Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
977/21.2PFAMD.L1-5
Relator: JOÃO CARROLA
Descritores: ACUSAÇÃO
REJEIÇÃO POR MANIFESTAMENTE INFUNDADA
ELEMENTO SUBJENTIVO DO TIPO LEGAL
DOLO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/31/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal, devendo constar da peça acusatória.

O que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente a actuação de forma livre, voluntária ou deliberada, consciente e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


Nos autos de processo sumário n.º 977/21.2PFAMD do Juízo Local Criminal de Amadora, Comarca de Lisboa Oeste, o Mmo. Juiz proferiu despacho a rejeitar a acusação com o seguinte conteúdo:
Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido imputando-lhe a prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1 e 69.º, n. º1, al. a), do CP.

Nos termos do disposto no artigo 311.º, do CPP, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
Acrescenta o n.º 2 do citado normativo que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente rejeita a acusação se a considerar manifestamente infundada (al. a)), considerando-se como tal aquela que, além do mais, não contenha a narração dos factos (artigo 311.º, n.º 3, al. b), do CPP).
Relativamente ao estatuído na última alínea do nº3 do preceito acabado de citar, tem entendido a doutrina e a jurisprudência actuais que a rejeição da acusação somente pode ocorrer quando manifestamente inexistam factos que correspondam à prática de um ilícito criminal, i. e., quando diante do texto da acusação faltem elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante (neste sentido vide Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, 2008, p. 791, n. 8).
Do ponto de vista subjectivo, o crime de condução em estado de embriaguez é um crime doloso.
Para que o dolo do tipo se afirme é necessário que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto.
Ou seja, para que se possa afirmar a actuação dolosa necessário se monstra que o “agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito”- Figueiredo Dias, Doutrina Geral do Crime, Lições do 3.º ano da Faculdade de Direito, Coimbra, 2001, pág. 90.- Elemento intelectual do dolo.
Mas o dolo não se basta com o conhecimento das circunstâncias do facto e da sua configuração jurídica, antes sendo igualmente necessário a “verificação no facto de uma vontade e dirigida à sua realização” - o elemento volitivo do dolo do tipo, o qual pode assumir a forma de dolo directo, dolo necessário ou dolo eventual- artigo 14.º do CP.
Por outro lado, um facto ilícito só é punível se culposo, ou seja, se for reprovável porque o agente não “motivou na norma, sendo-lhe exigível, nas circunstâncias em que agiu, que nela se motivasse. Ao não se ter motivado na norma, quando poderia e lhe era exigível que o fizesse, o autor mostra uma disposição interna contrária ao direito (…)
A culpabilidade representa, pois, um juízo de censura do agente por não ter agido em conformidade com o dever ser jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo, mas significa também o conjunto de pressupostos desse juízo de reprovação jurídica. (…)- Germano Marques da Silva, Direito Penal Português Parte Geral, III, Verbo, páginas 149 a 150.
Da acusação e no que ao elemento subjectivo diz respeito, nele se incluindo quer o dolo do tipo quer a culpa, consta o seguinte:
“O arguido sabia que estava sob a influência do álcool, mas ainda assim conduziu o veículo nas circunstâncias de tempo e lugar acima mencionadas, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida e punida por lei.
Agiu de forma livre, voluntária e consciente”
Assim, na acusação apenas se enuncia a culpa (o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei) e o elemento intelectual do dolo (o conhecimento de que conduzia sob a influencia do álcool e que tal o faria incorrer na prática do crime).
Com efeito, a expressão “agiu de forma livre, voluntária e consciente” reporta-se à culpa, por vezes também designado, em alguma doutrina, como “elemento emocional do dolo”.
A culpa implica o uso indevido da vontade livre, e por isso pressupõe a liberdade de decisão e de actuação- a liberdade de o agente se determinar de acordo com o dever ser jurídico que conhece.
Como refere Miguês Garcia, em anotação ao artigo 20.º (Código Penal Parte Geral e Especial, com Notas e Comentários, Almedina, pág. 187 e ss): “admite-se correntemente que a culpa é censurabilidade. Com o desvalor da sua atitude dirige-se a censura ao autor do facto por ele não ter actuado de acordo com o direito, por se ter decidido pelo injusto, embora se pudesse ter comportado de outra forma, podendo ter-se decidido pelo direito. O fundamento interno do “juízo da culpa” radica em que a pessoa é posta, de forma livre e responsável, numa posição de autodeterminação ética e por isso mesmo capaz de se decidir pelo direito e contra o ilícito.”
Mas, no que ao concerne ao dolo do tipo, a acusação é omissa na descrição de factos que configuram o elemento volitivo.
Ou seja, nada se diz se a realização do tipo é o fim último ou uma consequência necessária ou meramente eventual da conduta do arguido.
Ora, como foi decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº1/2015, in DR, série I, de 27/01/2015, “a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual). A acrescer a esses elementos teríamos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso” (sublinhado nosso).
Mais entendeu o STJ que “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”. (negrito nosso)
Pelo exposto, por ser omissa na descrição de factos essenciais, que não podem ser completados pelo Tribunal considerando a doutrina do AUJ 1/2015 atrás citado, não se recebe a acusação e ordena-se a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes.”

Deste despacho veio interpor recurso o M.º P.º, pretendendo a sua revogação e sua substituição por outro que proceda a exame preliminar e designe data para realização de audiência de discussão e julgamento, para o que formulou as seguintes conclusões:
1.–No âmbito dos presentes autos, por despacho a Meritíssima Juiz recusou a recepção da acusação, por manifestamente infundada, por não conter a narração dos factos, mais concretamente no que se refere aos elementos subjectivos do tipo, nos termos do art.º 311.º, n.º 3 al. b) do Código Processo Penal, concretizando que, não obstante que Ministério Público ter formulado a culpa, ao enunciar que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, no que concerne ao dolo do tipo, apenas enunciou o elemento intelectual, sendo a acusação totalmente omissa na descrição de factos que configuram o elemento volitivo.
2.Conforme resulta do despacho ora recorrido, na génese da decisão de rejeição do despacho de acusação proferido encontra-se a circunstância de, no entendimento da Meritíssima Juiz de Direito do Tribunal a quo, “…Do ponto de vista subjectivo, o crime de condução em estado de embriaguez é um crime doloso…”, no entanto, analisado o art.º 292.º, n.º do Código Penal conclui-se, obrigatoriamente, que o supramencionado tipo legal pode ser cometido dolosamente ou a titulo de negligência, realidade que, per si, fere o despacho ora recorrido de um erro material de direito, pois encontra-se escorado numa premissa errada, ou seja, que o crime de condução de veículo em estado de embriaguez consubstancia um crime punível, unicamente, a título de doloso.
3.Concomitantemente, cumpre acrescentar que o despacho ora recorrido, sustentando, por um lado, que a falta da concretização dos elementos subjectivos do tipo consubstancia uma nulidade, e por outro, que se encontra vedada, em sede de audiência de julgamento, a integração dos elementos subjectivos do crime, por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do Código de  Processo Penal, por força do estabelecido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência 1/2015, recusou a recepção do despacho de acusação.
4.No entanto, e ao invés do alegado no despacho ora recorrido, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência 1/2015 aplica-se, unicamente, salvo melhor entendimento, à prática e à descrição de crimes dolosos, na medida em que, no supramencionado aresto é efectuada menção expressa a que “…De entre os elementos do tipo subjectivo de ilícito estão os que se relacionam com o dolo ou a negligência. “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência (art. 13.º do CP). Tratando-se, nos acórdãos em conflito, de crime essencialmente doloso, só a culpa na modalidade de dolo nos interessa…”
5.Não obstante o exposto, ao invés do alegado pelo Tribunal a quo, o despacho de acusação proferido, em nosso entendimento, cumpre, na integra, o disposto no art.º 283.º n.º 3 do Código Processo Penal, uma vez que narra, ainda que sinteticamente, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
6.Analisado o despacho de acusação recusado resulta, de forma clarividente, que se encontram descritas, ainda que de forma sistemática e sintética, todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do dolo, uma vez que ali é enunciado, de forma peremptória, que o arguido sabia que estava sob a influência do álcool, mas, ainda assim, conduziu o veículo nas circunstâncias de tempo e lugar mencionados, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida e punida por lei, e que o fez de forma voluntária, razão pela qual se conclui, forçosamente, que ao actuar da forma descrita, ponderou reflectidamente na conduta suprarreferida, actuando, de acordo com essa pretensão, desejando assumir tal comportamento.
7.De salientar que, ao enunciar, no despacho de acusação, que o arguido, por um lado, “…sabia que estava sob a influência do álcool, mas, ainda assim, conduziu…”, e por outro, que o fez de forma “…voluntária…”, o Ministério Público pretendeu, de forma cristalina, concretizar que aquele, bem sabendo que a quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas em momento anterior ao exercício da condução do referido veículo, lhe poderiam determinar uma TAS de valor igual ou superior a 1,20 g/l, actuou, de forma ponderada e reflectida, com o propósito concretizado de assumir a condução de tal viatura, ou seja, descrevendo, na sua globalidade, o elemento volitivo do dolo do tipo legal ora em análise.
8.De acrescentar ainda que, no despacho de acusação é, de igual forma, referido que o arguido actuou de forma livre, na medida em que, podendo actuar de outra forma optou por assumir os factos ora em análise, e consciente pois não estava em erro, isto é, agiu com consciência da ilicitude.

A este recurso, admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, não foi apresentada resposta pelo recorrido arguido.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação elaborou parecer em que, sufragando a resposta ao recurso, propugna a procedência deste.
Dado cumprimento ao disposto no art.º 417º n.º 2 CPP, nenhuma resposta ao parecer foi apresentada.

II.
No despacho liminar foi alterado o efeito atribuído ao recurso.

Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência.

Cumpre decidir.

O objecto do recurso, tal como delimitado pelas conclusões da recorrente, circunscreve-se à questão de saber se a acusação, rejeitada, contém a narração dos factos no que se refere aos elementos subjectivos do tipo.

Temos como dados objectivos a descrição inserida na acusação pública que apresenta o seguinte teor:
O arguido sabia que estava sob a influência do álcool, mas ainda assim conduziu o veículo nas circunstâncias de tempo e lugar acima mencionadas, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida e punida por lei.
Agiu de forma livre, voluntária e consciente

Esta concreta questão, também por relação à similar descrição dos elementos subjectivos do tipo de crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1 e 69.º, n. º1, al. a), do CP, foi já objecto de apreciação nesta Relação, versando decisão idêntica proferida pelo mesmo tribunal embora noutro processo, por acórdão de 05-05-2022, em que foi relatora a Exma. Desembargadora Renata Whytton da Terra, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl e cuja solução seguimos por merecer a nossa inteira concordância, pelo que nos limitamos a reproduzi-la:
De entre os elementos do tipo subjectivo de ilícito estão os que se relacionam com o dolo ou a negligência. “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência (art. 13.º do CP). A negligência está definida no art. 15º do CPenal. O dolo vem legalmente definido nos vários elementos que o compõem no art. 14.º do CPenal. Estes elementos costumam ser referidos, sinteticamente, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito.

Sobre o art. 311º do CPP escreve o Conselheiro Oliveira Mendes, Código de Processo Penal, Comentado, 2016- 2ª edição revista, Almedina, fls. 989:
Estabelecem-se neste artigo as regras a observar após o recebimento do processo em juízo, impondo-se ao juiz que verifique se o processo está em condições de passar para a fase de julgamento, ou seja, como dizia Luís Osório no seu Comentário ao Código de processo penal (v.8), conheça da sanidade do processo. Manda a lei que o juiz examine o processo e se certifique da inexistência de motivo impeditivo do conhecimento do seu objecto, para o que deverá pronunciar-se sobre a ocorrência de qualquer nulidade ou outra questão prévia ou incidental que obste á apreciação do mérito da causa.
Deverá verificar, pois, da eventual ocorrência de qualquer circunstância, seja de natureza substantiva, seja de natureza adjectiva, que impeça o conhecimento da questão de fundo.”

Estando em causa nestes autos o crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p, pelo art. 292º do CPenal cumpre atender à sua redacção:
1.Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
Assim, não tem razão a M.ma juiz a quo quando escreve no despacho recorrido que do ponto de vista subjectivo, o crime de condução em estado de embriaguez é um crime doloso. Com efeito, este crime pode ser praticado a título doloso ou negligente.
A decisão de rejeição da acusação fundou-se na alegada insuficiência factual do elemento subjectivo do crime imputado à arguida. E para o que aqui interessa, apesar de se ter escrito sobejamente sobre o dolo e a culpa, apenas se diz no que respeita à acusação em concreto no despacho:
“Mas no que concerne ao dolo do tipo, a acusação é omissa na descrição de factos que configuram o elemento volitivo.
Ou seja, nada se diz se a realização do tipo é o fim último ou uma consequência necessária ou meramente eventual da conduta do arguido.”
O despacho, no entanto, não esclarece nem concretiza quanto aos factos que entende que deveriam constar da acusação e não constam.
Cumpre esclarecer que não há uma fórmula semântica única para a descrição dos factos que integram o tipo de dolo, sendo, naturalmente, livres a redacção e a utilização dos termos que servirão para descrever, para integrar o dolo, não havendo uma fórmula que, não sendo utilizada ipsis verbis, conduza fatalmente à queda da acusação por manifestamente infundada, por não conter a suficiente narração dos factos.
Os factos – da acusação e da sentença – são sempre “enunciados linguísticos descritivos de acções(na expressão de Perfecto Ibanez): da acção executada – factos externos – e da acção projectada na vontade – factos internos.
O Ministério Público é livre de escolher os enunciados linguísticos de que faz utilização, na acusação, desde que descreva plenamente o objecto do processo, desde que esgote factualmente a descrição dos tipos objectivo e subjectivo do crime imputado.” - Acórdão da Relação de Évora de 27.6.2017 (in dgsi.pt).
Analisando mais detalhadamente no que ao dolo diz respeito, e simplificando para não entrarmos no tratamento das diversas teses doutrinárias, o dolo desdobra-se num elemento intelectual e num elemento volitivo. O elemento intelectual do dolo implica, desde logo, o conhecimento - previsão ou representação - por parte do agente, dos elementos materiais constitutivos do tipo objectivo do ilícito. O outro elemento do dolo, o elemento volitivo, consiste na vontade, por parte do agente, de realizar o facto típico, depois de ter representado – ou previsto- as circunstâncias ou elementos do tipo objectivo do ilícito.
Estudando a acusação conclui-se que não é manifesto, indiscutível, evidente nem inequívoco que os factos dela constantes não sejam susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido, pelos artigos 292.°, n.º1 e 69º, nº 1,al. a) do Código Penal de cuja prática a arguida vem acusada, designadamente, que dela não constem factos que posam integrar o elemento volitivo do dolo, ao contrário do que se afirma no despacho recorrido.
Na verdade, consta expressamente da acusação que a arguida sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade suficiente para estar sob a influência do álcool, mas que ainda assim conduziu o veículo nas circunstâncias de tempo e lugar descritas, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida e punida por lei. Mais se escreve na acusação que a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente.
Ou seja, na acusação descreve-se que a arguida sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade suficiente para estar sob a influência do álcool - elemento intelectual do dolo – mas que ainda assim conduziu o veículo da forma ali descrita- elemento volitivo do dolo, apontando em nosso entender para a existência de dolo necessário.
Neste sentido vejam-se Acórdãos da Relação de Évora de 2.6.2015 (processo n.º 312/12.0GFALR.E1) e de 20.10.2015 (processo n.º 254/10.4TASSB.E1), em www.dgsi.pt.

Pelo que não se nos afigura que exista razão para a invocação no despacho recorrido do Acórdão Uniformizado de Jurisprudência n.º 1/2015. Com efeito, a jurisprudência que ali se fixa é a seguinte:
A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.”
Naturalmente, o que ali se fixa depende de não estarem descritos na acusação os elementos subjectivos do crime. Concluímos já que não é assim in casu.

Aliás daquele acórdão retira-se um contributo importante para a questão em análise no trecho que passamos a citar:
Tudo isso, que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).
É o que efectivamente consta da acusação deduzida nestes autos.
Face ao exposto, entendemos que não se pode considerar que a factualidade pela qual foi deduzida acusação seja, inequivocamente, insusceptível de ser tipificada como integradora dos elementos típicos objectivos e subjectivos do crime imputado à arguida, o que determina a não verificação dos pressupostos de que o despacho recorrido partiu quando rejeitou a acusação.
Assim, tal como lá, também aqui se impõe concluir pela falta de fundamento do despacho recorrido, o qual deve ser revogado e substituído por outro que, não considerando a acusação manifestamente infundada, designe dia, hora e local para audiência (art.ºs 311º e 312º, do C.P.P.), se não se verificarem outras circunstâncias que o impeçam.

III.
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que receba a acusação e designe data para audiência.
Sem custas.
Elaborado e revisto pelo primeiro signatário.


 
Lisboa, 31 de Maio de 2022.



João Carrola


Luis Gominho