Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | PAULA CRISTINA BIZARRO | ||
Descritores: | DISPENSA DE PENA ARQUIVAMENTO CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE ABERTURA DE INSTRUÇÃO OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/24/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
Sumário: | I. A decisão de arquivamento com dispensa de pena não pode considerar-se como sendo definitiva quando, concomitantemente ao requerimento de constituição como assistente, a aqui recorrente requer a abertura da instrução, requerendo a pronúncia do arguido, precisamente pelos factos susceptíveis de integrar o crime de ofensa à integridade física que foram objecto de arquivamento com dispensa de pena. II. A circunstância de tal decisão ser ou não suceptível de impugnação nos termos do n.º 3 do art. 280.º do Código de Processo Penal não constitui obstáculo ao deferimento da constituição como assistente, tratando-se antes de uma questão a apreciar a jusante, aquando da apreciação da admissibilidade da instrução, igualmente requerida. III. Tendo sido requerida a abertura da instrução, visando, além do mais, questionar da legalidade do despacho de arquivamento com dispensa de pena, não assumido este natureza definitiva, encontram-se reunidos os pressupostos legais de que depende a admissibilidade da constituição da ofendida como assistente. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência as Juízas da 9ª secção criminal deste Tribunal da Relação I. RELATÓRIO Inconformada com o despacho proferido em 12-04-2024 (ref.ª citius 160567528), nos autos de instrução com o n.º 455/22.2PHLRS, do Juízo de Instrução Criminal de Loures - Juiz 1, veio AA interpor recurso de tal decisão, na qual se decidiu o seguinte (transcrição): (…) se indefere a sua intervenção nos autos como assistente. (…) rejeito o requerimento de abertura de instrução. (fim de transcrição) * As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões extraídas da motivação do recurso que em seguida se transcrevem: a) Por despacho do Sr. Procurador da República de fls. Foi determinado o arquivamento dos autos com fundamento em dispensa de pena nos termos do Art.° 280.°, n.° 1, do Código de Processo Penal e determinada a notificação expressa da recorrente para efeitos do disposto no Art.° 287º do Código de Processo Penal; b) Na sequência da notificação, a ofendida ora recorrente requereu a sua constituição como assistente e apresentou requerimento de abertura de instrução; c) Por despacho do Sr. JIC, foi rejeitada a constituição de assistente, por falta de legitimidade processual, porquanto entendeu-se que deixou de ter a qualidade de ofendida, uma vez que os autos foram arquivados por dispensa de pena; d) E no mesmo despacho foi rejeitado o requerimento de abertura da instrução, (i) por falta de legitimidade (por não ser assistente), e (ii) porque os autos foram objecto de arquivamento, por dispensa de pena, decisão considerada inimpugnável; e) Sem conceder, a constituição de assistente e o RAI foram rejeitados, quando tal não poderia acontecer, nomeadamente até pelo facto de o RAI ter sido delineado no sentido de se concluir pela pronúncia do arguido pela prática de dois crimes: ofensa à integridade física e ameaça; f) Se o MP e o JIC entenderam, erradamente, pela dispensa de pena quanto ao primeiro, não se pronunciaram, em momento algum, quanto ao segundo; g) Ou seja, tinha legitimidade a recorrente para pedir a sua constituição como assistente, considerando o disposto na al) do n.°1 do art.° 68.° do CPP, enquanto ofendida, como oportunamente pediu (alínea b) do n.°1 do art.° 287.° do CPP), sob pena de violação do disposto no artigo 32.° n.°1 e n.° 7 da C. R. P. (garantias de processo criminal); h) Por outro lado, o despacho de arquivamento por dispensa de pena nem sempre é inimpugnável, ao contrário do que o elemento literal da norma possa aparentar; i) Desde logo considerando que o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.°, n.° 4 e 18.° da CRP), estipula que as normas adjetivas devem ser interpretadas no sentido de favorecer o acesso à Justiça e assegurar às partes uma tutela jurisdicional de mérito; j) Trata-se ainda de uma interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa que atribui ao ofendido, no n.° 7 do artigo 32°, "o direito de intervir no processo, nos termos da lei"; k) O Ac. TC, 397/2004 proferido no processo 204/2004, que, após não considerar inconstitucional a norma do n.° 3 do Art.° 280.° do CPP, deixou claro que "para além da possibilidade da reclamação hierárquica da decisão de arquivamento do Ministério Público, o assistente tem sempre sempre a possibilidade de requerer a abertura de instrução e de obter, no seu termo, a pronúncia do arguido, estando assim suficientemente assegurado o direito de acesso aos tribunais"; l) Assim, ao denegar-se ao assistente um meio de reacção, e sem auscultação prévia do mesmo, como foi o caso, está a colocar-se em causa irremediavelmente este direito; m) Acresce que o requerimento de abertura da instrução apresentado pela recorrente invoca a falta de verificação de pressupostos substantivos e processuais para a decidida dispensa de pena, n) e defende a existência de indícios suficientes da prática do crime de ofensa à integridade física simples e do crime de ameaça, não se pronunciando o MP ou o JIC sobre os factos constitutivos deste crime, como se disse; o) Por outro lado, se a menção "não é susceptível de impugnação” constante do n.° 3 do citado artigo 280.°, "parece significar que a decisão de arquivamento não admite nem recurso nem instrução, a verdade é que nem sempre tal assim acontece, como defendem, o Prof. Maia Gonçalves, e sobretudo, o Prof. Germano Marques da Silva em "Curso de Processo Penal", III, Verbo, pág. 120, pois, em determinados casos, tal decisão de arquivamento é susceptível de ser "atacada" embora apenas pelo Assistente e exclusivamente com fundamento em ilegalidade (neste sentido o Ac. RC de 10.01.2018 – processo 260/140GDCBR.C1); p) É precisamente o caso dos autos, em que o RAI não se resume a defender pronúncia por crime de ofensa à integridade física simples, mas também por crime de ameaça, e em momento algum o MP se pronunciou ou o JIC. O que constitui irregularidade que se invoca e que é de conhecimento oficioso (n.º 2 do Art.° 123.° do CPP); q) E quanto ao crime de ofensa à integridade física simples, defendeu-se, no RAI, a não verificação dos pressupostos materiais decorrentes do art.º 74.º e 143.º CP, nem os pressupostos processuais decorrentes dos ns.° 1 e 2 do art. 280.º do CPP; r) Ou seja, argumentos integrantes desse fundamento de ilegalidade (não verificação de lesões recíprocas e existência de agressões apenas por parte do arguido; inexistência de retorsão; gravidade da ilicitude do facto e a culpa do arguido, que não são diminutas; existência de lesões graves e não reparação das mesmas) s) E quanto às lesões, como se defende no acórdão do TRG, 64/200oGACBC.G1, de 7 de Fevereiro de 2022, mesmo que houvesse reciprocidade de lesões, quando não houve, não se pode aceitar "compensação ao nível do facto típico ilícito", com repercussão na obrigação de indemnizar, extinguindo-a (como se defende na decisão de arquivamento), por violação expressa da lei, "na medida em que pelo facto de haver reciprocidade de lesões não se pode falar em extinção de créditos por compensação, por tal ser proibido pelo artigo 853°, n° 1, a) do Código Civil"; t) Ou seja, não se verificam os pressupostos materiais decorrentes do art.° 74.° do CP, nem os pressupostos processuais decorrentes dos ns.° 1 e 2 do art.° 280.° do CPP, o que constitui fundamento bastante para admissão do RAI apresentado pela ora recorrente; u) Por outro lado, ao recusar-se o RAI, recusou-se à recorrente, a possibilidade de fazer prova da sua posição; v) Sendo que provas novas não podem apresentar-se através de recurso mas, sim, na instrução; w) Sem conceder no que vai dito, refira-se que a notificação, e despacho que a antecede, criou na recorrente a convicção de que dispunha de meios de reacção ao arquivamento, entre os quais a abertura da instrução com a faculdade de se constituir assistente (Cfr. Art.° 68.°, n.°1 e 3, al. b), do CPP); x) A notificação para um acto processual, de resto na sequência de despacho, não poderá considerar-se como um acto processual facultativo, inócuo ou discricionário, sem repercussão jurídico-processual; y) É aplicável ao processo penal, por força do Art.° 4.° do CPP, o disposto no Art.° 157.°, n.° 6, do Código de Processo Civil, como emanação do princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança e do princípio da transparência e da lealdade processuais, indissociáveis de um processo justo e equitativo; z) De acordo com o princípio da tutela jurisdicional efectiva e o direito de acesso aos tribunais (art. 20° da CRP), a tramitação processual subsequente deve ser conformada considerando o erro praticado e documentado no processo de modo a evitar prejuízo para a parte, nomeadamente com repetição da notificação, de forma correcta, para que a recorrente se possa pronunciar, querendo, nomeadamente impugnando o arquivamento por via de recurso: aa) Foram violadas as normas constantes dos Art.°s 68.°, n.° 1 e 3, al. b), 123.º, n.º 2, 280.°, 287.°, n.° 1, al. b) do CPP; 157.°, n.° 6, do CPC, ex vi Art. 4.º do CPP, Art.º 853.°, n.°1, al, a) do código Civil; Arts.° 74.° e 143.°, n.° 3, do Código Penal, Art.º 18.°, 20.°, n.° 4, 32, n.°1 e 7, da CRP. Termos em que, Deve o presente recurso merecer provimento, nomeadamente: a) Revogar-se a decisão que recusou a constituição de assistente da recorrente, e substituir-se a mesma por decisão de admissibilidade, por ter legitimidade, estar em tempo e mostrar-se paga nos autos a taxa de justiça devida; b) Revogar-se a decisão que não admitiu o requerimento de abertura da instrução, substituindo-o por outro em que se admita a instrução, nos termos da fundamentação que antecede; c) Alternativamente, que seja a recorrente notificada, correctamente, na sequência do despacho de arquivamento, em cumprimento dos princípios até aqui violados, da segurança jurídica e da protecção da confiança, para os efeitos que a recorrente tiver por convenientes, nomeadamente para apresentar recurso daquela decisão por ilegalidade da mesma. (fim de transcrição) * O recurso foi parcialmente admitido em 28-05-2024 (despacho com a ref.ª citius 161070628), nos seguintes termos: Por ser legal, tempestivo e ter sido interposto por quem para tanto tem legitimidade, admito o recurso de fls. 188-195, apenas quanto ao despacho que rejeitou a admissão do recorrente como assistente, para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual sobe imediatamente, em separado, e tem efeito meramente devolutivo – artigos 399º, 400º a contrario, 411º, n.º1, alínea a), 401º, nº 1, al. B), 406º, n.º2 e 407º, n.º 2 alínea h), 408º, a contrario todos do CPP. (…) No mais, rejeito o recurso interposto a fls. 188 e ss., por versar sobre decisão irrecorrível – art. 280º, nº 3 e 400º, nº 1, al. G) do CPP. * O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, concluindo (transcrição): deve o recurso interposto ser julgado parcialmente procedente, revogando-se o douto despacho recorrido na parte em que não admitiu a constituição como assistente da recorrente relativamente à eventual prática de um crime de ameaça constante da denúncia, mantendo-se a douta decisão recorrida nos seus precisos termos relativamente ao demais. (fim de transcrição) * Neste Tribunal da Relação, pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer nos termos seguintes (transcrição parcial): (…) louvando-nos na resposta do Exmº Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância, emite-se parecer no sentido da procedência do recurso no segmento em que foi admitido. (fim de transcrição) * Cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta. * Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência. * II. FUNDAMENTAÇÃO 1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”. Daí o entendimento pacífico de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo que apenas as questões aí resumidas deverão ser apreciadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios previstos no n.º 2 do art. 410º do mesmo Código. * Considerando o segmento do despacho recorrido relativamente ao qual foi admitido o presente recurso e atentas as conclusões formuladas pela recorrente, a única questão a decidir é a seguinte: - se se verificam os pressupostos legais para que a recorrente seja admitida a intervir nos autos como assistente. * 2. DO DESPACHO RECORRIDO 2.1. É o seguinte o teor do despacho recorrido (transcrição): A fls. 101 e ss., foi proferido despacho de encerramento do inquérito, que determinou o arquivamento por dispensa de pena, nos termos do art.° 280.°, n.° 1, do Código de Processo Penal quanto ao crime de ofensa à integridade física, p e p pelo art. 143°, n° 1 do Código Penal. Tal decisão não é susceptível de impugnação - art. 280°, n° 3 do Código de Processo Penal. Assim sendo, mostra-se precludida a possibilidade da requerente se constituir como assistente no processo, por falta de legitimidade processual atendendo a que deixou de ter qualidade de ofendida, pelo que se indefere a sua intervenção nos autos como assistente. Notifique. * O RAI não é legalmente admissível, não só por falta de legitimidade da requerente, que não é assistente - art. 287°, n° 1, al. b) do CPP, mas também porque os factos aí vertidos, respeitam ao crime de ofensa à integridade física, p e p pelo art. 143°, n° 1 do Código Penal, que foram objecto da decisão de arquivamento por dispensa da pena, nos termos do art. 280°, n° 1 do CPP e que não é susceptível de impugnação (art. 280°, n° 3 do CPP). Face ao exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução de fls. 126 e ss., por inadmissibilidade legal da instrução - art. 287°, n° 3 do CPP. Notifique. * Remeta os autos à distribuição para julgamento, face à acusação particular deduzida a fls. 71 e ss.. (…) (fim de transcrição) * Na apreciação do presente recurso, importa ainda considerar o seguinte: 1) Em 18-01-2024 pelo Ministério Público foi proferido despacho de arquivamento do inquérito (ref.ª citius 159510251), o qual se transcreve na parte relevante: (…) Quanto aos factos integradores da prática recíproca, por cada um dos arguidos, de um crime de ofensa à integridade física simples Os presentes autos tiveram início com o Auto de Denúncia de fls. 2 a 3, no qual AA, denuncia que no dia 09-05-2022, na ..., em ..., nesta comarca de Lisboa Norte, foi agredida por BB. BB veio denunciar (cf. Auto de Denúncia de fls. 28-28v) AA, pelos factos constantes no Auto de Notícia de fls. 5 a 6. Tais factos, abstratamente considerados, são integradores de dois crimes de ofensa à integridade física simples, previstos e punidos pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal. Impõe-se ponderar o instituto da dispensa de pena. Dispõe o n.º 3 do artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal que: "O tribunal pode dispensar de pena quando: a) Tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contentores agrediu primeiro; ou b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.". A propósito do instituto da dispensa de pena escreve Figueiredo Dias que "jogam aqui o seu papel considerações como a de que o agente que atuou em primeiro lugar é punido logo através da atuação do segundo («compensação») enquanto, relativamente ao segundo, vale a consideração da sua culpa diminuta, em virtude do estado de afeto em que terá agido pela ofensa que sofreu" (In Direito Penal Português - As consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005, pág. 323). A alínea a) do normativo em causa refere-se a todas aquelas situações em que houve lesões recíprocas, sem que fique provado quem agrediu primeiro, ou seja, visa-se contemplar "aqueles casos em que se não logrou apurar quem deu inicio à contenda, havendo assim falta de sustentáculo probatório quanto à determinação do grau de responsabilidade e dos motivos determinantes de cada um dos contendores" (Leal Henriques e Simas Santos, In Código Penal Anotado, Vol. II, 3a Ed., Editora Rei dos Livros, 2000, p. 226). A alínea b) corresponde segundo Paula Ribeiro de Faria às "situações nas quais o agente se limita a responder a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido (e ao mesmo tempo agressor) empregando a força física" (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 220). Assim, procurando-se responder a dificuldades de prova no que concerne à forma como os factos se desencadearam, a lei veio permitir que, em tais casos, o Tribunal possa dispensar da pena os intervenientes na agressão recíproca. Este n.º 3 tem, pois, um fim utilitário, ajudando em casos de dúvida, mas funcionando apenas em última instância, ou seja, quando analisada a situação, não for possível determinar a sequência das ofensas. É exatamente esse o caso dos autos, em que uma análise dos factos indiciados permite verificar que houve envolvimento físico entre os arguidos AA e BB, do qual, se pode inferir pelo depoimento da testemunha CC (cf. Auto de fls. 16-16v) que a arguida AA agrediu primeiro arguido BB e que este a agrediu para se defender. Os arguidos, interrogados exerceram o seu direito de não prestar declarações. Cumpre agora indagar se estão verificados os pressupostos estabelecidos na previsão normativa respeitante ao instituto de dispensa da pena previsto no artigo 74.º, n.º 3, do Código Penal que prevê que quando uma outra norma admitir com carácter facultativo a dispensa de pena esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos constantes do n.º 1 desse preceito. Assim, para operar a dispensa de pena temos há que verificar se: - a ilicitude do facto e da culpa do agente são diminutas; - o dano foi reparado; e, - não existência de razões de prevenção que se oponham à dispensa de pena. Ora, na situação em apreço, deparamo-nos com graus de ilicitude e culpa francamente diminutos, as agressões perpetradas foram de escassa relevância, sendo as suas consequências reduzidas, não tendo determinado lesões físicas de relevo. Acresce que tais lesões surgiram num contexto de exaltação de ânimos relacionada com desavenças entre irmãos, depreendendo-se, deste modo, que se tratou de um confronto derivado de mal entendidos existentes entre os arguidos, referentes a questões patrimoniais, em que os meios utilizados não se revestem de especial perigosidade (o que faz diminuir sensivelmente a ilicitude do facto e a culpa dos arguidos). No atinente à reparação do dano resulta do já exposto que na sequência do confronto em que se envolveram todos acabaram por ver a sua integridade física ofendida que se refletiu nas lesões e dores que sofreram, pelo que tal prejuízo se verificou em relação a ambos. Entende-se, pois, que tal facto exclui a necessidade de reparação do mal causado assim se operando uma compensação ao nível do facto típico ilícito que, necessariamente, se repercute na obrigação de indemnizar, extinguindo-a. Por último, ponderando todo o circunstancialismo de discussão envolvente, bem como as exigências de prevenção especial que se revestem de fraca intensidade, dado os arguidos não serem conhecidos antecedentes criminais, a circunstância de se encontrarem social e familiarmente integrados, conclui-se que, no caso sub judice, à dispensa de pena não se opõem exigências de prevenção especial de socialização ou de prevenção geral. A dispensa de pena é uma declaração de culpa sem pena. Do que se trata é, na verdade, de comportamentos que integram todos os pressupostos da punibilidade -que constituem ações, ilícitas, típicas, culposas e puníveis-, mas que não determinam a aplicação de qualquer pena. Em casos tais, determina a lei que se não aplique uma pena, pura e simplesmente, porque ela não surge, perante as finalidades que deveria cumprir, como necessária. Por tudo o exposto, verificam-se todos os pressupostos do artigo 280.º do Código de Processo Penal, e bem assim os do instituto da dispensa de pena, o qual entendemos dever ser aplicado, pelo que se nos afigura ser desnecessária a submissão dos arguidos a julgamento (quanto a estes factos) com vista à aplicação de uma pena. Obtida que foi a concordância do Meritíssimo JIC, o Ministério Público determina o arquivamento dos presentes autos, nesta parte, com fundamento na dispensa de pena, nos termos do artigo 280.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. (…) 2. Tal despacho foi notificado à aqui recorrente por notificação com prova de depósito, com a ref.ª citius 159722813, com data de 2-02-2024, depositada em 7-02-2024, nos termos seguintes: Assunto: Arquivamento Fica V. Exª notificado, na qualidade de Ofendido/ Arguido, nos termos e para os efeitos a seguir mencionados: De que foi proferido despacho de arquivamento no Inquérito acima referenciado, nos termos do art.º 277º do C. P. Penal, cuja cópia se junta, e de que tem o prazo de VINTE DIAS, para, querendo, requerer: - A intervenção hierárquica (artº 278º, nº 2 do CPP); - Ou a abertura da instrução, (art.º 287º, n.º 1, al. b) do mesmo diploma legal), tendo neste caso de se constituir assistente, devendo o requerimento ser dirigido ao Juiz de Instrução competente, o qual não está sujeito a formalidades especiais e deverá conter, em súmula, as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente ao despacho de arquivamento, bem como, sempre que disso for o caso, meios de prova que não tenham sido considerados no Inquérito e dos factos que através de uns e de outros se espera provar. Nos termos do disposto no art.º 68º, n.º 3, al. b), do C. P. Penal, poderá constituir-se assistente dentro do prazo estabelecido para a prática do ato acima indicado. 3. Em 7-03-2024 a recorrente requereu a sua constituição como assistente e a abertura da instrução (ref.ª citius 14936551), requerendo que o arguido BB seja pronunciado, e o prosseguimento dos autos para julgamento, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo art. 143º/1 do Código Penal, e de um crime de ameaça, previsto e punível pelo art. 153º/1 do Código Penal. * III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO Se se verificam os pressupostos legais para que a recorrente seja admitida a intervir nos autos como assistente Preceitua o art. 68º do Código de Processo Penal, para o que aqui releva, que: 1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos; (…) 2 - Tratando-se de procedimento dependente de acusação particular, o requerimento tem lugar no prazo de 10 dias a contar da advertência referida no n.º 4 do artigo 246.º 3 - Os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz: a) Até cinco dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento; b) Nos casos do artigo 284.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 287.º, no prazo estabelecido para a prática dos respectivos actos. c) No prazo para interposição de recurso da sentença. (…) A legitimidade para intervir como assistente em inquérito deverá ser aferida em função da denúncia apresentada. Ora, no caso em apreço não oferece contestação que a aqui recorrente é titular dos interesses protegidos com a incriminação atinentes aos crimes de ofensa à integridade física simples e de ameaça que imputa ao arguido e que imputou na denúncia que apresentou nos autos. Com efeito, do auto de denúncia junto aos autos, consta, além do mais, que: (…) compareceu neste Departamento Policial AA (item denunciante), a informar que foi vítima de agressões. --- A mesma informou que, foi agredida pelo seu irmão BB ( item suspeito), tendo dado um empurrão na mesma, projetando-a para o solo. --- Questionada sobre o que motivou as agressões, a mesma informou que, está relacionada com divergências familiares, que envolve um contrato de arrendamento. --- Quando a denunciante foi a um armazém com o intuito de falar com o seu irmão sobre o referido contrato, com a intenção de marcar uma data em que todos os envolvidos estivessem presentes, para resolver a situação, originou-se uma discussão. --- A denunciante e o seu irmão, ao não chegarem a acordo sobre uma data e a situação estar a ser arrastada sem resolução, iniciou-se a discussão entre ambos e quando o suspeito a chamou de mentirosa, agarrou-lhe no braço direito, com força, causando-lhe e um hematoma, começando a filmá-la seguida com telemóvel. --- Seguidamente, o suspeito deslocou-se para a fábrica, propriedade de família e a denunciante seguiu o mesmo. Quando se encontrava na entrada, o mesmo empurrou-a conforme o acima descrito. --- Referiu ainda que o suspeito, tem proferidos várias vezes a seguinte ameaça: "QUEM SE METER NO MEU CAMINHO É PARA ELIMINAR, EU PASSO POR CIMA". (…) É certo que a legitimidade para intervir nos autos como assistente não é irrevogável, nem imutável, dependendo das vicissitudes processuais que corram ao longo do processo. Com efeito, o processo penal em primeira instância comporta várias fases, designadamente: a fase de inquérito, a fase de instrução (facultativa) e a fase de julgamento. Por outro lado, no mesmo processo poderão coexistir na mesma pessoa a posição de ofendido/assistente e de arguido, designadamente quando se trate de processos com queixas/denúncias recíprocas. A posição que determinado sujeito assume no processo não é, assim, definitiva, na medida em que o processo, na sua dinâmica própria, poderá vir a determinar a cessação de uma determinada qualidade/posição de um sujeito processual. Em conformidade, com o arquivamento do inquérito, aquele que num primeiro momento se apresentava como ofendido em determinado crime, deixará de o ser se o crime em que assentava essa posição foi objecto de arquivamento em definitivo. No caso em apreço, o despacho recorrido fundamentou o indeferimento da constituição da recorrente como assistente na circunstância de a mesma carecer de legitimidade, atendendo a que deixou de ter qualidade de ofendida, e dado que foi proferido despacho de encerramento do inquérito, que determinou o arquivamento por dispensa de pena. Sucede que no momento em que tal despacho é proferido, a decisão de arquivamento não poderia considerar-se como sendo definitiva, porquanto, concomitantemente ao requerimento de constituição como assistente, a aqui recorrente requereu a abertura da instrução, requerendo a pronúncia do arguido, precisamente pelos factos susceptíveis de integrar o crime de ofensa à integridade física que foram objecto de arquivamento com dispensa de pena. Invoca-se na decisão recorrida que aquela decisão não é susceptível de impugnação - art. 280°, n° 3 do Código de Processo Penal. Dispõe, com efeito, o n.º 3 do art. 280.º do Código de Processo Penal que: a decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é susceptível de impugnação. Porém, com todo o respeito por opinião contrária, a circunstância de tal decisão ser ou não suceptível de impugnação não constitui obstáculo ao deferimento da constituição como assistente, tratando-se antes de uma questão a apreciar a jusante, aquando da apreciação da admissibilidade da instrução, igualmente requerida. No caso, a questão de saber se o despacho de arquivamento do inquérito é impugnável ou não, nos termos aduzidos pela recorrente na motivação de recurso e pugnados no requerimento de abertura da instrução, extravasa o âmbito do presente recurso, apenas admitido quanto à parte do despacho que não admitiu a constituição de assistente. Contudo, tendo sido requerida a abertura da instrução, visando, além do mais, questionar da legalidade do despacho de arquivamento com dispensa de pena, não assumido este natureza definitiva, encontram-se reunidos os pressupostos legais de que depende a admissibilidade da constituição da ofendida como assistente. Por outro lado, tal como refere a recorrente na motivação de recurso, bem como o Ministério Público na sua resposta, o despacho de encerramento do inquérito é de todo omisso quanto ao crime de ameaça denunciado pela ofendida. Ora, o despacho recorrido é igualmente omisso quanto ao crime de ameaça, não enunciando quaisquer fundamentos de facto ou de direito para indeferir a constituição de assistente quanto a tal crime, quando é certo que no requerimento de abertura da instrução vem expressamente imputada ao arguido a prática desse crime e enunciados os factos que alicerçam tal imputação. Consequentemente, a ofendida goza de legitimidade para se constituir assistente quanto aos crimes de ofensa à integridade física simples e de ameaça denunciados. Em conformidade com todo o exposto, deverá proceder o presente recurso, ficando naturalmente prejudicada, por inútil, a apreciação dos demais argumentos invocados pela recorrente. * IV. DECISÃO Pelo exposto, acordam as juízas da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pela ofendida AA, revogam o despacho recorrido no segmento que indeferiu a constituição como assistente, o qual deverá ser substituído por outro que, não ocorrendo outro motivo que o impeça, admita a constituição daquela como assistente nos autos quanto a ambos os crimes denunciados. Sem custas Notifique. Lisboa, 24 de Outubro de 2024 (anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original) Elaborado e integralmente revisto pela Relatora (art.º 94.º n.º 2 do C. P. Penal) Paula Cristina Bizarro Ana Marisa Arnedo Maria de Fátima R. Marques Bessa |