Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | IVO NELSON CAIRES B. ROSA | ||
Descritores: | FALTA DE DISCRIMINAÇÃO DOS FACTOS OMISSÃO DE PRONÚNCIA NULIDADE DE SENTENÇA | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | SENTENÇA NULA | ||
Sumário: | (da responsabilidade do relator) I- Tendo em conta o que resulta do disposto nos artigos 339º nº 4, 368º nº 2 e 374º nº 2, todos do CPP, o tribunal deve indagar e tomar posição sobre todos os factos que tenham sido alegados pela acusação, pela contestação ou que resultem da discussão da causa e se mostrem relevantes para a decisão. Daqui decorre que, ainda que para a solução de direito que o tribunal tem como adequada para o caso, se afigure irrelevante a prova de determinado facto, o tribunal não pode deixar de se pronunciar sobre a verificação ou não de determinados factos, o que pressupõe a sua indagação se tal facto se mostrar relevante num outro entendimento jurídico plausível. II- Para além dos factos alegados pela defesa, assim como todos os demais na definição do nº 4 do artigo 339 do CPP, fazerem parte do objeto da discussão, a lei impõe, como resulta claro do nº 2 do artigo 368º do CPP, que o juiz tome posição, dando-os como provados ou não provados, de forma descriminada e especificadamente, sobre os factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim, os que resultarem da discussão da causa. III- Não obstante o juiz estar obrigado a tomar posição sobre os factos alegados pela acusação e pela defesa, isso não significa que o tribunal não possa, ou não deva expurgar da sua atividade probatória, factos irrelevantes para a decisão, factos inócuos, considerações meramente conclusivas ou conceitos de direito. IV- Ao não dar como provados, ou não provados, factos da contestação o tribunal a quo não deu cumprimento ao art.º 374º, nº 2, do C.P.P., abstendo-se de conhecer questões de que devia conhecer, omissão de pronúncia que é violadora também do art.º 379º, nº 1, als. a) e c) do C.P.P., o que faz com que a sentença sob recurso esteja ferida de nulidade. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Em conferência, acordam os Juízes na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório Nos autos nº 941/21.1PLSNT do Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Local Criminal de Sintra – Juiz 1 foi proferida sentença, datada de 12/03/2024, de cuja parte decisória consta: Condenar a arguida AA pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples na pena de 50(cinquenta) dias de multa à taxa diária de €7,00 (sete euros), perfazendo o montante global de €350,00 (trezentos e cinquenta euros). Julgar o pedido civil formulado pelo demandante BB parcialmente procedente por provado e, em consequência, condenar a demandada/arguida ao pagamento da quantia de €250,00 (duzentos e cinquenta euros) ao demandante a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros desde a notificação, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado. *** Não se conformando com essa decisão, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação formulado as seguintes conclusões (transcrição): 1 - Veio a Arguida condenada ao pagamento de uma multa no valor de € 350,00, acrescido da condenação do PIC no valor de € 250,00. 2 - Pelos mesmos os factos constantes da Contestação elencados de 7-23 são relevantes para a decisão, porque tais factos, porque essenciais e alegados pela Arguida e amplamente discutidos na audiência de julgamento, deveriam ser lavados, segundo a perspectiva da defesa ou aos factos provados, o que implicaria a sua absolvição. Todavia o facto de o Tribunal não considerar tais factos como provados ou não provados, impede o direito de defesa da Arguida. 3 - Ora esta afirmação é susceptível de violar o disposto no artigo 32º, n.º 1 da CRP, no seu direito de defesa que ao Arguido é salvaguardado pela CRP, bem como denegação de justiça, nos termos do artigo 20º da CRP, que refere “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.” Pois ao negar essa apreciação, vital para a defesa, ainda, que em termos formais, denota a ligeireza com que foi apreciada a prova, e a valoração dos factos que firmaram a convicção do Tribunal, bem como a decisão de condenar a Arguida, a uma pena e a uma indemnização, quando na realidade, o teor da contestação péla arguida, impunha decisão diversa, no mínimo absolver a Arguida. Facto que o Tribunal a quo, certamente por falta de atenção, não tomou em consideração, devendo-o fazer como prescreve a lei. 4 - Na sua Contestação a Arguida, tomou posição dos factos, negou a sua prática e sobretudo referiu que a sopa era fria, tal situação foi confirmada pela Testemunha CC, que a não comeu por ser fria, bem como só no final da refeição foi levantada a mesa onde estariam os pratos com os restos da sopa, ou seja pelo menos 40 minutos depois de se ter iniciado, mesmo que a sopa fosse quente, a que estava nos pratos alegadamente derramada pela Arguida, ao fim desse tempo a sopa estaria no mínimo fria, pois segundo as regras da experiência comum, facilmente se antolhe que restos de sopa em pratos ao fim de 40 minutos estão necessariamente frios, não sendo necessária prova pericial para obter tal informação, basta apenas o bom senso e as regras da experiência comum, que estiveram arredadas da Sentença proferida pelo Tribunal. Como a Sentença refere solipsisticamente que a Arguida apresentou Contestação e arrolou testemunhas, e nada refere sobre os factos essenciais alegados pela defesa na sua Contestação somos forçados a concluir que o Tribunal não apreciou toda a defesa da Arguida e consequentemente o Tribunal a quo deveria ter-se pronunciado sobre tais factos. 5 - Não obstante, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a Contestação, com repercussões no enquadramento jurídico-penal dos factos e nas penas aplicáveis e a aplicar à Arguida. 6 - Salvo melhor entendimento, se o Tribunal omite a apreciação e decisão sobre um facto alegado pela acusação ou pela defesa ou de que possa e deva conhecer e se esse facto for relevante para a decisão sobre a escolha e determinação da sanção, deixando de o considerar provado ou não provado, então fica a sentença afectada de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410.º, nº 2, alínea a) do Código do Processo Penal. 7 - Enferma, pois a decisão recorrida do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício que, em concreto, inviabiliza a correcta decisão da causa e impõe a anulação da decisão recorrida. 8 – Encontra-se violado o artigo 368º, n.º 2 do CPP porque é inequívoco que o tribunal deve pronunciar-se sobre os factos alegados na contestação com interesse para a decisão, não sendo lícito ao Tribunal, porque resultam provados, os factos da acusação, não se pronunciar sobre os factos da contestação. E esta elencagem o tribunal recorrido não fez, de todo em todo, olvidando que a estratégia da defesa tem de ser respeitada. 9 - Como tal, ao não dar como provados ou não provados aqueles factos da contestação, o tribunal a quo não deu cumprimento ao art.º 374º, n.º 2 do C.P.P., abstendo-se de conhecer questões de que devia conhecer, omissão de pronuncia que é violadora do art.º 379º, n.º 1 al. a) do C.P.P., o que demanda que a sentença sob recurso esteja ferida de nulidade. 10 - O Tribunal, como resulta nomeadamente do disposto nos artigos 339º, n.º 4, 368 n.º 2 e 374º, n.º 2, todos do CPP, deve indagar e pronunciar-se sobre os factos que tenham sido alegados pela acusação, pela contestação ou que resultem da discussão da causa e se mostrem relevantes para a decisão. Ou seja, ainda que para a solução de direito que o tribunal tem como adequada para o caso, se afigure irrelevante a prova de determinado facto, o Tribunal não pode deixar de se pronunciar sobre a sua verificação/não verificação – o que pressupõe a sua indagação – se tal facto se mostrar relevante num outro entendimento jurídico plausível. 11 - E não tendo tal enumeração sido feita pelo Tribunal a quo, ficou limitado o direito de defesa, nos termos do artigo 32º, n.º 1 da CRP, na medida em que fica restringido o âmbito do recurso, porquanto tais factos não constam da matéria de facto (provada e não provada), tornando-se naquela insindicáveis. 12 - E estipula a lei que a sanção para este vício é a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379º al. a) e c). b. É manifesto que no caso dos autos o Tribunal a quo não cumpriu o disposto no art.º 374º, n.º 2, não dando a devida atenção e relevância à defesa apresentada pela Arguida na sua Contestação. O que é, desde logo, perceptível no incumprimento da exigência contida no art.º 374º, n.º 1, al. d) do CPP, no que respeita à indicação, ainda que sumária, das conclusões contidas na Contestação, tal como estipulado no artigo 374º, n.º 1 al. d) do CPP. 13 - Com efeito, no relatório, o Tribunal a quo identificou a Arguida, indicou os crimes imputados à Arguido segundo a acusação - Porém, no que respeita à exigência contida na al. d) do n.º 1 – “d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada” – limitou-se a contrariar a lei: “A arguida apresentou contestação e arrolou testemunhas.” O mesmo não sucedeu no que respeita à Contestação apresentada, apesar de a Arguida o ter feito, demonstrando uma disparidade de consideração em relação às posições das partes (que aliás, foi perceptível ao longo da produção de prova, como se demonstrará), violando assim o artigo 13º da CRP, no que concerne ao principio da igualdade com repercussões e consequente limitação do artigo 32º, n.º 1 da CRP. Não tendo cumprido cabalmente com o estipulado no art.º 374º, n.º 1 al. d) e n.º 2, do CPP, verifica-se omissão de pronuncia sobre questões que o Tribunal a quo devia conhecer, por relevantes para a boa decisão da causa. Tal omissão de pronuncia viola o disposto no artigo 379º, n.º 1 al. a) do CPP, ferindo a decisão de nulidade, a qual aqui se argui e deve ser declarada, com as legais consequências. Como tal e ao contrário do que julgou a decisão recorrida deverá ser declarada a nulidade, devendo ser substituída por outra, expurgada da matéria de facto dada como nula, o que o Tribunal ad quem, poderá fazer atento os poderes que lhe são conferidos nos termos dos artigos 428º e 431º do CPP, ou assim não se entendendo, mediante o reenvio para aquele Tribunal, procedendo-se para tal a novo julgamento com a consequente anulação do anteriormente realizado. 14 - Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.º 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal). 15 - Vem a Arguida defender que a douta sentença recorrida incorreu em erro notório na apreciação da prova, a que alude o art.º 410.º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal, ao não dar como provados os pontos 1, 2, 3, 4 e 5. 16 - Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal). 17 - Dos vícios da decisão do artigo 410º, n.º 2 e 3 do CPP. A decisão padece do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão. Como se referiu supra e infra se desenvolverá, face à natureza da matéria que não se mostra apreciada pelo Tribunal a quo, a Sentença recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, consagrado no artigo 410º, n.º 2 al. a) do CPP, o qual se argui nos termos e para os legais efeitos, por não se ter em consideração a Contestação apresentada pela Arguida. 18 - Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando o Tribunal não tiver considerado provado ou não provado um facto alegado pela acusação ou pela defesa ou de que possa e deva conhecer, nos termos do n.º 1 do artigo 358.º do CPP, se esse facto for relevante para a decisão da questão da culpabilidade, ou quando, podendo fazê-lo, não tiver apurado factos que permitam uma fundada determinação da sanção. 19 - O STJ refere que “(…) os vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do CPcomo vícios da decisão e não de julgamento. Nesta disposição estamos em face de vícios da decisão recorrida, umbilicalmente ligada aos requisitos da sentença previstos no art.º 374.º, n.º 2, do CPP, concretamente à exigência de fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que justificam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundar a convicção do Tribunal.” 20 - Diz ainda o STJ que: a insuficiência que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão, que constituam o objecto da discussão da causa, ou seja os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, segundo o art.º 339.º, n.º 4 do CPP. 21 - Com a omissão de tal investigação, ficou uma situação de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, o que constitui um vício da al. a) do n.º 1 do artigo 410º do CPP. 22 - Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e das provas que impõem decisão diversa da recorrida (art.º 412º, n.º 3, al. a) e b) e n.º 4 do CPP. Nos termos do disposto no art.º 431º do CPP, sem prejuízo do disposto no artigo 410º do CPP, a decisão do Tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base e se a prova tiver sido impugnada nos termos do art.º 412º, n.º 3 do CPP. 23 - Em cumprimento do disposto no artigo 412º, n.º 3 al. a) do CPP, a Recorrente considera como incorrectamente julgados os factos delimitados os factos provados, 1-5. 24 - As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, em cumprimento do disposto no artigo 412º, n.º 3 al. b) e n.º 4 do CPP passa-se a indicar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida: 25 - A propósito do facto provado, no que tange, “(…) derramou sobre este uma tigela com sopa quente atingindo a barriga e parte superior das pernas.” A propósito da sopa quente vs sopa fria, vide depoimentos relevantes: [Transcrição em local próprio]. O mesmo se refira ao ponto dois dos factos provados “(…) dor as zonas atingidas.” 26 - Não restam dúvidas dos três depoimentos directos e da ausência de lesão que não poderia a sopa ser quente e mesmo que fosse, o que não se admite, ao fim de pelo menos quarenta minutos, porque os pratos foram recolhidos à pressa da mesa, os restos de sopa seriam necessariamente frios e não quentes, provocando sujidade e não lesão, porque não há lesão. 27 - Os factos três, quatro e cinco, dados como provados valem os argumentos expostos neste capítulo porque se referem à dor e a tese de acidente foi descrita acima como sendo a verdadeira e que aqui se reproduz por razões de economia processual, que afasta que a Arguida quis molestar o Assistente. Pois segundo a testemunha CC, esta pediu desculpa, ofereceu-se para limpar, o Assistente é que recusou. 28 - Assim a Arguida não preencheu o pressuposto subjectivo do tipo, referente ao crime de ofensas à integridade físicas, artigo 143º do CP, porque sendo um acidente, sendo desconhecidos, tendo oferecido ajuda para limpar, e o Assistente recusou, não agiu deliberadamente, nem livre e conscientemente por se ter tratado de um acidente. 29 - Das concretas provas que devem ser renovadas. Devem renovar-se os depoimentos prestados o dia 09-04-2024, BB, da Arguida AA consignando-se que o seu início ocorreu pelas 09:41:31 horas e o seu termo pelas 10:01:09 horas. A testemunha Dr. CC, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 11:31:07 horas e o seu termo pelas 11:47:36 horas. A agente da PSP, DD, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 11:03:32 horas e o seu termo pelas 11:06:27 horas. EE, consignando-se que o seu início ocorreu pelas10:50:24 horase o seu termo pelas11:02:57 horas e FF, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 10:31:32 horas e o seu termo pelas 10:49:36 horas. GG, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 11:07:18 horas e o seu termo pelas 11:11:29 horas. 30 - Nos termos do artigo 412º, n.º 2 do CPP, versando a impugnação matéria de direito deve especificar-se, como referem as als. a), b) e c), as normas jurídicas violadas, o sentido em que o Tribunal interpretou a norma e como a deveria ter interpretado, e qual a norma jurídica a aplicar. Face ao que vem descrito na Contestação, não tida em conta pelo Tribunal, bem como à análise dos depoimentos no capítulo supra, das diversas contradições daí resultantes, e o facto de o Tribunal considerar uma sopa quente, quando ninguém da acusação soube dizer o que era a sopa, que a Arguida e a testemunha CC, descreveram uma sopa fria, à base de pepinos, e resulta das regras da experiência comum, que mesmo que o Tribunal desse a sopa como quente, após pelo menos 101 quarenta minutos em que decorreu a refeição, tendo os pratos ficado em cima da mesa, tendo-se precipitado a saída da mesa por força do pai do Assistente, tendo os pratos sido empilhados com os restos das sopas, quarenta minutos depois já estaria necessariamente fria e não poderia provocar nenhuma vermelhidão no Assistente, qualquer pessoa pode intuir tal facto recorrendo às regras da experiência comum. Aliado ao facto da a testemunha DD, agente da PSP chamada ao local ter afirmado concretamente que não tinha qualquer lesão, apenas a camisola suja, foi levantada a camisola observada pela agente da PSP o local onde caiu a sopa e não havia qualquer lesão. Pelo que não podia estar vermelho, pois se estivesse vermelho à hora dos factos descritos no auto fls. 1 16h15m tendo a agente visualizado o menor, às 18h25 e não havia qualquer lesão, vermelho, tudo estava normal, houve recusa por parte do Assistente em ir ao Hospital, por não sentir nada. Aliado ao facto de o Assistente ter dito que nesse dia à noite, quando o pai colocou a pomada, já não tinha vermelhidão, e pelo depoimento do pai, FF, o dia seguinte já não tinha nada, e que quando coloca a pomada ainda estava vermelho há uma contradição entre estes testemunhos directos. 31 - Existe assim dúvida razoável poderá consistir na dúvida que seja “compreensível para uma pessoa racional e sensata”, e não “absurda” nem apenas meramente “concebível” ou “conjectural”. Nesta óptica, o convencimento pelo tribunal de que determinados factos estão provados só se poderá alcançar quando a ponderação conjunta dos elementos probatórios disponíveis permitirem excluir qualquer outra explicação lógica e plausível. 32 - Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art.º 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo. 33 - O princípio do in dubio pro reo sendo emanação do princípio da presunção de inocência surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo. Se, a final, persiste uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da actuação do acusado, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a seu favor, sob pena de preterição do princípio constitucional consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. 34 - Atentos os fundamentos supra expostos referentes, de que a sopa era fria, de que não há qualquer lesão, não há dano, por ser um acidente furtuito, porque a t-shirt não ficou estragada, e tratou-se de um acidente, não pode a Recorrente/Demandada ser condenada no Pedido de Indemnização Cível. 35 - Sobretudo, porque, a Recorrente/Demandada, porque não viu a matéria que alegou na Contestação, com relevo para os autos, apreciada, não pode ser condenada no PIC. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal respondeu o Ministério Público concluindo pela improcedência do recurso. Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo. Neste Tribunal, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, o Mº. Pº emitiu parecer, aderindo aos argumentos aduzidos pelo Mº.Pº. junto da primeira instância e concluindo pela confirmação integral da decisão recorrida. Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, tendo a arguida respondido pugnando pela procedência do recurso. *** Colhidos os vistos legais foi o processo à conferência, onde se deliberou nos termos vertidos neste Acórdão. Delimitação do objecto do recurso. Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]. Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a apreciar: Do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, nº 2, alínea a); Do vício de omissão de pronúncia - art.º. 379.º, n.º 1 al. a) do C.P.P; Do erro notório na apreciação da prova, a que alude o art.410.º, nº 2, alínea c), do CPP; Da violação do princípio do in dubio pro reo. **** Da sentença recorrida consta a seguinte matéria de facto provada (transcrição): 1- No dia 4 de Agosto de 2021, pelas 16h:15, na ..., a arguida desentendeu-se, por razões não apuradas, com BB e, nessa sequência, derramou sobre este uma tijela com sopa quente atingindo a barriga e parte superior das pernas. 2- O que foi causa directa, necessária e adequada de dor nas zonas atingidas. 3- A arguida ao agir da forma supra descrita quis, e conseguiu, molestar fisicamente a BB, provocando-lhe dor. 4- Agiu a arguida, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era reprovada e punida por lei. 5- Por conta da actuação da arguida, o assistente sentiu-se perturbado, enxovalhado e humilhado pela arguida, situação que o envergonhou e entristeceu 6- A arguida encontra-se no estado civil de divorciada e reside com o filho. 7- A arguida reside em casa própria, pela qual paga mensalmente a quantia de €400,00 a título de empréstimo bancário. 8- A arguida é … da ..., auferindo mensalmente a quantia de €2.000,00, encontrando-se de baixa desde .... 9- A arguida tem licenciatura em …. 10)- A arguida não tem antecedentes criminais. Não se logrou provar qualquer outro facto, com relevo para a boa decisão da causa, ou que esteja em contradição com os dados como provados. Designadamente não se logrou provar que: Que a conduta da arguida foi causa directa, necessária e adequada de um escaldão nas zonas atingidas. O tribunal a quo fundamentou a decisão de facto pelo seguinte modo (transcrição): O Tribunal norteou a sua convicção quanto à matéria de facto provada com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência, conjugada com o princípio da livre apreciação da prova. Não foi colocada em causa a circunstância de a arguida ter atingido o assistente com sopa na barriga e pernas, negando a arguida, apenas, que o tenha feito intencionalmente, alegando que ao levantar a mesa do almoço, ao encaminhar os pratos para a cozinha, deixou cair o prato de sopa incidentalmente sobre o assistente, que se encontrava sentado, tendo, de imediato, pedido desculpas, acrescentando que dificilmente a sopa lhe causaria qualquer dor, pois que era sopa fria. Já o assistente refere que a arguida, ao entrar na cozinha, se virou na sua direcção e lhe atirou propositadamente a sopa para cima, não tendo duvidas da intenção da arguida, pois que além de lhe dizer “toma, cabrão”, ainda lhe pediu desculpas num tom sarcástico. Concretamente, esclarece que sentiu dor na zona atingida, mas esta foi maior no momento em que caiu sobre si, e durou alguns minutos, tendo desaparecido posteriormente, pelo que não se dá como provado que tenha ficado com um escaldão. Esclarecem, ambos, que se encontravam sozinhos na cozinha; contudo, o pai do assistente, refere que, por acaso, se encontrava a passar no corredor, justamente no momento em que a arguida agredia o assistente, esclarecendo que a viu a atirar o prato de sopa na direcção do seu filho; o tio do assistente também se encontraria a passar no corredor e viu a arguida atirar sopa para cima do assistente, apelidando-o de “cabrão”, pedindo desculpas em tom jocoso e abandonando a cozinha. Nenhum refere qualquer lesão além da dor momentânea sentida pelo assistente. Já o ... da família da amiga da arguida, CC, refere que também estava a passar no corredor naquele momento, mas ainda que esclareça que não viu o exacto momento da queda da sopa, confirma que esta era fria, tanto que, por não gostar, não a comeu. Por fim, HH, ... do pai do assistente, mas testemunha de defesa, que também estava no local nesse dia, recorda-se do episódio da sopa, referindo que viu o assistente queixar-se de lhe ter sido derramada sopa em cima, mostrando-se muito desgostoso e surpreendido com os eventos. Recorda-se de questioná-lo sobre se teria sido um acidente, ao que o assistente lhe terá dito, indignado, que teria sido de propósito, dizendo-lhe “ela veio dali, deu-me com a sopa e eu nem estava no caminho dela”; conclui dizendo que julga que a sopa estaria quente, porque tem ideia de ter perguntado se tinha sofrido alguma queimadura, sendo que, por não se recordar da resposta, imagina que não houvesse qualquer lesão desse tipo. Aliás, os polícias inquiridos confirmam que não visualizaram qualquer lesão no assistente. Em suma, mesmo que possamos desconsiderar os depoimentos do pai e tio do assistente, por alguma parcialidade, e o depoimento de CC, pois que nada de concreto viu quanto aos factos e refere que a sopa era fria, quando nem sequer a provou, temos o depoimento que julgamos imparcial de HH, que se recorda do estado de indignação e surpresa do assistente, bem como do facto de este se questionar do porquê, pois que nem estava no caminho da arguida. E este não estar no caminho é relevante, cremos, da intencionalidade da arguida. Precisamente porque ao entrar na cozinha o assistente não estaria na sua direcção, tendo de se virar para o confrontar, é que não pode ter-se tratado de um acidente; a arguida escolheu virar-se e dirigir-se ao assistente e, aí, atirar a sopa. Note-se que arguida e assistente não se conheciam, mas encontravam-se no mesmo local, por conta de uma diligência judicial de arresto de bens, a arguida amiga da ex-companheira do pai do assistente, o assistente, filho do ex-companheiro da amiga da arguida. Assim, se a situação é despropositada, mais ainda seria a prossecução criminal da arguida, uma mera desconhecida, se se tivesse tratado de um mero acidente Acresce que a tese do acidente só faria sentido se, nessa sequência, actos de contrição se tivessem sucedido, como, além de um pedido de desculpas sincero, tivesse procurado ajudar o assistente que, aparentemente, não teria outra roupa para vestir; nunca se prontificou a ajudá-lo e a emendar aquilo que, no seu ver, era um infortúnio infeliz. É esta a forma de proceder de um ser humano que erra acidentalmente: tenta colmatar o seu erro, tenta fazer reparações; nada disto fez a arguida: entornou a sopa e evadiu-se do local. Poderia ter dito que tentou ajudar o assistente e o seu auxílio foi recusado, mas não. Na sequência de um, suposto, acidente, fugiu do local. Isto não é o comportamento de quem se limitou a, na versão da arguida, atirar acidentalmente sopa fria para cima de um desconhecido. Assim, por colidir frontalmente com as regras da normalidade e da experiência, afasta-se a versão da arguida na totalidade, inclusive na sua alegação de que a sopa era fria, pois que a única pessoa que veio aos autos atestá-lo, nem sequer a comeu. Assim sendo, dúvidas não existem que a arguida atingiu o assistente e quis fazê-lo nos moldes dados como provados, ciente de que actuava contra a lei, pois que qualquer cidadão médio o sabe, não fornecendo qualquer explicação para a sua actuação, ciente de que não pode comportar-se nestes moldes em sociedade. No que respeita ao pedido de indemnização civil, o Tribunal fez fé não só no declarado pelo assistente e seus familiares inquiridos no que respeita às dores e ao vexame sentidos. As condições pessoais da arguida resultaram provadas mercê do declarado pela própria; relativamente aos antecedentes criminais da arguida, o Tribunal formou a sua convicção com base no teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos. *** FUNDAMENTAÇÃO Apreciemos o recurso. Do vício de omissão de pronúncia - art.º 379.º, n.º 1 al. a) do C.P.P. Alega a recorrente que a decisão recorrida, ao não dar como provados ou não provados os factos da contestação, não deu cumprimento ao art.º 374º, n.º 2 do C.P.P., abstendo-se de conhecer questões de que devia conhecer, omissão de pronuncia que é violadora do art.º 379º, n.º 1 al. a) do C.P.P., o que demanda que a sentença sob recurso esteja ferida de nulidade. Cumpre saber se assiste razão à recorrente. Conforme se refere no Ac. do STJ de 16/02/2022, Proc. nº 333/14.9TELSB.L1-A.S1, a “Omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre questões ou matérias, de direito substantivo ou processual, que conformam o objeto da concreta pretensão de justiça penal. A omissão de pronúncia causadora de nulidade de sentença ou acórdão, prevista no art.º 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, preenche-se com a falta de pronúncia sobre questão ou questões que, suscitadas pelos sujeitos processuais ou de conhecimento oficioso, o tribunal devia ter apreciado. Omitir pronúncia sobre determinada questão é, simplesmente, nada dizer sobre a mesma, não tomar sobre essa concreta questão, substantiva ou processual, qualquer posição, expressa ou implícita, mas claramente entendível, a não ser que resulte claramente prejudicada pela decisão de outras.”. Daqui decorre que existe omissão de pronúncia quando o Tribunal deixa de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. Conforme resulta do artigo 374.º do Código de Processo Penal, sentença deve conter o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação, que se segue ao relatório, há-de conter a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal – n.º 2 do artigo 374.º referido. Dispõe o artigo 379.º do CPP o seguinte: 1 - É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F; c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. 2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º”. Destas normas e da sua conjugação com o disposto no artigo 368.º, n.º 2, do CPP, é inequívoco que o tribunal deve pronunciar-se sobre os factos alegados na contestação com interesse para a decisão, não sendo lícito ao tribunal, porque resultaram provados os factos da acusação, não se pronunciar sobre os factos da contestação. Importa convocar, também, o que dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, a propósito dos fundamentos do recurso. «1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. (...)». Daqui resulta que os vícios acima referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente a segmentos de declarações ou depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento e que se não mostram consignados no texto da decisão recorrida. Como é dito no acórdão do TRE de 24-1-2023, no processo 176/19.1T9ALR.E1, “A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, ocorrendo quando se conclui que com os factos considerados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato que é preciso preencher. Porventura melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o Tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”. Assim sendo, o vício em causa existe quando da factualidade que consta na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito. Este tem sido o entendimento do STJ como se constata pela análise feita, entre outros, aos seguintes acórdãos: Acórdãos do STJ de 7/04/2010 (proc. n.º 83/03.1TALLE.E1.S1, 3ª Secção, in www.dgsi.pt) de 6-4-2000 (BMJ n.º 496 , pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483 , pág. 49), bem como de Leal- Henriques e Simas Santos, in “Código de Processo Penal anotado”, vol. 2.º, 2ª ed., págs. 737 a 739. Como refere Francisco Mota Ribeiro, Processo e Decisão Penal Textos, CEJ, 2019, p. 39/40 «(…) Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exacta do que seja o objecto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa. Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objecto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339.º, n.º 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objecto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa”. Tendo em conta o que acabamos de mencionar, bem como o que resulta do disposto nos artigos 339º nº 4, 368º nº 2 e 374º nº 2, todos do CPP, o tribunal deve indagar e tomar posição sobre todos os factos que tenham sido alegados pela acusação, pela contestação ou que resultem da discussão da causa e se mostrem relevantes para a decisão. Daqui decorre que, ainda que para a solução de direito que o tribunal tem como adequada para o caso, se afigure irrelevante a prova de determinado facto, o tribunal não pode deixar de se pronunciar sobre a verificação ou não de determinados factos, o que pressupõe a sua indagação se tal facto se mostrar relevante num outro entendimento jurídico plausível. Como resulta claramente no disposto no nº 4 do artigo 339º do CPP, não obstante o objecto do processo estar delimitado pela acusação, o objecto da discussão vai para além disso, nele se incluindo, também, como resulta claramente da norma em causa, os factos alegados pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, sempre com vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º. Para além dos factos alegados pela defesa, assim como todos os demais na definição do nº 4 do artigo 339 do CPP, fazerem parte do objecto da discussão, a lei impõe, como resulta claro do nº 2 do artigo 368º do CPP, que o juiz tome posição, dando-os como provados ou não provados, de forma descriminada e especificadamente, sobre os factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim, os que resultarem da discussão da causa. A razão de ser destas exigências legais prende-se, em primeiro lugar, com as finalidades do julgamento penal que é, em síntese, o momento onde são apresentados todas as provas e argumentos com vista a que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa, mas, também, em dar concretização prática ao estabelecido no artigo 205º da CRP – dever de fundamentação das decisões dos tribunais – sendo que esse dever, relativamente à sentença, visa, nas palavras de Germano Marques da Silva, In “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo 2008, 4ª Edição Revista e actualizada, II Volume, páginas 153 e 154. em «lograr obter uma maior confiança do cidadão na Justiça, no autocontrolo das autoridades judiciárias e no direito de defesa a exercer através dos recursos.». Para além disso, pretende-se assegurar as garantias de defesa do arguido, previstas no artigo 32º da CRP, de modo a que este possa ficar a conhecer e tomar posição sobre todas questões de facto e de direito abordadas pelo tribunal, assim como evitar a necessidade de repetição de novo julgamento, com todas os prejuízos para a realização da justiça que daí resultam, nas situações em que o tribunal a quo decidiu não tomar posição sobre determinados factos, quer sejam da acusação, quer sejam da defesa e o tribunal ad quem vir a considerar que esses factos ignorados são, afinal, relevantes para a decisão. Como refere Sérgio Poças, Da Sentença Penal —Fundamentação de Facto, Julgar nº 3, 207, p. 24/25 “A pronúncia deve ser inequívoca: em caso algum pode ficar a dúvida sobre qual a posição real do tribunal sobre determinado facto. Na verdade, se sobre determinado facto não há pronúncia expressa (o tribunal nada diz), pergunta-se: o tribunal não se pronunciou, por mero lapso? Não se pronunciou porque não indagou o facto? Não se pronunciou porque considerou o facto irrelevante? Não se pronunciou porque o facto não se provou? Face ao silêncio do tribunal todas as interrogações são legítimas. Das duas, uma: ou o facto é inócuo para a decisão e o tribunal, com fundamentação sintética, di-lo expressamente e não tem que se pronunciar sobre a sua verificação/não verificação, ou, segundo um entendimento jurídico plausível, é relevante e nesse caso deve pronunciar-se de acordo com a prova produzida». Por último, cumpre afirmar que, não obstante o juiz estar obrigado a tomar posição sobre os factos alegados pela acusação e pela defesa, isso não significa que o tribunal não possa, ou não deva expurgar da sua atividade probatória, factos irrelevantes para a decisão, factos inócuos, considerações meramente conclusivas ou conceitos de direito. Sobre esta questão veja-se o Ac RG, proferido no processo Nº 248/07.GAFLG.G1 «Quanto aos factos provados e não provados, devem indicar-se todos os que constam da acusação e da contestação, “quer sejam substanciais quer instrumentais ou acidentais, e ainda os não substanciais que resultarem da discussão da causa e que sejam relevantes para a decisão e também os substanciais que resultarem da discussão da causa, quando aceites nos termos do art.359º, nº2”. O que importa é que os factos sejam relevantes para a decisão da causa. E relevantes serão todos os factos essenciais à caracterização do crime ou integradores de causas de exclusão. Como é óbvio, os factos inócuos não têm que fazer parte dessa indicação e os conceitos de direito e as conclusões de facto, quer constem da acusação quer da contestação, não podem dela fazer parte. Não é, obviamente, exigível que os factos provados e não provados sejam ipsis verbis os da acusação ou da contestação». Quanto aos factos que a recorrente alega terem sido omitidos pelo tribunal recorrido (factos alegados nos artigos 7 a 23 da Contestação), cumpre dizer, desde já, que o alegado nos artigos 7, 8, 10,11, 12, 13, 14, 15, 16, 19, 20, 22 e 23 devem ter-se como excluídos, quer da discussão, quer da decisão da acusa, dado que os mesmos traduzem considerações da arguida sobre a prova, sobre a razão de ciência das testemunhas, são factos inócuos e, por isso, irrelevantes à caracterização do crime ou integradores de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa. Deste modo, o tribunal recorrido ao ter excluído essa matéria do seu processo decisório não violou qualquer preceito legal. Quanto ao alegado nos artigos 9, 17, 18 e 21 da contestação, verifica-se que os mesmos foram excluídos da sentença, na medida em que não se mostram entre os factos provados ou não provados, sendo que da análise crítica da prova não se alcança o motivo pelo qual foi tomada essa opção. Foram considerados irrelevantes? Não foram tidos em conta na sentença por não se terem provado? Deveu-se a lapso? Ora, tendo em conta o teor do alegado pela arguida na contestação e o objecto da discussão na audiência de julgamento, verifica-se que a questão central para o preenchimento do elemento objectivo do crime de ofensa à integridade física prende-se com a questão de saber se a sopa estava quente, na medida em que só esta seria susceptível, em termos de regras da experiência comum, de causar uma lesão na integridade física no ofendido. A arguida alegou na contestação (artigo 9) que a composição da sopa era de pepinos e coentros e, por isso, fria. Deste modo, torna-se relevante, para se poder concluir com segurança que a sopa estava quente, qual a composição da sopa, dado que, de acordo com as regras da experiência comum, uma sopa de pepino e coentros é uma sopa fria. Assim sendo, a sentença recorrida ao não tomar posição sobre o alegado pela arguida no artigo 9 da contestação deixou de se pronunciar sobre um facto sobre o qual se impunha uma tomada de posição. Ainda com vista a apuarr se a sopa estaria quente, ou seja, se tinha a capacidade de provar uma lesão física através de queimadura, importa saber, dado que resulta da discussão da causa, o tempo que mediou entre o servir do almoço e o fim do mesmo dado que esse facto, mais uma vez tendo em conta as regras da experiência comum, é relevante para se concluir se a sopa, no momento em que atingiu o ofendido, ainda estaria quente e em condições de provocar uma lesão física ou apenas uma mera sujidade na roupa do ofendido. Quanto ao alegado nos artigos 17, 18 e 21 da contestação, verifica-se que os mesmos se prendem com a versão da arguida em que o derrame da sopa consistiu num acidente, portanto sem qualquer intencionalidade, sendo esses factos relevantes para a caracterização do elemento subjectivo do crime pelo qual foi condenada. Assim, e ante a evidência da variedade de soluções plausíveis de direito, afigura-se inequívoco que, no caso concreto, impõe-se a averiguação dos referidos factos já que os mesmos, na versão da arguida, são susceptíveis de excluir a sua responsabilidade criminal, motivo pelo qual a sentença recorrida sofre manifestamente do alegado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, bem como da omissão de pronúncia na medida que os factos alegados na contestação deveriam ter sido levados em conta na enumeração dos factos provados ou não provados, pois que, naturalmente, foram entendidos pela arguida como factos relevantes para a sua defesa e para a decisão da causa. Como tal, ao não dar como provados, ou não provados, aqueles factos da contestação e que acima identificamos, o tribunal a quo não deu cumprimento ao art.º 374º, nº 2, do C.P.P., abstendo-se de conhecer questões de que devia conhecer, omissão de pronúncia que é violadora também do art.º 379º, nº1, als. a) e c) do C.P.P., o que faz com que a sentença sob recurso esteja ferida de nulidade. A nulidade foi arguida pela arguida/recorrente em sede de recurso (artigo 379º, nº 2, 1ª parte do CPP). O tribunal de recurso tem o poder de “suprir” as nulidades da sentença. Mas este poder é muito reduzido na prática, porque ele só poderá ser exercido negativamente. Isto é, o tribunal de recurso só pode exercer o poder de suprir a nulidade nos casos em que o tribunal recorrido se tenha pronunciado sobre questões de que não podia conhecer …Em todos os outros casos, o tribunal de recurso não pode exercer o seu poder de suprimento, pois esse exercício corresponderia à supressão de um grau de jurisdição (acórdão do TRL, de 14.4.2003, in CJ, XXVIII, 2, 143, e acórdão do TRE, de 8.7.2003, CJ, XXVIII, 4, 252) – [cf. Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição, págs. 983, 985]. Nesta conformidade e concluindo, não sendo no caso indiferente, designadamente quanto à verificação do crime de ofensa à integridade física simples, apurar os factos alegados nos artigos 9, 17, 18 e 21 da Contestação, impõe-se anular a sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que, se necessário com recurso a repetição de prova, colmate as lacunas apontadas, decidindo em conformidade. Fica prejudicado, em face do que se acaba de decidir, o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso. III – Dispositivo Nestes termos decide-se: Anular a sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que, se necessário com recurso a repetição de prova, colmate as lacunas apontadas, decidindo em conformidade. Sem custas – artigo 513º nº 1 do CPP Notifique Lisboa, 10 de outubro de 2024 Ivo Nelson Caires B. Rosa Paula Cristina Bizarro Isabel Maria Trocado Monteiro Processado por computador e revisto pelo Relator (cf. art.º 94º, nº 2, do CPPenal). |