais instituições se tivessem vinculado a apoiar a Devedora, nem por isso se poderia concluir, sem mais (isto é, automaticamente), que a enorme diferenciação de tratamento que em concreto se verifica estaria, visto o princípio da proporcionalidade que também tem de ser observado, objetivamente justificada. Neste particular, podemos dizer, como diz o acórdão da Relação de Coimbra de 17 de março de 2015 (processo nº 338/13.7TBOFR-A.C1, relator Henrique Antunes, disponível em www.dgsi.pt), proferido em espécie onde vale mutatis mutandis a mesma ordem de argumentação, que o carácter estratégico de alguns credores é insuficiente para derrogar o princípio da igualdade dos credores de uma mesma classe quando faz recair sobre alguns deles, de forma desproporcionada, as perdas, ou seja, quando a revitalização do devedor é conseguida à custa do sacrifício grave ou severo de apenas alguns dos credores da mesma classe. Seria o caso.
(…) Conclui-se, assim, que o Plano não apresenta quaisquer razões objetivas que possam dar respaldo jurídico à diferenciação de tratamento da ora Recorrente no confronto das instituições bancárias e locadoras financeiras, todos eles titulares de créditos comuns. E mesmo que, no limite, se entendesse que alguma diferenciação se justificaria, sempre ficaria por explicar a razão de uma tão desproporcionada diferenciação. Recorde-se de novo que as instituições bancárias e financeiras iriam receber a totalidade dos seus créditos, e no entretanto veriam esses créditos remunerados normalmente com juros, enquanto a Recorrente perderia metade do seu crédito e receberia a outra metade ao longo de sete anos (após dois de carência) sem a mínima compensação durante nove anos. O que significa que a homologação do Plano nestas circunstâncias implicaria, ademais da violação dos nºs 1 e 2 do art. 194º do CIRE, a violação dos princípios constitucionais da igualdade (art. 13º da CRP) e da proporcionalidade (art. 18º nº 2 da CRP). Deste modo, traduzindo-se a violação do princípio da igualdade numa violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do Plano, não pode este ser homologado. É o que resulta do art. 215º do CIRE(..)».
Conclui-se, pois, e sem mais, pela procedência dos presentes recursos e pela revogação da decisão recorrida, ficando prejudicada a questão da invocada necessidade de inserção de cláusula de “salvo regresso de melhor fortuna” no plano de recuperação, matéria que, fosse como fosse, sempre diremos, escaparia à apreciação que incumbe ao tribunal, pois que a negociação do plano e os seus termos é da responsabilidade da devedora e seus credores.
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V-/ Decisão:
Perante o exposto, acordam as Juízas que constituem esta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedentes as apelações apresentadas nos autos pelas credoras, Sociedade de Advogados, RL, e Unipessoal, Lda., assim revogando a sentença recorrida, que se substitui por outra que recusa a homologação do Plano de Recuperação apresentado nos autos pela devedora.
Custas pela recorrida.
Registe e notifique.

Lisboa, 15/10/2024
Paula Cardoso
Teresa de Jesus Henriques
Isabel Fonseca