Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5524/18.0T8FNC.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO A BORDO DE NAVIOS
INCUMPRIMENTO CULPOSO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
LEI DO PAVILHÃO DO NAVIO
REGULAMENTO BRUXELAS I
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.Como pressuposto processual que é, a competência internacional tem de ser aferida à luz da relação material controvertida tal como o autor, subjetiva (quanto aos sujeitos) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir), a configura na petição inicial, ou seja, pelo quid disputatum - quid decidendum - em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum.

2.Um iate comercial é um navio enquanto engenho apto a navegar no mar e utilizado ou suscetível de ser utilizado no transporte de pessoas ou mercadorias.

3.Nem a Convenção de Roma Sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, nem o Regulamento Roma I contêm uma regra especial sobre o contrato de trabalho a bordo de navios.

4.A continuidade, certeza jurídica, não discriminação entre tripulantes e coordenação com os regimes de Direito público em matérias administrativas, técnicas e sociais, justificam uma preferência de princípio pela lei do pavilhão do navio.

5.Porém, a competência internacional relativa a matérias respeitantes ao contrato individual de trabalho encontra-se regulada no Regulamento Bruxelas I, que reflete um especial cuidado nos casos em que estão em causa partes contratuais mais fracas como é o caso dos trabalhadores, cuja proteção não passa apenas por consagrar disposições materiais que atenuem a sua fragilidade, mas também por adotar regras relativas àquela competência que tutelem esses interesses.

6.É assim que, nos termos do art. 22.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I, num caso em que a entidade patronal, com sede em Portugal, instaura contra o trabalhador, cidadão francês, residente em França, uma ação de indemnização para ressarcimento dos prejuízos que afirma ter sofrido em consequência do alegado incumprimento culposo, por este, do contrato de trabalho que os unia, e cujas funções eram por ele prestadas a bordo do iate, internacionalmente competentes para a tramitação e julgamento dessa ação são os tribunais franceses e não os portugueses.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


IRELATÓRIO[1]:


A  [.... Company Shipping, Lda.], com sede na Rua ...., nº ..., ...º Andar, ... ..., Porta ..., F_____, intentou a presente ação declarativa de condenação contra B [Alain .....], de nacionalidade francesa, residente em Cannes, ....., Cannes La Boca, França, alegando, em síntese, que é proprietária de um iate comercial denominado “L... J...”, registado no Registo Internacional de Navios da Madeira, matriculado sob o nº ...0, fls. ...6v, do Livro-...-2º e a sua propriedade inscrita sob o nº 1..., fls. 1...v, Livro ...-4º,­ iate esse que utiliza no exercício do seu objeto social.

A autora contratou o réu para exercer as funções de Capitão, a bordo do iate.

As obrigações inerentes à função para a qual o réu foi contratado são as seguintes: - Estudar a viagem, incluindo a rota a seguir; - Coordenar os serviços de plataforma, todas as máquinas e as comunicações de rádio, para o seu bom funcionamento; - Dirigir, coordenar e supervisionar todas as atividades relacionadas com a operação comercial do navio, mantendo contacto com a primeira contratante, carregadores, agentes de navegação, estivadores e outras entidades envolvidas nas transações; - Coordenar o navio trabalhando com vários serviços terrestres da Parte Contratante; - Cumprir e fazer cumprir, as normas relativas ao navio e à tripulação, no que diz respeito à segurança, meio ambiente e segurança de vidas humanas no mar; - Manter o diário de bordo atualizado, em Inglês, sobre as atividades a bordo do navio; - O diário de bordo não pode ter espaços vazios em qualquer dia e deve ser assinado e deve desenhar as linhas que estão vazias desde o final do texto para a parte inferior da página; - Manter atualizado um registo de contabilidade; - Seguir o navio constantemente, dia e noite, e na sua ausência, delegar a responsabilidade pela supervisão de um membro da tripulação de sua escolha; - Estar no navio, quando os representantes legais do contratante principal, os hóspedes ou clientes estão a bordo; - Consultar com o armador as férias da tripulação; - Ser responsável pela manutenção normal e regular do navio, bem como todos os aspetos ligados à gestão do navio; - Ficar a bordo em caso de risco de viagem durante o curso da mesma ou quando se prevê que haverá algum perigo; - Cumprir com as leis aplicáveis em todos os portos onde o navio se encontrar; - Responsável pela assistência aos passageiros e também por manter em boas condições de todos os bens e instrumentos de trabalho a bordo; - Não usar o navio a título particular quando este se encontra inativo, não alugar, emprestar ou usar o navio para seu uso pessoal, total ou parcialmente, a menos que a Primeira Contratante dê o seu consentimento por escrito; - Não contrair dívidas em nome e por conta do armador; - Não consumir álcool e substâncias ilegais a bordo do navio bem como não embarcar em estado de embriaguez; - Vedar a entrada a bordo do navio de pessoa estranha à tripulação; - Exercer as suas funções com cuidado e diligência.
Sucede que o réu, enquanto exercia as funções de capitão do navio, incumpriu parte das suas obrigações, causando com isso elevados prejuízos à autora, pelos quais esta pretende ser indemnizada.
Conclui pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de € 354.042,13, correspondente ao valor global dos prejuízos que alega ter sofrido.

***

O réu contestou, arguindo, no que para aqui e agora interessa, a exceção dilatória consistente na incompetência internacional dos tribunais portugueses para a tramitação e decisão da presente ação.

Alega, para o efeito, que uma entidade patronal, como é o caso da autora, apenas pode intentar uma ação contra um seu trabalhador, no caso, o réu, nos tribunais do Estado-Membro em que este último tiver o seu domicílio (cfr. art. 22.º, n.º 1 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro.
O Réu tem domicílio em França, país onde, de resto, foi citado para os termos da presente ação, o que significa que, em cumprimento da disposição legal atrás mencionada, a presente ação deveria ter sido instaurada junto dos tribunais franceses.
De resto, e como a autora não ignora, os tribunais franceses julgaram-se competentes para conhecer da ação instaurada pelo réu contra a autora, decorrente da referida relação laboral, tendo, ademais, referido que a relação contratual estabelecida entre as partes se encontra subsumida à Lei francesa.
Conclui o réu, nesta parte, pedido que seja julgada procedente, por provada, a exceção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, em razão da nacionalidade, com a sua consequente absolvição da instância.

***

A autora respondeu a tal exceção, alegando, que o réu oblitera o facto de, entre autora e réu, não vigorar qualquer contrato de trabalho à data da instauração da presente ação, pelo que, nem a autora tem a qualidade de entidade patronal do réu, nem este tem, desde junho de 2016, a qualidade de trabalhador daquela.
Conclui pugnando para que tal exceção seja julgada improcedente, por não provada.

***

Na subsequente tramitação dos autos o tribunal a quo proferiu a seguinte decisão:
«Atendendo a que se passará a apreciar exceção dilatória que já foi debatida na fase articulados, findando os autos pela respetiva procedência, nos termos do disposto no artigo 592, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil, não há lugar à realização de audiência prévia.
Nestes termos passa-se à prolação do despacho saneador.

***
O tribunal é competente em razão da nacionalidade[2].

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Suscita o réu, na sua contestação, a questão da incompetência absoluta deste tribunal, por considerar que, em razão da nacionalidade, são competentes os tribunais franceses.
Alega, em síntese, que, pretendendo a autora a condenação do réu no pagamento de determinada quantia, invocando um incumprimento deste de algumas das obrigações que assumiu no seu contrato de trabalho, em face do estatuído no Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro, os tribunais portugueses são incompetentes para a apreciação do presente pleito.
Replicou[3] a autora pugnando pela improcedência da exceção suscitada.
A questão a decidir é, tendo em conta a descrição acima alinhada, a de determinar se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para dirimir o pleito, tal como ele vem delineado.
Decorre do disposto no artigo 96º do Código de Processo Civil que a infração das regras de competência internacional determina a incompetência absoluta do tribunal.
Suscita-se (ou pode suscitar-se) uma questão de competência internacional quando a causa, através de qualquer dos seus elementos, tem conexão com outra ordem jurídica, além da portuguesa. A competência internacional dos tribunais portugueses traduz-se, pois, na competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspetiva do ordenamento jurídico português, uma relação com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras, apresentam também uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa.
Aos tribunais portugueses cabe aferir a sua própria competência internacional, de acordo com as regras de competência internacional vigentes entre nós.
Todavia, essas regras não são apenas as que constam do Código de Processo Civil.
Sobre estas prevalecem as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas, enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português, bem como as que se inserem em regulamentos comunitários e leis especiais.
Isso decorre, não só do próprio texto constitucional (artigo 8º), como do artigo 59º do Código de Processo Civil, que remete para os artigos 62º e 63º do mesmo diploma, que enunciam as circunstâncias de cuja verificação depende a competência internacional dos tribunais portugueses, mas expressamente esclarece que essas circunstâncias não prejudicam o “que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais”.
Entre eles relevam, além do mais, o Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial. Este Regulamento, que entrou em vigor na data prevista no seu artigo 81º, é aplicável às ações judiciais intentadas depois de 10 de janeiro de 2015 (artigos 66º, n.º 1 e 81º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro) e reporta-se, além do mais, à competência judiciária, e aplica-se em matéria civil e comercial (artigo 1º/1).
Assim, a aplicação do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, no caso em apreço, não suscita dúvidas.
Como regra, o Regulamento mencionado elege o domicílio como fator de conexão relevante para a determinação da competência internacional: de acordo com o n.º 1 do seu artigo 4º, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro, logo acrescentando o n.º 1 do artigo 5º que essas pessoas (as domiciliadas num Estado-Membro) “só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo” – ou seja, por força das regras dos artigos 7º a 26º.
Infere-se do exposto que a aludida regra do domicílio não é absoluta, casos havendo em que o Regulamento permite a instauração da ação nos tribunais de outro Estado-Membro, que não aquele onde o sujeito passivo esteja domiciliado.
Importa ainda reter o princípio que dimana do artigo 62º, n.º 1 do Regulamento: para determinar se uma parte tem domicílio no Estado-Membro a cujos tribunais é submetida a questão, o juiz aplica a sua lei interna.
O já citado artigo 7º do Regulamento enuncia um vasto leque de competências especiais – é dizer, de matérias em que, postergando-se a regra acima enunciada, constante do artigo 4º, n.º 1, uma pessoa com domicílio num Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro.
Interessa ao caso ora em análise, desde logo, o disposto na alínea a) do n.º 1 do indicado preceito: em matéria contratual, uma pessoa com domicílio num Estado-Membro pode ser demandada noutro, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.
E, para efeitos desta disposição e salvo convenção em contrário, logo a alínea b) acrescenta que o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:
- no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues, e
- no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.
Como remate, a alínea c) estatui que se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a).
Interessa também para o caso em apreciação o disposto no n.º 2 do mencionado artigo 7º do Regulamento, que estatui que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro “Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.
Por último, haverá, ainda, que considerar, o estabelecido no artigo 22º, n.º 1 do Regulamento, segundo o qual, “A entidade patronal só pode intentar uma ação nos tribunais do Estado-Membro em que o trabalhador tiver domicílio”.
Feita esta explanação, atentemos, em primeiro lugar, na relação contratual alegada pela autora.
Não tendo sido junto documento de onde constem as obrigações assumidas e, nada mais se tendo aduzido, para além do facto de o réu ter sido “contratado” pela autora para exercer funções de capitão de um iate propriedade daquela, bem como da descrição das funções para que o réu foi “contratado”, afigura-se-nos que o contrato terá que ser qualificado como de prestação de serviços.
A causa de pedir na ação radica num alegado contrato, peticionando a autora o pagamento de uma quantia a título de indemnização por danos que alega ter sofrido em consequência do incumprimento, pelo réu, das obrigações para ele advenientes do mencionado contrato.
Será em face desta realidade que deverá aferir-se da competência que vem discutida.
Assim, face ao artigo 4º, n.º 1 do Regulamento n.º 1215/2012 citado, são os tribunais franceses os competentes para conhecer da causa, visto que a parte demandada está domiciliada em França.
A possibilidade de a demanda correr em Portugal, exigiria, nos termos do artigo 7º do Regulamento, que a obrigação contratual do réu devesse ser cumprida em Portugal; mas, do alegado pela autora, colhe-se que do contrato celebrado entre os litigantes resulta que a prestação dos serviços em causa pelo réu, era para ter lugar em França (a embarcação partiu de localidade francesa e dirigia-se a localidade do mesmo país), não em Portugal, de sorte que não se verifica a situação de competência especial aludida nessa norma.
Donde, o tribunal português é internacionalmente incompetente, sendo competente a jurisdição francesa, Estado-Membro da UE.
A mesma solução seria encontrada mesmo que se considerasse estar em causa responsabilidade civil extracontratual (instituto a que a autora não deixa de fazer referência na petição inicial).
Com efeito, tratando-se de uma ação de indemnização por responsabilidade civil extracontratual, a ré poderia ser aqui demandada, em conformidade com o n.º 2 do artigo 7º, ou seja, se considerarmos Portugal como o “lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”.
No entanto, mesmo assumindo que a interpretação a dar ao n.º 2 do artigo 7.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, segundo o qual “uma pessoa com domicílio num Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”, deverá ser a de que, quando o lugar do facto gerador de responsabilidade extracontratual e o lugar onde esse facto provocou um prejuízo não coincidam, a expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”, que figura no n.º 2 do citado artigo 7º, deve ser entendida no sentido de que se “refere tanto ao lugar onde o prejuízo se verifica como ao do evento causal”, pelo que o autor pode optar entre o tribunal do lugar do facto e o do dano para demandar o alegado responsável, sendo, no entanto, de excluir a atribuição de competência com este fundamento aos tribunais do lugar da verificação de um dano apenas indiretamente causado pelo evento gerador de responsabilidade extracontratual (cfr. Ac. do STJ, de 18.06.2013, proc. n.º 3398/11.1TVLSB.L1-7, www.dgsi.pt), coincidindo, no presente caso, de acordo com o alegado, o lugar (Estado-Membro) onde se verifica o dano com o local (Estado-Membro) onde “o facto foi praticado”, sempre seriam os tribunais franceses e não os portugueses os internacionalmente competentes.
Por último, dir-se-á que, uma eventual qualificação do contrato alegado pela autora como um contrato de trabalho, não alteraria a conclusão a que se chegou relativamente à incompetência internacional dos tribunais portugueses, uma vez que, nos termos do disposto no artigo 22º do Regulamento mencionado, “A entidade patronal só pode intentar uma ação nos tribunais do Estado-Membro em que o trabalhador tiver domicílio”.
A competência é um pressuposto processual que se determina tendo em atenção o modo como o autor configura a lide na petição inicial: diz-se, a propósito, que a competência se determina pelo pedido do autor.
A autora, no caso em apreço, filia a sua pretensão num contrato de prestação de serviços.
Os pedidos formulados pela autora têm, todos eles, a sua génese no contrato celebrado, e que, na tese da demandante, o réu não cumpriu como devia.
A ré tem, reconhecidamente, domicílio em França, pelo que, por força da regra geral válida em matéria de determinação da competência internacional, já acima sobejamente aludida, são competentes os tribunais Franceses.
Para que a ré pudesse ser demandada em Portugal, por aplicação das regras de competência especiais, do artigo 7º e porque estamos perante matéria contratual, era necessário que a obrigação ou obrigações em causa devessem ser cumpridas em Portugal, o que significa – porque é de um caso de prestação de serviços que se trata – que era mister que, nos termos do contrato, os serviços devessem ser ou tivessem sido prestados no nosso País.
Não sendo, como não é, esse o caso - a prestação dos serviços do réu, no âmbito do contrato celebrado, era para ocorrer em França -, a incompetência internacional dos tribunais portugueses têm-se por inquestionável.
Ainda que se consideram outros fundamentos convocados, seja pela autora, caso da responsabilidade civil extracontratual, seja pelo réu, caso do contrato de trabalho, a conclusão seria, como explanamos já, idêntica.
A incompetência internacional determina a incompetência absoluta do tribunal, constituindo uma exceção dilatória, que conduz à absolvição do réu da instância, conforme o disposto no artigo 96º, 99º, n.º 1, 278º, nº. 1, alínea a), 576º, nº. 2 e 577º, al. a), todos do Código de Processo Civil.
Termos em que se julga este tribunal absolutamente incompetente, em razão da infração das regras de competência internacional, para a presente ação, absolvendo-se, em consequência, o réu da instância.»

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Inconformada, a autora interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«a)- A decisão em crise sofre de um pecado original, laborando num erro fundamental, que perpassa toda a decisão: a de que o réu teria sido contratado para exercer as suas funções em França. Ora, isso não tem qualquer adesão à realidade, nem tampouco resulta dos próprios autos;
b)- Desde logo, o R. foi contratado para exercer as funções de funções de Capitão, a bordo do Iate comercial “L... J...”;
c)- O navio em causa, de bandeira portuguesa, navegava pelo mediterrâneo, aportando em diversos países, como Itália, Espanha, França, Portugal e Grécia. Pelo que, nada nos autos nos diz que o contrato celebrado entre as partes era para ser executado em França. Não era. Era para ser executado a bordo de um navio de bandeira portuguesa, propriedade da A., que é uma empresa portuguesa, ao abrigo das leis e jurisdição portuguesas;
d)- O direito português concebe a educação dos filhos como um poder-dever atribuído aos pais, assegurando a proteção da sociedade e do Estado no exercício dessa prerrogativa;
e)-Estamos perante no âmbito do Direito Internacional Marítimo, em cujos navios levantam problemas específicos de regulação jurídica. A conexão permanente com um determinado Estado desempenha um papel determinante quer em certos aspectos da jurisdição permitida pelo Direito Internacional Público quer no tocante à lei reguladora dos direitos reais sobre o navio, dos contratos de trabalho a bordo e da responsabilidade extracontratual por factos ocorridos a bordo de navios ou envolvendo navios. Esta conexão, porém, não é necessariamente a mesma em Direito do Mar e em Direito Internacional Privado;
f)- A actuação danosa do R. teve lugar em alto mar;
g)- Ora, com respeito aos navios que se encontram no alto mar, o Direito Internacional Público atribui uma competência de intervenção coactiva tendencialmente exclusiva, bem como um conjunto de deveres, às autoridades do Estado da “nacionalidade” do navio, e, concomitantemente, estabelece limites à competência dos órgãos de outros Estados. E como já vimos, o navio em causa nos presentes autos é português, porque do ponto de vista do Direito do Mar, o elemento de conexão relevante para o estabelecimento da “nacionalidade” do navio é o pavilhão que esteja autorizado a arvorar (art. 91.º/1 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, Montego Bay, 1982, doravante designada Convenção sobre o Direito do Mar);
h)-Pelo que, a argumentação que é expendida no saneador/sentença, salvo o devido respeito, está errada, porque não considera a Convenção sobre o Direito do Mar. E segundo esta convenção, o direito e os tribunais competentes no caso sub judice, são os portugueses;
i)-A “nacionalidade” do navio também é relevante para o Direito internacional Privado, designadamente, quanto à determinação da lei aplicável aos contratos e à responsabilidade extracontratual;
j)-Diz-nos o REGULAMENTO (CE) Nº. 593/2008 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), embora não contendo uma norma especial sobre o contrato de trabalho a bordo de navios. Mas o que é comum na jurisprudência europeia e nacional é a aplicação da lei do pavilhão do navio, enquanto lugar da prestação do trabalho (art. 8.º/2 do Roma I), e da lei do país onde se situa o estabelecimento que contratou o trabalhador (art.º 8.º/3 do mesmo regulamento europeu);
k)-Assim, se estivermos perante um contrato de trabalho, será aplicável a lei portuguesa e competentes os tribunais portugueses, por força do Roma I.;
l)-A mesma solução será a correcta se estivermos perante responsabilidade extracontratual. Aqui aplica-se o denominado Roma II, ou seja, o REGULAMENTO (CE) n.º 864/2007 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 11 de Julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais;
m)-Estatui o nº 3 do art.º 4º deste Regulamento que: Se resultar claramente do conjunto das circunstâncias que a responsabilidade fundada em acto lícito, ilícito ou no risco tem uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente do indicado nos n.ºs 1 ou 2, é aplicável a lei desse outro país. Uma conexão manifestamente mais estreita com um outro país poderá ter por base, nomeadamente, uma relação preexistente entre as partes, tal como um contrato, que tenha uma ligação estreita com a responsabilidade fundada no acto lícito, ilícito ou no risco em causa;
n)-Ora, como se viu, entre A. e R. é claro que havia um contrato, como aliás a própria decisão em crise, dá como assente. Não ficou assente é se estávamos perante um contrato de trabalho ou de prestação de serviços. Em qualquer dos casos esse contrato, independentemente da sua qualificação jurídica, é o elemento que permite determinar a existência uma conexão manifestamente mais estreita com Portugal, sendo, consequentemente aplicável as leis portugueses e competentes os seus tribunais;
o)-Neste sentido vai a jurisprudência europeia. Veja-se a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça das Comunidades no caso DFDS Torline v. Sjöfolk (2004), relativamente     a um problema de competência internacional no contexto do art. 5.º/3 da Convenção de Bruxelas sobre a Competência Judiciária e a Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial;
p)-O tribunal decidiu que a “nacionalidade do navio só pode desempenhar um papel decisivo na hipótese de o órgão jurisdicional nacional chegar à conclusão de que os danos se concretizaram a bordo do Tor Caledonia. Neste último caso, o Estado do pavilhão do navio deverá necessariamente ser considerado como o lugar em que o facto danoso provocou os prejuízos”. É observado que a relevância da lei do pavilhão nesta matéria não foi qualificada por qualquer referência à posição do navio em águas territoriais ou no alto mar.
Nestes termos,
(...), deve ser dado inteiro provimento ao presente recurso, alterado o saneador/sentença ora recorrido, sendo declarado como competentes os tribunais nacionais, mormente o tribunal a quo, com todas as devidas e legais consequências, fazendo-se
Justiça!

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Não foram apresentadas contra-alegações.

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IIÂMBITO DO RECURSO:
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Assim, perante as conclusões da alegação do apelante, a única questão que se coloca consiste em saber os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para tramitar e decidir a presente ação.

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IIIFUNDAMENTAÇÃO:

3.1- DE FACTO:
A factualidade relevante é a que decorre do relatório que antecede.

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3.1-DE DIREITO:
Como pressuposto processual que é, a competência internacional tem de ser aferida à luz da relação material controvertida tal como o autor, subjetiva (quanto aos sujeitos) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir), a configura na petição inicial.
Na verdade, tal como ensinou o Manuel de Andrade, na esteira de Redenti[4], a competência do tribunal afere-se pelo quid disputatum - quid decidendum -  em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum -  é o que se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor, tendo em conta, naturalmente, os factos articulados que lhe servem de base.
No caso concreto, a relação material controvertida configurada na petição inicial é, inequivocamente, uma relação laboral, uma relação de direito do trabalho.
Ou seja, tal como a autora estrutura a petição inicial a causa de pedir que serve de fundamento à presente ação, o mesmo é dizer, o facto jurídico concreto, material, de onde emerge o seu alegado direito é o alegado incumprimento, pelo réu, de um contrato de trabalho entre ambos celebrado.
Com efeito, a autora alega que contratou o réu para exercer as funções de Capitão, a bordo do iate, vinculando-se este, no âmbito desse contrato, às obrigações que acima ficaram elencadas.
Essas obrigações são típicas de um contrato de trabalho e não de um contrato de prestação de serviços.
Não assiste, assim, razão ao senhor juiz a quo quando afirma, ainda que sem o fundamentar, que face à descrição das funções para que o réu foi contratado, o contrato invocado na petição inicial deve ser qualificado como de prestação de serviços.
Contrato de trabalho, tal como o define o art. 11.º do Código do Trabalho, «é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.»
Contrato de prestação de serviços, tal como o define o art. 1154.º do Cód. Civil, é «aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.»
No âmbito de um contrato de prestação de serviços existe, para o prestador, uma obrigação de resultado, sendo indiferente para o credor ou beneficiário da prestação o modus faciendi por aquele adotado; ou seja, o prestador do serviço, no cumprimento da obrigação a que se vinculou, não está vinculado às ordens do credor, isto é, atua com autonomia, cabendo a este último apenas o direito ao resultado da atividade do devedor, o qual, por sua vez, a desenvolve como melhor entender[5].
No âmbito de um contrato de trabalho, o trabalhador obriga-se a prestar a sua atividade laboral, durante um certo período de tempo e sob a orientação e fiscalização de uma entidade patronal.
Conforme refere ainda Ana Prata, «a componente organizacional assume particular intensidade, justificando o posicionamento do trabalhador numa lógica de verticalidade. Conforme certo ângulo, o empregador surge, no contrato de trabalho, não tanto como titular de compromissos atomisticamente considerados, mas, sobretudo, enquanto responsável por dada organização. A importância da componente obrigacional no contrato de trabalho resulta, aliás, evidente se considerado o elevado número de regras que pressupõem a sua aplicação num tal contexto. Tal não significa, porém, o retomar de qualquer visão institucionalista, nem a hipervalorização da integração do trabalhador na empresa, ficcionando uma forçada comunhão de interesses entre trabalhador e empregador>: o vínculo de trabalho tem base contratual e a organização não constitui obra comum ou de titularidade partilhada.
(...)
Em 2009, não só foi dado maior ênfase ao elemento organizacional, enquanto traço modelador do vínculo, como foi eliminada a anterior menção ao poder de direção. Este último, mantém-se, a par do poder disciplinar (v. art. 98.° do CT), enquanto poder típico do empregador, modelador do estado de subordinação jurídica que caracteriza o modo como o trabalhador executa a sua prestação perante o empregador (v. art. 97.° do CT). A subordinação jurídica persiste, pois - não obstante os desafios colocados pelo permanente surgimento de novos modelos de prestação do trabalho (veja-se o caso da economia on-demand) - enquanto traço identitário do contrato de trabalho e critério de destrinça perante outros negócios jurídicos, em particular o contrato de prestação de serviço (v. art. 1154.º). A identificação, em cada caso, de um tal elemento, subsiste, no entanto, como uma operação complexa, seja por recurso ao método tipológico, seja por apelo ao método indiciário. A subordinação jurídica apresenta, na verdade, contornos distintos, variando a sua efetivação em função de aspetos tão diversos como o contrato de trabalho celebrado, o perfil do trabalhador, a atividade contratada, o nível hierárquico ocupado, o modo de execução do vínculo, a estrutura e a dimensão da organização ou a atividade prosseguida pelo empregador. Na jurisprudência, é, aliás, frequentemente assinalado que a subordinação surge como conceito de “geometria variável”, de intensidade diversa, revestindo natureza jurídica (e não técnica) e sendo potencial (não efetiva).»[6].

Monteiro Fernandes esclarece que a subordinação jurídica consiste numa «relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem.»[7].

Por sua vez, Albino Mendes Baptista refere que «existem diferentes graus de subordinação (…) há formas de trabalho subordinado em que a prestação é efectuada com grande autonomia, em que não existem propriamente ordens específicas, mais ou menos genéricas, mas um quadro potencial da sua presença. (…) Ora, o intérprete, maxime o julgador, tem de estar atento à crescente complexidade das relações de trabalho, nomeadamente não perdendo nunca de vista a existência de formas aparentes de autonomia[8].

O art. 12.º do Código do Trabalho estabelece um conjunto de indícios, não cumulativos, que constituem uma presunção de existência de contrato de trabalho, a saber:
a)-A atividade realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;
b)-Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade;
c)-Horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da atividade;
d)-Pagamento, com determinada periodicidade, de quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida;
e)-O desempenho de funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.

Posto isto, não vemos como as obrigações elencadas pela autora na petição inicial como sendo aquelas a que o réu estava adstrito para consigo no âmbito do contrato celebrado entre as partes, possam respeitar a um “mero” contrato de prestação de serviços.

Na verdade, não se vê como, no âmbito do contrato que a autora afirma ter celebrado com o réu, decorresse para este “apenas” uma obrigação de resultado e que fosse indiferente para aquela o modus faciendi por este adotado no cumprimento de tal obrigação.

Parece evidente que o réu, no desempenho das funções elencadas na petição inicial como constituindo o objeto do contrato celebrado com a autora, pudesse atuar com autonomia e conforme melhor entendesse.

Incompreensível, de todo, uma vez mais e sempre à luz da relação material controvertida configurada na petição inicial, e para efeitos de atribuição da competência, é equacionar-se sequer a possibilidade de estarmos perante um caso de responsabilidade civil extracontratual[9].

Em suma, é laboral, a relação material controvertida configurada pela autora na petição inicial com que introduziu em juízo esta ação, o que não deixaria de se presumir à luz das als. a) e b) do art. 12.º do Código do Trabalho.

O local do desempenho da atividade a que o réu se vinculou era a bordo do iate.
Trata-se, esse iate, de um navio, tal como o define Luís de Lima Pinheiro: «(...) um engenho apto a navegar no mar e utilizado ou susceptível de ser utilizado no transporte de pessoas ou mercadorias.»[10].

Dispõe o art. 8.º da Constituição da Constituição da República Portuguesa:
«1.– As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português.
2.–As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.
3.–As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.
4.– As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.»

Os regulamentos comunitários são fontes internas do direito comunitário, conforme resulta do art. 249.º do Tratado da União Europeia, referenciados pela sua generalidade, obrigatoriedade em todos os seus elementos e aplicabilidade direta em todos os Estados-Membros, sendo definidos como atos típico do Direito Comunitário Derivado ou Secundário, que devem ser fundamentados (art. 253.º do mesmo Tratado), formar-se de acordo com os procedimentos previstos em tal Tratado (art. 251.º) e ser publicados no Jornal Oficial da União Europeia (art. 254.º), dependendo a sua validade e vigência do cumprimento desses requisitos formais.

O Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, rege sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), aplicável, nos termos do seu art. 29.º, desde 17 de dezembro de 2009.

Dispõe o art. 8.º desse Regulamento:
«1.–O contrato individual de trabalho é regulado pela lei escolhida pelas partes nos termos do artigo 3.º. Esta escolha da lei não pode, porém, ter como consequência privar o trabalhador da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo, ao abrigo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável nos termos dos n.ºs 2, 3 e 4 do presente artigo.
2.–Se a lei aplicável ao contrato individual de trabalho não tiver sido escolhida pelas partes, o contrato é regulado pela lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato ou, na sua falta, a partir do qual o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato. Não se considera que o país onde o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho mude quando o trabalhador estiver temporariamente empregado noutro país.
3.–Se não for possível determinar a lei aplicável nos termos do n.º 2, o contrato é regulado pela lei do país onde se situa o estabelecimento que contratou o trabalhador.
4.–Se resultar do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com um país diferente do indicado nos n.ºs 2 ou 3, é aplicável a lei desse outro país.»

Conforme refere Lima Pinheiro, que a partir acompanharemos, «a determinação do Direito aplicável aos contratos individuais de trabalho é regulada pelo art. 8.º do Regulamento Roma I.
As partes são livres de escolher a lei aplicável, mas esta escolha não pode ter como consequência privar o trabalhador da protecção que proporcionam as normas imperativas da lei que seria aplicável na falta de escolha (n.º 1).
Se a lei aplicável ao contrato de trabalho não tiver sido escolhida pelas partes, o contrato é regulado pela lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato ou, na sua falta, a partir do qual o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato (n.º 2). Se não for possível determinar a lei aplicável nos termos do n.º 2, o contrato é regulado pela lei do país onde se situa o estabelecimento que contratou o trabalhador (n.º 3).
Todavia, as regras dos n.ºs 2 e 3 parecem constituir meras directrizes interpretativas sobre a lei do país que apresenta a conexão mais estreita com o contrato. Com efeito, o n.º 4 determina que se resultar do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com um país diferente do indicado nos n.ºs 2 e 3, é aplicável a lei desse outro país. Repare-se que, diferentemente da cláusula de excepção contida no art. 4.º/3 do Regulamento, não releva apenas uma conexão manifestamente mais estreita.
Nem a Convenção de Roma Sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais nem o Regulamento Roma I contêm uma regra especial sobre o contrato de trabalho a bordo de navios. Relativamente à Convenção de Roma, o Relatório GIULIANO/LAGARDE limita-se a assinalar que o grupo de peritos não procurou uma regra especial para estes contratos de trabalho.
As principais soluções são a aplicação da lei do pavilhão do navio, enquanto lugar da prestação do trabalho (art. 8.º/2), e da lei do país onde se situa o estabelecimento que contratou o trabalhador (art. 8.º/3).
A continuidade, certeza jurídica, não discriminação entre tripulantes e coordenação com os regimes de Direito público em matérias administrativas, técnicas e sociais (...) justificam uma preferência de princípio pela lei do pavilhão do navio. A favor da competência da lei do país onde se situa o estabelecimento que contratou o trabalhador tem sido invocada a existência de pavilhões de conveniência que não exprimem uma ligação substancial entre o navio e o Estado do pavilhão. Mas este argumento não toma em conta que as agências de recrutamento de tripulantes também podem ser localizadas em países que não apresentam uma ligação significativa com o contrato e em que são praticadas condições laborais com baixos níveis de protecção.
Já reúne maior consenso que, em princípio, a lei do país onde se situa o estabelecimento que contratou o trabalhador deve ser aplicada se o tripulante prestar o seu trabalho em vários navios arvorando diferentes pavilhões.
A relevância de pavilhões de conveniência pode ser limitada pelo art. 8.º/4 quando se apure que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com um Estado que não é o do pavilhão do navio. Como factores relevantes para o estabelecimento de conexão estreita podem ser referidos a sede do empregador, a residência habitual e a nacionalidade do tripulante e as circunstâncias da execução do contrato.»[11].

O art. 91.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, Montego Bay, de 10 de dezembro de 1982, também denominada «Convenção sobre o Direito do Mar», estatui sobre a nacionalidade dos navios, dispondo:
«1.– Os Estados devem estabelecer os requisitos necessários para a atribuição da sua nacionalidade a navios, para o registo de navios no seu território e para o direito de arvorar a sua bandeira. Os navios possuem a nacionalidade do Estado cuja bandeira estejam autorizados a arvorar. Deve existir um vínculo substancial entre o Estado e o navio.
2.– Os Estados devem fornecer aos navios a que tenha concedido o direito de arvorar a sua bandeira os documentos pertinentes.»
O Estado de bandeira de um navio comercial é o Estado em cujas leis o navio está registado ou licenciado.
Na petição inicial, como se viu, a autora alega que é proprietária do iate comercial denominado “L... J...”, registado no Registo Internacional de Navios da Madeira, matriculado sob o nº ...0, fls. ...6v, do Livro-...2º e a sua propriedade inscrita sob o nº 1..., fls. 1...v, Livro ...-4º.

Parece, assim, que a lei aplicável à resolução da questão material controvertida discutida nos presentes autos, será a lei portuguesa.
Questão diferente, no entanto, é a que se prende com a determinação do tribunal internacionalmente competente para a tramitação e julgamento da causa.

E, a este propósito, não parecem subsistir dívidas de que deve ser chamado à colação o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012[12], que veio regular a competência internacional em matéria civil e comercial, incluindo as matérias respeitantes ao contrato individual de trabalho[13].

Conforme refere Elsa Dias de Oliveira, nesse Regulamento, «reflete-se um especial cuidado nos casos em que estão em causa partes contratuais mais fracas como é o caso dos trabalhadores. Na verdade, a proteção dos trabalhadores não passa apenas por consagrar disposições materiais que atenuem a sua fragilidade, mas também por adotar regras relativas à competência internacional que tutelem esses interesses.
É neste contexto que se identificam nos arts. 20.º a 23.º regras especiais que regulam a competência internacional em matéria de contratos individuais de trabalho. (...).
Se (...)a entidade patronal for a demandante, rege o art. 22.º, n.º 1, que determina apenas a competência do tribunal do Estado-Membro do domicilio do trabalhador. Uma vez mais, subjacente a esta disposição, está a proteção do trabalhador, que será demando no Estado onde, à partida, se encontrará em termos relativamente permanentes.»[14].

Não ocorre qualquer situação de derrogação permitida pelo art. 23.º do Regulamento Bruxelas I.

Assim, em caso de litígio, o trabalhador domiciliado num Estado-Membro da UE apenas pode ser demandado pela entidade patronal no Estado-Membro onde tem o seu domicílio.

Nem o Regulamento Roma I, nem o Regulamento Bruxelas I, definem os termos “trabalhador” e “contrato de trabalho”.

O TJUE tem considerado como critérios relevantes para se aferir se uma das partes da relação contratual é um «trabalhador», a ocorrência:
- de um vínculo duradouro que o insere na orgânica negocial da entidade patronal;
- de uma relação de dependência do trabalhador face à entidade patronal.

No que respeita ao “contrato individual de trabalho”, o mesmo Tribunal vem entendendo que o ele se caracteriza pela criação de um «laço duradouro que insere o trabalhador no quadro de uma determinada organização dos negócios da empresa ou do empregador», situando-se tal acordo «no lugar do exercício das atividades, o qual determina a aplicação de disposições de direito imperativo e de convenções coletivas.»[15], o que, aliás, está em sintonia com os considerandos doutrinários tecidos supra, a propósito da distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviços.

Bem andou, pois, o tribunal recorrido:
- ao julgar os tribunais portugueses absolutamente incompetentes, em razão da nacionalidade, para a tramitação e julgamento da presente ação de indemnização intentada pela autora contra o réu, para ressarcimento dos prejuízos que afirma ter sofrido em consequência do alegado incumprimento culposo, por este, do contrato de trabalho que os unia (arts. 323.º, n.º 1, do Código do Trabalho, e 798.º do Cód. Civil); e consequentemente,
- em absolver o réu da instância,
nos termos das disposições legais citadas na decisão impugnada.

***

IVDECISÃO:

Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, confirmando, em consequência, a decisão recorrida.
Custas pela apelante - arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2, do C.P.C.



Lisboa, 11 de janeiro de 2022



José Capacete
Carlos Oliveira
Diogo Ravara



[1]Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[2]Tal afirmação constitui um evidente lapso, pois está em absoluta contradição com o que imediatamente se decidiu.
[3]Trata-se de outro lapso terminológico, pois, num caso como o presente, não é admissível réplica (cfr. art. 584.º, n.º 1, do C.P.C.), tendo a senhora juíza convidado a autora a responder através de articulado autónomo.
[4]Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra Editora, p. 91.
[5]Cfr. Ana Prata, Código Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2017, p.
[6]Ob. cit., p. 1423.
[7]Direito do Trabalho, 10.ª Edição, Almedina, Coimbra, 1998, p. 121.
[8]Qualificação Contratual e Presunção de Laboralidade, in Estudos sobre o Código do Trabalho, Coimbra Editora, 2004, p. 60.
[9]Quando, aliás, é o próprio réu a afirmar na contestação, que atuou no âmbito de uma relação contratual estabelecida com a autora.
[10]Temas de direito marítimo. II. O navio em direito internacional, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 71, N.º 2, (2011), p. 447.
[11]Ob. cit., pp. 462-464.
[12]Doravante referido por “Regulamento Bruxelas I”.
[13]Sobre o âmbito de aplicação material deste Regulamento, cfr., por todos, Rui Manuel Moura Ramos, “Competência judicial e execução das decisões da União Europeia. A reformulação do Regulamento Bruxelas I pelo Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro de 2012”, in “Estudos de Direito Internacional Privado da União Europeia, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pp. 287-327, esp. pp. 292 ss., acessível na internet em https://digitalis-dsp.uc.pt/jspui/bitstream/10316.2/39288/1/Estudos%20de%20direito%20internacional%20privado%20da%20Uniao%20Europeia.pdf.
[14]Competência Internacional em matéria de Contratos Individuais de Trabalho no âmbito do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, in Prontuário de Direito do Trabalho, Centro de Estudos Judiciários, II, 2019, p. 286-293.
[15]Cfr. Procs. 266/85 (Shenavai) 32/88 (Six Constructions), acessíveis no site do TJUE, emhttp://curia.europa.eu/jcms/jcms/j_6/.