Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4294/20.7T8SNT.L1-6
Relator: MANUEL RODRIGUES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
QUEIXA CRIME
INTERRUPÇÃO CONTINUADA
DESPACHO DE ACUSAÇÃO OU ARQUIVAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I–A aplicação do alargamento do prazo prescricional previsto no n.º 3 do art.º 498º do Cód. Civil não está dependente de, previamente, ter sido ou não exercido o direito de queixa, ter havido ou não processo crime ou de o lesante ter sido ou não condenado pela prática do respectivo crime, assim como não impede a aplicação daquele preceito o facto de o processo crime ter sido arquivado (por qualquer motivo) ou amnistiado.

II–A razão de ser de tal alargamento do prazo prescricional assenta apenas na especial qualidade e gravidade do facto ilícito. Por isto, para a verificação de tal alargamento, é mister que se alegue e prove na acção cível que os factos que são imputados ao lesante integram, em abstracto, determinado tipo criminal.

III–No caso, a apresentação da queixa crime apresentada pela autora/lesada interrompe o prazo prescricional previsto quer no n.º 1, quer no n.º 3, do art.º 498º do Código Civil.

IV–O prazo assim interrompido reiniciou-se com o trânsito em julgado do despacho de acusação.

V–A pendência do processo crime (inquérito) como que representa uma interrupção contínua ou continuada (ex vi, do art.º 323., n.º 1 e 4, do Cód. Civil), quer para o lesante, quer para aqueles que (…) com ele são solidariamente responsáveis pela reparação dos danos, interrupção esta que cessará naturalmente quando o lesado for notificado da acusação ou arquivamento (despacho final) do processo crime instaurado.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:


I)–Relatório


1.1.–No âmbito do processo comum de declaração n.º 4.294/20.7T8SNT.L1, a correr termos no Juízo Central Cível de Sintra - Juiz 4, que AA… intentou, em 10/03/2020, contra Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A., veio esta apresentar recurso de apelação do saneador-sentença proferido em 08/06/2021 [ref.ª Citius 130996051], que julgou procedente a excepção peremptória de prescrição e, em consequência, absolveu a Ré dos pedidos contra si formulados.

1.2.–Tendo a Apelante rematado as alegações de recurso com as seguintes conclusões:
«I.–O Direito não está prescrito, pois o prazo de prescrição é de 5 anos atento estarmos face a factos que constituem uma ofensa corporal negligente.
II.–Assim, o direito só iria prescrever em 14-07-2021 (14-07-2016 mais 5 anos).
III.–Assim, interrompendo-se o prazo, o mesmo reiniciar-se-ia e só em 2021 ocorreria a prescrição.
IV.–Como tem sido sustentada na jurisprudência publicada a propósito de casos semelhantes, a aplicação do prazo de prescrição estabelecido na lei criminal não está dependente da efectiva punição do autor do crime. O prazo de prescrição do direito à indemnização decorrente do artigo 498.º n.º 3 do Código Civil também tem aplicação, apurada que seja a conduta tipicamente descrita como crime, nos casos de extinção do procedimento criminal por morte do agente ou em resultado de o facto ilícito ser abrangido por amnistia, assim como quando o facto qualificado como crime for praticado por inimputável ou ocorrer qualquer causa justificativa da culpa do agente que determine a sua absolvição penal.
V.–Nos termos do art.º 326.º do Código Civil, “a interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo”, mas conforme o n.º 1 do art.º 327.º do mesmo Código, “se a interrupção resultar de citação, notificação ou acto equiparado (...) o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo”.
VI.–O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 6.07.1993, in CJSTJ, II, p. 180-181, decidiu que: “O prazo de prescrição havendo processo crime contra o condutor do veículo só começa a contar-se, em relação aos civilmente responsáveis, a partir do trânsito em julgado da sentença condenatória”. No mesmo acórdão foi decidido que essa regra não é aplicável apenas ao responsável pelo ilícito que constitui crime, mas também aos responsáveis meramente civis (designadamente a Seguradora) por virtude do mesmo facto ilícito. Aliás, a entender-se que os prazos de prescrição são diferentes para o ilícito do criminal e para os responsáveis meramente civis quebrar-se-ia o elo de solidariedade entre os responsáveis, expresso nomeadamente nos art.ºs 487.º, 499.º, 500.º, 501.º, 502.º, 507.º e 512.º do Código Civil.
VII.–No mesmo sentido, decidiu a Relação de Coimbra (Ac. de 05.11.1996, CJ, V, p. 5), segundo o qual, é o apuramento do facto e a sua qualificação como criminoso - e não a circunstancia de ser ou não possível o exercício da acção penal - que determina o prazo mais longo de prescrição previsto no n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil. Assim, o falecimento do culpado no embate não obsta (em virtude da inerente extinção da acção penal) a que, após a instrução do processo, se conclua pela natureza criminal do seu facto e, em consequência, pela não aplicação da prescrição trienal estabelecida no n.º 1 do artigo 498º do Código Civil.
VIII.– Enquanto estiver pendente o processo penal, não começa a correr o prazo da prescrição do direito à indemnização civil. A pendência do processo crime (inquérito) representa uma interrupção contínua (ex vi art.º 323.º n.os 2 e 4 do Código Civil), quer para o lesante, quer para aqueles que, como as seguradoras, com ele estão solidários na responsabilidade de reparação dos danos; interrupção esta que cessa, começando o prazo a correr, quando o lesado for notificado do arquivamento do processo crime.
IX.– Por isso, além do maior prazo de prescrição, correspondente ao prazo de prescrição do crime (5 anos), este prazo ainda é passível de interrupção, com nova contagem do mesmo (5 anos), sendo que durante esse novo prazo o lesado pode fazer valer o seu direito de indemnização.
Por isso não está prescrito o Direito, sem conceder a lide deveria continuar, só se devendo e podendo conhecer da prescrição a final, depois de o Tribunal decidir os factos e qualificar os mesmos.
Termos nos quais deve ser revogada a presente Sentença»

1.3.–A Ré não apresentou contra-alegações.

1.4.–Por Decisão Singular do presente Relator, proferida em 26/10/2021 [ref.ª Citius 17562056 ] foi decidido “julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogar a sentença recorrida na parte em que julgou verificada a excepção de prescrição e absolveu a Ré dos pedidos conta si formulados, substituindo-a por esta decisão que julga improcedente a referida excepção de prescrição e determina o normal prosseguimento do processo”.

1.5.–Desta Decisão Singular veio a Ré/Recorrida reclamar para a Conferência, nos termos do art.º 652.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPC, com os seguintes fundamentos (conclusões):
«1- A presente Reclamação para a Conferência é interposta nos termos do art.º 652.º, n.º 3 e nº 4 do Cód. Processo Civil.
2-Nos termos do disposto pelo art.º 671º nº 2 al. b) do Cód. Processo Civil, esta Decisão Singular está em contradição com Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/10/2012, já transitado em julgado, proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de Direito: proferido em Revista por unanimidade, Pº nº 198/06.4TBFAL.E1.S1, 1ª Secção, Relator Moreira Alves.
3-No presente caso, verifica-se que:
A-Houve erro de interpretação e de aplicação do art.º 498º nº 1 e nº 3 do Cód. Civil;
B-Houve erro de interpretação e de aplicação dos arts. 72º e 77º do Cód. Processo Penal.
4-O sinistro em apreço ocorreu no dia 16/11/2011.
5- A Reclamante foi citada 8 anos, 6 meses e 11 dias após: em 27/05/2020.
6- Aplicando a regra prevista no art.º 498º nº 3 do C.C., o direito da Reclamada à eventual indemnização, decorrente dos prejuízos que alega ter sofrido em função deste sinistro, prescreveu no dia 16/11/2016.
7-Não se pode aceitar, que, só a só a partir da suposta data do arquivamento ou da Acusação proferida em anterior Processo-Crime, começa a correr o prazo de prescrição previsto no art.º 498º nº 3 do Cód. Civil.
8-A Reclamada não formulou Pedido Indemnizatório em separado perante o Tribunal Civil, conforme permite o art.º 72º do Cód. Proc. Penal.
9-A Reclamada não formulou Pedido de Indemnização Civil no Processo-Crime com NUIPC 191/11.5PTAMD, nos termos do art.º 77º do Cód. Proc. Penal.
10-O prazo durante o qual esteve pendente o Processo-Crime, não deve contar-se para o cômputo da prescrição, dado o princípio geral da adesão obrigatória da Acção Cível à Acção Penal.
11-Quando a Reclamante foi citada para a Acção, o suposto direito da Reclamada já estava prescrito desde 16/11/2016.
12-Não é razoável nem proporcional prolongar indefinidamente o cenário em apreço, respeitante a um acidente de viação ocorrido há 10 anos (!?) e nada mais há de pernicioso à paz social do que a insegurança jurídica.
13-A prescrição constitui excepção peremptória que, nos termos do art.º 576º nº 3 do Cód. Proc. Civil, extingue o efeito jurídico dos factos articulados pela Reclamada, importando a absolvição total da Reclamante dos pedidos e que desde já Requer.
Este é o nosso entendimento.
Concedendo provimento à presente Reclamação, será feita a Justiça que o caso merece!».

1.4.–A Autora e Recorrente não se pronunciou sobre a reclamação.

1.5.–Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II)–Delimitação e objecto da reclamação
De acordo com o disposto nos artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), aqui aplicáveis, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do/a recurso/reclamação, sem prejuízo das questões de que o tribunal “ad quem” possa ou deva conhecer oficiosamente, estando esta Relação adstrita à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso (art.º 130º do CPC). Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, contanto que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas [[1]].

Considerando as alegações da Reclamação, no confronto com a Decisão Singular objecto daquela, a questão a decidir é a de saber se tal Decisão Singular deve, ou não, ser revogada e substituída por Acórdão que julgue improcedente a apelação e confirme o saneador-sentença de 08/06/2021 [ref.ª Citius 130996051], nos termos do qual se julgou procedente a excepção peremptória de prescrição e, em consequência, se  absolveu a Ré dos pedidos contra si formulados.

III–Fundamentação

A)-Motivação de facto
Com interesse para a decisão da questão colocada à apreciação desta Relação, releva o seguinte circunstancialismo fáctico, que resulta da tramitação processual e de prova documental constante dos autos e não impugnada:
- A presente acção foi proposta em 10/03/2020 (ref.ª 35093200);
- A Ré foi citada em 27/05/2020 (cf. fls. 46);
- Por via desta acção, a Autora peticiona a condenação da Ré seguradora no pagamento de indemnizações por danos patrimoniais (danos corporais e prejuízos) e não patrimoniais que lhe advieram em consequência de acidente de viação de que foi vítima, ocorrido no dia 16/11/2011, na Amadora, da responsabilidade da condutora do veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula XX-XX-XX, cuja responsabilidade civil pela respectiva circulação se encontrava transferida para a Ré;
- O referido sinistro deu origem ao processo-crime NUIPC 191/11.5PTAMD, no qual foi constituída arguida e acusada a condutora do XX-XX-XX, M…, pela autoria material, na forma consumada, de dois crimes de ofensa á integridade física por negligência perpetrados contra a aqui Autora e a sua mãe Iryna …, previstos e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, com referência ao art.º 15.º do mesmo diploma (cfr. auto de notícia a fls. 13-14);
- A Autora foi notificada da dedução da acusação em 25/01/2016 (cfr. certidão judicial junta em 19-02-2021);
- Por sentença proferida no dia 14/07/2016, pelo Juízo de Instância Local – Secção Criminal da Amadora, J2, no âmbito do aludido processo-crime, foi a condutora do veículo XX-XX-XX, condenada pela prática de cada um dos dois crimes de ofensa á integridade física por negligência de que estava acusada, na pena de cinquenta dias de multa à taxa diária de sete euros e, em cúmulo jurídico, na pena única de setenta dias de multa à mesma taxa diária, o que perfaz o montante global de quatrocentos e noventa euros (cf. certidão de fls. 60 a 73/v.);
- A referida sentença transitou em julgado em 29/09/2016 (cfr. certidão de fls. 60 a 73/v.º). Os factos que relevam para a apreciação do presente recurso são os descritos no relatório supra, que resultam da tramitação processual dos autos.

B)– Motivação de direito – mérito da reclamação
A questão trazida à apreciação da Conferência consiste em saber se a Decisão Singular sob reclamação deve, ou não, ser revogada e substituída por Acórdão que julgue improcedente a apelação e confirme o saneador-sentença de 08/06/2021 [ref.ª Citius 130996051], nos termos do qual se julgou procedente a excepção peremptória de prescrição e, em consequência, se  absolveu a Ré dos pedidos contra si formulados.

Vejamos.

No saneador-sentença objecto de recurso a Exma. Juiz a quo, depois de defender - e bem -, com respaldo em expressiva jurisprudência, que ao caso vertente tem aplicação o prazo alargado de prescrição de 5 (cinco) anos, uma vez que o facto gerador de responsabilidade civil constitui crime (de ofensa à integridade física por negligência) e que a prescrição do respectivo procedimento penal está sujeita a esse mesmo prazo dilatado - artigos 118.º, n.º 1, alínea c) e 148.º do Cód. Penal), afastando, assim, o prazo geral de 3 (três) anos, e que enquanto está pendente inquérito-crime pela prática dos concernentes factos deve considerar-se interrompido o prazo de prescrição do direito à indemnização, por esses mesmos factos, não começando a correr, quer quanto ao lesante, quer relativamente aos que com ele são civilmente responsáveis, antes de terminar a fase de inquérito (quer ela finde com um arquivamento ou com uma acusação), pois só depois dessa decisão do Ministério Público é que lhe é permitido demandar incondicionalmente aqueles que considera terem responsabilidade civil por tais factos, acabou por considerar, certamente por lapso, que se afigura ostensivo, que o direito da Autora já se encontrava prescrito por já terem decorrido mais de 3 (três) anos quando foi intentada a presente acção (10/03/2020) contados da notificação da acusação à Autora (25/01/2016).

Acontece que no caso em apreço é aplicável o prazo alargado de 5 (cinco) anos, pelos fundamentos que a própria Exma. Juiz a quo melhor desenvolve na sentença recorrida os quais sufragamos e damos aqui por reproduzidos, por economia.

E porque assim é, como se refere na Decisão Singular sob reclamação, a outra conclusão se deveria ter chegado na sentença recorrida, pois sendo de aplicar o prazo mais alargado de 5 (cinco) anos e tendo a acusação sido notificada à Autora em 25/01/2016, estava a mesma habilitada a exercer o seu direito à indemnização até 25/01/2021, sendo que só então o mesmo se extinguiria, por decurso do referido prazo prescricional. Com efeito, no caso em apreço o prazo de prescrição não começou a correr enquanto não findou o procedimento criminal iniciado, por se tratar de ofensas à integridade física por negligência, com a queixa apresentada pela ofendida/lesada, ora Reclamada [artigo 148.º, n.ºs 1 e 4, do Cód. Penal].

Defende a seguradora Recorrida, ora Reclamante, que na Decisão Singular se incorreu em erro de interpretação e de aplicação dos artigos 498.º, n.ºs 1 e 3, do Código Civil e 72.º e 77.º do Código de Processo Penal, por entender que o cômputo do prazo de prescrição se iniciou na data do sinistro [16/11/2011] e que, por isso, o respectivo prazo de 5 anos já havia decorrido aquando da sua citação, em 27/05/2020, ou seja, que o suposto direito da Reclamada já estava prescrito desde 16/11/2016.

Argumenta, para o efeito, que o período de tempo durante o qual esteve pendente o processo-crime não releva para o cômputo do prazo de prescrição, isto é, não interrompe a sua contagem, atento o princípio geral da adesão obrigatória da acção cível à acção penal expresso no artigo 72.º do Cód. Proc. Penal e uma vez que a Reclamada não formulou pedido de indemnização civil naquele processo, nos termos do art.º 77.º do mesmo diploma legal.

Refere, ainda, a Reclamante, que a Decisão Singular em crise está em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/10/2012, proferido na Revista n.º 198/06.4TBFAL.E1.S1, 1ª Secção, Relator Conselheiro Moreira Alves, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:
«I- Para o exercício do direito de indemnização, resultante de responsabilidade extracontratual, o lesado pode sempre intentar a acção cível para além do prazo normal de três anos, previsto no art.º 498.º, n.º 1, do CC, desde que alegue e prove, naquela acção, que a conduta do lesante constitui, no caso concreto, determinado crime, cujo prazo de prescrição seja superior.
II- A aplicação do alargamento do prazo prescricional, prevista no n.º 3 do art.º 498.º do CC, não está dependente de, previamente, ter corrido processo crime ou da existência de condenação penal, assim como não impede a acção cível, o facto de o processo crime ter sido arquivado ou amnistiado.
III- O prazo durante o qual esteve pendente o processo crime, não deve contar-se para o cômputo da prescrição, dado o princípio geral da adesão obrigatória da acção cível à acção penal

Dizer, antes de mais, que não assiste razão à Reclamante e que não existe qualquer contradição entre a Decisão Singular e a orientação doutrinária e jurisprudencial seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça (doravante “S.T.J.”), que julgamos maioritária.

É claro que a aplicação do alargamento do prazo prescricional a que se refere o n.º 3 do artigo 498.º do Cód. Civil, não está dependente de, previamente, ter corrido processo crime, e muito menos da existência de condenação penal, assim como não impede a acção cível, o facto de o processo crime ter sido arquivado, ou amnistiado. A aplicação do referido prazo largado de prescrição do direito de indemnização depende apenas da mera possibilidade da subsunção dos factos à previsão da norma penal.[[2]]

E que o lesado, apesar disso, pode sempre intentar a acção cível para além do prazo normal de 3 anos, desde que alegue e prove, na acção civil, que a conduta do lesante constitui, no caso concreto, determinado crime, cujo prazo de prescrição é superior aos 3 anos consignados no n.º 1 do preceito.

Tal alegação e prova é pressuposto essencial e necessário da improcedência da excepção de prescrição que o réu tenha suscitado, como no caso a Ré suscitou.

Nas alegações da Reclamante suscita-se a questão de saber se a Autora/Reclamada estava obrigada, por força do princípio da adesão obrigatória da acção cível à acção penal expresso no artigo 72.º do Cód. Proc. Penal, a formular pedido de indemnização civil no processo crime.

A resposta só pode ser negativa, porquanto estão em causa dois crimes de semi-públicos [ofensa à integridade física por negligência] cujo procedimento criminal teve por base uma queixa formulada pela Autora junto do M.º P.º e das autoridades policiais competentes, na qualidade de ofendida/lesada.

A propósito desta questão e da questão da interrupção da prescrição durante a pendência do processo crime, veja-se, por expressivo, o Acórdão do S.T.J., de 22/01/2004, CJ/STJ, Tomo I- 37, com o seguinte sumário:
I- Pedido de indemnização civil fundado na pratica de um crime é deduzido no processo penal respectivo (principio da adesão) só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei – art.º 71.º do CPP. Daí que, em princípio, se haja de admitir que o prazo de prescrição não corre enquanto pender a acção penal, nos termos do disposto no art.º 306.º, n.º 1, do Cód. Civil.
II-Tendo sido instaurado processo crime contra o lesante pela alegada prática de um crime semi-público (ofensas corporais por negligência) mediante a apresentação oportuna da competente queixa por parte do lesado, torna-se patente que o lesado manifestou, ainda que de forma indirecta, a sua intenção de exercer o direito a ser indemnizado pelos danos que lhe foram causados pelo arguido/lesante.
III-A pendência do processo crime (inquérito) como que representa uma interrupção contínua ou continuada (ex vi, do art.º 323., n.º 1 e 4, do Cód. Civil), quer para o lesante, quer para aqueles que (…) com ele são solidariamente responsáveis pela reparação dos danos, interrupção esta que cessará naturalmente quando o lesado for notificado do arquivamento (ou despacho final) do processo crime adrede instaurado.
IV-Não é razoável que o início da contagem do prazo prescricional para o exercício do direito de indemnização possa ocorrer durante a pendência do inquérito.
V- Só depois de esgotadas as possibilidades de punição criminal ficará o lesado habilitado a deduzir, em separado, a acção de indemnização, face ao disposto no n.º 1 do art.º 306.º do Cód. Civil. - «o prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido».
VI-Com a participação dos factos (em abstracto criminalmente relevantes) ao Ministério Público ou às entidades policiais competentes, se interromperá o prazo de prescrição contemplado no n.º 1 do art.º 498.º do Cód. Civil, não começando, de resto, a correr enquanto se encontrar pendente o processo penal impeditivo da propositura da acçao cível em separado (…).”[[3]]

Com efeito, no caso dos autos está apenas em causa a pratica de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. p. pelo artigo 148.º, n.º 1, do Cód. Penal, cujo procedimento criminal depende de queixa do ofendido/lesado (art.º 148.º, n.º 4, do Cód. Penal).

No âmbito do direito processual penal (artigo 71º), encontra-se consagrado o princípio de adesão, nos termos do qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

Ora, a alínea c) do n.º 1 do artigo 72º do CPP admite a reclamação de indemnização cível, decorrente do facto criminoso, fora do processo penal, quando “o procedimento depender de queixa ou de acusação particular”.

Tudo visto, é de concluir que o direito de indemnização da Autora não se encontrava prescrito quando esta propôs, em 10/03/2020, a presente acção cível, quer se perfilhe o entendimento maioritário da nossa jurisprudência, que considera que o inicio do cômputo do prazo de prescrição - no caso de 5 (cinco) anos - se dá com o encerramento do inquérito-crime, que ocorre com a definitividade (“trânsito em julgado”) do despacho de arquivamento ou de acusação ou de pronúncia/não pronúncia, após a sua notificação ao arguido e/ou ofendido/assistente, por aplicação do critério definido no art.º 306º, nº 1 do Cód. Civil[[4]], quer se considere, como a Autora/Recorrente/Reclamada parece defender, que o início do computo do prazo prescricional, até aí interrompido, se dá com o trânsito em julgado da decisão final proferida no processo-crime, designadamente com a definitividade da sentença condenatória. Neste último caso esse direito só se extinguiria em 29/09/2021 (29/09/2016 + 5 anos).

Aqui chegados, só nos resta concluir pelo indeferimento da Reclamação e pela manutenção da Decisão Singular de 26/10/2021.

IV)–Decisão:
Face ao exposto, acordam, em Conferência, os Juízes da 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente a excepção de prescrição invocada pela Ré-Recorrida, ora Reclamante, e em consequência indeferir a presente Reclamação e confirmar a Decisão Singular do Relator, de 26/10/2021 [ref.ª Citius 17562056].
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Custas incidentais pela Ré/Recorrida, ora Reclamante, com 2 UC de taxa de justiça –  artigos 527.º do CPC e 7.º, n.ºs 4 e 8, do RCP:
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Registe e notifique.
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Lisboa, 6 de Janeiro de 2022



Manuel Rodrigues
Ana Paula Albarran Carvalho
Nuno Lopes Ribeiro



[1]Vide Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, 4.ª edição, págs. 104 e segs.
[2]Cfr., entre outros Acs. do STJ de 13.11.1990 e 06.10.2005 In BMJ, 401º, 563 e www.dgsi, respectivamente, e Ac. do TRE, de 30/11/2006, CJ, 2006, Tomo 5.º-252  e, ainda, Pires de Lima e Antunes Varela, notas ao artigo 498.º in Cód. Civil Anotado.
[3]No mesmo sentido, o Ac. do TRP, de 01/12/2014, proc. n.º 41/13.8T2SVV-A.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[4]No caso, a Autora/Reclamada foi notificada da dedução da acusação em 25/01/2016, pelo que a seguir-se o referido critério a prescrição apenas ocorreria em 25/01/2021.