Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL RIBEIRO MARQUES | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA CULPOSA PRESUNÇÃO INILIDÍVEL NEXO DE CAUSALIDADE CONTABILIDADE ORGANIZADA INDEMNIZAÇÃO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/11/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Sumário: | 1. O n.º 2 do art.º 186.º do CIRE estabelece, em complemento da noção geral antes fixada no n.º 1, presunções inilidíveis que, como tal, não admitem prova em contrário, conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos aí referidos à qualificação da insolvência como culposa. 2. O n.º 3 do art. 186.º do CIRE não dispensa a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência. 3. A obrigação de manutenção da contabilidade organizada a cargo da gerência apenas cessa com a sentença de declaração da insolvência da sociedade. 4. A responsabilidade indemnizatória do afectado pela qualificação da insolvência deve conter-se na medida do dano que o mesmo, com a sua específica conduta, causou à massa insolvente e, reflexamente, aos credores reclamantes. 5. Credores da insolvência são apenas os que virem os seus créditos reconhecidos nos autos. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Nos presentes autos de incidente de qualificação de insolvência, que correm por apenso aos autos de processo especial de insolvência, em que, por sentença datada de 28/08/2020, transitada em julgado, foi declarada insolvente G., Lda, o Ministério Público apresentou no dia 12/11/2020 requerimento de abertura daquele incidente, com afectação do administrador de facto da insolvente, LP e da sócia gerente, MB, sustentando ter sido violado o disposto no art. 186.º, n.º 2, al. h), e n.º 3, al. a), do CIRE. Alegou para tanto que: Refere o Sr. Administrador da Insolvência que: “… Foram solicitadas à sócia e gerente da insolvente, as informações a que alude o artº 24 do CIRE, sendo que aquela nada disse. Foram as mesmas informações solicitadas ao Técnico Oficial de Contas (TOC) da insolvente em resultado do que se ficou a conhecer que a contabilidade era executada nas instalações da insolvente e só numa fase final passou a ser executada no escritório do TOC, por acesso remoto ao servidor onde residiam os dados, que se manteve nas instalações da insolvente. O TOC esclareceu que as contas relativas ao exercício de 2019 não foram encerradas, por ter ficado sem acesso ao servidor, nem estar na posse dos documentos contabilísticos da sociedade insolvente. Ainda assim, informou que a insolvente já não teria pessoal ao serviço e que em Agosto de 2019 processou vencimentos pela última vez. Disponibilizou, ainda, o mapa dos activos fixos em 2018, bem como as declarações modelo 22 de IRC e a Informação Empresarial Simplificada (IES) dos anos de 2017 e 2018. Das últimas contas disponibilizadas, reportadas ao ano de 2018, e apenas através da IES, destaca-se o seguinte: … Concluindo poder-se-á afirmar que a insolvente apresentava, então, uma situação económica bastante equilibrada, não sendo possível efectuar uma análise evolutiva aos dias de hoje, por ausência de elementos económico-financeiros após 2018. Na verdade, o servidor onde residiam os dados da contabilidade já não se encontrava nas instalações da sociedade, desconhecendo-se o seu paradeiro actual. …” O Sr. Administrador da Insolvência não reconheceu o crédito reclamado pela requerente. Conforme consta dos documentos juntos com a PI da acção comum nos termos do disposto no artº146 do CIRE (que constitui o apenso B), os trabalhadores/credores A. (p 178/20.7T8GRD), E. (p 177/20.9T8GRD), L. (p 219/20.8T8GRD) e J. (p 180/20.9T8GRD) foram cedidos pela I., SA à ora insolvente em 1 de Abril de 2019 e despedidos em 9 de Setembro de 2019. Também o trabalhador/credor C (p 188/20.4T8GRD) foi despedido em 9 de Setembro de 2019. O fundamento invocado pela insolvente, para esses despedimentos, foi “…restruturação da sua organização produtiva, encerrando várias secções…”, sendo que os referidos trabalhadores reclamaram, além das indemnizações, também retribuições e subsídios atrasados. Na sentença de insolvência, entre outros, foram considerados provados os factos dos artigos 16 a 25 da PI, nomeadamente afirmando que a gestão da insolvente era assegurada pelo seu administrador de facto, LP, sendo “… quem tomava as decisões necessárias ao funcionamento da sociedade, quem dava ordens aos trabalhadores, quem contactava fornecedores e clientes e quem geria e definia toda a actividade e estratégia da empresa”. A principal (e actual única) sócia da insolvente (MB) é avó materna dos filhos de LP. Por despacho de 5/01/2024 foi declarado aberto incidente de qualificação da insolvência como culposa. Por requerimento de 26/01/2024 o AI emitiu o seu parecer, no qual alegou, além do mais, que: “(…) 3. Em 08-09-2020, dirigiu à sócia e gerente da insolvente uma carta a solicitar as informações a que alude o art.º 24 do CIRE (doc. 1), 4. a qual foi entregue em 09-09-2020 (doc. 2). 5. Na mesma data, também remeteu uma carta para a sede da sociedade insolvente a solicitar as mesmas informações (doc. 3), 6. a qual veio devolvida ao remetente com a indicação “Mudou-se” (doc. 4). 7. Por e-mail de 22-09-2020 (doc. 5), solicitou ao senhor Dr. CP, Técnico Oficial de Contas (TOC) da sociedade insolvente diversas informações, nomeadamente, i) relação de bens; ii) contas anuais dos 3 últimos exercícios; iii) mapa de pessoal; iv) conta corrente das dívidas dos clientes, 8. pedido que renovou por e-mail de 01-10-2020 (doc. 6). Daquelas diligências, resultou que 9. a sócia e gerente, apesar de ter recebido a carta, nada disse. 10. Por e-mail de 02-10-2020 (doc. 7), o senhor Dr. CP, confirmou ser o Contabilista Certificado da sociedade insolvente e disponibilizou o i) mapa de depreciações e amortizações de 2018; ii) informação empresarial simplificada de (IES) relativa a 2017 e 2018; iii) declarações modelo 22 de IRC relativas a 2017 e 2018. 11. No mesmo e-mail, o senhor Dr. CP, Contabilista Certificado, informou que i) a relação profissional que mantinha com a sociedade insolvente era mantida em regime de prestação de serviços; ii) a contabilidade era executada nas instalações da empresa e só numa fase final foi efetuada no seu escritório; iii) o servidor com os dados está / estava na empresa e não no seu escritório; iv) mesmo quando passou a tratar a contabilidade no seu escritório, a mesma era efetuada por acesso remoto ao servidor; v) já há bastante tempo que não conseguia aceder ao servidor; vi) naquela data e que tenha conhecimento, não existia pessoal ao serviço, tendo processado vencimentos, pela última vez, em agosto de 2019; vii) não encerrou as contas de 2019 por não ter acesso ao servidor nem ter em sua posse os documentos necessários a tal procedimento. 12. Sobre este particular do servidor, na visita que efetuou às instalações que a ora insolvente possui no Loteamento Industrial da Lapa, rua …, o senhor A., trabalhador da sociedade insolvente depositário da chave das instalações, havia comunicado que o dito servidor já ali não se encontrava, tendo sido dali retirado pelo gerente de facto da sociedade, LP, ou a seu mando. Acresce que, 13. a insolvência da G., Lda., foi requerida pela massa insolvente da I., S.A.. 14. A massa insolvente da I., S.A. reclamou créditos, nos presentes autos, no montante de € 5.566.053,80, 15. quantia que não foi reconhecida por não terem sido disponibilizados os documentos comprovativos do crédito reclamado. 16. Do total reclamado pela massa insolvente da sociedade I., S.A., €4.389,983,80 respeitavam a faturas emitidas pela I., S.A. à G., Lda., 17. entre 31-03-2017 e 31-10 2018, 18. conforme mapa resumo que acompanhou a reclamação de créditos da I., S.A. (dos. 8), do qual se retira que, em 2017, aquela empresa teria faturado à G., Lda. o montante de € 3.063.167,11 e em 2018 o montante de € 1.326.816,69. 19. Tais montantes, deveriam estar refletidos na rubrica “fornecedores” ou, com alguma criatividade, em “outras contas a pagar”, das IES de 2017 e de 2018 da sociedade ora insolvente, o que não acontece. 20. Na verdade, na IES de 2017 (doc.9) a rubrica “fornecedores” acumula o montante de €348.602,75 e “outras contas a pagar”, o montante de € 115.523,95, 21. e na IES de 2018 (doc. 10), a rubrica “fornecedores” acumula o montante de 196.636,18 e “outras contas a pagar”, o montante de € 88.999,11. Neste contexto, existem indícios de práticas que permitem a qualificação da insolvência como culposa, nos termos do art.º 186, n.º 2, alíneas h) e i) e n.º 3, alínea b), do CIRE, com afetação ao administrador de facto da sociedade ora insolvente, LP e à sócia gerente MB.” Por despacho de 4/02/2021 ordenou-se a notificação da devedora e a citação pessoal dos propostos afectados para se oporem, querendo, no prazo de 15 dias – cf. artigo 188.º/6 do CIRE. Após várias vicissitudes estes foram citados editalmente para deduzirem oposição, tendo sido ainda observado o disposto no artigo 21.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. No exercício do contraditório, apenas o ora Requerido LP deduziu oposição, tendo alegado, além do mais, o seguinte: “Defesa por Excepção: 8º Não consta que o dito LP tivesse sido designado como gerente da sociedade. 9º Não consta que em assembleia tenha sido nomeado para esse efeito. 10º A gerência é um facto sujeito a nomeação e a registo comercial. 11º Não consta em parte alguma do registo da sociedade que o requerido LP tenha poderes de representação e vinculação da sociedade para celebração de negócios jurídicos. 12º Nunca foi averbado á certidão permanente tal facto, como se impunha. 13º O facto de ser alegado que o mesmo daria instruções ou indicações a trabalhadores ou a fornecedores não faz dele um gerente de facto ou de direito. 14º Um trabalhador de uma empresa pode ter essas funções sem que isso represente poderes de gerência ou direcção. 15º A interpretação contraria é manifestamente abusiva e conduziria a situações em que, chefias intermedias numa empresa pudessem ser consideradas gerentes ou administradores, pelo menos de facto, sem que para isso tivessem sido designados, ou mesmo, tivessem poderes para tal. 16º Não tendo a conduta que vem imputada ao requerido LP sido reconduzida a nenhuma normal legal que o qualifique como gerente de facto ou de direito não pode o mesmo vir a ser afectado por qualquer qualificação da insolvência, como aqui se pretende. 17º Deve assim ser proferida decisão que julgue procedente a excepção de ilegitimidade do requerido e o mesmo ser absolvido da instância. Defesa por impugnação: 18º Nos termos do artigo 574º º 4 do Código de Processo Civil – “Não é aplicável aos incapazes, ausentes e incertos, quando representados pelo Ministério Público ou por advogado oficioso, o ónus de impugnação, nem o preceituado no número anterior.” 19º O requerido impugna toda a matéria alegada nos autos, nomeadamente a que consta do requerimento de abertura de incidente de qualificação da insolvência bem como toda a documentação junta com o mesmo. No despacho saneador prolatado dia 12/06/2023 decidiu-se julgar improcedente a excepção da ilegitimidade passiva, por se ter entendido que saber “se o Requerido era efectivamente administrador de facto da insolvente não é uma questão de legitimidade processual, mas sim de mérito, a ser apreciada na sede própria”. No aludido despacho fixou-se ainda o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova. Realizado o julgamento, foi proferida sentença na qual se decidiu: “qualificar como culposa a insolvência da sociedade G., Lda., nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 189.º, n.º 1, do CIRE, declarando afetados pela mesma os dois Requeridos LP e MB e fixando o seu grau de culpa em igual medida. Em consequência do exposto e decidido, o Tribunal: a) Declara a inibição para o exercício do comércio dos Requeridos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 4 (quatro) anos a cada um deles, período a contar do trânsito em julgado da presente sentença – cfr. artigo 189.º, n.º 2, al. c), do CIRE; b) Determina a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente correspondente, eventualmente detidos por ambos os Requeridos – cfr. artigo 189.º, n.º 2, al. d), do CIRE; c) Condena os Requeridos a indemnizarem a credora/requerente Massa Insolvente de I., S.A., no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre ambos os afetados; ou seja, na indemnização equivalente ao montante global que a mencionada requerente não pôde ver reconhecido na insolvência, de € 5 566 053,80 (cfr. ponto 18 dos factos provados) – cfr. artigo 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE (na redação da Lei n.º 16/2012, de 20 de abril). O valor do incidente corresponde ao do processo de insolvência (cfr. artigo 304.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 17.º, n.º 1, do CIRE). Custas do incidente a cargo dos Requeridos (cfr. artigo 303.º, a contrario sensu, do CIRE, na sua conjugação com o artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). Registe e notifique”. Inconformado, o afectado LP interpôs recurso da sentença, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões: 1. A sentença recorrida padece de nulidade e, subsidiariamente, consubstancia ainda erro sobre os factos, bem como uma errada interpretação e aplicação da Lei e da Constituição. - DA NULIDADE DA SENTENÇA RECORRIDA POR EXCESSO DE PRONÚNCIA 2. Consta da Lei que o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes (sublinhado e negrito nossos) (cfr. art.º 188.º, n.º 1 do CIRE). 3. No caso “sub judice”, tendo o Ministério Público requerido a abertura de incidente de qualificação da insolvência da Sociedade Insolvente por requerimento de 12/11/2020, o prazo de 10 dias para o juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerasse oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, terminava no dia 23/11/2020 (uma vez que o dia 22/11/2020 correspondia a um domingo). 4. No entanto, o Tribunal “a quo” viria a declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência volvidos quase 2 meses, a saber por despacho de 05/01/2021, ou seja, extemporaneamente, sem ter invocado qualquer justo impedimento que pudesse ter obstado à prática atempada do ato em questão (cfr. despacho de 05/01/2023, constante dos autos). 5. A intempestividade de um ato sujeito a prazo perentório – como ocorre no caso – é de conhecimento oficioso (cfr. art.º 579.º do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE), pelo que se impunha que o Tribunal “a quo” tivesse declarado, oficiosamente, verificada a exceção perentória extintiva da caducidade da faculdade de abertura do incidente, o que, no presente caso, deveria ter importado a absolvição dos propostos afetados (entre os quais, o Recorrente), nos termos do artigo 576.º, n.º 1 e 3 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE. 6. Logo, a apreciação do mérito da qualificação da insolvência como culposa (questão de fundo da causa) devia ter ficado prejudicada pela verificação da referida exceção, pelo que, tendo o Tribunal “a quo” prosseguido (indevidamente) com o conhecimento dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, tendo tornado a presente sentença recorrida nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC. Sem prescindir e ad cautelam, - DO ERRO SOBRE OS FACTOS | DA ERRADA APRECIAÇÃO DA PROVA - Facto provado n.º 6 da sentença recorrida; e - Facto provado n.º 7 da sentença recorrida 7. O Recorrente considera incorretamente julgado especificamente o facto de o Tribunal “a quo” ter dado como provado que a requerente da insolvência é titular de um crédito sobre a Sociedade Insolvente no valor de EUR 1.176.070,00, devido pela entrega gratuita dos seus dois imóveis; e que emitiu diversas faturas à Sociedade Insolvente durante os anos de 2017 e 2018, cuja soma total se cifra em € 4 389 983,80” (cfr. facto provado n.º 6 na sentença recorrida); e, ainda, que a gestão da Insolvente era assegurada pelo seu administrador de facto, LP, sendo “(…) quem tomou as decisões necessárias ao funcionamento da sociedade, quem dava ordens aos trabalhadores, quem contratava fornecedores e clientes e quem geria e definia toda a atividade e estratégia da empresa” (cfr. facto provado n.º 7, na sentença recorrida). 8. Embora o Tribunal “a quo” identifique como fundamento para a sua convicção quanto a estes dois factos a prova obtida noutros autos processuais, acontece que, a admissibilidade do “valor extraprocessual da prova” obedece a determinadas condições previstas na Lei e que, no presente caso, não se encontravam preenchidas. 9. Para começar, nos autos principais de insolvência da Sociedade Insolvente (onde foi alegadamente produzida a prova que fundamenta o facto n.º 6 e o facto n.º 7 da sentença recorrida) não houve qualquer audiência contraditória da parte contra a qual são invocados (cfr. art.º 421.º, n.º 1 do CPC ex vi artigo 17.º do CIRE), na medida em que o Recorrente nunca foi em momento algum citado ou notificado da instauração ou pendência do mencionado processo de insolvência da Sociedade Insolvente. 10. Por outro lado, a par da demonstrada falta de audiência contraditória, o Tribunal “a quo” também não podia ter atribuído qualquer valor extraprocessual a uma decisão de facto constante da sentença de declaração de insolvência proferida nos autos principais de insolvência, pois não se permite a invocação de factos considerados provados noutro processo (mas apenas e tão só de determinadas provas) (cfr. excertos acima transcritos de doutrina e do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/01/2021). 11. Por sua vez, ao abrigo do princípio da iniciativa processual das partes (cfr. arts.º 5.º e 6.º do CPC ex vi artigo 17.º do CIRE), é à parte, à qual incumbe o ónus de alegação e ónus de prova (e não ao juiz), que cabe invocar as provas produzidas noutro processo, não tendo nenhuma parte invocado a prova produzida nos autos principais de forma processualmente adequada. 12. O Tribunal “a quo” nunca poderia considerar assente nos presentes autos, sem mais, determinada factualidade julgada provada no âmbito de outro processo, ainda por cima totalmente desacompanhada da decisão jurídica em que se integra e da qual constitui fundamento. 13. No caso concreto do facto n.º 6, acresce que este se encontra em flagrante contradição com o facto provado n.º 18 da sentença recorrida, que afirma que julga como provado que ambos os valores reclamados pela requerente da insolvência (Massa Insolvente da sociedade I., S.A.), quer relativos aos imóveis, quer relativos às faturas não foram reconhecidos, por falta de documentos comprovativos (cfr. facto provado n.º 18 da sentença recorrida). 14. O facto n.º 6 e o facto n.º 7 são, pois, especificamente, alguns dos concretos pontos de facto que o Recorrente considera incorretamente julgados (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). 15. O disposto no artigo 421.º do CPC ex vi artigo 17.º do CIRE impunha uma decisão, sobre os referidos pontos de facto impugnados, diversa da recorrida (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE), designadamente dando-se como facto não provado os referidos factos n.º 7 e 8 e como provado que o Recorrente nunca exerceu a gerência de facto da Sociedade Insolvente. 16. A alteração da matéria de facto, ora requerida, assume decisiva relevância ao conduzir a uma decisão diversa no âmbito do preenchimento dos factos-índice previstos nas alíneas h) e i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE e nas alíneas a) e b) do n.º 3 do mesmo artigo, no que ao Recorrente diz respeito, por deixar de lhe poder ser imputada qualquer atuação dolosa ou com culpa grave, apta a criar ou agravar a situação de insolvência (cfr. art.º 186.º, n.º 1 do CIRE). 17. Portanto, a decisão que deve ser proferia sobre as questões de facto ora impugnadas serão, em última instância, a decisão de que, no caso dos presentes autos (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE), por um lado, não existem créditos não satisfeitos pertencentes à requerente da insolvência (Massa Insolvente da sociedade I., S.A.), visto que não foi sequer reconhecida como credora na lista definitiva de credores (cfr. facto provado n.º 18 da sentença recorrida e lista definitiva de credores reconhecidos anexa ao requerimento do administrador de insolvência de 09/11/2020, constante do apenso C); e, por outro, se encontra verificada a exceção dilatória de ilegitimidade passiva do Recorrente e, consequentemente, de absolvição da instância do Recorrente. Facto provado n.º 9 da sentença recorrida 18. O Recorrente considera incorretamente julgado especificamente o facto de o Tribunal “a quo” ter dado como provado que era o Recorrente quem tomava as decisões necessárias ao funcionamento da Sociedade Insolvente, quem dava ordens aos trabalhadores, quem contratava os fornecedores e clientes e quem geria e definia toda a atividade e estratégia da empresa (cfr. facto provado n.º 9, na página 4 da sentença recorrida). 19. O não exercício, pelo Recorrente, da gerência de facto da Sociedade Insolvente é, pois, especificamente outro dos concretos pontos de facto que o Recorrente considera incorretamente julgados (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). 20. O depoimento do Técnico Oficial de Contas CP e o depoimento dos trabalhadores A. e E. surgem, nesta sede, como os concretos meios probatórios que impunham uma decisão, sobre o referido ponto de facto impugnado, diversa da recorrida (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE), tendo os referidos depoimentos decorrido de forma isenta, esclarecida e assertiva, durante a primeira sessão da audiência final realizada no dia 19/09/2023 e foram gravadas. 21. O depoimento da testemunha CP, ex-TOC da Sociedade Insolvente, teve início às 11:09:01 e termo às 11:28:10 (cfr. ficheiro áudio com a designação Diligencia_11118-20.3T8LSB-E_2023-09-19_11-09-01l), tendo dito: ⎯ ao minuto (00:03:54), perante a pergunta da Magistrada do M.P. sobre “qual era o papel, digamos assim, do Sr. LP na G., Lda? Qual era a sua perceção?”, a testemunha respondeu ao minuto (00:04:10) que “para nós era o interlocutor”; ⎯ ao minuto (00:09:16), perante a pergunta da Magistrada do M.P. sobre “Olhe e em relação à D. MB, diz-lhe alguma coisa?”, a testemunha respondeu ao minuto (00:09:52) que “era a sócia da sociedade”; ⎯ ao minuto (00:16:07), perante a pergunta da Defensora Oficiosa sobre se “o Sr. sabia que o proprietário da empresa ou o gerente da empresa não era o Sr. LP?”, a testemunha respondeu ao minuto (00:16:15) que “sim, a D. …, MB”; e ⎯ ao minuto (00:16:16), perante a pergunta da Defensora Oficiosa sobre se “isso era claro para si?”, a testemunha respondeu ao minuto (00:16:18) que “sim”. (cfr. transcrição supra dos excertos relevantes (cfr. art.º 640.º, n.º 2, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE) 22. Por sua vez, relativamente aos trabalhadores que depuseram em sede de audiência, há que ter em conta que, tal como resulta do facto provado n.º 21 (o qual não se impugna), todos os trabalhadores da Sociedade Insolvente que prestaram depoimento em sede de audiência final, tinham sido anteriormente trabalhadores da sociedade I., S.A., tendo sido cedidos pela mesma à Sociedade Insolvente apenas em 01/04/2019, o que significa que, a colaboração dos referidos trabalhadores foi feita, na quase totalidade do tempo em que estiveram ligados ao grupo empresarial, à sociedade I., S.A. (da qual o Recorrente era administrador) e, mesmo durante o período em que trabalharam para Sociedade Insolvente, os trabalhadores exerciam a sua atividade em instalações, e utilizando meios cuja exploração estava cedida à sociedade I., S.A., pelo que não se pode esperar, em face das funções exercidas e no contexto das mesmas, que os referidos trabalhadores tivessem uma perceção perfeita ou plena dos limites do exercício das competências de gestão das duas sociedades. 23. O depoimento da testemunha A., ex-trabalhador da Sociedade Insolvente, teve início às 10:23:49 e termo às 10:41:55 (cfr. ficheiro áudio com a designação Diligencia_11118-20.3T8LSB-E_2023-09-19_10-23-49), tendo dito: ⎯ ao minuto (00:08:00), perante a pergunta da Magistrada do M. P. sobre se “a Sra. D. MB diz-lhe alguma coisa?”, a testemunha respondeu ao minuto (00:08:07) que “a Sra. MB, pois, foi apresentada uma única vez na G., Lda, em …, como sendo ela a diretora da empresa …”; ⎯ ao minuto (00:14:03), perante a pergunta da Defensora Oficiosa sobre se “alguma vez viu o Sr. LP assinar contratos que vinculassem a empresa para que trabalhava? Alguma vez viu o Sr. LP realizar negócios jurídicos?”, a testemunha respondeu ao minuto (00:14:29) que “não”; ⎯ ao minuto (00:14:37), perante a pergunta da Defensora Oficiosa sobre se “alguma vez alguém lhe contou que o Sr. LP assinava documentos que vinculassem esta empresa?”, a testemunha respondeu ao minuto (00:14:51) que “não”; ⎯ ao minuto (00:14:53), perante a pergunta da Defensora Oficiosa sobre se “nunca viu o Sr. LP assinar documentos, vincular a sociedade em negócios de alguma forma, nunca ouviu falar nisso?”, a testemunha respondeu ao minuto (00:15:01) que “não”; ⎯ ao minuto (00:15:03), perante a pergunta da Defensora Oficiosa sobre se “não sabe quem é que fazia os contratos com esses fornecedores? Não sabe quem é que estipulava preços, essas coisas não sabe?”, a testemunha respondeu ao minuto (00:15:16) que “não, não sei não, não sei”; e ⎯ ao minuto (00:15:19), perante a pergunta da Defensora Oficiosa sobre se “no seu entendimento pode-se dizer que o Sr. LP comportava-se como um diretor, um diretor financeiro, um diretor geral?”, a testemunha respondeu ao minuto (00:15:28) que “eu acho que ele era o diretor geral da empresa”. (cfr. transcrição supra dos excertos relevantes (cfr. art.º 640.º, n.º 2, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE) 24. O depoimento da testemunha E., ex-trabalhador da Sociedade Insolvente, teve início às 10:41:55 e termo às 10:53:30 (cfr. ficheiro áudio com a designação Diligencia_11118-20.3T8LSB-E_2023-09-19_10-41-55), tendo dito: ⎯ ao minuto (00:05:40), perante a pergunta da Magistrada do M. P. sobre se “a D. MB, sabe quem era, o que é que esta Sra. era na empresa? MB, diz-lhe alguma coisa?”, a testemunha respondeu ao minuto (00:05:52) que “nós na altura assinámos um papel conforme a …impercetível… ser proprietária”; ⎯ ao minuto (00:07:18), perante a pergunta da Defensora Oficiosa sobre se “o Sr. … soube que quando muda de empresa que o dono da empresa não é já o Sr. LP? Tomou conhecimento disso?”, a testemunha respondeu ao minuto (00:07:28) que “sim”; e ⎯ ao minuto (00:09:41), perante a pergunta da Defensora Oficiosa sobre se “o Sr. E., portanto, enquanto trabalhou na empresa o Sr. chegou algum dia a ver a Sra. MB?”, a testemunha respondeu ao minuto (00:09:54) que “um dia, não me lembro o dia”. (cfr. transcrição supra dos excertos relevantes (cfr. art.º 640.º, n.º 2, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE) 25. Dos depoimentos descritos acima, resulta claro que o Recorrente nunca exerceu a gerência de facto da Sociedade Insolvente, pelo que, nesta matéria, se impunha, por um lado, ter dado como facto não provado que era o Recorrente quem tomava as decisões necessárias ao funcionamento da Sociedade Insolvente, quem dava ordens aos trabalhadores, quem contratava os fornecedores e clientes e quem geria e definia toda a atividade e estratégia da empresa (cfr. facto provado n.º 9, na página 4 da sentença recorrida), e, impunha-se, por outro, ter dado como provado que o Recorrente nunca exerceu a gerência de facto da Sociedade Insolvente. 26. A alteração da prova requerida assume decisiva relevância ao conduzir a uma decisão diversa no âmbito do preenchimento dos factos-índice previstos nas alíneas h), i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE e nas alíneas a) e b) do n.º 3 do mesmo artigo, no que ao Recorrente diz respeito. 27. A prova, ora requerida, de que o Recorrente nunca exerceu a gerência de facto da Sociedade Insolvente, conduz necessariamente a uma decisão de verificação da exceção dilatória de ilegitimidade passiva do Recorrente, nos termos do artigo 577.º, alínea e) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, de conhecimento oficioso, que obstaria a que o Tribunal “a quo” tivesse conhecido do mérito da causa relativamente ao Recorrente, dando lugar à absolvição da instância do Recorrente, nos termos dos artigo 578.º, 278.º, n.º 1, alíneas d) e e) e 576.º, n.º 2 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). - Facto provado n.º 10 da sentença recorrida; - Facto provado n.º 11 da sentença recorrida; e - Facto provado n.º 14 da sentença recorrida 28. O Recorrente considera incorretamente julgado especificamente o facto de o Tribunal “a quo” ter dado como provado que em 08 de setembro de 2020, o Administrador de Insolvência dirigiu à sócia e gerente da Insolvente uma carta a solicitar as informações a que alude o artigo 24.º do CIRE, a qual foi entregue em 09 de setembro de 2020 (cfr. facto provado n.º 10, na página 4 da sentença recorrida); que, na mesma data, o Administrador de Insolvência remeteu uma carta para a sede social da mesma sociedade a solicitar iguais informações, que veio devolvida ao remetente com a indicação de “Mudou-se” (cfr. facto provado n.º 11, na página 4 da sentença recorrida); e que, das referidas diligências teria resultado que a sócia e gerente, teria recebido a carta e que, apesar disso, nada teria respondido” (cfr. facto provado n.º 14, na página 4 da sentença recorrida). 29. Estes factos são, pois, especificamente, outros dos concretos pontos de facto que o Recorrente considera incorretamente julgados (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). 30. Os documentos n.º 1 e 2, nos quais o Tribunal “a quo” apoia o facto n.º 10, não provam que tenha sido a carta constante do documento n.º 1 a que foi efetivamente remetida no dia 08 de setembro de 2020 a que alude o talão de registo. 31. Depois, o Tribunal “a quo” não podia ter ignorado que a pretensa entrega ocorrida em 09 de setembro de 2020 foi feita em regime de RPD como consta expressamente referido no documento n.º 2. 32. Por sua vez, também os documentos n.º 3 e 4, nos quais o Tribunal “a quo” sustenta o facto n.º 11, não provam que tenha sido a carta constante do documento n.º 3 a que foi efetivamente remetida no dia 08 de setembro de 2020 a que alude o talão de registo. 33. Vale igualmente reiterar que o pedido de informação a que se referem os factos 10 e 11 teve sempre como destinatários outros intervenientes que não o Recorrente (num caso, a sócia e gerente da Sociedade Insolvente MB e, noutro caso, a Sociedade Insolvente) e, por isso, dele não podia aquele ter conhecimento. 34. Impunha-se, por um lado, ter dado como facto não provado que tivesse sido solicitado à sócia e gerente da Sociedade Insolvente MB, à Sociedade Insolvente e ao Recorrente qualquer pedido de informação (cfr. factos provados n.º 10, 11 e 14, na página 4, da sentença recorrida), e impunha-se, por outro, ter dado como provado que todos os referidos intervenientes, e o Recorrente em particular, desconheciam qualquer pedido de informação por parte do senhor Administrador e, como tal, nunca incorreram em qualquer falta de resposta ou de colaboração. 35. A alteração da matéria de facto, ora requerida, assume decisiva relevância ao conduzir a uma decisão diversa no âmbito do preenchimento do facto-índice previsto na alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, referente ao dever de apresentação e colaboração. 36. Portanto, a decisão que deve ser proferida sobre a questão de facto ora impugnada será, em última instância, uma decisão de afastamento de um dos fundamentos apontados pelo Tribunal “a quo” para a qualificação da insolvência como culposa (e, consequentemente, para a afetação do Recorrente), em concreto, o afastamento da pretensa falta de apresentação e colaboração (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). ⎯ Facto provado n.º 17 da sentença recorrida 37. O Recorrente considera incorretamente julgado especificamente o facto de o Tribunal “a quo” ter dado como provado, sem mais, que, “sobre o aspeto particular do servidor, na visita que efetuou às instalações que a ora Insolvente possui no Loteamento Industrial da Lapa, na rua …, A., trabalhador da sociedade Insolvente e depositário da chave das instalações, havia comunicado que o dito servidor já ali não se encontrava, tendo sido dali retirado pelo Requerido LP, ou a seu mando” (cfr. facto provado n.º 17, na página 5 da sentença recorrida). 38. O facto n.º 17 é, pois, especificamente, outro dos concretos pontos de facto que o Recorrente considera incorretamente julgados (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). 39. O servidor era propriedade da sociedade I., S.A., embora fosse também utilizado pela Sociedade Insolvente, ao abrigo das relações comerciais e de grupo entre as duas sociedades. 40. No âmbito do processo de insolvência da sociedade I., S.A. (processo n.º 24267/19.1T8LSB, acima melhor identificado), proprietária do servidor, foi levada a cabo uma diligência de arresto realizada nas referidas instalações de Casal do Marco, tendo, então, sido apreendido o referido servidor (cfr. verba 35 do auto de apreensão que constitui o Documento 2 anexo ao relatório do administrador de 07/04/2020, constante do autos de insolvência da sociedade I., S.A. que se ora se junta como Doc. n.º 3), a partir de cujo momento, foi interrompido o acesso ao servidor, quer à Sociedade Insolvente, quer ao Técnico Oficial de Contas, CP. 41. O depoimento do Técnico Oficial de Contas, CP, surge, nesta sede, como o concreto meio probatório que impunha uma decisão, sobre o referido ponto de facto impugnado, diversa da recorrida (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE), tendo o mesmo decorrido de forma isenta, esclarecida e assertiva, durante a audiência final realizada no dia 19/09/2023 e foi gravado. 42. O depoimento da testemunha CP, ex-TOC da Sociedade Insolvente, teve início às 11:09:01 e termo às 11:28:10 (cfr. ficheiro áudio com a designação Diligencia_11118-20.3T8LSB-E_2023-09-19_11-09-01), tendo dito: - ao minuto (00:05:25), perante a pergunta da Magistrada do M.P. sobre se “e deixaram de poder aceder?”, a testemunha respondeu ao (00:05:27) que “às instalações. Portanto, havia uma outra empresa também, uma Glaciar Indústria. E quando houve a insolvência da I., SA, portanto, levaram as coisas para nós ficarmos sem meios de trabalhar”; e ⎯ ao minuto (00:05:43), perante a pergunta da Magistrada do M.P. sobre se “levaram as coisas?”, a testemunha respondeu ao minuto (00:05:45) que “o servidor estava lá” e “quando nós um dia chegámos lá a porta estava fechada e a partir daí nunca mais tivemos acesso a nada”. (cfr. transcrição supra dos excertos relevantes (cfr. art.º 640.º, n.º 2, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE) 43. Do depoimento da testemunha CP resulta expressamente que, aquando da insolvência da sociedade I., S.A., o servidor, que se encontrava nas respetivas instalações, foi apreendido juntamente com os demais bens daquela sociedade e que teria deixado de ter acesso ao servidor a partir dessa altura, pelo que, nesta matéria, se impunha, por um lado, ter dado como facto não provado o facto n.º 17 e ter sido dado como provado era que a interrupção do acesso ao servidor ocorreu aquando e resultou unicamente da sua apreensão pelo senhor Administrador de Insolvência da sociedade I., S.A. no âmbito do processo de insolvência da mesma sociedade I., S.A.. 44. A alteração da matéria de facto, ora requerida, assume decisiva relevância ao conduzir a uma decisão diversa no âmbito do preenchimento do facto-índice previsto na alínea h) do n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, referentes aos deveres relacionados com a contabilidade e com as contas da Sociedade Insolvente, conduzindo à conclusão do seu não preenchimento, ou, pelo menos, ao afastamento da culpa grave (requisito necessário ao preenchimento do facto-índice previsto na alínea b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE). 45. Portanto, a decisão que deve ser proferida sobre a questão de facto ora impugnada será, em última instância, uma decisão de afastamento de dois dos fundamentos apontados pelo Tribunal “a quo” para a qualificação da insolvência como culposa (e, consequentemente, para a afetação do Recorrente), em concreto, o afastamento do pretenso incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada e da obrigação de elaborar as contas anuais (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). - Facto provado n.º 20 da sentença recorrida 46. O Recorrente considera, também, incorretamente julgado especificamente o facto de o Tribunal “a quo” ter dado como provado que “Tais montantes [créditos reclamados pela requerente Massa Insolvente de I., S.A.] deveriam estar refletidos na rúbrica “Fornecedores” ou, no limite, na rúbrica “Outras contas a pagar”, das IES de 2017 e de 2018 da sociedade ora Insolvente, o que não ocorre na realidade”. 47. Este é, pois, especificamente, outro dos concretos pontos de facto que o Recorrente considera incorretamente julgados (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). 48. Relativamente aos imóveis, aquando da sua criação, a Sociedade Insolvente concedeu à Sociedade I., S.A. uma quota de 10% (dez por cento) do seu capital social, tendo a sociedade I., S.A. procedido, como contrapartida, à transmissão de bens (incluindo imóveis). 49. Como a Sociedade Insolvente era a proprietária das instalações, e ainda de toda a maquinaria e os equipamentos (e haviam sido transferidos pela prestação acessória), a sua utilização pela Sociedade I., S.A. foi regulada por um contrato de cessão de exploração, nos termos do qual a Sociedade I., S.A. realizava um conjunto de pagamentos, com periocidade fixa e que coexistiam com pagamentos de frequência regular realizados pela Sociedade Insolvente à Sociedade I., S.A., pela prestação de diversos serviços. 50. Por Contrato de Compensação de Créditos celebrado em 31/10/2018 entre a Sociedade Insolvente e a Sociedade I., S.A. (que ora se junta aos autos como Doc. n.º 4), um vulgarmente designado “encontro de contas” abrangeu um conjunto vasto de créditos entre as duas entidades, contido no seu anexo I - por isso mesmo, os pretensos créditos da Massa Insolvente de I., S.A. não foram reconhecidos no processo de insolvência da Sociedade Insolvente, pois não existiam, conforme resulta do facto provado n.º 18 da sentença recorrida e ainda da lista definitiva de credores reconhecidos (cfr. facto provado n.º 18 da sentença recorrida e lista definitiva de credores reconhecidos anexa ao requerimento do administrador de insolvência de 09/11/2020, constante do apenso C). 51. Todos os referidos documentos mencionados acima e a lista definitiva de credores reconhecidos anexa ao requerimento do administrador de insolvência de 09/11/2020, constante do apenso C, surgem, nesta sede, como os concretos meios probatórios que impunham uma decisão, sobre o referido ponto de facto impugnado, diversa da recorrida (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). 52. Pelo que, nesta matéria, se impunha ter dado como facto não provado a alegada falta de quaisquer montantes na rúbrica “Fornecedores” ou, no limite, na rúbrica “Outras contas a pagar”, das IES de 2017 e de 2018 (cfr. facto provado n.º 20, na página 5 da sentença recorrida), 53. A alteração da matéria de facto, ora requerida, assume decisiva relevância ao conduzir a uma decisão diversa no âmbito do preenchimento do facto-índice previsto na alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, referente ao dever de manter uma contabilidade organizada que reflita a realidade da situação da Sociedade Insolvente. 54. Portanto, a decisão que deve ser proferida sobre a questão de facto ora impugnada será, em última instância, uma decisão de afastamento de um dos fundamentos apontados pelo Tribunal “a quo” para a qualificação da insolvência como culposa (e, consequentemente, para a afetação do Recorrente), em concreto, o afastamento do pretenso incumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada refletora da realidade da situação da Sociedade Insolvente (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). Sem prescindir e ad cautelam - DA ERRADA APLICAÇÃO DA LEI E DA CONSTITUIÇÃO 55. O Tribunal “a quo” sustentou a qualificação da insolvência da Sociedade Insolvente como culposa no pretenso preenchimento dos factos-índice previstos nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, cujos conceitos indeterminados que constituem as suas previsões legais não são concretizados no caso dos autos por não ter havido qualquer prática de atos do Recorrente que pudesse ser subsumida à previsão das referidas normas. - Da falta de preenchimento do facto-índice do art.º 186.º, n.º 2, al. h) do CIRE 56. Os pretensos créditos da Massa Insolvente de I., S.A. não constavam das IES porque não existiam e, por isso mesmo, também não foram reconhecidos no presente processo de insolvência da Sociedade Insolvente, conforme resulta do facto provado n.º 18 da sentença recorrida e ainda da lista definitiva de credores reconhecidos (cfr. facto provado n.º 18 da sentença recorrida e lista definitiva de credores reconhecidos anexa ao requerimento do administrador de insolvência de 09/11/2020, constante do apenso C). 57. Logo, se não existiam tais créditos também não tinham que estar na rúbrica “Fornecedores”, nem na rúbrica “Outras contas a pagar”, das IES de 2017 e de 2018, não merecendo estas rúbricas qualquer reparo. 58. Também não se ignora que tenha havido uma interrupção no acesso ao servidor, deixando a Sociedade Insolvente e o Técnico Oficial de Contas, CP, a partir de uma determinada altura, sem acesso ao mesmo. 59. Todavia, a Sociedade Insolvente, a sua sócia e gerente MB e o Recorrente foram completamente alheios a essa interrupção e a interrupção em questão apenas influenciou o encerramento das contas do ano de 2019. 60. Além disso, resulta do conhecimento do padrão de funcionamento de uma sociedade com o perfil da Sociedade Insolvente que uma parte significativa da informação necessária ao seu apuramento contabilístico se encontrava acessível através de fontes externas, como o portal e-fatura, ou mesmo em informações passíveis de solicitação a entidades externas ao processo, como os extratos bancários da Sociedade Insolvente. 61. Adicionalmente, a Sociedade Insolvente fez chegar ao seu Técnico Oficial de Contas um conjunto de elementos que permaneciam na sua posse, e que concorriam para que fosse possível preparar as demonstrações financeiras referentes ao ano de 2019 (o último ano de atividade efetiva da empresa), cuja receção foi confirmada pelo próprio em sede de depoimento (cfr. excerto do depoimento em questão acima transcrito). 62. Por fim, caso ainda assim não pudesse ser recolhida toda a informação necessária por meios alternativos, e na medida em que essa recolha não fosse completa, incumbiria ao Técnico Oficial de Contas requerer junto do senhor Administrador de Insolvência o acesso, físico ou remoto, à informação do servidor – o que não ocorreu! 63. Decorreu, por conseguinte, da inação e da negligência do Técnico Oficial de Contas que a Informação Empresarial Simplificada referente ao ano de 2019 (i.e. com data de referência de 31/12/2019) não tenha sido submetida, mesmo que em circunstâncias limitativas (por facto superveniente) do seu pleno apuramento. 64. De resto, o Tribunal “a quo” não identificou, no âmbito do elenco dos factos provados, quais os factos constantes da contabilidade que julgou “incorretos” ou “falsos”, nem qualquer prejuízo relevante que teria resultado dessas pretensas (mas não identificadas) “incorreções” ou “falsidades” para a compreensão da situação patrimonial e financeira da Sociedade Insolvente, nem nada refere sobre o grau de incumprimento (se substancial ou não), nem sobre a relevância de prejuízos daí decorrentes (cfr. páginas 18 e 19 da sentença recorrida, constante dos autos). 65. No caso dos autos, não houve incumprimento em termos substanciais em matéria contabilística, e ainda menos capaz de causar prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da Sociedade Insolvente. - Da falta de preenchimento do facto-índice previsto no art.º 186.º, n.º 2, al. i) do CIRE 66. O Recorrente nunca foi contactado pelo senhor Administrador de Insolvência, pois todas as comunicações, cuja existência foi dada como provada pelo Tribunal “a quo” – cfr. factos provados n.º 10, 11, 12 e 13 – foram remetidas pelo senhor Administrador de Insolvência a pessoas terceiras, que não ao Recorrente! 67. Logo, se o Recorrente nunca foi citado, notificado ou contactado por ninguém: nem pelo Tribunal, nem pelo senhor Administrador de Insolvência, nem por qualquer outro interveniente no âmbito do processo de insolvência da Sociedade Insolvente, como lhe pode ser assacado um pretenso incumprimento de deveres de apresentação e de colaboração?! Não pode!! 68. Em face do que antecede, não se pode concluir que o Recorrente tenha violado, alguma vez, algum dos deveres previstos no artigo 83.º do CIRE (artigo que o Tribunal “a quo” menciona muito “a passant”). 69. Acresce, ainda, que, a Lei exige, expressamente, a forma reiterada do incumprimento dos deveres de apresentação e de colaboração (cfr. al. i) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE) (cfr. excerto acima transcrito do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/11/2020), a qual não surge sequer referenciada nos autos. 70. O preenchimento do facto-índice previsto na alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, não se basta com qualquer falta de prestação de informação, mas exige, antes, uma recusa reiterada, com relevo e com influência na liquidação do património e na satisfação dos direitos dos credores, o que não ocorre no caso dos autos (cfr. factos provados elencados na sentença recorrida). - Da falta de preenchimento do facto-índice previsto no art.º 186.º, n.º 3, al. a) do CIRE 71. Importa notar que a falta de apresentação à insolvência – caso tivesse existido, reiterese! – nada teve a ver com qualquer conduta ilícita, desonesta ou de má-fé da Sociedade Insolvente ou da sua sócia e gerente MC ou, menos ainda, do Recorrente, mas antes e tão só à perspetiva séria de melhoria da situação económica. 72. Tanto assim é que consta do teor da própria sentença que a testemunha CP (Técnico Oficial de Contas) sinalizou que a Sociedade Insolvente parecia tratar-se de uma empresa rentável e saudável (tida como referência a IES de 2018) e que dispunha de capitais próprios positivos (cfr. página 11 da sentença recorrida, constante dos autos). 73. No mesmo sentido, depôs, de forma assertiva e afirmativa, o Técnico Oficial de Contas CP (cfr. excerto do depoimento em questão transcrito acima). 74. A Sociedade Insolvente não se encontrava numa trajetória de previsível insolvência a curto ou médio prazo, pelo que não se afigurava exigível a sua apresentação à insolvência: até ao segundo semestre de 2019, não era sequer vislumbrável nenhuma quebra do desempenho operacional da empresa, que só se veio a consumar após junho de 2019, com o fim da relação contratual com o seu mais importante cliente (quebra essa a que, a Sociedade Insolvente poderia, de resto, legitimamente, querer reagir nos meses seguintes, sem logo aí requerer a sua insolvência). 75. As principais dívidas da Sociedade Insolvente até meados de 2019 eram de valor reduzido e, em meados de 2019, as dívidas da Sociedade Insolvente caracterizavam-se por pequenos créditos a alguns trabalhadores (constituídos apenas finais do ano de 2019) e por um crédito hipotecário sobre seus bens imóveis, cujo reembolso vinha decorrendo ao longo de muitos anos. 76. Do ponto de vista dinâmico, nenhuma dinâmica de degradação resultava assim do passivo; também nada de negativo se poderia concluir de uma análise do ativo no final de 2018, que, apesar de ser essencialmente constituído por bens imóveis e maquinaria, tinha suficiente provisão de ativos mais líquidos (tais como inventários e dívidas de clientes), cuja disposição seria relativamente rápida, caso surgisse alguma necessidade de financiamento imprevista. 77. Do ponto de vista estático, a 31/12/2018 (última observação disponível), o valor do ativo fixo tangível da Sociedade Insolvente, predominantemente composto por bens imóveis – EUR 1.104.904,98 – excedia largamente o valor total do seu passivo a essa data – EUR 290.735,71 –, sendo que o valor do ativo total ascendia a EUR 1.487.648,34, ou seja, tudo perfeitamente compatível com uma situação de solvabilidade. 78. Foi, na verdade a insolvência da Sociedade I., S.A. que precipitou a deterioração da situação financeira da Sociedade Insolvente, por ter precipitado a litigância relativa à propriedade dos bens imóveis da Sociedade Insolvente – este risco para a sua situação patrimonial não existia até então! 79. Ademais, sempre deveria o Tribunal “a quo” ter afasto a presunção de culpa grave na pretensa falta de apresentação da Sociedade à insolvência (requisito necessário ao preenchimento do facto-índice previsto na alínea a) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE). 80. Por outro lado, a ocorrência posterior da declaração da insolvência da Sociedade Insolvente em meados de 2020 não causou quaisquer prejuízos para os credores dos créditos até aí vencidos, 81. Sendo certo que o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência – incumprimento esse que não se verificou – só permitiria qualificar a insolvência como culposa se se evidenciasse a existência de nexo de causalidade entre a mesma e a criação ou agravamento da situação de insolvência, o que não se verificou no caso dos autos. 82. Por conseguinte, também quanto ao facto-índice previsto na alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, não só não resulta da factualidade provada, a identificação expressa (nem sequer implícita) de qualquer prejuízo (e, ainda menos, a respetiva quantificação), como também dela não resulta a concretização da sua relevância para efeitos de subsunção ao facto-índice. ⎯ Da falta de preenchimento do facto-índice previsto no art.º 186.º, n.º 3, al.b) do CIRE 83. Sobre a concreta questão do encerramento das contas do ano de 2019, vale reiterar que a Sociedade Insolvente, a sua sócia e gerente MB e o Recorrente foram completamente alheios à interrupção do acesso ao servidor da Sociedade Insolvente, provocada pela sua apreensão no âmbito do processo de insolvência da sociedade I., S.A. (cfr. verba 35 do auto de apreensão que constitui o Documento 2 anexo ao relatório do administrador de 07/04/2020, constante do autos de insolvência da sociedade I., S.A. acima junto como Doc. n.º 3), o que sempre afastaria qualquer presunção de culpa grave. 84. Sendo certo que, como se disse acima, o Técnico Oficial de Contas da Sociedade Insolvente tinha outros meios à sua disposição para proceder ao encerramento das contas do ano de 2019 (tinha-lhe sido entregue documentação em caixas pela Sociedade Insolvente, havia o e-fatura, possibilidade de recurso a extratos bancários da Sociedade Insolvente e tinha, em último recurso, possibilidade de solicitar o acesso ao conteúdo do servidor no processo de insolvência da I., S.A., etc.). 85. Acresce que, à semelhança do que sucede quanto ao facto-índice previsto na alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, também a falta de elaboração, de submissão à devida fiscalização ou de depósito das contas só permitiria qualificar a insolvência como culposa se se evidenciasse a existência de nexo de causalidade entre a mesma e a criação ou agravamento da situação de insolvência, o que também não se verificou no caso dos autos. Sem prescindir e ad cautelam, - DA ERRADA CONDENAÇÃO DO RECORRENTE EM INDEMNIZAÇÃO 86. Nos termos da Lei, a sentença que qualifica a insolvência como culposa deve prever a condenação das pessoas afetadas a indemnizarem os credores até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos (cfr. art.º 189.º, n.º 2, al. e) do CIRE). 87. Os pretensos créditos da Massa Insolvente de I., S.A. não foram reconhecidos, por não existirem, no presente processo de insolvência da Sociedade Insolvente, conforme resulta do facto provado n.º 18 da sentença recorrida e ainda da lista definitiva de credores reconhecidos (cfr. requerimento do administrador de insolvência de 09/11/2020, constante do apenso C), o que significa que a Massa Insolvente de I., S.A. não assume a qualidade de credora nos presentes autos. 88. Logo, o Tribunal “a quo”, ao condenar os afetados pela qualificação da insolvência (entre os quais, o Recorrente) a indemnizarem a requerente Massa Insolvente de I., S.A. no montante equivalente ao montante global que a mencionada requerente não pôde ver reconhecido na insolvência de EUR 5.566.053,80, viola flagrantemente o disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, pelo que tal condenação deve ser revogada, o que se requer. 89. Subsidiariamente, ainda que este douto Tribunal assim não entendesse – o que apenas se admite por mero dever de patrocínio –, deveria o Tribunal “a quo” ter tido em conta os pretensos danos causados pelo Recorrente (nenhuns) e, assim, ter-se abstido nessa condenação (nenhum dano foi demonstrado, pelo que o Tribunal “a quo” condenou o Recorrente em indemnização num montante em muito superior ao dano -cfr. art.º 483.º, n.º 1, art.º 562.º e art.º 563.º, todos do CC). 90. A sentença objeto do presente recurso incorre, assim, num vício de inconstitucionalidade normativa na medida em que, face à existência de outras interpretações normativas menos lesivas dos direitos do Recorrente e mais consentâneas com uma interpretação conforme à Constituição, teria optado por aplicar a norma jurídica extraída da interpretação do art.º 189.º, n.º 2, alínea e) do CIRE no sentido de as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência poderem ser condenadas a indemnizarem os credores num montante superior ao dano por si causado. 91. É inconstitucional esta norma resultante da interpretação do art.º 189.º, n.º 2, alínea e) do CIRE, que teria sido feita pela sentença recorrida por violação, nomeadamente, do princípio constitucional da proporcionalidade decorrente do Estado de Direito Democrático em conjugação com os direitos fundamentais e das disposições conjugadas nos artigos 2.º, 18.º e 8.º, todos da Constituição, 92. Porquanto a regra decorrente do artigo 189.º, n.º 2, alínea e) do CIRE deveria ter sido interpretada e aplicada no sentido de as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência não poderem ser condenadas em indemnização de montante superior ao dano por si causado, conforme à correta interpretação constitucional. Em suma, 93. Ao qualificar a insolvência da Sociedade Insolvente como culposa e ao declarar afetados por tal qualificação o ora Recorrente e MB, o Tribunal “a quo” violou as disposições conjugadas do artigo 186.º, n.º 1, n.º 2, alíneas h) e i) e ainda n.º 3, alíneas a) e b) do CIRE, porquanto deveriam as normas jurídicas decorrentes de tais disposições ter sido interpretadas e aplicadas pelo Tribunal “a quo” no sentido de qualificar a insolvência como fortuita. 94. Caso assim não se entendesse – o que apenas se admite por mero dever de patrocínio –, ao condenar a Recorrente a indemnizar a requerente Massa Insolvente de I., S.A. no montante equivalente ao montante global que a mencionada requerente não pôde ver reconhecido na insolvência de EUR 5.566.053,80, o Tribunal “a quo” violou o artigo 189.º, n.º 2, alínea e) do CIRE e, subsidiariamente, sempre teria violado as disposições conjugadas do artigo 189.º, n.º 2, alínea e) do CIRE, do artigo 12.º, n.º 1 e n.º 2, do artigo 483.º, n.º 1, do artigo 562.º e do artigo 563.º, todos do CC, bem como o princípio constitucional da proporcionalidade decorrente do Estado de Direito Democrático em conjugação com os direitos fundamentais e das disposições conjugadas nos artigo 2.º, artigo 18.º e artigo 8.º, todos da Constituição, porquanto deveriam as normas jurídicas decorrentes de tais disposições ter sido interpretadas e aplicadas pelo Tribunal “a quo” no sentido de afastar a referida sanção. 95. Razão pela qual deverá a decisão, objeto do presente recurso, ser substituída por outra que qualifique a insolvência da Sociedade Insolvente como fortuita, 96. E, caso assim não se entenda, e se mantenha a qualificação da insolvência da Sociedade Insolvente como culposa, deverá então ser revogada a afetação do Recorrente por essa qualificação. 97. E caso assim também não se entenda, deverá ser revogada a condenação do Recorrente em indemnização da requerente Massa Insolvente de I., S.A. no montante equivalente ao montante global que a mencionada requerente não pôde ver reconhecido na insolvência, por ilegal ou, subsidiariamente, ser esta limitada aos danos. Nestes termos, e nos melhores de Direito, que V. Exa. doutamente suprirá, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida, sendo a mesma substituída por outra que qualifique a insolvência da Sociedade Insolvente como fortuita, com todas as legais consequências. Caso assim não se entenda, e se mantenha a qualificação da insolvência da Sociedade Insolvente como culposa, deverá então ser revogada a afetação do Recorrente por essa qualificação. E caso assim também não se entenda, deverá ser revogada a condenação do Recorrente em indemnização da requerente Massa Insolvente de I., S.A. no montante equivalente ao montante global que a mencionada requerente não pôde ver reconhecido na insolvência, por ilegal ou, subsidiariamente, ser esta limitada aos danos. Ao julgardes assim, Venerandos Juízes Desembargadores, estareis uma vez mais a fazer a tão COSTUMADA JUSTIÇA! Junta: ⎯ 4 (quatro) documentos; Requer-se a junção dos documentos nos termos do disposto no artigo 651.º, n.º 1 do CPC, ou seja, por a sua junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância e também por não ter sido a junção possível mais cedo visto que todo o processo em primeira instância decorreu à revelia do Recorrente (cfr. art.º 425.º do CPC). O M.P. apresentou contra-alegações nas quais formulou as seguintes conclusões: - O prazo fixado na parte final do n.º 1, do art.º 188.º, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas para prolação da decisão de abertura do incidente de qualificação da insolvência, é meramente ordenador, pelo que o seu incumprimento não implica a invalidade do acto ou da decisão, ou a nulidade do processo, sendo apenas susceptível de implicar responsabilidade disciplinar; - Ao dar como provados factos por recurso a elementos documentais juntos na acção de insolvência, mas que constavam do requerimento de abertura do incidente de qualificação da insolvência, não incorreu a douta sentença recorrida na violação do disposto no art.º 421.º, do CPC, por força do disposto nos art.ºs os 46.º e 571.º 2, , do mesmo diploma legal; - A Sentença recorrida não padece de qualquer erro no julgamento da matéria de facto, pelo que deverá manter-se inalterada a factualidade provada. -E apurada que foi a factualidade vertida nos factos provados, que aqui se dá por integralmente reproduzida, outra não poderia ser a Decisão proferida. - Termos em que se considera que a Sentença recorrida fez correcta aplicação da lei aos factos, pelo que com a sua manutenção se fará Justiça. Deve pois, negar-se provimento ao recurso. V.ª as Ex.ª as porém, usando de mais avisado e prudente critério, melhor decidirão como for de JUSTIÇA. Na mesma data em que apresentou as alegações recursivas (16/11/2023), o apelante veio requerer “a atualização do valor do presente incidente e, nessa sequência, a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos e com os fundamentos seguintes: I. DA ATUALIZAÇÃO DO VALOR DO INCIDENTE 1º. Nos termos da sentença que qualificou como culposa a insolvência da sociedade G., Lda., proferida em 10/10/2023, o Tribunal determinou que o valor do incidente corresponderia ao valor do processo de insolvência. 2º. Nos termos do artigo 15.º do CIRE: “o valor da causa é determinado sobre o valor do ativo do devedor indicado na petição, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real”. 3º. Ora, salvo erro, o valor da ação no processo de insolvência ainda não foi fixado, tendo apenas sido indicado no requerimento inicial de insolvência o valor de EUR 2.000,00. 4º. Contudo, no caso em apreço, decorre do auto de apreensão junto, pelo senhor Administrador de Insolvência, aos autos principais de insolvência, em 28/10/2020, que foi indicado um ativo da Sociedade Insolvente ascendente a EUR 661.115,00. 5º. Logo, o valor perspetivado pelo senhor Administrador de Insolvência para o ativo da Sociedade Insolvente (o qual poderia constituir base para a fixação do valor da ação) mostra-se significativamente superior ao valor de EUR 2.000,00 indicado no requerimento inicial. 6º. Requer-se, assim, a V. Exa. que dê provimento ao pedido de atualização do valor da ação de insolvência e, em consequência, também do valor do presente incidente. Em sequência, II. DISPENSA DE PAGAMENTO DO REMANESCENTE DA TAXA DE JUSTIÇA 7º. Resulta da Lei que a taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada em função do valor e complexidade da causa de acordo com o Regulamento das Custas Processuais, aplicando-se, na falta de disposição especial, os valores constantes da tabela i-A, que faz parte integrante do referido Regulamento (cfr. art.º 6, n.º 1 do RCP). 8º. A Lei também estabelece que, nas causas de valor superior a EUR 275.000,00 (como se perspetiva que venha a ser o caso dos autos), o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento (cfr. art.º 6, n.º 7 do RCP). 9º. Com a referida exceção, o legislador pretendeu garantir uma relação entre o valor da causa e a correspondente complexidade e conduta processual das partes. 10º. Ora, no caso do presente incidente, importa ter em conta que: ⎯ os articulados apresentados pelas partes foram essencialmente os básicos, sendo que um dos propostos afetados nem sequer apresentou oposição; ⎯ nenhum dos propostos afetados requereu qualquer diligência instrutória ou de produção de prova; ⎯ em matéria de diligências de produção de prova, não se verificou a análise de meios de prova complexos (por exemplo, não foi realizada qualquer perícia, etc.), os quais se limitaram à prova documental e testemunhal; ⎯ a realização da audiência final ocupou pouco mais de 1 hora; ⎯ não foram suscitados quaisquer incidentes dilatórios ou anómalos, nem questões prolixas ou não essenciais, tendentes a ou capazes de dificultar a regular prossecução dos autos; e ⎯ a conduta processual de todas as partes foi regular e sempre regida pelos princípios da colaboração, boa-fé e transparência para com o Tribunal. 11º. No caso de o valor da ação de insolvência e, por conseguinte, também de o presente incidente, vir a ser atualizado (o que se espera), designadamente para o valor do ativo da Sociedade Insolvente indicado no auto de apreensão (EUR 661.115,00), a taxa de justiça tabelar assumirá um valor extraordinariamente elevado. 12º. Por isso, tendo em conta a configuração jurídica dos autos, apenas a dispensa ao ora Requerido de pagamento do remanescente da taxa de justiça que se vier a apurar pode assegurar um mínimo de correspondência entre o serviço do Tribunal e o valor cobrado. 13º. Nos termos do artigo 6.º, n.º 7 do RCP, nas causas de valor superior a EUR 275.000,00, o juiz, de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, pode dispensar o pagamento, o que se requer. 14º. A não dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça redundaria, no caso dos autos, na aplicação de uma taxa de justiça ilegal e inconstitucional, por se revelar manifestamente desproporcional e proibitiva do acesso ao Direito e aos tribunais. 15º. A dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça consubstancia, no caso dos autos, uma decorrência natural dos princípios constitucionalmente consagrados da proporcionalidade e do acesso ao Direito e aos tribunais. 16º. Além da concretização dos princípios constitucionais da proporcionalidade e do acesso ao Direito e à justiça, a dispensa deve ser admitida em nome do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, 17º. A tributação dos autos, por intermédio da aplicação tabelar do Regulamento das Custas Processuais, implicaria uma oneração excessiva e desajustada do ora Requerido. 18º. Em face de tudo quanto antecede, requer-se a V. Exa. que o Requerido seja dispensado do pagamento do valor remanescente da taxa de justiça correspondente ao valor da ação excedente a EUR 275.000,00, com efeitos quer no âmbito dos autos de primeira instância, quer no âmbito dos autos de recurso. Nestes termos, requer-se a V. Exa. que: ⎯ Proceda à atualização do valor da ação de insolvência e, em consequência, do valor do presente incidente; e, nessa sequência, ⎯ Revelando-se o novo valor da ação superior a EUR 275.000,00, dispense o ora Requerido do pagamento do valor remanescente da taxa de justiça correspondente ao valor da ação excedente a EUR 275.000,00, com efeitos tanto no âmbito dos autos de primeira instância, como no âmbito dos autos de recurso”. Por despacho de 4/12/2023, decidiu-se: Req. de 16.11.2023: No requerimento antecedente, veio o Requerido solicitar que o Tribunal: ⎯ Proceda à atualização do valor da ação de insolvência e, em consequência, do valor do presente incidente; e, nessa sequência, ⎯ Revelando-se o novo valor da ação superior a €275000,00, dispense o ora Requerido do pagamento do valor remanescente da taxa de justiça correspondente ao valor da ação excedente a € 275 000,00, com efeitos tanto no âmbito dos autos de 1.ª Instância, como no âmbito dos autos de recurso. Desde, importa reter que a 1.ª Instância não pode definir o que quer que seja, da esfera da competência material da 2.ª Instância, mormente quanto à questão em causa. Com efeito, conforme concluiu assertivamente Salvador da Costa no blog do IPPC (outubro de 2023): “1.ª – O remanescente da taxa de justiça é o acréscimo dessa taxa que decorre do facto de o valor da causa em geral exceder o montante de € 275 000, em função do qual foi calculada a inicialmente paga pelas partes. 2.ª – A apreciação da questão da dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça relativo às ações é da competência do juiz da 1.ª instância. 3.ª – A apreciação da questão da dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça relativo ao recurso de apelação inscreve-se na competência do coletivo de juízes do Tribunal da Relação. 4.ª – A apreciação da questão da dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça atinente ao recurso de revista compete ao Supremo Tribunal de Justiça. 5.ª – A lei não prevê o diferimento da apreciação da questão de dispensa de pagamento do remanescente na taxa de justiça nas ações, para o Tribunal da Relação, ou nos recursos de apelação, para o Supremo Tribunal de Justiça, nos recursos de revista. 6.ª – O conhecimento pelo Supremo Tribunal de Justiça do mérito do recurso de revista é insuscetível de lhe atribuir competência para decidir os pedidos de dispensa ou de redução do remanescente da taxa de justiça relativos aos recursos de apelação ou sentenças do tribunal da 1.ª instância. 7.ª – Tudo Isso é logicamente conforme com a autonomia das ações e dos recursos para efeitos de taxa de justiça, e com a conexão entre o decidido nessas espécies processuais e a questão da dispensa ou não do remanescente daquela taxa”. Por aqui se vê que o Tribunal, na 1.ª Instância, carece de competência material para decidir da questão suscitada, no tocante à dispensa (ou não), ou redução, do remanescente da taxa de justiça em contexto recursivo. No que tange à 1.ª Instância, a verdade é que, quando a sentença foi proferida no âmbito do presente processo apendicular ao processo de insolvência (e incidental), em 10 de outubro de 2023, o valor da insolvência se cifrava em € 2 000,00 (dois mil euros), ou seja, o valor que foi atribuído na petição inicial de insolvência pela Requerente da mesma. É esse, por conseguinte, o valor a considerar e a relevar em concreto (e também em definitivo) para o presente incidente qualificativo da insolvência, à luz do preceituado no artigo 304.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (aplicável por remissão do artigo 17.º, n.º 1, do CIRE) – como, de resto, dimana da parte final da sentença proferida neste apenso E. Ademais, ainda não existem elementos firmes para a fixação do valor no processo de insolvência, pelo que o valor do presente incidente teria sempre de se cingir ao momento da prolação daquela sentença, por sua vez, por reporte à data da interposição do requerimento inicial do Ministério Público – onde, de igual sorte, se alude ao valor de € 2 000,00 (logo na primeira página), por força do disposto no artigo 299.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Destarte, e sem a necessidade de considerandos acrescidos, indefere-se o requerido, por ausência de fundamento legal.” Inconformado, o afectado LP interpôs recurso dessa decisão, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões: 1. O despacho recorrido, que indeferiu o pedido do Recorrente para se proceder à atualização / fixação do valor da ação de insolvência e, em consequência, do valor do presente incidente, consubstancia erro sobre os factos e, ainda, uma errada interpretação e aplicação da Lei e da Constituição. 2. O despacho recorrido, por integrar uma decisão respeitante quer ao valor da ação principal de insolvência, quer ao valor do presente incidente, mostra-se passível de recurso (independentemente do valor da causa e da sucumbência) porque o valor de ambas as referidas causas excede a alçada do tribunal de que se recorre (cfr. artigo 629.º. n.º 2, al. b), do CPC). - DO ERRO SOBRE OS FACTOS 3. No âmbito da sentença de 10/10/2023 que, entre outros, qualificou como culposa a insolvência da sociedade G., Lda. e determinou a afetação do Recorrente por tal qualificação, o Tribunal “a quo” decidiu que o valor do presente incidente de qualificação da insolvência corresponderia ao do processo de insolvência por via da aplicação do disposto no artigo 304.º, n.º 1 do CPC ex vi do artigo 17.º, n.º 1 do CIRE. 4. Antes do trânsito em julgado da referida sentença, o Recorrente, por requerimento de 16/11/2023, solicitou que o Tribunal “a quo” procedesse à atualização / fixação do valor da ação principal de insolvência e, em consequência, do valor do presente incidente, o que foi indeferido com fundamento, entre outros, no facto de que, quando a sentença de 10/10/2023 fora proferida no presente incidente, o valor da insolvência já se cifraria em EUR 2.000,00 (cfr. despacho de 04/12/2023, constante dos autos). 5. Acontece que, contrariamente ao alegado pelo Tribunal “a quo”, quando a sentença de 10/10/2023 foi proferida no presente incidente, o valor da insolvência não se cifrava em EUR 2.000,00. 6. É verdade que, foi indicado na última página no requerimento inicial de insolvência, pela requerente da insolvência, o valor de EUR 2.000,00 (cfr. requerimento inicial de insolvência de 28/05/2020, constante dos autos principais), mas, apesar da aludida indicação, o valor da ação principal de insolvência nunca chegou a ser fixado (nem o foi ainda, até à presente data), assim como, em consequência, também não foi fixado o valor do presente incidente de qualificação de insolvência (cfr. autos principais da insolvência). 7. O valor da causa, embora sugerido pela parte, deve ser fixado pelo juiz (cfr. art.º 306.º, n.º 1 do CPC). 8. A fixação/falta de fixação do valor da ação principal de insolvência (e, por conseguinte, do valor do presente incidente) consiste, especificamente, num dos concretos pontos de facto que o Recorrente considera incorretamente julgados (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). 9. Os elementos constantes dos autos principais e do presente incidente surgem, nesta sede, como os concretos meios probatórios que impunham uma decisão, sobre o referido ponto de facto impugnado, diversa da recorrida (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). 10. Pelo que, nesta matéria, se impunha ter dado como facto não provado que o Tribunal “a quo” tivesse fixado algum valor à ação principal de insolvência e, em contrapartida, como facto provado que o Tribunal “a quo” não fixou em momento algum (e até à presente data) nenhum valor à ação principal de insolvência. 11. A alteração da prova requerida assume decisiva relevância ao conduzir a uma decisão diversa no âmbito da fixação do valor da ação principal de insolvência e, em consequência, do valor do presente incidente, pois, concluindo-se que ainda não fora fixado o valor da ação principal de insolvência, deveria o Tribunal “a quo”, em cumprimento do disposto no artigo 306.º, n.º 1 do CPC ex vi do artigo 17.º, n.º 1 do CIRE, ter fixado o valor da causa (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). - DO ERRO DE JULGAMENTO Da errada interpretação e aplicação da Lei 12. Nos termos do artigo 15.º do CIRE: “o valor da causa é determinado sobre o valor do ativo do devedor indicado na petição, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real” (cfr. art.º 15.º do CIRE e arts.º 299.º, n.º 1 e 4 do CPC). 13. No entanto, o Tribunal “a quo” considerou, entre outros, que ainda não existiriam elementos firmes para a fixação do valor no processo de insolvência, mas sem razão, uma vez que decorre dos dois autos de apreensão juntos, pelo senhor Administrador de Insolvência, aos autos principais, em 28/10/2020, que foi indicado um ativo da Sociedade Insolvente ascendente a EUR 1.071.912,15 (composto por bens imóveis apreendidos no valor total de EUR 410.797,15 - cfr. auto de apreensão de 25/09/2020, junto como anexo do relatório do administrador – e por bens móveis apreendidos no valor total de EUR 661.115,00 - cfr. auto de apreensão de 15/10/2020, junto como anexo do relatório do administrador). 14. Logo, o valor perspetivado pelo senhor Administrador de Insolvência para o ativo da Sociedade Insolvente – EUR 1.071.912,15 – pode constituir a base para a fixação do valor da ação e mostra-se significativamente superior ao valor de EUR 2.000,00 indicado no requerimento inicial de insolvência. 15. Aliás, a própria requerente da insolvência que sugere, na última página da sua petição inicial, na rúbrica “valor”, o valor de apenas EUR 2.000,00, acaba por fundamentar, ao longo do corpo da petição inicial, um valor do ativo da devedora insolvente em muito superior ao valor de EUR 2.000,00, uma vez que faz referência, entre outros, a quotas, no valor total de EUR 5.000,00 (cfr. artigos 16.º e 18.º da petição e cópia da certidão comercial junta como documento n.º 1 da petição), à receção de prestações acessórias em espécie, a título gratuito e definitivo, de bens (designadamente, imóveis) no valor de EUR 615.070,00 (cfr. artigo 17.º da petição e escrituras públicas juntas como documentos n.º 4 e 5 da petição); e à existência de bens no valor total de EUR 1.176.070,00 (cfr. no artigo 26.º da petição inicial). 16. A sugestão do valor de EUR 2.000,00 feita “en passant” pela requerente da insolvência na última página da sua petição inicial e na qual o Tribunal “a quo” se apoia para dizer que o valor do incidente de qualificação de insolvência se cifrava em EUR 2.000,00 na altura da prolação da sentença de 10/10/2023, nem sequer tem respaldo no teor da petição inicial da requerente da insolvência. 17. Além disso, não tem razão o Tribunal “a quo” quando refere que o valor do presente incidente se teria de cingir ao momento da prolação da referida sentença de 10/10/2023 por reporte à data da interposição do requerimento inicial do Ministério Público, no qual se alude ao valor de EUR 2.000,00. 18. Desde logo, porque, nos autos principais da insolvência, ainda não tinha sido e nem foi ainda, até à presente data, fixado nenhum valor à ação pelo juiz (cfr. autos principais da insolvência), 19. E, depois, o valor da causa, embora sugerido pela parte, deve ser fixado pelo juiz (cfr. art.º 306.º, n.º 1 do CPC), o que significa que, ainda que a requerente da insolvência tenha indicado no seu requerimento inicial de insolvência o valor de EUR 2.000,00 para a ação principal da insolvência (cfr. requerimento inicial de insolvência de 28/05/2020, constante dos autos principais) e ainda que o Ministério Público tenha indicado no seu requerimento inicial de qualificação de insolvência o mesmo valor de EUR 2.000,00 para o presente incidente (cfr. requerimento de 12/11/2020, constante dos autos principais), caberia sempre ao Tribunal “a quo” vir, no fim, fixar em concreto o valor da ação, o que ainda não fez. 20. Não obstante, importa notar que, mesmo que o Tribunal “a quo” tivesse fixado o valor do ativo / valor da ação principal de insolvência (o qual, como acima demonstrado, nunca foi fixado), nada impediria que tal valor fosse corrigido no momento da interposição do recurso da sentença de 10/10/2023. 21. No mesmo sentido, decidiu, por exemplo, o Juízo de Comércio de Sintra (Juiz 1) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, no âmbito do processo n.º 5359/20.0T8SNT (processo especial para acordo de pagamento), em que a apelante apresentou simultaneamente com as alegações de recurso da sentença de homologação do acordo de pagamento um requerimento de atualização do valor da ação, alegando que, apesar de o valor ter sido fixado em EUR 2.000,00 por sugestão no requerimento inicial dos devedores, o valor da ação aparentava ser superior de acordo com o artigo 15.º do CIRE; e, apesar da oposição dos apelados, o tribunal em questão alterou o valor da ação e admitiu o recurso de apelação (cfr. despacho acima junto como Doc. n.º 1). Em suma, 22. Ao indeferir a atualização / fixação do valor do valor da ação de insolvência (com repercussão no valor do presente incidente), o Tribunal “a quo” violou as disposições conjugadas dos artigos 15.º do CIRE, 299.º, n.º 1 e 4, 304.º, n.º 1 e 306.º, n.º 1 do CPC, 23. Porquanto deveriam as normas jurídicas decorrentes de tais disposições ter sido interpretadas e aplicadas pelo Tribunal “a quo” no sentido de atualizar/fixar o valor da causa principal indicado pela requerente da insolvência em valor muito superior ao valor de EUR 2.000,00, tendo, designadamente, por referência o valor do ativo indicado pelo senhor Administrador de Insolvência nos dois autos de apreensão juntos como anexo ao relatório do administrador de 28/10/2020 (EUR 1.071.912,15) – o qual ultrapassa grandemente tanto o valor da alçada do tribunal de Primeira Instância (EUR 5.000,00), como o valor da alçada do Tribunal da Relação (EUR 30.000,00). Da errada interpretação e aplicação da Constituição 24. Consta do despacho recorrido que o Tribunal “a quo” elegeu como critério para determinar o valor do presente incidente de qualificação da insolvência o valor do ativo do devedor insolvente (cfr. art.º 15.º do CIRE ex vi do art.º 304.º, n.º 1 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). 25. A Lei estabelece a regra geral de que o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre (cfr. art.º 629.º, n.º 1 do CPC). 26. Logo, o Tribunal “a quo”, ao limitar o valor do presente incidente de qualificação de insolvência a apenas EUR 2.000,00, quer mediante a atribuição do valor da causa principal ao presente incidente, quer mediante a recusa da atualização do valor da causa principal indicado pela requerente da insolvência (o qual, como acima se explicou, nunca foi fixado e revela-se muito superior ao valor de EUR 2.000,00), quer consignando que o valor do presente incidente se deve reportar à data da prolação da sentença de 10/10/2023, incorre num vício de inconstitucionalidade normativa, por violação do direito ao recurso de decisões judiciais que afetam diretamente direitos, liberdades e garantias, decorrente do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição. 27. A Constituição reconhece, no caso do incidente de qualificação da insolvência, o direito a um duplo grau de jurisdição, independentemente quer do valor do incidente, quer dos critérios eleitos pelo legislador ou pelo decisor para a sua determinação. 28. A sentença de 10/10/2023 que, entre outros, qualificou como culposa a insolvência da sociedade G., Lda. e determinou a afetação do Recorrente por tal qualificação comporta efeitos substantivos, que afetam diretamente direitos, liberdades e garantias, ou direitos de natureza análoga, que gozam de um especial regime de proteção constitucional. 29. Em matéria de efeitos substantivos, o Tribunal “a quo” declarou a inibição para o exercício do comércio de LP (ora Recorrente) e de MB, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 4 (quatro) anos a cada um deles, período a contar do trânsito em julgado da sentença (cfr. art.º 189.º, n.º 2, al. c) do CIRE); determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente correspondente, eventualmente detidos por LP (ora Recorrente) e por MB (cfr. art.º 189.º, n.º 2, al. d) do CIRE); e, ainda, condenou LP (ora Recorrente) e MB a indemnizarem a requerente Massa Insolvente de I., S.A., no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre ambos os afetados (cfr. art.º 189.º, n.º 2, al. e) do CIRE) (cfr. sentença de 10/10/2023, constante dos autos) 30. O objeto do incidente de qualificação da insolvência não tem valor pecuniário, pois o incidente visa, essencialmente, mediante um apuramento de responsabilidades (com recurso a mecanismos de presunção legal de culpa), a realização de um interesse não patrimonial consistente na punição das pessoas que dolosamente criaram ou agravaram a situação de insolvência, estando, portanto, em causa interesses imateriais (cfr. art.º 303.°, n.° 1 do CPC). 31. Enquanto a decisão declaratória de insolvência assenta numa ponderação de valores privados de ordem patrimonial, a sentença proferida no incidente de qualificação da insolvência assume uma incidência essencialmente pessoal, ao comportar sanções civis de natureza pessoal em resposta a valores de ordem publica. 32. Estes efeitos substantivos da sentença de qualificação da insolvência assumem uma repercussão substantiva na esfera jurídica pessoal dos afetados pela qualificação da insolvência, interferindo diretamente em alguns dos seus direitos, liberdades e garantias ou direitos de natureza análoga, os quais gozam de um regime especial de proteção (cfr. art.º 18.º da Constituição), oponível a todos, particulares e entidades públicas (incluindo tribunais). 33. A inibição para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa afeta a liberdade de escolha da profissão, na vertente da liberdade de exercício (cfr. art.º 47.º, n.º 1 da Constituição), a liberdade de associação (cfr. art.º 46º, n.º 1 da Constituição) e a liberdade de atividade ou iniciativa económica (cfr. art.º 61.º, n.º 1 da Constituição), que integram o núcleo duro dos direitos, liberdades e garantias (ou direitos de natureza análoga). 34. Neste domínio de afetação de direitos, liberdades e garantias (ou direitos de natureza análoga), o Tribunal Constitucional tem entendido que o legislador não tem a ampla margem de discricionariedade que lhe costuma ser genericamente reconhecida na conformação do regime dos recursos, impondo a Constituição, no caso específico do incidente de qualificação da insolvência como culposa, o reconhecimento do direito a um duplo grau de jurisdição, independentemente do valor do incidente ou dos critérios eleitos pelo legislador para a sua determinação, na sua relação com a alçada dos tribunais. 35. O Recorrente, enquanto pessoa afetada pela sentença de qualificação da insolvência de forma direta na sua esfera jurídico-pessoal e no núcleo essencial dos seus direitos de personalidade, goza, constitucionalmente, do direito de ver reapreciada, pelo menos num grau de recurso, a validade e a bondade da sentença (cfr. neste sentido, excerto do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 340/11 acima transcrito). 36. No sentido ora propugnado, o Tribunal Constitucional decidiu, por acórdão n.º 280/2015, proferido no âmbito do processo n.º 1025/2014 (disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/): “julgar inconstitucional, por violação do direito ao recurso de decisões judiciais que diretamente afetam direitos, liberdades e garantias, decorrente do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, a norma extraída das disposições conjugadas do artigo 15.º do CIRE, e artigos 304.º, primeira parte, e 629.º, n.º 1, do CPC, interpretadas no sentido de que não cabe recurso de decisões proferidas no incidente de qualificação da insolvência cujo valor, determinado pelo ativo do devedor, seja inferior ao da alçada do tribunal de primeira instância” (sublinhado e negrito nossos) (cfr. neste sentido, excerto do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 280/2015 acima transcrito). 37. Além da violação do direito constitucional ao recurso, também se verifica a violação do princípio da igualdade, nos termos do qual “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei (cfr. art.º 13.º da Constituição), uma vez que: nos casos em que o ativo do devedor insolvente fosse superior ao valor da alçada do tribunal de Primeira Instância, as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa teriam à sua disposição o direito ao recurso; enquanto nos casos em que o ativo do devedor insolvente fosse inferior ao valor da alçada do tribunal de Primeira Instância, as mesmas pessoas afetadas (e mesmo que tivessem um passivo semelhante) ficariam impedidas de lançar mão do mesmo direito ao recurso. Em suma, 38. Impunha-se que o Tribunal “a quo” tivesse atualizado/fixado o valor da causa principal indicado pela requerente da insolvência (o qual nunca chegou a ser fixado) em valor muito superior ao valor de EUR 2.000,00, tendo, designadamente, por referência o valor do ativo indicado pelo senhor Administrador de Insolvência nos dois autos de apreensão juntos como anexo ao relatório do administrador de 28/10/2020: EUR 1.071.912,15. 39. Caso assim não se entendesse, impunha-se, em alternativa, que o Tribunal “a quo” atribuísse, então, ao incidente de qualificação da insolvência o valor equivalente à alçada da Relação e mais EUR 0,01 (EUR 30.000,01) (cfr. art. 303.°, n.°1, do CPC ex vi do art. 17.° do CIRE). 40. Pois, à luz da jurisprudência constitucional, não merece qualquer acolhimento uma interpretação extraída das disposições conjugadas dos artigos 15.º do CIRE, 304.º, n.º 1 e 629.º, n.º 1 do CPC que conduza, mediante o recurso ao critério do ativo do devedor, a um valor do incidente de qualificação da insolvência impeditivo do recurso das decisões nele proferidas, nomeadamente nos casos em que se mostre inferior ao valor da alçada do tribunal de Primeira Instância. 41. Pelo que, ao indeferir a atualização / fixação do valor do valor da ação de insolvência (com repercussão no valor do presente incidente), o Tribunal “a quo” violou as disposições conjugadas dos artigos 15.º do CIRE, 304.º, n.º 1 e 629.º, n.º 1 do CPC e 20, n.º 1, 18.º, 47.º, n.º 1, 46.º, n.º 1, 61.º, n.º 1 e 13.º, n.º 1 da Constituição, uma vez que tais normas deveriam ter sido interpretadas e aplicadas pelo Tribunal “a quo” no sentido acima mencionado. 42. Razão pela qual deverá a decisão, objeto do presente recurso, ser substituída por outra que não impeça o acesso do Recorrente ao recurso, em pelo menos num grau de jurisdição, da sentença de 10/10/2023 que, entre outros, qualificou como culposa a insolvência da sociedade G., Lda. e determinou a afetação do Recorrente por tal qualificação, em conformidade com as normas acima mencionadas. o Da dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça 43. A Lei estabelece que, nas causas de valor superior a EUR 275.000,00 (como se perspetiva que venha a ser o caso dos autos), o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento (cfr. art.º 6, n.º 7 do RCP). 44. Ora, no caso do presente incidente, importa ter em conta que: - os articulados apresentados pelas partes foram essencialmente os básicos, sendo que um dos propostos afetados nem sequer apresentou oposição; - nenhum dos propostos afetados requereu qualquer diligência instrutória ou de produção de prova; - em matéria de diligências de produção de prova, não se verificou a análise de meios de prova complexos (por exemplo, não foi realizada qualquer perícia, etc.), os quais se limitaram à prova documental e testemunhal; - a realização da audiência final ocupou pouco mais de 1 hora; - não foram suscitados quaisquer incidentes dilatórios ou anómalos, nem questões prolixas ou não essenciais, tendentes a ou capazes de dificultar a regular prossecução dos autos; e - a conduta processual de todas as partes foi regular e sempre regida pelos princípios da colaboração, boa-fé e transparência para com o Tribunal. 45. No caso de o valor da ação de insolvência e, por conseguinte, também de o presente incidente, vir a ser atualizado (o que se espera), designadamente para o valor do ativo da Sociedade Insolvente indicado no auto de apreensão, apenas a dispensa ao ora Recorrente de pagamento do remanescente da taxa de justiça que se vier a apurar pode assegurar um mínimo de correspondência entre o serviço do Tribunal e o valor cobrado. 46. Em face de tudo quanto antecede, mostrando-se o presente recurso de apelação procedente, caso o novo valor da ação seja atualizado / fixado em valor superior a EUR 275.000,00, requer-se a V. Exa. que o Recorrente seja dispensado do pagamento do valor remanescente da taxa de justiça correspondente ao valor da ação excedente a EUR 275.000,00, com efeitos quer no âmbito dos autos de primeira instância, quer no âmbito dos autos de recurso. Nestes termos e nos mais de direito, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a decisão recorrida, sendo a mesma substituída por outra que se traduza na fixação de um valor à causa superior ao valor da alçada do Tribunal da Relação ou, pelo menos, do Tribunal de Primeira Instância. E, caso o novo valor da ação seja fixado em valor superior a EUR 275.000,00, determine a dispensa do Recorrente do pagamento do valor remanescente da taxa de justiça correspondente ao valor da ação excedente a EUR 275.000,00, com efeitos tanto no âmbito dos autos de primeira instância, como no âmbito de todos os autos de recurso, Com todas as consequências legais. Não foram apresentadas contra-alegações. Por despacho de 9/01/2024, decidiu-se: Devidamente apreciada a sentença final proferida nos autos, entendemos que não padece da nulidade invocada pelo Requerido nas suas alegações de recurso (cfr. artigo 615.º, n.º 1, al. d), segunda parte, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 17.º, n.º 1, do CIRE), não ocorrendo, a nosso ver, qualquer excesso de pronúncia em relação à mesma. Com efeito, sustentou o Requerido ser perentório o prazo de que dispõe o Juiz titular do processo para decidir da abertura do incidente de qualificação da insolvência e que, em consequência, quando, no caso dos autos, foi proferido o despacho liminar se encontrava já precludida essa possibilidade, e prejudicada a apreciação do mérito da qualificação da insolvência, sendo por isso, nula, por excesso de pronúncia a sentença recorrida, posto que o Juiz a quo deveria, oficiosamente, declarar/julgar verificada a exceção perentória extintiva da caducidade da faculdade de abertura do incidente qualificativo em causa (cfr. artigo 576.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil). Contudo, é nosso entendimento que só primeiro prazo (o de 15 dias) previsto no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE, tem natureza perentória, assim mesmo o prevendo a lei, mas não o segundo prazo (o de 10 dias), este direcionado ao Juiz quando declara aberto o incidente de qualificação da insolvência. Ou seja, o referido prazo consignado na parte final do n.º 1 do artigo 188.º do CIRE, claramente, não possui natureza preclusiva, mas tem, isso sim, índole meramente ordenadora, pelo que o seu eventual excedimento não extingue a possibilidade de praticar o ato, nem tal prática leva à nulidade do processo. Visa o dito prazo ordenador somente regular a tramitação processual, organizá-la; nem faria qualquer sentido considerar perentório esse segundo prazo – na certeza de que o citado artigo 188.º não o rotula como perentório (ao invés do primeiro prazo, onde se utiliza a explicitação “perentório”). Afigura-se-nos desapropriada a suscitação em presença, por conseguinte. Nessa medida, inexistindo razões que levem a crer pela existência de nulidade, mantemos a sentença nos seus precisos termos (cfr. artigos 615.º, n.º 4, e 641.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil). (…) Por legal, tempestivo, o Recorrente ter legitimidade e a sentença ser recorrível, o Tribunal admite o recurso interposto para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o qual é de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cfr. artigo 627.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 17.º, n.º 1, do CIRE, e artigo 14.º, n.º 5 e n.º 6, al. b), do CIRE). Alegações de 27.12.2023: O Requerido informará os autos, no prazo de cinco dias, se mantém interesse no recurso incidente sobre o despacho de 4 de dezembro de 2023, tendo em conta a admissão supra daquele primeiro recurso. Notifique. Após veio o recorrente dizer que “mantém interesse no recurso incidente sobre o despacho de 04 de dezembro de 2023 até que haja uma decisão transitada em julgado do Exmo. senhor Desembargador Relator de admissão do primeiro recurso incidente sobre a sentença de 10 de outubro de 2023.” De seguida foi admitido em 1ª instância o recurso da decisão prolatada dia 4/12/2023. Colhidos os vistos, cumpre decidir. * II. As questões a decidir resumem-se a saber: Quanto ao recurso do despacho proferido dia 4/12//2023: - se o Tribunal “a quo” não fixou o valor à ação principal de insolvência; - se é caso de revogar a decisão recorrida, fixando-se um valor à causa superior ao valor da alçada do Tribunal da Relação ou, pelo menos, do Tribunal de Primeira Instância; - se, caso o novo valor da ação seja fixado em valor superior a €275.000,00, se justifica dispensar o Recorrente do pagamento do valor remanescente da taxa de justiça. Quanto ao recurso da sentença: - se são admissíveis os documentos juntos com as alegações; - se a sentença enferma de nulidade; - se caducou o direito à abertura do incidente de qualificação da insolvência; - se é caso de alterar a decisão sobre a matéria de facto; - se a insolvência deve ser qualificada como fortuita, por não se encontrarem preenchidas as alíneas h) e i) do n.º 2 e as als. a) e b), do n.º 3, do art. 186º do CIRE; - se, em caso de qualificação da insolvência como culposa, a condenação dos afectados em indemnização se deve restringir ao limite do dano; - se é caso de revogar a sentença recorrida. * III. São os seguintes os factos considerados provados em 1ª instância: 1. Em 28 de maio de 2020, a Massa Insolvente de I., S.A., veio requerer a declaração de insolvência da sociedade G., Lda., pessoa coletiva número …, com sede social na …. Lisboa; 2. A aludida sociedade comercial, que, validamente citada, não deduziu qualquer intervenção nos respetivos autos principais (autuados a 29 de maio de 2020), foi declarada insolvente por sentença datada de 28 de agosto de 2020, transitada em julgado no dia 17 de setembro de 2020; 3. A sociedade tinha como objeto social a produção, engarrafamento e comércio de bebidas e, nomeadamente, águas de nascente ou minerais, máquinas e matérias-primas inerentes à atividade; importação e exportação; gestão de ativos industriais; 4. O seu capital social era de € 5 000,00; 5. Constava a ora Requerida MB como sua sócia única e gerente, obrigando-se a sociedade com a intervenção de um gerente; 6. Resultou provado nos autos principais de insolvência (por força do disposto no artigo 30.º, n.º 5, do CIRE), além do mais, que a aí Requerente (massa insolvente) é titular de um crédito sobre a sociedade Requerida no valor de € 1 176 070,00, devido pela entrega gratuita dos seus dois imóveis (aí melhor identificados); e que emitiu diversas faturas à Requerida durante os anos de 2017 e 2018, cuja soma total se cifra em € 4 389 983,80; 7. Na sentença declaratória da insolvência foram considerados provados, entre outros, os factos constantes dos artigos 16.º a 25.º da petição inicial, nomeadamente se afirmando que a gestão da Insolvente era assegurada pelo seu administrador de facto, LP, sendo “(…) quem tomou as decisões necessárias ao funcionamento da sociedade, quem dava ordens aos trabalhadores, quem contratava fornecedores e clientes e quem geria e definia toda a atividade e estratégia da empresa” (cfr. artigo 21.º da dita petição inicial); 8. A Requerida MB é a avó materna dos filhos do Requerido LP; 9. Era este último quem tomava as decisões necessárias ao funcionamento da sociedade, ora Insolvente, quem dava ordens aos trabalhadores, quem contratava os fornecedores e clientes e quem geria e definia toda a atividade e estratégia da empresa; 10. Em 8 de setembro de 2020, o Administrador da Insolvência dirigiu à indicada sócia e gerente da Insolvente uma carta a solicitar as informações a que alude o artigo 24.º do CIRE, a qual foi entregue em 9 de setembro de 2020 (cfr. documentos n.ºs 1 e 2) – facto alterado infra; 11. Na mesma data, também remeteu uma carta para a sede social da mesma sociedade a solicitar iguais informações, que veio devolvida ao remetente com a indicação de “Mudou-se” (cfr. documentos n.ºs 3 e 4); 12. Por e-mail datado de 22 de setembro de 2020, solicitou a CP, técnico oficial de contas (TOC) da sociedade, ora Insolvente, diversas informações, nomeadamente: relação de bens; contas anuais dos três últimos exercícios; mapa de pessoal; conta corrente das dívidas dos clientes (cfr. documento n.º 5): 13. E renovou essa solicitação por e-mail datado de 1 de outubro de 2020 (cfr. documento n.º 6); 14. Daquelas diligências resultou que a sócia e gerente, apesar de ter recebido a carta, nada respondeu – facto alterado infra; 15. Por e-mail de 2 de outubro de 2020, CP confirmou ser o contabilista certificado da aludida sociedade e disponibilizou o mapa de depreciações e amortizações de 2018, informação empresarial simplificada (IES) relativa a 2017 e 2018, bem como declarações modelo 22 de IRC relativas a 2017 e 2018 (cfr. documento n.º 7); 16. No mesmo e-mail, o mencionado contabilista certificado informou, ainda, nos termos seguintes: i) A relação profissional que mantinha com a sociedade Insolvente era em regime de prestação de serviços; ii) A contabilidade era executada nas instalações da empresa e só numa fase final foi efetuada no seu escritório; iii) O servidor com os dados está/estava na empresa e não no seu escritório; iv) Inclusive quando passou a tratar da contabilidade no seu escritório, a mesma era efetuada por acesso remoto ao servidor; v) Já há bastante tempo que não conseguia aceder ao servidor; vi) Naquela data e que tenha conhecimento, não existia pessoal ao serviço, tendo processado vencimentos, pela última vez, em agosto de 2019; vii) Não encerrou as contas do exercício de 2019 por não ter acesso ao servidor, nem ter em sua posse os documentos necessários a tal procedimento; 17. Sobre o aspeto particular do servidor, na visita que efetuou às instalações que a ora Insolvente possui no Loteamento Industrial da Lapa, na rua …., A., trabalhador da sociedade Insolvente e depositário da chave das instalações, havia comunicado que o dito servidor já ali não se encontrava, tendo sido dali retirado pelo Requerido LP, ou a seu mando; 18. A Massa Insolvente de I., S.A., reclamou créditos na insolvência no montante global de € 5 566 053,80 (= € 1 176 070,00 + € 4 389 983,80), quantia que não foi reconhecida por não terem sido disponibilizados ao Administrador da Insolvência os documentos comprovativos do crédito reclamado; 19. Do valor total reclamado, € 4 389 983,80 respeitavam a faturas emitidas por aquela massa insolvente à G., Lda., entre 31 de março de 2017 e 31 de outubro de 2018, conforme mapa-resumo que acompanhou a reclamação de créditos da massa insolvente – do qual se retira que, em 2017, aquela empresa teria faturado à ora Insolvente o montante de € 3 063 167,11 e, em 2018, o montante de € 1 326 816,69 (cfr. documento n.º 8); 20. Tais montantes deveriam estar refletidos na rúbrica “Fornecedores” ou, no limite, na rúbrica “Outras contas a pagar”, das IES de 2017 e de 2018 da sociedade ora Insolvente, o que não ocorre na realidade: - Na IES de 2017, a rúbrica “Fornecedores” acumula o montante de € 348 602,75, e “Outras contas a pagar”, o montante de € 115 513,95 (cfr. documento n.º 9); - Na IES de 2018, a rúbrica “Fornecedores” acumula o montante de € 196 636,18, e “Outras contas a pagar”, o montante de € 88 999,11 (cfr. documento n.º 10) – facto alterado infra; 21. Conforme consta dos documentos juntos com a petição inicial da ação comum que constitui o apenso B, os trabalhadores/credores A. (Proc. n.º 178/20.7T8GRD), E. (Proc. n.º 177/20.9T8GRD), L. (Proc. n.º 219/20.8T8GRD) e J. (Proc. n.º 180/20.9T8GRD) foram cedidos pela I., S.A., à ora Insolvente a 1 de abril de 2019 e despedidos em 9 de setembro de 2019; também o trabalhador/credor C. (Proc. n.º 188/20.4T8GRD) foi despedido no dia 9 de setembro de 2019; 22. O fundamento invocado pela ora Insolvente, para esses despedimentos, foi a “(…) restruturação da sua organização produtiva, encerrando várias secções (…)”, sendo que os referidos trabalhadores reclamaram indemnizações, retribuições e subsídios atrasados. Factos considerados não provados em 1ª instância: Com relevo para a decisão do presente incidente, não se provaram quaisquer outros factos concretos (com a exclusão da matéria conclusiva e/ou de direito), mormente que o predito Requerido não fosse, efetivamente, o administrador de facto da Insolvente. * IV. Do mérito dos recursos: Do recurso da decisão proferida dia 4/12/2023: Por requerimento de 16/11/2023, o ora apelante veio requerer a actualização do valor do presente incidente e, nessa sequência, a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça. Quanto à questão do valor processual do incidente alegou que na sentença que qualificou como culposa a insolvência da sociedade G., Lda., proferida em 10/10/2023, o Tribunal determinou que o valor do incidente corresponderia ao valor do processo de insolvência; que o valor da ação no processo de insolvência ainda não foi fixado, tendo apenas sido indicado no requerimento inicial de insolvência o valor de EUR 2.000,00; que decorre do auto de apreensão junto pelo senhor Administrador de Insolvência aos autos principais de insolvência que o activo da Sociedade Insolvente ascende a €661.115,00. Terminou pedindo a actualização do valor da acção de insolvência e, em consequência, também do valor do presente incidente. O assim requerido foi indeferido por despacho de 4/12/2023, no qual se entendeu que “quando a sentença foi proferida no âmbito do presente processo apendicular ao processo de insolvência (e incidental), em 10 de outubro de 2023, o valor da insolvência se cifrava em € 2 000,00 (dois mil euros), ou seja, o valor que foi atribuído na petição inicial de insolvência pela Requerente da mesma. É esse, por conseguinte, o valor a considerar e a relevar em concreto (e também em definitivo) para o presente incidente qualificativo da insolvência, à luz do preceituado no artigo 304.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (aplicável por remissão do artigo 17.º, n.º 1, do CIRE) – como, de resto, dimana da parte final da sentença proferida neste apenso E. Ademais, ainda não existem elementos firmes para a fixação do valor no processo de insolvência, pelo que o valor do presente incidente teria sempre de se cingir ao momento da prolação daquela sentença, por sua vez, por reporte à data da interposição do requerimento inicial do Ministério Público – onde, de igual sorte, se alude ao valor de €2 000,00 (logo na primeira página), por força do disposto no artigo 299.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.” Dissentindo deste entendimento, sustenta o apelante que, contrariamente ao alegado pelo Tribunal “a quo”, quando a sentença de 10/10/2023 foi proferida no presente incidente o valor da insolvência não se cifrava em €2.000,00; e que, concluindo-se que ainda não fora fixado o valor da ação principal de insolvência, deveria o Tribunal “a quo”, em cumprimento do disposto no artigo 306.º, n.º 1 do CPC ex vi do artigo 17.º, n.º 1 do CIRE, ter fixado o valor da causa (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). Vejamos. Com o recurso pretende-se em primeira linha a revogação da decisão recorrida, substituindo-se a mesma por outra “que se traduza na fixação de um valor à causa superior ao valor da alçada do Tribunal da Relação ou, pelo menos, do Tribunal de Primeira Instância”. Acontece que na sentença recorrida que qualificou a insolvência como culposa, se decidiu o seguinte: “O valor do incidente corresponde ao do processo de insolvência (cfr. Artigo 304º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 17º, n.º 1, do CIRE)”. Ora, esse segmento da sentença não foi impugnado no recurso interposto da mesma, pelo que já transitou em julgado a decisão no sentido do valor do incidente corresponder ao valor do processo principal. Deste modo, não pode esta Relação, assim como não podia o tribunal de 1ª instância, conhecer de novo dessa questão, tendo-se formado caso julgado formal sobre a mesma (art. 620º, n.º 1, do CPC). Não há que fixar qualquer valor ao incidente, pois que este já se mostra determinado por aquela decisão, ao estabelecer ser esse valor o da causa principal, não tendo, pois, o incidente valor diverso daquela (art. 304º, n.º 1, do CPC). A situação que ocorre é que, ao contrário do entendimento que perpassa na decisão recorrida, o valor da causa principal não se mostra fixado judicialmente, não tendo sido proferida qualquer decisão sobre tal, como impõe o art. 306º, n.º 1, do CPC. Não se ignora que na p.i. em que foi requerida a insolvência se indicou o valor de €2.000,00. Porém, nomeadamente após a fase dos articulados, não foi proferida qualquer decisão sobre o valor da causa. E também não o foi na decisão recorrida, a qual não contém qualquer decisão, ainda que implícita, sobre essa temática, nem tal seria curial, pois que essa decisão deverá ser proferida no processo principal. Por este conjunto de razões, improcede o recurso da decisão de 4/12/2023, sem prejuízo de se reconhecer, em linha com as considerações da apelante, que o tribunal a quo deverá fixar na acção principal o valor da causa, o que ainda não foi feito, como devia. No que toca à questão da dispensa do pagamento do remanescente de taxa de justiça, nas causas de valor superior a €275.000,00 (art. 6º, n.º 7, do RCP), mostra-se prejudicada, pois que ainda não foi determinado o valor concreto do presente incidente. Improcede assim a apelação. Do recurso interposto da sentença que qualificou a insolvência como culposa: Da admissibilidade dos documentos juntos com as alegações: Com as alegações, o recorrente juntou os seguintes documentos: - Doc. n.º 1 – constitui cópia de uma acta da assembleia geral da G., Lda de 18/02/2019 relativa à amortização da quota da sócia I., SA. - Doc. n.º 2 – constitui cópia de uma acta da assembleia geral da G., Lda de 25/03/2019 relativa à alteração dos estatutos da sociedade, com a nomeação de MB como gerente; - Doc. n.º 3 – documento contendo o relatório do AI JL apresentado dia 7/04/2020 no proc. nº 24267/19.1T8LSB, a lista provisória de credores (Artº 154º do CIRE) e a lista de bens apreendidos (Artº 153º do CIRE), na qual se inclui, um servidor, Com Sat ISDN (verna n.º 35). Esse documento contém ainda: Certidão permanente da ora insolvente; Dois assentos de nascimento; Escrituras outorgadas entre as sociedades I., SA e G., Lda, datadas de 24/02/2017 e 7/03/2018; Cópia de uma carta datada de 26/02/2020. - Doc. n.º 4 – documento denominado “Contrato de Compensação de Créditos”, datado de 31/10/2018, celebrado entre G., Lda e I., SA, nos termos dos quais estas sociedades declaram ter a 1ª emitido diversos movimentos financeiros sobre a segunda, referenciados no anexo, no valor global de €1.534.312,13; e a 2ª ter emitido sobre a 1ª diversos movimentos financeiros, descritos em anexo, no valor de €1.550.264,68, declarando compensar os créditos de uma sobre a outra na importância de €1.534.312,13. O apelante fundamentou a admissibilidade da junção dos documentos nos seguintes termos: “Requer-se a junção dos documentos nos termos do disposto no artigo 651.º, n.º 1 do CPC, ou seja, por a sua junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância e também por não ter sido a junção possível mais cedo visto que todo o processo em primeira instância decorreu à revelia do Recorrente (cfr. art.º 425.º do CPC)”. Em matéria de junção de documentos no tribunal de recurso, dispõe o citado art. 651º, n.º 1, do CPC: “1 – As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425 ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”. Assim, face ao citado normativo, podem ser juntos documentos às alegações quando até ao encerramento da discussão em 1ª instância não tiver sido possível juntá-los (superveniência objectiva ou subjectiva - art. 425º) ou quando a sua junção se tiver tornado necessária por virtude do julgamento proferido em 1ª instância. Ora, os documentos poderiam ter sido juntos até ao encerramento da discussão em 1ª instância e a sua junção não se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância. Na verdade, o ora apelante foi citado, ainda que editalmente, nos autos e teve intervenção no processo, através do seu defensor oficioso. E, como assinalam Lebre de Freitas e Isabel Alexandra, CPC Anotado, 1ª volume, 3ª edição, Coimbra Editora, pag. 365: “(…) a citação edital constitui no nosso direito processual uma presunção júris et de jure de conhecimento da ação pelo réu, não obstante ser precisamente o caso em que o réu menor probabilidade tem de adquirir esse conhecimento. (…) Facilitada, como está, a invocação do justo impedimento, se o réu revel citado editalmente não se tiver ausentado para parte incerta com a intenção de se furtar à citação, nem lhe for imputável negligencia na falta de indicação do local para o qual se ausentou, e se ele requerer a apresentação da contestação fora do prazo logo que tiver conhecimento do processo, estando este ainda pendente, o tribunal deverá admitir a defesa tardia, com a consequente anulação dos actos praticados na sequência da falta da contestação (art. 201)”. Ora, no caso, o afectado, citado editalmente, não só não invocou o justo impedimento quando interveio nos autos, como não logrou fazer prova do mesmo, nem invocou que não teve anteriormente conhecimento da citação por facto que não lhe é imputável. Assim, o apelante não alegou nem demonstrou a impossibilidade de junção dos documentos até ao encerramento da discussão em 1ª instância. E também não se verifica a hipótese de necessidade da junção revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância, como também alega o recorrente. Como se assinalou no Ac. STJ de 30/04/2019, Catarina Serra (relatora), proc. n.º 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2: “Os casos fundados no argumento da necessidade admissíveis estão relacionados com a novidade ou a imprevisibilidade da decisão, com a eventualidade de a decisão ser “de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo”. Sobre esta hipótese alertam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, comentando a norma do artigo 651.º, n.º 1, do CPC, que “[a] jurisprudência tem entendido que a junção de documentos às alegações de recurso, de um documento potencialmente útil á causa, mas relacionado com factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado”. E continuam: “[n]o que tange à parte final do n.º 1, tem-se entendido que a junção de documentos às alegações só poderá ter lugar se a decisão da 1.ª instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento, quer quando a decisão se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam”. Resulta daqui que não é admissível a junção de documentos quando tal junção se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas.” É esse, precisamente, o caso dos documentos que o recorrente pretende juntar com as alegações recursivas, na medida em que os mesmos se destinam a contraditar factos dados como provados e que foram oportunamente alegados no incidente de qualificação da insolvência. E no que toca ao facto que o apelante pretende demonstrar (que desde a apreensão do servidor no âmbito dos autos de insolvência da sociedade G – Indústria, S.A. a empresa de contabilidade deixou de ter acesso remoto ao mesmo), sabia o recorrente, ou devia saber, desde o início, que, nomeadamente o relatório que integra o documento n.º 3, era relevante para a demonstração desse facto. Não pode, pois, o apelante alegar a necessidade da sua junção, por virtude do julgamento proferido em 1ª instância. Consequentemente, não é admissível a junção aos autos dos documentos apresentados com as alegações de recurso. Da putativa nulidade da sentença/excepção da caducidade: Diz o apelante que a sentença recorrida padece de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, na medida em que o tribunal a quo não conheceu dos factos alegados no requerimento para a abertura do incidente de qualificação da insolvência no prazo de 10 dias estabelecido na lei, pelo que se impunha que o Tribunal “a quo” tivesse declarado, oficiosamente, verificada a excepção peremptória extintiva da caducidade da faculdade de abertura do incidente, pelo que, tendo o Tribunal prosseguido (indevidamente) com o conhecimento dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento (conclusões 1ª a 6ª). Não assiste razão ao apelante. Efectivamente, no caso o MP requereu dia 12/11/2020 a abertura do incidente de qualificação da insolvência, o que fez no prazo a que alude o art. 188º, n.º 1, do CIRE, posto que o relatório a que se refere o art. 155º apenas foi junto aos autos dia 28/10/2020. Dispõe ainda o citado normativo que cabe ao juiz “conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes”. No caso esse despacho apenas foi prolatado dia 5/01/2021, ou seja, já depois do decurso daquele prazo de 10 dias. Porém, ao contrário do propugnado pelo apelante, o prazo de 10 para o juiz declarar a abertura do incidente, tem natureza ordenadora ou disciplinadora do processado e não se traduz num prazo peremptório ou preclusivo da prática daqueles actos – neste sentido cfr. Ac RC de 10.03.2015, proc. n.º 631/13.9TBGRD-L.C1, Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora) Tratando-se de um acto obrigatório que corresponde ao cumprimento de um dever funcional do juiz este não pode deixar de proferir decisão, ainda que ultrapassado o prazo legalmente previsto para o efeito. Efectivamente, em regra, consideram-se impróprios, por não preclusivos, os prazos impostos aos actos exercidos pelo juiz, pois que se o acto não for praticado no prazo previsto não se extingue o dever de o realizar – cfr. Ac RG de10 de Julho de 2019, prc. n.º 10464/15.2T8VNF-E.G1, Sandra Melo (relatora). É esse o caso do prazo de 10 dias a que se refere o art. 188º, n.º 1, in fine, do CIRE, o qual não funciona como um prazo-limite absoluto. Trata-se, pois, de um prazo (processual) de natureza não preclusiva, como se frisou no despacho prolatado pelo Sr. Juiz quando se pronunciou sobre a arguida nulidade. Foi, pois, por ter este entendimento que o tribunal a quo se não pronunciou sobre a aludida questão. Na se verifica deste modo a putativa excepção (peremptória) da caducidade agora arguida pelo apelante. Assim, ao conhecer do mérito do incidente de qualificação da insolvência, o tribunal a quo não cometeu qualquer nulidade por excesso de pronúncia. Desatende-se, por isso, quer a nulidade, quer a excepção invocadas pelo apelante. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto: Propugna o apelante que se considerem não provados os factos elencados nos pontos, considerados provados em 1ª instância e indicou as razões da sua discordância. Vejamos se lhe assiste razão. Quanto aos facos provados n.ºs 6 e 7 da sentença: Estes factos têm a seguinte redacção: 6. Resultou provado nos autos principais de insolvência (por força do disposto no artigo 30.º, n.º 5, do CIRE), além do mais, que a aí Requerente (massa insolvente) é titular de um crédito sobre a sociedade Requerida no valor de € 1 176 070,00, devido pela entrega gratuita dos seus dois imóveis (aí melhor identificados); e que emitiu diversas faturas à Requerida durante os anos de 2017 e 2018, cuja soma total se cifra em € 4 389 983,80; 7. Na sentença declaratória da insolvência foram considerados provados, entre outros, os factos constantes dos artigos 16.º a 25.º da petição inicial, nomeadamente se afirmando que a gestão da Insolvente era assegurada pelo seu administrador de facto, LP, sendo “(…) quem tomou as decisões necessárias ao funcionamento da sociedade, quem dava ordens aos trabalhadores, quem contratava fornecedores e clientes e quem geria e definia toda a atividade e estratégia da empresa” (cfr. artigo 21.º da dita petição inicial). Na sua motivação o tribunal a quo exarou o seguinte: “Importa referir que o Tribunal considerou, desde logo, como provados os pontos 1 a 7 supra, com base no suporte documental e na confissão ficta produzidos no processo principal de insolvência, que teve o seu início/autuação em 29 de maio de 2020; pelo que o período temporal a considerar, em contexto de incidente de qualificação da insolvência, se situa entre os dias 29 de maio de 2017 e 29 de maio de 2020, à luz do preceituado no artigo 186.º, n.º 1, segmento final, do CIRE. Relevou, também, a dita certidão permanente”. Dissentindo, diz, em essência, o apelante que o Tribunal “a quo” não podia ter atribuído qualquer valor extraprocessual a uma decisão de facto constante da sentença de declaração de insolvência proferida nos autos principais, pois que a lei não permite a invocação de factos considerados provados noutro processo (mas apenas e tão só de determinadas provas), no qual, de resto, não foi parte, não se verificando, por isso, o condicionalismo prescrito no art. 421º, n.º 1, do CPC – conclusões 9ª e 10ª. Conclui que o tribunal deve considerar não provados aqueles factos. Vejamos. Na sentença declaratória da insolvência, em face da falta de contestação da requerida, e ao abrigo do disposto no artigo 30.º, n.º 5, do CIRE, consideraram-se confessados os factos alegados na petição inicial, nomeadamente os transcritos sob os pontos 6º e 7º. Acontece que na sentença recorrida o tribunal a quo não considerou provado que a Massa Insolvente da I., SA é titular de um crédito sobre a sociedade G., Lda no valor de € 1 176 070,00, devido pela entrega gratuita dos seus dois imóveis (aí melhor identificados); que emitiu diversas faturas à Requerida durante os anos de 2017 e 2018, cuja soma total se cifra em € 4 389 983,80; e que sempre foi LP quem tomou as decisões necessárias ao funcionamento da sociedade, quem dava ordens aos trabalhadores, quem contratava fornecedores e clientes e quem geria e definia toda a atividade e estratégia da empresa. O que o tribunal a quo se limitou a fazer foi considerar provado sob os pontos 6 e 7 que nos autos principais de insolvência aquela factualidade foi aí considerada provada, por confissão ficta, e não a considerar os mesmos factos, em si mesmo considerados, provados nos presentes autos. Consequentemente, não é caso de alterar a factualidade transcrita nos pontos 6 e 7, sendo a mesma indubitável, nem o apelante impugna tal. O que este verdadeiramente sustenta, e bem, é que não podem ser considerados assentes no presente incidente factos só pela circunstância de no processo principal de insolvência terem sido considerados provados. Com efeito, pode afirmar-se que os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado - vide Miguel Teixeira de Sousa, "Estudos sobre o Novo Processo Civil", Lisboa, 1977, pags. 579 e 580. De resto, no caso, as partes, a causa de pedir e o pedido são diversos nos dois processos (processo principal de insolvência e incidente de qualificação da mesma como culposa). Como se assinala no Ac. do STJ de 5 de Maio de 2005, proc. n.º 05B691, Araújo Barros (relator), acessível em www.dgsi.pt.: “O contrário - transpor os factos provados numa acção para a outra - constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui”. E no Ac. STJ de 14/01/2021 citado pelo apelante: “não pode confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial, evitando-se deste modo que se possam transpor/importar os factos provados numa acção para a outra, o que constituiria conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui.( cfr. por todos ac. STJ de 8-11-2018 no proc. 478/08.4TBASL.E1.S1, in dgsi.pt)”. No que toca ao valor extraprocessual das provas, estipula o art. 421º, n.º 1, do CPC que: “Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova”. Como refere Lebre de Freitas (ob. cit. pag. 234), não exige a lei “a identidade de partes no processo em que a prova é produzida e naquele em que é invocada. Exige, sim, que a parte contra quem a prova é invocada, isto é, aquela que resulta desfavorecida com o resultado probatório, tenha sido parte no primeiro processo e que nele tenha sido respeitado o princípio da audiência contraditória”. Assim, de acordo com esta disposição legal, o tribunal pode, na segunda acção, servir-se dos meios de prova (depoimentos e arbitramentos) que foram utilizados no anterior processo, mas não da confissão ficta. Deste modo, e sem prejuízo destas considerações, desatende-se a impugnação deduzida relativamente aos factos n.ºs 6 e 7, se bem que estes factos, tal qual se mostram provados, sejam inócuos para a decisão do presente incidente. Quanto ao facto provado n.º 9 da sentença recorrida: Este tem a seguinte redacção: 9. Era este último quem tomava as decisões necessárias ao funcionamento da sociedade, ora Insolvente, quem dava ordens aos trabalhadores, quem contratava os fornecedores e clientes e quem geria e definia toda a atividade e estratégia da empresa. Na motivação o tribunal a quo exarou o seguinte: “Relativamente à demonstração dos pontos 8 e 9 supra, decorreu de toda a prova constituenda produzida em sede de audiência final, não existindo controvérsia quanto à ligação familiar entre ambos os Requeridos (através dos filhos do Requerido, netos pela via materna da Requerida); e tendo resultado claro quem realmente mandava na empresa ora Insolvente, quem “dava a cara” pelas decisões aí tomadas e, ao fim e ao cabo, quem administrava e definia toda a atividade e estratégia da sociedade em apreço; sem dúvida que tais incumbências recaíam sobre a pessoa do Requerido, “patrão efetivo” da sociedade, tendo toda a prova confluído nesse sentido – o de que apenas essa pessoa ali dava ordens. (…) a testemunha A., atualmente reformado, referiu ter sido trabalhador como chefe de produção da Insolvente, desde 1 de abril de 2019 até 11 de setembro de 2019. Disse conhecer o ora Requerido porque este era o “gerente da empresa” e era a ele que reportava tudo o que se passava na sociedade em causa. O Requerido raramente estava na empresa, encontrando-se quase sempre em Lisboa, mas os contactos telefónicos mantinham-se diretamente com este funcionário que, tanto quanto o Tribunal pôde observar, seria o “braço direito” do Requerido no terreno do quotidiano da firma, a sua pessoa de confiança. O Requerido tomava todas as decisões necessárias ao andamento da empresa, sobretudo por via telefónica, sendo que a Requerida, pessoa já idosa e avó materna dos filhos do Requerido, nunca tinha contacto relevante com a sociedade aqui Insolvente. Reafirmou, ainda, que “o dono da empresa era o LP”, com oito ou nove trabalhadores no seu último ano, tudo se passando sob as ordens e superintendência dele. À gerente de direito nunca a testemunha viu assinar nada e, inclusivamente, o Requerido chegou a ordenar à testemunha para levantar o servidor e providenciar a que o mesmo fosse encaminhado para Lisboa. Resultou manifesto, até óbvio, deste depoimento, que era a pessoa do Requerido quem mandava na sociedade, ainda que muitas vezes “à distância”. A testemunha E. referiu (aos costumes) ter sido também trabalhador da Insolvente durante três ou quatro anos, até 2019; conhece o Requerido porque era o seu patrão e a Requerida porque passou a ser a dona da empresa, “mas quem mandava era o senhor LP”. Quanto à Requerida, mencionou terem assinado um papel segundo o qual ela era a gerente da ora Insolvente, mas apenas numa única ocasião viu a senhora, somente para ser apresentada, quando foi da transição de uma empresa para a outra. Ela formalmente era a dona, mas o Requerido é que dava as ordens, a quem reportava, sendo que a testemunha jamais viu a Requerida a tomar uma qualquer decisão sobre a vida da sociedade. Basicamente, o teor deste depoimento testemunhal confluiu bastante com o sentido e alcance do anterior depoimento, embora não se encontrasse tão estruturado: a ideia central do mesmo foi a de que, na prática quotidiana, o rosto da sociedade visada era só o Requerido, apesar de constar da certidão o nome da Requerida enquanto gerente. No respeitante à testemunha J., afirmou ser eletricista e técnico de manutenção, bem como trabalhador da Insolvente desde 1 de abril de 2019 até 11 de setembro de 2019, como chefe de equipa de eletricistas, tendo desempenhado as mesmas funções na firma antecedente; conhece o Requerido porque era o seu patrão e a Requerida porque passou a ser a dona da empresa, mas quem mandava era o primeiro. Ressalvados os períodos em que esteve de baixa médica, esta testemunha assumiu que passava muitas horas ao telefone com o Requerido, sendo que quem dava as instruções era este e mais ninguém. Era ele quem punha e dispunha, sendo que o relacionamento entre ambos já vinha detrás, passando de uma empresa para a outra. A Requerida, por seu lado, progenitora da companheira do Requerido, “a mim não dava ordens nenhumas”, o patrão era, sem dúvida, o Requerido: tudo se passava como na anterior sociedade, ele é que mandava e ele dizia como queria todas as coisas; já a senhora, não interferia em nada. A testemunha L., na senda das inquirições pregressas, falou no mesmo trilho: trabalhou para a Insolvente desde 1 de abril de 2019 até 11 de setembro de 2019, e sempre tudo foi tratado com o Requerido, a quem reportava os assuntos prementes da empresa. Apenas numa única ocasião viu a Requerida, tudo o que se necessitasse era com o Requerido. Malgrado aquela figurar como dona da empresa, nada passava ao lado do Requerido, pessoa que tinha a seu cargo a direção e a gestão corrente da sociedade em si. A empresa começou a falhar com o subsídio de férias no ano de 2019, tendo a testemunha ouvido dizer que existiam dívidas. Em todo o caso, não logrou concretizar os seus valores. Por fim, a testemunha CP, com profissão de contabilista certificado, disse (aos costumes) haver sido o contabilista da Insolvente, sensivelmente entre os anos de 2017 e de 2019; conhece o Requerido, porque trabalha com ele noutras empresas, sendo que, quanto à ora Insolvente, referiu que o Requerido era o interlocutor dessa empresa; também conheceu a Requerida, porque era a única sócia e gerente da mesma Insolvente. Com palavras esclarecedoras e um discurso muito objetivo e sincero, por isso dotado de inteira credibilidade, a testemunha assegurou em audiência que era com o Requerido que falava quando se mostrava necessário qualquer documento ou assunto a tratar, no que à contabilidade da Insolvente concerne. O processamento da documentação necessária era todo efetivado localmente na empresa e o Requerido era a única pessoa com quem falava: recebiam os documentos dele, porém, apesar disso, o relacionamento não deixava de ser bastante ténue.” Propugna o apelante que se considere o facto n.º 9 como não provado e provado que o recorrente nunca exerceu a gerência de facto da sociedade insolvente. Fundamenta a sua pretensão nos depoimentos das testemunhas CP, A. e E. (conclusões 15ª e 18ª a 26ª). Em face dos depoimentos objectivos e claros prestados pelas testemunhas CP (contabilista certificado; prestou serviços para a I., SA e para a insolvente, desde 2017 até 2020), A. (chefe de produção; exerceu funções primeiramente para a I., SA e posteriormente, de 1/4/2019 a 11/09/2019 para a insolvente), E. (operador; exerceu funções primeiramente para a I., SA e em 2019, até ao mês de Setembro para a insolvente), J. (electricista; exerceu funções primeiramente para a I., SA e de Abril a Setembro de 2019 para a insolvente) e L. (trabalhou nos armazéns da empresa, primeiramente para a I., SA e posteriormente, de 1/4/2019 a 11/09/2019 para a insolvente), não pode deixar de se concordar com a valoração da prova efectuada em 1ª instância. É certo que, como frisa o apelante (conclusão 22ª), há que ter em conta que, tal como resulta do facto provado n.º 2, não impugnado, todos os trabalhadores da sociedade insolvente que prestaram depoimento em sede de audiência final, tinham sido anteriormente trabalhadores da sociedade I., S.A., tendo sido cedidos pela mesma àquela apenas em 01/04/2019, o que significa que, a colaboração dos referidos trabalhadores foi feita, na quase totalidade do tempo em que estiveram ligados ao grupo empresarial, à sociedade I., S.A. (da qual o recorrente era administrador) e, mesmo durante o período em que trabalharam para insolvente, os trabalhadores exerciam a sua atividade em instalações, e utilizando meios cuja exploração estava cedida à sociedade I., S.A., Daí não decorreu, porém, que os referidos trabalhadores não tivessem uma perceção perfeita ou plena dos limites do exercício das competências de gestão das duas sociedades, posto que, nos seus depoimentos os mesmos aludiram à sua transferência em 11 de Abril de 2019 para a sociedade G., Lda, esclarecendo terem tomado conhecimento que a dona desta empresa era MB, avó materna dos filhos de LP. E, conforme também referiram, nunca tiveram conhecimento que esta tivesse tomado qualquer decisão em nome da empresa ou participado na sua gestão. Por outro lado, as testemunhas A. e J. referiram que era LP quem tratava de tudo e dava as ordens/instruções. E não obstante a testemunha A. tivesse declarado que nunca viu LP a assinar contratos ou outros documentos que vinculassem a empresa, a mesma também declarou que reportava sempre ao mesmo, via telefónica, posto que aquele estava quase sempre em Lisboa; que informava o mesmo de tudo o que era necessário para o engarrafamento de água e das compras a efectuar junto dos fornecedores, tratando aquele dos pagamentos junto destes, enviando ainda os “e-mails para os documentos de transporte”. De sua vez a testemunha CP (contabilista certificado) revelou ter conhecimento de que a sócia-gerente da ora insolvente era MB, mas que era o LP o seu interlocutor na empresa, sendo com ele que falavam quando necessitavam de alguma documentação e era ele quem respondia em nome daquela. Conjugando o teor destes depoimentos, concorda-se com a valoração da prova efectuada em 1ª instância, considerando-se provado o facto n.º 9 e não provado que LP nunca exerceu a gerência de facto da insolvente. Desatende-se, pois, neste ponto a impugnação do apelante. Quanto aos factos provados n.ºs 10º, 11º e 14º da sentença recorrida: Estes têm a seguinte redacção: 10. Em 8 de setembro de 2020, o Administrador da Insolvência dirigiu à indicada sócia e gerente da Insolvente uma carta a solicitar as informações a que alude o artigo 24.º do CIRE, a qual foi entregue em 9 de setembro de 2020 (cfr. documentos n.ºs 1 e 2); 11. Na mesma data, também remeteu uma carta para a sede social da mesma sociedade a solicitar iguais informações, que veio devolvida ao remetente com a indicação de “Mudou-se” (cfr. documentos n.ºs 3 e 4); 14. Daquelas diligências resultou que a sócia e gerente, apesar de ter recebido a carta, nada respondeu;. Na sua motivação o tribunal a quo exarou o seguinte: “A comprovação dos pontos 10, 11 e 14 defluiu, não só dos elementos documentais aí sinalizados em concreto, como também das declarações absolutamente confirmativas da Administradora da Insolvência (que trabalha no mesmo domicílio do AI proponente).” Contrapõe o apelante que se mostra incorretamente julgado o facto de o Tribunal “a quo” ter dado como provado que em 08 de setembro de 2020, o Administrador de Insolvência dirigiu à sócia e gerente da Insolvente uma carta a solicitar as informações a que alude o artigo 24.º do CIRE, a qual foi entregue em 09 de setembro de 2020 (cfr. facto provado n.º 10, na página 4 da sentença recorrida); que, na mesma data, o Administrador de Insolvência remeteu uma carta para a sede social da mesma sociedade a solicitar iguais informações, que veio devolvida ao remetente com a indicação de “Mudou-se” (cfr. facto provado n.º 11, na página 4 da sentença recorrida); e que, das referidas diligências teria resultado que a sócia e gerente, teria recebido a carta e que, apesar disso, nada teria respondido” (cfr. facto provado n.º 14, na página 4 da sentença recorrida); que os documentos n.º 1 e 2, nos quais o Tribunal “a quo” apoia o facto n.º 10, não provam que tenha sido a carta constante do documento n.º 1 a que foi efetivamente remetida no dia 08 de setembro de 2020 a que alude o talão de registo; que o Tribunal “a quo” não podia ter ignorado que a pretensa entrega ocorrida em 09 de setembro de 2020 foi feita em regime de RPD como consta expressamente referido no documento n.º 2; e que também os documentos n.º 3 e 4, nos quais o Tribunal “a quo” sustenta o facto n.º 11, não provam que tenha sido a carta constante do documento n.º 3 a que foi efetivamente remetida no dia 08 de setembro de 2020 a que alude o talão de registo (conclusões 28ª a 32ª). Sustenta assim que se impunha, por um lado, ter dado como facto não provado que tivesse sido solicitado à sócia e gerente da Sociedade Insolvente MB, à Sociedade Insolvente e ao Recorrente qualquer pedido de informação (cfr. factos provados n.º 10, 11 e 14, na página 4, da sentença recorrida), e impunha-se, por outro, ter dado como provado que todos os referidos intervenientes, e o Recorrente em particular, desconheciam qualquer pedido de informação por parte do senhor Administrador e, como tal, nunca incorreram em qualquer falta de resposta ou de colaboração (conclusão 34ª). Vejamos. A impugnação deduzida assenta essencialmente na alegação de que os docs. n.ºs 1 a 4 não provam que as cartas efectivamente remetidas a MB e à sociedade insolvente fossem as que constituem os documentos n.ºs 1 e 3. Porém, para além dos documentos em referência, a remessa das aludias cartas foi confirmada pelas declarações de P. (administradora de insolvência que coadjuvou o AI nomeado nos autos), a qual revelou conhecimento pessoal desse facto. Em face destes elementos de prova, não pode deixar de se ter por provado que as cartas remetidas foram as que se mostram fotocopiadas nos autos sob os docs. n.ºs 1 e 3. Por outro lado, decorre da sentença declaratória da insolvência ter sido fixado à gerente da insolvente MB domicílio na seguinte morada: Avª …, n.º 36, 5.º-C, … Costa da Caparica. E deriva da carta que constitui o doc. n.º 1 junto aos autos pelo AI que este no dia 8 de Setembro de 2020, dirigiu à indicada sócia e gerente da Insolvente uma carta a solicitar as informações a que alude o artigo 24.º do CIRE. Certamente por lapso do então AI ou dos colaboradores deste, essa carta foi endereçada para a Avª …, n.º 35, 5.º-C, …. Costa da Caparica e não para o n.º 36. É certo que consta do doc. n.º 2, que a carta registada em apreço foi entregue, isto é, foi deixada no receptáculo postal domiciliário (RPD). Não correspondendo, porém, a morada para a qual foi endereçada a carta, à morada da notificanda, gera-se a dúvida sobre se efectivamente essa carta foi deixada na caixa postal daquela (no n.º 36) e se foi recebida pela mesma. E assim sendo, diverge-se da valoração da prova efectuada em 1ª instância, considerando-se que não foi produzida prova segura da entrega daquela carta na caixa postal da mesma. De qualquer modo, daí não decorre que tenha sido feita prova do facto contrário, isto é, que MB, a Sociedade Insolvente e o Recorrente desconheciam qualquer pedido de informação por parte do senhor Administrador, desatendendo-se, pois, neste ponto a pretensão do apelante. Deste modo, mantém-se o facto provado nº 11 e alteram-se os factos n.ºs 10 e 14, considerando-se apenas provado o seguinte: 10. Em 8 de setembro de 2020, o Administrador da Insolvência dirigiu à indicada sócia e gerente da Insolvente uma carta a solicitar as informações a que alude o artigo 24.º do CIRE, que endereçou para a Avª …, n.º 35, 5.º-C, 2825-393 Costa da Caparica, 14. A sócia e gerente da G., Lda, nada respondeu. Quanto ao facto provado n.º 17 da sentença recorrida Este tem a seguinte redacção: 17. Sobre o aspeto particular do servidor, na visita que efetuou às instalações que a ora Insolvente possui no Loteamento Industrial da Lapa, …., A., trabalhador da sociedade Insolvente e depositário da chave das instalações, havia comunicado que o dito servidor já ali não se encontrava, tendo sido dali retirado pelo Requerido LP, ou a seu mando. Na sua motivação o tribunal a quo exarou o seguinte: “Quanto à comprovação do ponto 17, tivemos em linha de conta as declarações da Administradora da Insolvência e o depoimento testemunhal de CP, a que se somou o depoimento deveras pertinente da testemunha A., diretamente envolvido na matéria em apreço e, por isso mesmo, se revestindo de inteira credibilidade. Foram elementos válidos e dotados de solidez suficiente para sedimentar o dito ponto 17. (…) Ouvida através de declarações orais, a identificada Administradora da Insolvência revelou possuir um conhecimento bastante aceitável sobre a materialidade em causa, a que não foi alheia a circunstância de partilhar o mesmo domicílio profissional com o Administrador proponente, estando ao corrente da essencialidade das diligências que o mesmo encetou junto da sociedade ora Insolvente, da respetiva gerência e do contabilista certificado, prestador de serviços para esta empresa. Corroborou assim, e sem nenhuma aparente dificuldade, os concretos factos a que se reportam os presentes autos, no sentido de que a colaboração oriunda daquela gerência foi inexistente, pura e simplesmente, valendo apenas os elementos contabilísticos que foram fornecidos, na medida do possível, pela testemunha CP, na sua veste profissional (de TOC). (…) Por fim, a testemunha CP, com profissão de contabilista certificado, disse (aos costumes) haver sido o contabilista da Insolvente, sensivelmente entre os anos de 2017 e de 2019; conhece o Requerido, porque trabalha com ele noutras empresas, sendo que, quanto à ora Insolvente, referiu que o Requerido era o interlocutor dessa empresa; também conheceu a Requerida, porque era a única sócia e gerente da mesma Insolvente. Com palavras esclarecedoras e um discurso muito objetivo e sincero, por isso dotado de inteira credibilidade, a testemunha assegurou em audiência que era com o Requerido que falava quando se mostrava necessário qualquer documento ou assunto a tratar, no que à contabilidade da Insolvente concerne. O processamento da documentação necessária era todo efetivado localmente na empresa e o Requerido era a única pessoa com quem falava: recebiam os documentos dele, porém, apesar disso, o relacionamento não deixava de ser bastante ténue. A dada altura, os colaboradores da firma de contabilidade deixaram de poder aceder às instalações da sociedade aqui Insolvente, na localidade de …., o que coincidiu com a cessação do fornecimento de documentos indispensáveis para a realização da contabilidade. O servidor encontrava-se lá, em …, todavia a porta permanecia fechada e inacessível. Deixou, pura e simplesmente, de ter acesso e de poder tratar da documentação, sendo certo que o escritório da firma de contabilidade se situava na Guarda. (…) O servidor nunca chegou às instalações da contabilidade e todos os dados relevantes estavam lá inseridos.” Dissentindo, sustenta o apelante que esse facto foi incorrectamente considerado provado; que o servidor era propriedade da sociedade I., S.A., embora fosse também utilizado pela Sociedade Insolvente, ao abrigo das relações comerciais e de grupo entre as duas sociedades; que o servidor foi apreendido no âmbito do processo de insolvência da sociedade I., S.A. (processo n.º 24267/19.1T8LSB), constituindo a verba 35 do respectivo auto (Documento 2 anexo ao relatório do administrador de 07/04/2020, constante do autos de insolvência da sociedade I., S.A. que se ora se junta como Doc. n.º 3); que a partir de então foi interrompido o acesso ao servidor, quer à sociedade insolvente, quer ao técnico oficial de contas, CP; que, como decorreu do depoimento deste, deixaram de poder aceder às instalações, levaram as coisas, nomeadamente o servidor, e ficaram sem meios de trabalhar e “quando nós um dia chegámos lá a porta estava fechada e a partir daí nunca mais tivemos acesso a nada”, pelo que se impunha ter dado como facto não provado o facto n.º 17 e ter sido dado como provado que a interrupção do acesso ao servidor ocorreu aquando e resultou unicamente da sua apreensão pelo senhor Administrador de Insolvência da sociedade I., S.A. no âmbito do processo de insolvência da mesma sociedade I., S.A. - conclusões 37ª a 43ª. Vejamos. Sob o facto 17 o que o tribunal a quo deu como provado foi que na visita que o Administrador da Insolvência efectuou às instalações que a insolvente possui em …, A., trabalhador da sociedade e depositário da chave das instalações, comunicou-lhe que o dito servidor já ali não se encontrava, tendo sido dali retirado pelo Requerido LP, ou a seu mando. Ora, este facto (comunicação da retirada do servidor) decorreu com clareza das declarações de P. (administradora de insolvência), do relatório elaborado pelo AI, junto aos autos principais, e do depoimento da própria testemunha A., o qual declarou que LP lhe pediu em finais de Agosto ou princípios de Setembro de 2019 para retirar o servidor e o entregar no escritório de contabilidade, sito na Guarda, o que fez. Assim, a prova produzida é bastante para se dar como provada a factualidade descrita no ponto 17, isto é, que A. comunicou ao AI que o servidor não se encontrava no escritório, tendo sido retirado a mando de LP. Por outro lado, solicita o apelante que se dê como provado que a interrupção do acesso ao servidor ocorreu aquando e resultou unicamente da sua apreensão pelo senhor Administrador de Insolvência da sociedade I., S.A. no âmbito do processo de insolvência da mesma sociedade. Derivou dos depoimentos das testemunhas ex-trabalhadores da insolvente que a empresa encerrou a sua actividade pelo menos em princípios de Setembro de 2019, na sequência da cessação dos contratos de trabalho dos seus trabalhadores, tendo a testemunha CP esclarecido que os últimos vencimentos que processou respeitavam ao mês de Agosto de 2019, que deixaram de ter acesso ao servidor após a sua apreensão no âmbito dos autos de insolvência da I, SA (insolvência decretada dia 13/02/2020) e que as duas empresas utilizavam as mesmas instalações, sendo de supor que o servidor era o mesmo. Destes dados de facto conhecidos conclui-se que o servidor se encontrava nas instalações da insolvente sitas em … aquando da sua apreensão no âmbito dos autos da insolvência da sociedade I, SA. Deste modo, considera-se provado que o servidor foi apreendido pelo senhor Administrador de Insolvência da sociedade I., S.A. no âmbito do processo de insolvência da mesma sociedade, não tendo desde então a empresa que realizava a contabilidade acesso ao mesmo. Quanto ao facto provado n.º 20 da sentença recorrida Este tem a seguinte redacção: 20. Tais montantes (reporta-se aos créditos reclamados nos autos pela Massa Insolvente da I., SA) deveriam estar refletidos na rúbrica “Fornecedores” ou, no limite, na rúbrica “Outras contas a pagar”, das IES de 2017 e de 2018 da sociedade ora Insolvente, o que não ocorre na realidade: - Na IES de 2017, a rúbrica “Fornecedores” acumula o montante de € 348 602,75, e “Outras contas a pagar”, o montante de € 115 513,95 (cfr. documento n.º 9); - Na IES de 2018, a rúbrica “Fornecedores” acumula o montante de € 196 636,18, e “Outras contas a pagar”, o montante de € 88 999,11 (cfr. documento n.º 10). Na sua motivação o tribunal a quo exarou o seguinte: “Em relação à demonstração dos pontos 18 a 20, resultou da articulação das declarações da Administradora da Insolvência e do depoimento testemunhal de …, na sua combinação com os documentos aí mencionados correspondentemente. A verbalização em audiência do que se encontra descrito nos documentos em causa, com uma linguagem sã e escorreita, auxiliou o Tribunal a compreender o seu sentido e alcance, saindo da área estritamente técnica dos conceitos contabilísticos, por vezes insondáveis.” Contrapõe o apelante que se impunha ter sido dado como facto não provado a alegada falta de quaisquer montantes na rúbrica “Fornecedores” ou, no limite, na rúbrica “Outras contas a pagar”, das IES de 2017 e de 2018 (cfr. facto provado n.º 20, na página 5 da sentença recorrida). Para tanto sustenta que, relativamente aos imóveis, aquando da sua criação, a sociedade insolvente concedeu à Sociedade I., S.A. uma quota de 10% (dez por cento) do seu capital social, tendo esta procedido, como contrapartida, à transmissão de bens (incluindo imóveis); que como a sociedade insolvente era a proprietária das instalações, e ainda de toda a maquinaria e equipamentos (que haviam sido transferidos pela prestação acessória), a sua utilização pela Sociedade I., S.A. foi regulada por um contrato de cessão de exploração, nos termos do qual esta última realizava um conjunto de pagamentos, com periocidade fixa e que coexistiam com pagamentos de frequência regular realizados pela sociedade insolvente à Sociedade I., S.A., pela prestação de diversos serviços; que por Contrato de Compensação de Créditos celebrado em 31/10/2018 entre a sociedade insolvente e a Sociedade I., S.A. (que ora se junta aos autos como Doc. n.º 4), um vulgarmente designado “encontro de contas”, abrangeu um conjunto vasto de créditos entre as duas entidades; e que, por isso mesmo, os pretensos créditos da Massa Insolvente de I., S.A. não foram reconhecidos no processo de insolvência da sociedade insolvente, pois não existiam, conforme resulta do facto provado n.º 18 da sentença recorrida e ainda da lista definitiva de credores reconhecidos – conclusões 48ª a 51ª. Vejamos. Pretende o apelante que se dê como não provada a alegada falta de quaisquer montantes nas IES de 2017 e 2018, rúbricas “Fornecedores” ou “Outras contas a pagar”. Todavia, o tribunal a quo não considerou provada essa falta, tendo-se limitado a dar como provado sob o ponto 20º que os valores reclamados pela Glaciar Indústria, SA, não se encontram reflectidos nas IES de 2017 e 2018, nas rúbricas “Fornecedores” ou “Outras contas a pagar”. Esse é um dado objectivo, pois que os valores contabilizados naquelas rubricas das IES de 2017 e 2018 não compreendem no seu âmbito os valores reclamados. Nada mais do que isso. De resto, do denominado “Contrato de Compensação de Créditos”, apresentado com as alegações de recurso, mesmo que tivesse sido admitida a sua junção aos autos, também não se chegaria a diferente conclusão. Ademais, não foi considerada provada em 1ª instância a existência dos créditos reclamados pela I., SA (vide facto 18). Assim sendo, em face do teor das IES juntas aos autos e das declarações, claras e objectivas, prestados por P. e pela testemunha CP, concorda-se com a valoração da prova efectuada em 1ª instância, alterando-se apenas a redacção do facto n.º 20, de molde a expurgá-lo do seu teor conclusivo, no que toca à expressão “tais montantes deveriam estar refletidos”. Deste modo, altera-se o facto n.º 20, o qual passará a ter a seguinte redacção: 20. Tais montantes não se encontram inscritos na rúbrica “Fornecedores” ou, no limite, na rúbrica “Outras contas a pagar”, das IES de 2017 e de 2018 da sociedade ora Insolvente: - Na IES de 2017, a rúbrica “Fornecedores” acumula o montante de € 348 602,75, e “Outras contas a pagar”, o montante de € 115 513,95 (cfr. documento n.º 9); - Na IES de 2018, a rúbrica “Fornecedores” acumula o montante de € 196 636,18, e “Outras contas a pagar”, o montante de € 88 999,11 (cfr. documento n.º 10). V. Do Direito: Na sentença recorrida qualificou-se a insolvência da sociedade G., Lda., como culposa, afectando a sócia e gerente MB e o gerente de facto LP, considerando que os factos apurados preenchem as alíneas h) e i) do n.º 2 do art. 186º, bem como as alíneas a) e b) do n.º 3, do mesmo artigo. Prescreve o art. 186º do CIRE, na redacção dada pela Lei n.º 9/2022, de 11/01 (esta entrou em vigor dia 11/04 e é imediatamente aplicável aos processos pendentes): 1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. 2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: (…) h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º. 3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido: a) O dever de requerer a declaração de insolvência; b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.” A insolvência culposa implica sempre uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, a qual deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra. Tal como assinalado na sentença recorrida, o n.º 2 do art.º 186.º do CIRE estabelece, em complemento da noção geral antes fixada no n.º 1, presunções inilidíveis que, como tal, não admitem prova em contrário. Conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos aí referidos à qualificação da insolvência como culposa, pois que estamos em presença de uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência (v., no sentido desta consideração do nexo de causalidade nas hipóteses do nº 2 do art. 186º do CIRE, Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 7ª ed., p. 282, e, entre muitos outros, o Ac STJ de 15 de Fevereiro de 2018, proc. n.º 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt,). O n.º 3 do mesmo art. 186.º estabelece, por seu turno, unicamente uma presunção ilidível de culpa grave, que não também de causalidade (a Lei n.º 9/2022, de 11/01 veio por termo à controvérsia que existia na doutrina e na jurisprudência quanto a esta questão) – neste sentido cfr. Ac. do STJ de 28/09/2022, proc. n.º 2770/18.0T8VNG-B.P2.S1, Ana Resende (relatora), acessível em www.dgsi.pt. Posto isto, analisemos os factos provados, a fim de se apurar se o comportamento dos gerentes de facto e de direito da insolvente é subsumível às alíneas h) e i) do n. 2 e a) e b) do n.º 3 do art. 186º, como se entendeu na sentença recorrida. Começaremos pela análise da previsão do nº3 do art. 186º, atenta a natureza da presunção ali estabelecida, já supra explicitada. Assim: Quanto às alíneas a) e b) do n.º 3 do art. 186º do CIRE: Refere-se na sentença recorrida: “(…) também quanto às alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, parece-nos acertado frisar que os aludidos administradores, de direito (a Requerida) e de facto (o Requerido), abdicaram clamorosamente do dever de requerer a declaração de insolvência; bem como da obrigação de elaborar as contas anuais, dentro do prazo legal, de sujeitá-las à devida fiscalização e de as depositar na conservatória do registo comercial competente, conforme era de lei fazê-lo. Como se viu, são dois os factos conducentes à presunção (ilidível) do n.º 3, que se aplica quando o insolvente não se trate de pessoa singular. Segundo a citada alínea a), a culpa grave presume-se se os administradores do devedor (sejam de direito ou de facto, realça-se a indistinção da lei) não tiverem observado o dever de requerer a declaração da insolvência, nos termos e para os fins do disposto no artigo 18.º do CIRE. Ocorre, também, presunção ilidível de culpa grave quando, estando o devedor obrigado por lei a prestar contas anuais, a submetê-las a fiscalização ou a depositá-las na conservatória do registo comercial, os seus administradores não cumpram estes deveres no prazo legal, nos termos da alínea b). Da letra da lei decorre que a presunção se verifica logo que advenha o incumprimento de qualquer dos deveres identificados nessa alínea b). O dever de apresentação à insolvência dimana do artigo 18.º do CIRE. E o preceito legal do n.º 1 é muito claro: o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º do CIRE, ou à data em que devesse conhecê-la. O prazo de apresentação conta-se do conhecimento da situação a se ou, sendo anterior, do momento em que o devedor a devia conhecer. Este dever de conhecimento terá de ser apreciado nos termos gerais, por referência ao devedor médio colocado na situação concreta do agente. No ensinamento avisado de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (cfr. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, pág. 190), “Ter-se-á, naturalmente, em consideração o controlo exigível da situação patrimonial e financeira que não tem contornos universalmente válidos para todas as situações. Daí a necessidade de relevar a posição concreta do devedor”. Por aqui, destacamos tudo o que se provou no presente incidente. Não é crível que, em agosto de 2019 (no mínimo), os dois Requeridos não tivessem uma noção bastante apelativa do mal-estar financeiro da empresa insolvente, um seu conhecimento pleno, e que dificilmente se trataria de mera situação deficitária passageira. Não é aceitável que se tivesse de esperar até aos finais de maio de 2020 para que uma outra entidade, desta feita uma massa insolvente, viesse a requerer a declaração de insolvência de uma sociedade já moribunda financeiramente; tanto assim foi, que a visada (devedora) nem sequer reagiu processualmente à petição inicial de insolvência, assim permitindo a cominação inserta no artigo 30.º, n.º 5, do CIRE (a confissão dos factos alegados em sede de petição inicial). Desde logo, o Requerido, como gerente de facto da sociedade ora Insolvente, estava ao corrente de todas vicissitudes, contingências e negócios da mesma, sendo, por isso, impensável um putativo alheamento que o colocasse fora desse conhecimento cabal. Conforme referido, nos termos do preceituado no artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, podem ser afetados, não apenas os administradores de direito, mas igualmente os administradores de facto, ou seja, aqueles que praticam atos de administração sem que se encontrem legalmente nomeados como titulares do cargo que exercem. (…) Por seu lado, a Requerida, como gerente de direito, pese embora os factos aferidos possam hipotisar que ela estivesse um pouco afastada dos negócios da sociedade, tinha o encargo legal de se encontrar a par da “aventura societária” e de não adotar atitude inerte. Se não sabia dos assuntos, a Requerida tinha o ónus elementar de sobre eles se inteirar, de mais a mais se tivermos em conta que era a única sócia quotista e gerente de direito da sua sociedade unipessoal. Nem é crível que ignorasse a atuação do respetivo gerente de facto.” E conclui-se na sentença que os factos casuísticos apurados respaldam o previsto nas alíneas a) e b) do n.º 3, do artigo 186.º do CIRE. Dissentindo, diz o apelante que até ao segundo semestre de 2019, não era sequer vislumbrável nenhuma quebra do desempenho operacional da empresa, que só se veio a consumar após junho de 2019, com o fim da relação contratual com o seu mais importante cliente (quebra essa a que a sociedade insolvente poderia, de resto, legitimamente, querer reagir nos meses seguintes, sem logo aí requerer a sua insolvência); que foi a insolvência da Sociedade I., S.A. que precipitou a deterioração da situação financeira da sociedade insolvente, por ter precipitado a litigância relativa à propriedade dos bens imóveis – este risco para a sua situação patrimonial não existia até então; que a ocorrência da declaração da insolvência em meados de 2020 não causou quaisquer prejuízos para os credores relativamente aos créditos até aí vencidos; que o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência – incumprimento esse que não se verificou – só permitiria qualificar a insolvência como culposa se se evidenciasse a existência de nexo de causalidade entre a mesma e a criação ou agravamento da situação de insolvência, o que não se verificou no caso dos autos; que a gerente MB e o recorrente foram completamente alheios à interrupção do acesso ao servidor da sociedade insolvente, provocada pela sua apreensão no âmbito do processo de insolvência da sociedade I., S.A., o que sempre afastaria qualquer presunção de culpa grave; e que, à semelhança do que sucede quanto ao facto-índice previsto na alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, também a falta de elaboração, de submissão à devida fiscalização ou de depósito das contas só permitiria qualificar a insolvência como culposa se se evidenciasse a existência de nexo de causalidade entre a mesma e a criação ou agravamento da situação de insolvência, o que também não se verificou no caso dos autos (conclusões 74ª e 78º a 85ª). Vejamos. No tocante à questão da violação do dever de apresentação à insolvência (art. 186º, n.º 3, al. a) do CIRE), apurou-se que a presente insolvência não foi decretada na sequência da apresentação da devedora, mas sim a requerimento (formulado a 28/05/2020) de um credor. Ora, o devedor deve requerer a sua declaração de insolvência no prazo de 30 dias seguintes à data do conhecimento dessa situação ou à data em que devesse conhecê-la, presumindo-se de forma inilidível o conhecimento pelo devedor decorridos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de alguns dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do art. 20º – cfr. art. 18º, nºs 1 e 3 do CIRE. Assim, o período temporal relevante situa-se entre 28/05/2017 e 28/05/2020, com possibilidade de extensão até 28/08/2020, atento o disposto no art. 4.º, n.º 2, do CIRE. Ora, pese embora a sentença declaratória da insolvência tenha sido decretada por aí se ter considerado – por confissão ficta – ser a ora insolvente devedora, o certo é que nos presentes autos de incidente de qualificação da insolvência não se provou ser a mesma devedora de quaisquer quantias à I., SA Como supra deixámos expresso, os factos assentes no processo principal não fazem caso julgado no presente incidente. Por outro lado, nada obsta a que se possam ter por adquiridos para o processo outros factos decorrentes da actividade do tribunal e/ou do administrador, nos termos dos arts 11º do CIRE e 413º do CPC, nomeadamente os créditos reconhecidos pelo AI, na parte não impugnada – cfr. neste sentido o Ac. STJ de 6/11/2018, Henrique Araújo (Relator), acessível em www.dgsi.pt. Assim, considera-se assente nos autos ter aquele, na lista a que se reporta o art. 129º do CIRE, reconhecido créditos, no valor global de €786.310,06 (posteriormente, em sede de verificação ulterior de créditos, foram ainda reconhecidos por sentença, créditos no valor global de €14.508,14). Certo é que se desconhecem as datas em que se venceram esses créditos, sabendo-se apenas que o crédito de maior valor, reclamado por P., Unipessoal, Lda (proveniente de mútuo com hipoteca), foi reconhecido pelo valor de €442.371,92 (esse crédito era originariamente da CGD, posteriormente foi cedido à CLOONEY ISSUER DESIGNATED ACTIVITY COMPANY e finalmente à reclamante – vide certidão da descrição predial do imóvel registado na CRP de Manteigas sob o n.º 586); e que quando a empresa cessou a sua actividade, em Setembro de 2019, existiam créditos dos trabalhadores por liquidar, sendo os créditos reconhecidos a estes do montante global de €256.061,11 (vide lista de créditos reconhecidos e não impugnada quanto aos valores reconhecidos). Deste modo, estando desde Setembro de 2019 sem actividade, a sociedade não auferia quaisquer rendimentos, pelo que em finais desse ano a mesma carecia de meios líquidos para satisfação das suas obrigações vencidas, mostrando-se assim preenchido o facto-índice a que alude a alínea b) do n.º 1 do art. 20º do CIRE. Efectivamente, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e Da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, pag. 86): “(…) a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas. O que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Com efeito, pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante”. Nesta matéria, assinala Meneses Leitão (in Direito da Insolvência pag. 79) que “a insolvência corresponde à impossibilidade de cumprimento pontual das obrigações e não à mera insuficiência patrimonial, correspondente a uma situação líquida negativa”. Como já salientava Alberto dos Reis (in "Processos Especiais, vol. II, pág 323), a falência tanto pode resultar de várias recusas de pagamento, como de uma só, desde que seja feita em circunstâncias ou precedida ou acompanhada de actos que revelem a impossibilidade de pagar. Para o preenchimento da previsão da norma em causa exige-se, não só a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações, mas também que essa falta pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações. Na verdade, tal como a doutrina vem entendendo, o incumprimento é um facto, enquanto a insolvência é um estado ou uma situação patrimonial do devedor – cfr. Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, pag. 56. O montante das dívidas da devedora e a circunstância da mesma não possuir actividade, evidenciam, à luz das regras da normalidade, a carência de meios económicos líquidos para esta proceder em finais de 2019 ao pagamento pontual da generalidade das suas obrigações, sendo que o apelante não demonstrou que, apesar da verificação daquele facto-índice, a devedora não se encontrava efetivamente em situação de insolvência (arts. 3º, n.º 1, e 30º, n.º 3, do CIRE), ou seja, que esta não só dispunha de activo suficiente para liquidar o passivo, mas, outrossim, que tinha capacidade para cumprir, com regularidade e pontualidade, as suas obrigações, isto é a demonstração de que possuía crédito e património activo líquido suficiente para saldar o seu passivo. E em princípios de Março de 2020, isto é, decorridos mais de seis meses após o vencimento dos créditos emergentes de contrato de trabalho e da sua cessação, verificava-se também o facto índice plasmado no art. 20º, n.º 1, al. g)iii do CIRE conducente ao decretamento da insolvência. A devedora encontrava-se, pois, desde, pelo menos, finais de 2019, em situação de insolvência actual, e não apenas iminente, facto que não poderia deixar de ser do conhecimento dos seus gerentes de facto e de direito (na ocasião, tiveram, naturalmente, conhecimento da cessação, quer dos contratos de trabalho, quer da actividade da empresa). Assim, a gerente da devedora deveria ter tomado a iniciativa da apresentação à insolvência, no prazo de 30 dias, seguintes ao conhecimento dessa situação, o que não fez, tendo esta sido requerida por uma credora em 28/05/2020. Presume-se, por isso, a culpa grave dos gerentes de facto e de direito da insolvente. E se tivesse apresentado a sociedade à insolvência, esta seria imediatamente decretada (art. 28º do CIRE). Quanto à omissão de elaborar as contas anuais e de submetê-las a aprovação e depósito na conservatória, provou-se que a sociedade insolvente não depositou contas referentes ao ano de 2019. Estas deveriam ter sido apresentadas até ao dia 30/06/2020, em face da prorrogação do prazo estabelecido no art. 18º do Dec-Lei 10-A/2020, de 13/03, no contexto da pandemia de Covid-19. Presume-se, por isso, a culpa grave dos gerentes de facto e de direito da insolvente. Mas, conforme acima aludimos, estabelecendo-se no n.º 3 do artigo 186º, do CIRE, uma presunção de culpa grave, é necessário provar a causalidade da conduta em relação à criação ou agravamento da situação de insolvência, em obediência ao disposto no n.º 1 do citado preceito, prova essa que não foi feita. Efectivamente, não se mostram apurados quaisquer factos que demonstrem que a não apresentação à insolvência criou ou agravou a situação de insolvência, não se tendo provado, além do mais, que após a verificação da situação de insolvência se constituíram e venceram novos créditos sobre a sociedade insolvente. Também não se mostra apurado qualquer facto que demonstre que o não depósito dos documentos de prestação de contas na conservatória do registo comercial competente criou ou agravou a situação de insolvência. Não se provou, pois, em termos naturalísticos (plano puramente factual), o nexo de causalidade entre a não apresentação à insolvência e/ou a não apresentação de contas e a criação ou agravamento da situação de insolvência (relação causa-efeito). Conclui-se, por isso, que o comportamento apurado dos gerentes, de facto e de direito, da insolvente não preenche as als. a) e b) do n.º 3 do art. 186º do CIRE, assistindo, assim, neste ponto razão ao apelante. Quanto à alínea i) do n.º 2 do art. 186º: Após se aludir à verificação da situação plasmada na alínea h) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, refere-se na sentença recorrida: “O mesmo se diga quanto ao incumprimento, de forma reiterada, dos deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º do CIRE. (…) o artigo 83.º, n.º 3, do CIRE postula que a recusa de prestação de informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo julgador, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa. Para esta norma não conflituar com o dispositivo do artigo 186.º, n.º 2, al. i), do CIRE, há de se entender que o poder de livre apreciação, que o n.º 3 do atrás citado artigo 83.º comete ao juiz, não se aplica quando o incumprimento dos deveres de apresentação e de colaboração seja reiterado. Neste caso, uma vez apurada a reiteração – e só quanto à verificação desta o juiz tem liberdade de decisão – a insolvência é sempre qualificada de culposa. (…) Pois bem, da factualidade provada retira-se, e isso foi relativamente linear em contexto de audiência final, a integração factual das previsões das alíneas h) e i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, razão pela qual a qualificação da insolvência como culposa, por força de qualquer dos aludidos dispositivos legais, emerge com robustez suficiente. Importa enfatizar que os Requeridos não se apresentaram, tampouco colaboraram, até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º do CIRE e que os mesmos – ela administradora de direito, ele administrador de facto – se mantiveram em flagrante passividade a esse nível, em nada auxiliando nas funções do Administrador da Insolvência. Os únicos elementos que este obteve foram angariados, tal como os factos demonstrados relatam, através do contabilista certificado CP, na medida do que estava ao limitado alcance deste.” Dissentindo, sustenta o apelante que nunca foi citado, notificado ou contactado por ninguém: nem pelo Tribunal, nem pelo senhor Administrador de Insolvência, nem por qualquer outro interveniente no âmbito do processo de insolvência da sociedade insolvente, não se podendo concluir que tenha violado, alguma vez, algum dos deveres previstos no artigo 83.º do CIRE; e que, de qualquer modo, a Lei exige, expressamente, a forma reiterada do incumprimento dos deveres de apresentação e de colaboração (cfr. al. i) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE), a qual não surge sequer referenciada nos autos (conclusões 66ª a 70ª). Vejamos. O gerente de facto, ora apelante, à semelhança da gerente de direito, estava obrigado a prestar toda a colaboração e a fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe fossem solicitadas pela administradora de insolvência para efeitos do desempenho das suas funções – art.83º, n.ºs 1 e 4, do CIRE. Como resulta do art. 186º, n.º 2, al. i) do CIRE, para que haja incumprimento deste dever é necessária uma interpelação para o efeito. Essa interpelação não resulta provada relativamente ao gerente de facto …. No que toca à gerente de direito e à insolvente, o tribunal a quo deu como provado: 10. Em 8 de setembro de 2020, o Administrador da Insolvência dirigiu à indicada sócia e gerente da Insolvente uma carta a solicitar as informações a que alude o artigo 24.º do CIRE, a qual foi entregue em 9 de setembro de 2020 (cfr. documentos n.ºs 1 e 2); 11. Na mesma data, também remeteu uma carta para a sede social da mesma sociedade a solicitar iguais informações, que veio devolvida ao remetente com a indicação de “Mudou-se” (cfr. documentos n.ºs 3 e 4); 14. Daquelas diligências resultou que a sócia e gerente, apesar de ter recebido a carta, nada respondeu. A factualidade descrita nos pontos 10º e 11º foi, porém, por nós alterada, tendo-se considerado apenas provado o seguinte: 10. Em 8 de setembro de 2020, o Administrador da Insolvência dirigiu à indicada sócia e gerente da Insolvente uma carta a solicitar as informações a que alude o artigo 24.º do CIRE, que endereçou para a Avª …, n.º 35, 5.º-C, 2825-393 Costa da Caparica, 14. A sócia e gerente da G., Lda, nada respondeu. Assim, não se provou que a carta endereçada à gerente de direito MB (nesta solicitava-se a prestação das informações, nomeadamente as referenciadas no art. 24º, n.º 1, als. a), b), c), e), f), j)) tivesse sido recebida por esta, pois que, certamente por lapso do AI, a mesma foi remetida para o n.º 35º da Av.ª …, Costa da Caparica, e não para o n.º 36, local fixado na sentença declaratória da insolvência como residência daquela. Não se considera, por isso, a mesma notificada, sendo que omissão da gerente de direito em não colaborar com o AI não constitui uma violação do art. 186º, n.º 2, al. i) do CIRE. Assim, não se provou que os gerentes, de facto e de direito, da insolvente tivessem reiteradamente incumprido o dever de colaboração, como exige o citado normativo. Nestes termos, ao contrário do vertido na sentença recorrida, não se considera preenchida a citada al. i), procedendo também neste ponto a pretensão do apelante. Quanto à alínea h) do n.º 2 do art. 186º: Refere-se na sentença recorrida: “(…) em relação ao incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada, de ter mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor, é de considerar que os factos apurados na lide apontam nesse sentido – pelo menos, a falta de contabilidade organizada, na sua substância, e cometimento de irregularidades com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da sociedade devedora. E conclui-se que da factualidade provada retira-se, e isso foi relativamente linear em contexto de audiência final, a integração factual da previsão da alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, razão pela qual a qualificação da insolvência como culposa emerge com robustez suficiente, “além da patenteada desorganização da contabilidade da empresa, ou mesmo a ausência dela no ano de 2019, com a comissão de irregularidades prejudiciais à cabal compreensão da situação patrimonial e financeira da sociedade devedora, conforme acima se demonstrou”. Na apelação propugna o apelante que os pretensos créditos da Massa Insolvente de I., S.A. não constavam das IES porque não existiam e, por isso mesmo, também não foram reconhecidos no presente processo de insolvência da sociedade insolvente, conforme resulta do facto provado n.º 18 da sentença recorrida e ainda da lista definitiva de credores reconhecidos; que ocorreu uma interrupção no acesso ao servidor, deixando a sociedade insolvente e o técnico oficial de contas, CP, a partir de uma determinada altura, sem acesso ao mesmo, sendo tal alheio à sociedade insolvente, à sua sócia e gerente MB e ao recorrente; que resulta do conhecimento do padrão de funcionamento de uma sociedade com o perfil da sociedade insolvente que uma parte significativa da informação necessária ao seu apuramento contabilístico se encontrava acessível através de fontes externas, como o portal e-factura, ou mesmo em informações passíveis de solicitação a entidades externas ao processo, como os extratos bancários da sociedade insolvente; que a sociedade insolvente fez chegar ao seu TOC um conjunto de elementos que permaneciam na sua posse, e que concorriam para que fosse possível preparar as demonstrações financeiras referentes ao ano de 2019 (o último ano de atividade efetiva da empresa); que caso ainda assim não pudesse ser recolhida toda a informação necessária por meios alternativos, e na medida em que essa recolha não fosse completa, incumbiria ao TOC requerer junto do senhor Administrador de Insolvência o acesso, físico ou remoto, à informação do servidor – o que não ocorreu; que decorreu da inação e da negligência deste TOC que a Informação Empresarial Simplificada referente ao ano de 2019 (i.e. com data de referência de 31/12/2019) não tenha sido submetida, mesmo que em circunstâncias limitativas (por facto superveniente) do seu pleno apuramento; que o Tribunal “a quo” não identificou, no âmbito do elenco dos factos provados, quais os factos constantes da contabilidade que julgou “incorrectos” ou “falsos”, nem qualquer prejuízo relevante que teria resultado dessas pretensas (mas não identificadas) “incorrecções” ou “falsidades” para a compreensão da situação patrimonial e financeira da sociedade insolvente, nem nada refere sobre o grau de incumprimento (se substancial ou não), nem sobre a relevância de prejuízos daí decorrentes; e que no caso dos autos, não houve incumprimento em termos substanciais em matéria contabilística, e ainda menos capaz de causar prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da Sociedade Insolvente (conclusões 56ª a 65ª). Vejamos. A contabilidade assume particular relevância para aferir se a actividade da sociedade respeitou as normas que protegem os terceiros que com ela contratam, permite controlar e evitar a concorrência desleal e assim proteger as outras empresas do mesmo sector, os próprios sócios da sociedade, não gerentes para que estes possam controlar a actividade da sociedade e os interesses gerais da comunidade, designadamente para possibilitar ao Estado arrecadar os impostos legalmente fixados – cfr. Ac. RG 12-01-2017, José Cravo (relator), acessível em www.dgsi.pt. Manter a contabilidade organizada é uma obrigação permanente que segue as regras do Sistema de Normalização Contabilística aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009 de 13/07 (retificado pela Declaração de Retificação n.º 67-B/2009 de 11/09) obrigatório para as sociedades comerciais (cfr. art. 3º nº1, al. a) do referido Decreto-Lei) e culmina com a obrigação anual de prestação de contas prevista no art. 65º do CSC, o que pressupõe a análise e lançamento dos documentos, sendo as operações transcritas e ordenadas em relação a cada uma das contas a que respeitam, por forma a permitir o conhecimento do estado e situação de qualquer delas a cada momento. Com estes registos elabora-se o balancete, que permite ir verificando a igualdade das somas dos débitos e dos créditos e a soma dos saldos devedores e credores, que, depois de verificado e regularizado – sendo esse o trabalho de apuramento, no final do exercício – dá lugar ao balancete final que serve de base à elaboração do balanco. O conjunto completo de demonstrações financeiras inclui o Balanço, a Demonstração dos resultados por naturezas, a Demonstração das alterações no capital próprio, a Demonstração dos fluxos de caixa pelo método direto e o Anexo (cfr. als. a) a e) do nº1 do art. 11º do Decreto-Lei n.º 158/2009) – cfr. Ac. desta Relação e secção de 23 de Março de 2021, Fátima Reis Silva (relatora), acessível em www.dgsi.pt. No caso, a obrigação de manutenção da contabilidade organizada a cargo da gerência apenas cessou com a sentença de declaração da insolvência da sociedade, que ocorreu no dia 28/08/2020. Ora, provou-se que foram apresentadas as IES relativa aos exercícios de 2017 e 2018, bem como declarações modelo 22 de IRC relativas a 2017 e 2018, o que indicia a existência de contabilidade organizada. Apurou-se, porém, que não foram encerradas as contas do exercício de 2019, por os serviços de contabilidade não terem acesso remoto ao servidor com os dados, nem terem na sua posse os documentos necessários a tal procedimento, se bem que ainda tivessem processado os vencimentos relativos ao mês de Agosto de 2019. Significa isto que essa falta de acesso à documentação e seu processamento contabilístico ocorreu em finais de 2019 e prolongou-se até à declaração de insolvência (a 28/08/2020). Sustenta o apelante que tal ocorreu em virtude da apreensão do servidor ocorrida no âmbito da insolvência da sociedade I., SA, decretada por sentença proferida dia 13/02/2020. Certo é que até à ocorrência dessa apreensão decorreram vários meses e a sociedade ora insolvente estava sem actividade desde pelos menos Setembro de 2019. Ora, aquando da sua apreensão, caso o servidor ainda contivesse dados necessários para a realização das operações contabilísticas, o que nem sequer se apurou, sempre a sociedade G., Lda poderia ter diligenciado pela obtenção de cópia dos respectivos ficheiros junto do AI da Massa Insolvente da I., SA e fornecê-los à empresa de contabilidade, competindo à gerência da insolvente diligenciar nesse sentido. E, ao contrário do sustentado nas conclusões recursivas, não se demonstrou, nem tal foi alegado oportunamente nos autos, que fosse possível ao TOC, com os elementos de que dispunha e com aqueles a que tinha acesso, preparar as demonstrações financeiras referentes ao ano de 2019. Assim, durante vários meses a sociedade esteve sem contabilidade organizada, tendo a falta de acesso à documentação inviabilizado o encerramento da conta de exercício do ano de 2019 (tal deveria ser feito até 30/06/2020, por efeito da prorrogação do prazo estabelecido no art. 18º do Dec-Lei 10-A/2020, de 13/03, no contexto da pandemia de Covid-19). O fecho de contas é um procedimento contabilístico obrigatório e tem como objectivo o relato financeiro da situação patrimonial, evidenciando os resultados e as razões que os determinaram, sendo tal relevante para os diversos interessados (credores, fornecedores ou outros), entre os quais se encontra o Estado. A sua falta impede que se consiga saber qual a causa da insolvência e precisar a responsabilidade de cada um dos seus gerentes (de facto e de direito), impedindo, nomeadamente, o AI de apurar da existência da dívida reclamada pela I., SA sobre a insolvente. Assim, é incontestável que a sociedade insolvente comprometeu seriamente os interesses que a obrigação de manter contabilidade organizada visa acautelar, sendo de qualificar como substancial essa omissão de dados absolutamente relevantes da realidade financeira e do património da sociedade. E, como supra se explanou, por via da existência das presunções inilidíveis de culpabilidade, previstas no n.º 2 do art. 186º do CIRE, alegados e provados os factos que servem de base a uma dessas presunções, a insolvência será sempre considerada como culposa, porque a simples verificação do facto base da presunção faz imediatamente presumir o nexo de causalidade entre a conduta culposa e a criação ou agravamento da insolvência previsto no n.º 1. Não pode, por isso, deixar de se qualificar o incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada como substancial, sendo essa circunstância qualificadora da insolvência como culposa. Esse incumprimento é imputável aos dois afectados pela qualificação da insolvência como culposa. Efectivamente, segundo se apurou, a afectada MB era a gerente de direito e não de facto, e o afectado LP era o gerente de facto, pois que era este quem tomava as decisões necessárias ao funcionamento da sociedade, ora insolvente, quem dava ordens aos trabalhadores, quem contratava os fornecedores e clientes e quem geria e definia toda a atividade e estratégia da empresa. E o art. 189º, nº 2, do CIRE, para efeitos de afectação dos administradores da insolvente pela qualificação da insolvência como culposa, atribui relevo aos administradores de facto, mas não exclui da qualificação os administrador de direito, que não exerçam as suas funções de facto – cfr. neste sentido os Acs RC de 14-04-2015; da RG de 21.05.2020; da RP de 6/9/2021 e de 10.12.2019, todos acessíveis em www.dgsi.pt; e Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, pag. 157. Deve assim ser afectado pela qualificação da insolvência como culposa o gerente de direito, ainda que não exerça a gerência de facto, porquanto essa qualidade, permite-lhe acompanhar a vida da sociedade, inteirar-se do modo como gerência é exercida, zelar pelo cumprimento dos deveres legais. Um administrador, devidamente nomeado e cuja designação foi registada que não exerce qualquer ato de gerência de facto é um gerente que viola o fundamental dever de cuidar, de administrar, previsto no art. 64º do CSC. O recorrente pode e deve, assim, ser afectado pela qualificação da insolvência como culposa. A ilicitude da actuação dos afectados situa-se na assunção de comportamentos omissivos, ao não providenciarem no sentido da sociedade ter contabilidade organizada no período em referência. Desta forma, ao considerar que se perfilava a situação prevista na alínea h) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE, o Tribunal a quo decidiu acertadamente, pois o incumprimento verificado assume natureza substancial e assim a insolvência deve ser qualificada culposa pela verificação da presunção nela contida. Das consequências da qualificação da insolvência como culposa: No que tange à duração do período de inibição fixado na sentença não vem equacionada na apelação essa questão, pelo que não se conhecerá da mesma. Também não vem especificamente questionada na apelação a decisão constante da al. b) do dispositivo da sentença, na qual se determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente eventualmente detidos pelos afectados pela qualificação. Resta, pois, conhecer da questão do valor da indemnização fixado na sentença. Do valor indemnizatório fixado na sentença: Na sentença decidiu-se condenar “os Requeridos a indemnizarem a credora/requerente Massa Insolvente de I., S.A., no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre ambos os afetados; ou seja, na indemnização equivalente ao montante global que a mencionada requerente não pôde ver reconhecido na insolvência, de € 5 566 053,80 (cfr. ponto 18 dos factos provados) – cfr. artigo 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE (na redação da Lei n.º 16/2012, de 20 de abril)”. Essa decisão baseou-se na seguinte fundamentação: “Por fim, não há como preterir a condenação dos dois afetados a indemnizarem a credora da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre ambos os afetados (cfr. alínea e)). Ou seja, a indemnização devida, nos termos do n.º 4 do preceito legal, equivalerá ao montante global que a massa insolvente requerente não pôde ver reconhecido através da insolvência (= € 5 566 053,80 – cfr. ponto 18 dos factos provados). Com efeito, a condenação segundo a alínea e) do citado n.º 2 (na redação dada pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, que era a versão em vigor no triénio relevante em questão) constitui um imperativo do Tribunal. Se houver juízo de declaração de culpa, o julgador não tem a faculdade de afastar a responsabilidade do culpado, seja ele administrador de direito ou de facto. E quando, realmente, o processo permite aferir, com grau suficiente de segurança, quanto é que os credores não conseguirão receber à custa da massa insolvente, então o Tribunal deve fixar, nesse valor, o montante indemnizatório pelo qual respondem os culpados solidariamente. Só em último recurso se deverá avançar para a via incidental da liquidação de sentença, mas essa solução-limite não se justifica na situação vertente. Certo é que o Tribunal dispõe de todos os elementos para decidir e não deixará de o fazer.” Contrapõe o apelante que os pretensos créditos da Massa Insolvente de I., S.A. não foram reconhecidos, por não existirem, no presente processo de insolvência da sociedade insolvente, conforme resulta do facto provado n.º 18 da sentença recorrida e ainda da lista definitiva de credores reconhecidos (cfr. requerimento do administrador de insolvência de 09/11/2020, constante do apenso C), o que significa que a Massa Insolvente de I., S.A. não assume a qualidade de credora nos presentes autos; que o tribunal viola flagrantemente o disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, pelo que tal condenação deve ser revogada; que ainda que assim se não entendesse, sempre deveria o Tribunal “a quo” ter-se abstido nessa condenação (nenhum dano foi demonstrado, pelo que o Tribunal “a quo” condenou o recorrente em indemnização num montante em muito superior ao dano -cfr. art.º 483.º, n.º 1, art.º 562.º e art.º 563.º, todos do CC), não sendo tal interpretação conforme à Constituição, nomeadamente, do princípio constitucional da proporcionalidade decorrente do Estado de Direito Democrático em conjugação com os direitos fundamentais e das disposições conjugadas nos artigos 2.º, 18.º e 8.º, todos da Constituição (conclusões 87ª a 94ª). Vejamos. Liminarmente, assinale-se que o recurso interposto pelo apelante aproveita á afectada MB, nos termos do art. 634º, n.ºs 1 e 2 al. c) do CPC. Posto isto, analisemos a questão posta na apelação. Preceitua a al. e) do n.º 2, do art.º 189.º, do CIRE, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, que na sentença que qualifique a insolvência como culposa, deve o juiz condenar “as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados”. E acrescenta o n.º 4 do art. 189º que ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efectuar em liquidação de sentença. Como se observou no Ac. TC n.º 280/2015, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do art. 189º, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes da qualificação da insolvência como culposa. Interpretação diferente do art. 189º, n.º 2, al. e) e n.º 4, conduziria à existência de responsabilidade por danos sem culpa, ao contrário do regime da responsabilidade para com os credores sociais plasmado no art. 78º do CSC para os gerentes ou administradores das sociedades comerciais. Careceria assim de fundamento razoável o estabelecimento de uma tal responsabilidade, a qual seria excessivamente onerosa para os afectados, o que seria susceptível de violar o princípio (constitucional) da proporcionalidade e da proibição do excesso, posto que as normas sobre a responsabilidade estão sujeitas a um controlo de proporcionalidade – Cfr. Nuno Pinto, Responsabilidade Civil dos Administradores, Coimbra Editora, pag. 222; vide ainda as considerações expostas por Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2017-2ª edição, pag. 437; e sobre o princípio da proporcionalidade podem ser consultados acórdãos do Tribunal Constitucional nº 187/2001, de 2 de Maio, nº 632/2008, de 23 de Dezembro e nº 360/2016 de 8 de Junho de 2016. É que a responsabilização dos administradores ganha sentido apenas nos casos em que estes tenham contribuído para os danos causados aos credores, em consequência de uma actuação dolosa ou com culpa grave. Mas, como vimos, essa condenação visa a indemnização de todos os “credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos”. Não foi isso, porém, que foi feito na decisão recorrida, na qual apenas se condenaram os afectados a indemnizarem a credora/requerente Massa Insolvente de I., S.A., em valor “equivalente ao montante global que a mencionada requerente não pôde ver reconhecido na insolvência, de € 5 566 053,80 (cfr. ponto 18 dos factos provados)”. Dito isto, assiste razão ao apelante quando sustenta que os pretensos créditos da Massa Insolvente de I., S.A. não foram reconhecidos, o que significa que a Massa Insolvente de I., S.A. não assume a qualidade de credora nos presentes autos. E, como é sabido, os credores da insolvência têm de exercer os seus direitos no processo e segundo os meios processuais regulados no Código (art. 90º do CIRE). Têm, por isso, o ónus de proceder à reclamação de créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem reconhecidos em outro processo (art. 128º, n.º 3). Acontece que o crédito reclamado pela Massa Insolvente da I., SA, no valor de €5.566.053,80 não foi reconhecido pelo AI (vide facto n.º 18). E, conforme se verifica do apenso C, também não foi deduzida impugnação à lista de créditos elaborado pelo AI, com fundamento na indevida exclusão daquele crédito. Assim sendo, uma conclusão se impõe: a Massa Insolvente da I., SA não demonstrou no apenso de verificação de créditos, e agora já não o pode fazer, ser titular de qualquer crédito sobre a insolvente G., Lda. Consequentemente, carece de fundamento legal a condenação dos afectados no valor indemnizatório plasmado na sentença recorrida, impondo-se a revogação deste segmento da decisão. Procede, deste modo, em parte, a apelação. As custas do incidente e da apelação ficam a cargo do apelante e da massa insolvente, na proporção de metade cada um – art. 527º, n.ºs 1 e 2, do CPC. *** Sumário: 1. O n.º 2 do art.º 186.º do CIRE estabelece, em complemento da noção geral antes fixada no n.º 1, presunções inilidíveis que, como tal, não admitem prova em contrário, conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos aí referidos à qualificação da insolvência como culposa. 2. O n.º 3 do art. 186.º do CIRE não dispensa a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência. 3. A obrigação de manutenção da contabilidade organizada a cargo da gerência apenas cessa com a sentença de declaração da insolvência da sociedade. 4. A responsabilidade indemnizatória do afectado pela qualificação da insolvência deve conter-se na medida do dano que o mesmo, com a sua específica conduta, causou à massa insolvente e, reflexamente, aos credores reclamantes. 5. Credores da insolvência são apenas os que virem os seus créditos reconhecidos nos autos. *** V. Decisão: Pelo acima exposto, decide-se: a. Julgar improcedente a apelação relativamente à decisão proferida dia 4/12/2023, confirmando-se a mesma, ainda que com fundamentação essencialmente diversa; b. Custas desse recurso pelo apelante, enquanto parte vencida; c. Não admitir a junção aos autos dos documentos juntos com as alegações de recurso da sentença de qualificação da insolvência; d. Julgar a apelação interposta dessa sentença parcialmente procedente, e, em consequência, decide-se revogar a decisão contida em c) do dispositivo da sentença que condenou solidariamente os afectados pela qualificação da insolvência como culposa no pagamento de uma indemnização, confirmando-se no demais a sentença recorrida, no que toca à qualificação da insolvência como culposa, nos termos do art. 186º, n.ºs 1 e 2, al. h) do CIRE, e ao decidido nas als. a) e b) do dispositivo da sentença; e. Custas do incidente e da apelação a cargo do apelante e pela massa insolvente, na proporção de metade cada um; f. Notifique. Lisboa, 11 de Julho de 2024 Manuel Marques Amélia Sofia Rebelo Renata Linhares de Castro |