Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA RUTE COSTA PEREIRA | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA LISTA DE CRÉDITOS IUC - IMPOSTO ÚNICO DE CIRCULAÇÃO JUROS COIMA | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/15/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Sumário: | 1 – O crédito da Autoridade Tributária referente a juros moratórios vencidos emergentes do incumprimento da obrigação de pagamento pontual de obrigações fiscais, bem como a custas e encargos decorrentes da cobrança coerciva destas obrigações, tem a natureza de crédito tributário. 2 – Não constitui crédito tributário, por não emergir da relação jurídica tributária, o crédito verificado e reconhecido à Autoridade Tributária referente a coimas aplicadas à devedora insolvente pela prática de contraordenações fiscais, bem como a custas e encargos processuais decorrentes da cobrança coerciva de tais créditos. 3 - A única dívida tributária é a “prestação tributária”, o imposto, a que alude o art.º 114º do RGIT como valor cuja não entrega ao credor tributário, no tempo e modo ali definidos, integra a prática de uma contraordenação e dá causa à aplicação da coima, sendo esta uma sanção autónoma, de cariz punitivo, prevista para o incumprimento da obrigação tributária, que subsiste, mantendo intocado o direito do Estado ao recebimento da receita fiscal. 4 - As finalidades de repressão e prevenção associadas às sanções/coimas aplicadas às infrações fiscais distingue-as e autonomiza-as dos créditos tributários, aos quais subjaz a finalidade de obtenção de receitas que norteia o sistema fiscal. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa I. Por apenso aos autos de insolvência em que, por sentença de 04.01.2024, (…)foi declarada insolvente, foi apresentada pela Sr.ª Administradora de Insolvência a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos a que alude o art.º 129º do CIRE, da qual consta terem sido reclamados e reconhecidos apenas créditos comuns, constando como único crédito reconhecido o crédito reclamado pela Autoridade Tributária e Aduaneira relativo a IUC do veiculo …-MD de 2013 a 2022 e IUC do veiculo ….-HS de 2013 a 2015, tudo acrescido de juros de mora, coimas e custas, no valor total de 4.485,06 EUR. Notificada, veio a insolvente dirigir impugnação à lista definitiva, salientando a existência de um lapso na indicação de um veículo (existe um único veículo inscrito na titularidade da insolvente) e alegando que, do valor global do crédito reconhecido terá que ser descontada uma parcela, bem como que, do total reconhecido, apenas o valor de 285,78 € assume natureza tributária, sendo o valor remanescente (4.182,28 €) de natureza não tributária, por respeitar a juros, encargos e/ou coimas, sem natureza fiscal, o que, não alterando a qualificação do crédito, releva para decisão final a proferir a respeito da potencial exoneração do passivo restante. Mais excecionou a parcial prescrição do crédito referente a juros. Concluiu pedindo a procedência da impugnação e, em consequência, que o crédito comum reconhecido ao credor, seja: - reduzido para 4.468,06 €; - qualificado como não tributário/não fiscal no valor de 4.182,28 €, sem prejuízo da declaração de prescrição de parte do valor dos juros de mora que o integra, expurgando-se da lista essa parte; - qualificado como tributário/fiscal no valor de 285,78 €. Em resposta à impugnação de créditos, veio o Ministério Público, em representação da Autoridade Tributária, invocar a inexistência de qualquer lapso no valor total do crédito reclamado a título de IUC, juros de mora, custas e coimas, ou em relação aos veículos identificados por referência aos quais foram liquidados os impostos, bem como pugnar pela natureza tributária da globalidade do crédito reconhecido, integrando os juros a dívida de imposto com a qual são conjuntamente liquidados, o que fundamenta, além do mais, na circunstância de as normas que regem os juros aplicados aos impostos estarem contidas em legislação fiscal e tributária, sendo o produto das coimas receita fiscal do Estado, que tem subjacente o incumprimento da relação jurídica tributária estabelecida entre o Estado titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias (IUC) e o contribuinte, vinculado ao cumprimento da prestação, com consequente natureza tributária, sendo o Estado sujeito ativo da relação jurídico tributária e o titular direto da receita fiscal proveniente da cobrança dessas coimas e custas. Impugna ainda os factos que suportam a exceção de prescrição de juros arguida pela insolvente. Conclui pedindo que seja julgada improcedente a impugnação a lista de credores reconhecidos, quer porque todos os créditos constantes da reclamação têm natureza tributária, quer porque os juros dos anos de 2010 a 2015 não estão prescritos e, consequentemente, deve o crédito reconhecido à AT-RAM ser mantido nos termos constantes na lista, ou seja, no valor de 4.485,06€, com natureza comum. Foi agendada tentativa de conciliação, que se frustrou, determinando-se a abertura de conclusão para apreciação da impugnação. Foi ordenada a junção aos autos da reclamação de créditos apresentada pela AT, que foi junta ao apenso D. Em 18.07.2024 foi proferida sentença, que decidiu a impugnação, julgando-a totalmente improcedente, entendendo que as coimas e custas têm natureza tributária, constituindo o Estado o sujeito ativo da relação jurídico tributária. Mais reconheceu que a Autoridade Tributária detém um crédito sobre a Insolvente no valor de 4.485,06 € (quatro mil, quatrocentos e oitenta e cinco euros e seis cêntimos), com natureza comum, nos exatos termos, natureza e montante reconhecidos pela Sra. Administradora da Insolvência (mantendo-se a Lista de Credores nos termos apresentados) Foi ainda proferida sentença de verificação e graduação de créditos, cujo dispositivo tem o seguinte teor: “Em face do exposto, julgo verificados os créditos constantes da lista apresentada pela Exma. Sra. Administradora da Insolvência. Determino que, através do rendimento disponível obtido durante o período de fidúcia, se proceda aos seguintes pagamentos: 1º - As dívidas da massa insolvente, sendo que as custas saem precípuas; 2º - Do remanescente, dar-se -á pagamento ao único credor reconhecido, a Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais (Serviço de Finanças de Santa Cruz) Custas pela massa insolvente (artigo 304º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), que saem precípuas. Valor: €5.000,01 (cinco mil e um cêntimos) Registe e Notifique.” Inconformada com parte da decisão proferida, dela veio a insolvente interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões: 1. A Recorrente aceita o reconhecimento à AT de um crédito, com natureza comum, pelo valor global de € 4.485,06, conforme decidido pelo Tribunal a quo. 2. A Recorrente dissente da decisão recorrida na parte em que, fazendo uma errada interpretação jurídica dos normativos legais concretamente aplicáveis, mormente o n.º 1 do artigo 30.º da LGT, o artigo 17.º do CIUC e o artigo 114.º do RGIT, considerou ser de atribuir natureza tributária à totalidade daquele crédito e não apenas ao montante de € 285,78 (€ 177,19 + € 108,59) - cfr. Pontos 1 e 2 dos factos provados - por este ser o único que respeita ao tributo propriamente dito (IUC). 3. Contrariamente ao sustentado pelo Tribunal a quo, a dívida exequenda de juros (cfr. Pontos 1 e 2 dos factos provados), custas (cfr. Pontos 1 e 2 dos factos provados) e coimas (cfr. Ponto 3 dos factos provados) não tem natureza tributária, pois não é contemporânea da relação jurídica tributária que se estabelece entre o contribuinte e o Estado mas tão só sucedânea daquela, assumindo a dívida por aqueles montantes uma natureza meramente civil (não tributária/não fiscal). 4. A dívida por juros de mora (que não se podem confundir com os juros compensatórios e/ou indemnizatórios - cfr. artigos 35.º e 43.º, ambos da LGT), coimas e custas constitui uma receita patrimonial, cujos pressupostos não estão fixados na Lei independentemente de vínculos anteriores (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12-05-2021, Processo n.º 0247/18.3BEBJA), como sucede com os tributos (IUC). 5. Ainda que, como bem notado pelo Tribunal a quo, uma das funções do Estado seja a de arrecadar receita para satisfação das necessidades coletivas, a cobrança coerciva, em processo executivo fiscal, da dívida por juros de mora, coimas e custas, não lhe confere natureza tributária, não assumindo esses valores, contrariamente ao que sucede com o tributo propriamente dito, natureza indisponível (cfr. n.º 2 do artigo 30.º da LGT), pois não são créditos tributários (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 23-10-2002, Processo n.º 0966/02). 6. A relação jurídica tributária (cfr. artigo 30.º da LGT) não é integrada por juros de mora (que não se confundem com os daquelas outras naturezas), nem por custas, encargos ou coimas, bastando atentar que as associadas à falta de pagamento do IUC não resultam do estatuído no artigo 17.º do CIUC, que expressamente se refere ao tributo que integra aquela relação, mas antes do artigo 114.º do RGIT que cinde claramente a prestação tributária da coima aplicável caso aquela não seja paga mas sem que esta integre aquela pois só emerge da sua falta de pagamento, precisamente por não lhe ser contemporânea mas antes sucedânea. 7. Tal como sucede, precisamente, com os juros de mora, os encargos e as custas, que decorrem da mesma falta de pagamento, sendo precisamente por essa ordem de razão que se afigura à Recorrente curial defender que os juros de mora, os encargos, as custas e as coimas aplicados em decorrência dessa falta não estão fixados na Lei independentemente de vínculos anteriores, condição essencial para que se pudessem considerar incluídos na relação jurídica tributária e, por essa via, assumir natureza tributária (que não têm). 8. Contrariamente ao IUC, aqueles outros valores surgem com caráter sancionatório, em decorrência da falta de pagamento daquele e não já como imposto, taxa ou receita parafiscal (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 23-10-2002, Processo n.º 0966/02). 9. A decisão do Tribunal a quo deverá, pois, ser revogada e substituída por douto Acórdão que, pese embora mantenha o reconhecimento da totalidade do crédito, de natureza comum, ao credor Autoridade Tributária, pelo valor de € 4.485,06, declare que apenas a parcela de € 285,78 assume natureza tributária, enquanto o remanescente assume natureza civil (não tributária). Em resposta ao recurso interposto o Ministério Público renovou os argumentos que havia aduzido em resposta à impugnação dirigida pela recorrente à proposta de graduação de créditos apresentada pela devedora. O recurso foi admitido, após o que os autos subiram a este Tribunal da Relação, onde foram colhidos os vistos legais. II. Dado que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, sem prejuízo das questões passíveis de conhecimento oficioso (artigos 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil), constitui questão a decidir aferir a natureza do crédito de juros, coimas, encargos e custas para efeitos de inclusão entre os créditos tributários. III. Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos: 1. A Autoridade Tributária reclamou a título de IUC a quantia de €177,19 acrescido de juros de mora de €56,46 e custas no valor de €208,11, no total de €441,76, referente ao veículo matrícula …-MD, que deu origem aos seguintes processos de execução fiscal: 1) Processo de execução fiscal n.º 2887201401027590, instaurado a 27.11.2013, por dívida de IUC, referente ao ano de 2010, vencido a 17.11.2013, no valor de €16,47, acrescido de juros de mora de €8,23 e custas €18,57; 2) Processo de execução fiscal n.º 288201401049844, instaurado a 27.11.2013, por dívida de IUC, referente ao ano de 2011, vencido a 27.11.2013, no valor de €16,37, acrescido de juros de mora de €8,44 e custas €18,46; 3) Processo de execução fiscal n.º 2887201401117033, instaurado a 27.11.2013, por dívida de IUC, referente ao ano de 2012, vencido a 27.11.2013, no valor de €16,12, acrescido de juros de mora de €7,35 e custas €23,47; 4) Processo de execução fiscal n.º 2887201401200003, instaurado a 11.08.2014, por dívida de IUC, referente ao ano de 2013, vencido a 11.08.2014, no valor de €16,15, acrescido de juros de mora de €6,84 e custas €18,22; 5) Processo de execução fiscal n.º 2887201401209914, instaurado a 11.08.2014, por dívida de IUC, referente ao ano de 2014, vencido a 11.08.2014, no valor de €15,69, acrescido de juros de mora de 6,92€ e custas €17,79; 6) Processo de execução fiscal n.º 2887201501107623, instaurado a 29.07.2015, por dívida de IUC, referente ao ano de 2015, vencido a 29.07.2015, no valor de €15,67, acrescido de juros de mora de €6,10 e custas €17,77; 7) Processo de execução fiscal n.º 2887201801073036, instaurado a 18.07.2018, por dívida de IUC, referente ao ano de 2018, vencido a 18.07.2018, no valor de €16,07, acrescido de juros de mora de €3,86 e custas €18,17; 8) Processo de execução fiscal n.º 2887201901048112, instaurado a 31.07.2019, por dívida de IUC, referente ao ano de 2019, vencido a 31.072019, no valor de €16,14, acrescido de juros de mora de €3,09 e custas €18,24; 9) Processo de execução fiscal n.º 2887202001060090 instaurado a 28.10.2020, por dívida de IUC, referente ao ano de 2020, vencido a 28.10.2020, no valor de €16,14, acrescido de juros de mora de €2,35 e custas €18,24; 10) Processo de execução fiscal n.º 2887202101044079 instaurado a 14.07.2021, por dívida de IUC, referente ao ano de 2021, vencido a 14.07.2021, no valor de €16,19, acrescido de juros de mora de €2,10 e custas €18,29; 11) Processo de execução fiscal n.º 2887202301006002 instaurado a 20.07.2022, por dívida de IUC, referente ao ano de 2022, vencido a 20.07.2022, no valor de €16,19, acrescido de juros de mora de €1,27 e custas €18,29. 2. A Autoridade Tributária reclamou a título de IUC a quantia de €108,59, acrescida de juros de mora de €41,99 e custas €114,99, no total de €265,47, referente ao veículo matrícula ….-HS, no período de 2013, 2014 e 2015, que deu origem aos seguintes processos de execução fiscal: 1) Processo de execução fiscal n.º 2887201501085735 instaurado a 03.06.2015, por dívida de IUC, referente ao ano de 2013, vencido a 03.06.2015, no valor de €36,96, acrescido de juros de mora de €15 e custas €39,06; 2) Processo de execução fiscal n.º 2887201501090810 instaurado a 03.06.2015, por dívida de IUC, referente ao ano de 2014, vencido a 03.06.2015, no valor de €35,91, acrescido de juros de mora de €14,33 e custas €38,01; 3) Processo de execução fiscal n.º 2887201601020226 instaurado a 20.04.2016, por dívida de IUC, referente ao ano de 2015, vencido a 20.04.2016, no valor de €35,72, acrescido de juros de mora de €12,66 e custas de €37,82. 3. A Autoridade Tributária reclamou a título de coimas fiscais em cobrança coerciva nos processos de execução fiscal a quantia total de €2.090,50, por coimas aplicadas nos anos de 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2022 e 2023, acrescidas de juros de mora no valor €420,96 e custas no valor de €1.266,37. 4. A Sra. Administradora da Insolvência reconheceu à Autoridade Tributária um crédito, de natureza comum, no valor de €4.485,06, sendo €2.376,20 a título de capital, €519,49 a título de juros e €1.589,37 a título de imposto de selo. 5. A propriedade do veículo matrícula …-HS esteve registado em nome da insolvente desde 14-07-2010 até 08.01.2018. 6. O veículo matrícula …-MD encontra-se registado em nome da insolvente desde 04.03.1994. 7. O IUC do veículo matrícula …-MD, respeitante ao ano de 2023 que se venceu em 2024, no valor de €17,00, foi pago pela Insolvente dentro da data limite de pagamento voluntário. 8. Com data de 30.12.2015, a Autoridade Tributária enviou à Insolvente carta registada com aviso de recepção para citação nos processos de execução fiscal nº 28887201301044613 e apensos, onde se inclui os juros dos anos de 2010, 2011, 2012, 2013, 2014 e 2015. 9. A carta referida em 8. foi recebida na morada da Insolvente, tendo o aviso de recepção sido assinado por J…, em 15.12. 2015, tendo a ATRAM procedido ao envio do ofício n.º 8085, por carta registada, para dar cumprimento ao disposto no art.º 233.º do Cód. Proc. Civil. 10. A devedora foi citada pessoalmente por carta registada com aviso de recepção (por si assinada) das penhoras efectuadas no processo executivo nº 2887201301044613 e apensos, em 14.01.2022. Não existem factos não provados. IV. Da delimitada questão objeto de recurso ressalta que não é propósito da recorrente questionar o valor global do único crédito reconhecido e titulado pela Autoridade Tributária, ou a sua natureza comum, antes sendo questionada a sua natureza de crédito tributário, antecipando os efeitos relevantes que tal classificação produz em sede de exoneração do passivo restante, atenta a previsão do art.º 245º, n.º2, al. d) do CIRE. Em suma, entende a recorrente que apenas o valor referente à dívida de IUC (285,78 €) poderá ser considerado crédito tributário, sendo os demais valores que complementam o crédito reconhecido externos à relação jurídica tributária e excluídos da natureza indisponível prevista no art.º 30º, n.º 2 da LGT. Importa apreciar. Conforme sobressai dos factos provados, o crédito que veio a ser globalmente reconhecido à Autoridade Tributária, na sequência de oportuna reclamação no processo de insolvência em que aquela figura como única credora, tem na sua génese a acumulação de dívida vencida referente a Imposto Único de Circulação (IUC), juros de mora vencidos sobre esses valores, custas associadas aos processos de execução fiscal que correram termos contra a devedora insolvente, coimas fiscais aplicadas à devedora pela prática de contraordenações fiscais, em cobrança coerciva em processos de execução fiscal, bem como juros de mora sobre essas quantias e custas/encargos referentes a tais processos (documentos juntos no apenso D). A Lei Geral Tributária, no artigo 1º - que define o seu âmbito de aplicação -, prevê, no seu n.º2, que, para efeitos da referida lei, se consideram relações jurídico-tributárias as estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e coletivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas, acrescentando o n.º3 que integram a administração tributária, para efeitos do número anterior, a Autoridade Tributária e Aduaneira, as demais entidades públicas legalmente incumbidas da liquidação e cobrança dos tributos, o Ministro das Finanças ou outro membro do Governo competente, quando exerçam competências administrativas no domínio tributário, e os órgãos igualmente competentes dos Governos Regionais e das autarquias locais. Não parece existir qualquer dúvida que está em causa uma relação estabelecida entre a AT (enquanto entidade responsável pela cobrança de tributos) e uma pessoa singular, a insolvente, sendo a relação estabelecida entre esta e a AT, que deu causa ao nascimento dos créditos reclamados, decorrente, precisamente, da circunstância de a insolvente, enquanto titular registada do direito de propriedade sobre dois veículos, se ter constituído na obrigação de liquidar, no tempo e modo estipulados por lei, os impostos associados a essa titularidade (sujeito passivo da obrigação tributária). São três as normas que a recorrente entende terem sido indevidamente interpretadas pela decisão recorrida O art.º 114º do RGIT, sob a epígrafe “[F]alta de entrega da prestação tributária”, estabelece que contêm a base tipificada das contraordenações fiscais praticadas pela devedora e justificam os valores das coimas aplicadas e reclamadas. O art.º 17º do Código de Imposto Único de Circulação (CIUC), que estipula o prazo para liquidação e pagamento do imposto. Por último, o art.º 30º da Lei Geral Tributária, que define o objeto de relação jurídica tributária e que preceitua que: “1 - Integram a relação jurídica tributária: a) O crédito e a dívida tributários; b) O direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição; c) O direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto; d) O direito a juros compensatórios; e) O direito a juros indemnizatórios. 2 - O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária. 3 - O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”. * Estabelece o art.º 44º, n.º 1 da LGT que são devidos juros de mora quando o sujeito passivo não pague o imposto devido no prazo legal. A circunstância de o art.º 30º, n.º 1 da Lei Geral Tributária expressamente contemplar, como direitos que integram a relação jurídica tributária, o direito a juros compensatórios e indemnizatórios, omitindo a menção a juros moratórios, gerou prolongada discussão, essencialmente doutrinária, quanto à inclusão destes no âmbito da relação jurídica tributária, designadamente para efeitos de aplicação do regime prescricional específico dos créditos tributários. Tal discussão mostra-se, porém, ultrapassada. Com a segurança associada ao facto de provir do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, o Ac. de 13.04.2011 (processo n.º 0361/10, rel. Casimiro Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt, ligação em que poderão ser consultados todos os acórdãos doravante citados), decidiu que “os juros de mora constituem um dos elementos que integram a «dívida tributária», embora com autonomia até ao momento do pagamento, como decorre dos arts. 89°, n° 2, e 262°, nº 2, ambos do CPPT”. Na fundamentação do acórdão citado refere-se, com particular pertinência para o caso concreto, citando o Cons. Jorge de Sousa (Sobre a Prescrição da Obrigação Tributária, 2ª ed., 2010, pp. 137 e sgts.) que “se é certo que não deverá deixar de ser atribuída aos juros de mora uma função reparadora, por não se justificar que não se aplique ao credor tributário a presunção de prejuízo derivado da indisponibilidade de uma quantia que a lei civil estabelece em favor de qualquer credor (art. 506º do CC), não deverá também deixar de ver-se neles, pelo menos nos casos em que é aplicável aquela taxa de 1% por cada mês incompleto de atraso, objectivos compulsórios do pagamento pontual da obrigação tributária, que estão ínsitos na onerosidade da taxa referida. Esta natureza reparadora e compulsória, não é incompatível com a natureza de obrigação acessória que lhe é atribuída por alguns Autores (Rodrigues Pardal e, Autores citados na obra e local referidos), uma vez que a obrigação de juros não pode nascer sem que exista uma dívida de imposto e eles deixam de contar-se desde que a dívida a que se reportam se extinga”. Acrescenta-se, mais adiante, que “apesar de o art. 30º da LGT mencionar apenas, entre os vários elementos que integram a relação jurídica tributária, os juros compensatórios e os juros indemnizatórios, a falta de referência expressa aos juros de mora não significa que estes não se integrem, também, nessa relação jurídica e caibam no conceito de dívida tributária, pois que a mesma LGT também prevê, para além destes juros, o pagamento de juros de mora tanto pelo contribuinte (art. 44°, nº 1), como pela Fazenda Pública (art. 102°, n° 2) (…) Os juros de mora incluir-se-ão, pois, no conceito de «dívida tributária», até porque «embora a LGT, por vezes, faça referências cumulativas à «dívida tributária» e aos «juros» [arts. 22°, n° 1, 40°, n° 4, alíneas a) e c), 44°, n° 2], o que pode inculcar que este conceito não se engloba naquele, noutro lugar faz referência aos «juros de mora» e à «dívida tributária principal» (art. 23°, n° 5, da LGT), o que sugere que aqueles caberiam num conceito implícito de dívida tributária secundária ou acessória, e ainda noutros pontos alude a «dívidas tributárias» com o manifesto alcance de incluir os juros de mora [como sucede com o art. 24°, n° 1, alíneas a) e b), com referência ao art. 23°, n° 5; no art. 41°, nºs. 1 e 2, com referência ao art. 91°, n° 2, do CPPT; e no art. 43°, n° 1].» (Ibidem, 138/139)”. A extensão da transcrição torna-se necessária pela relevância da fonte enquanto suporte de uniformização na aplicação do direito a situações análogas (art.º 8º, n.º 3 do Código Civil) e pela inviabilidade de acrescentar argumentos úteis aos ali aduzidos, sendo por decorrência do referido acórdão que a questão deixou de ser discutida, tendo-se por inteiramente pacificado que os juros moratórios emergentes de dívidas de impostos constituem dívida tributária, conclusão a que integralmente aderimos. A consensual qualificação da dívida de juros emergente do incumprimento pelo devedor da obrigação de pagamento pontual de obrigações fiscais como sendo “créditos tributários” (relevante, designadamente, para os fins previstos no art.º 245º, n.º2, al. d) do CIRE, enquanto créditos não abrangidos pela exoneração) é visível, de forma implícita, na profícua jurisprudência que se tem vindo a produzir com enfoque na indisponibilidade dos créditos tributários (art.º 30º, n.º2 da LGT) e seus reflexos no processo de insolvência, que, invariável e indistintamente, abarca o valor de capital e juros como afetados pela indicada indisponibilidade (v.g. Acórdãos do TRC de 25.01.2021, processo n.º243/20.0T8FND.C1, rel. Maria João Areias ou do TRG de 15.12.2016, processo n.º1051/16.9T8GMR.G1, rel. Cristina Cerdeira, com alusão à redução de juros de créditos tributários prevista num plano de recuperação como contendendo com o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários). A seguir-se o entendimento da recorrente, nada obstaria à homologação de um plano de recuperação ou de insolvência que contemplasse, por aprovação da maioria dos credores e contra a vontade da AT, o integral perdão de juros dos créditos tributários, por se estar, naquela perspetiva, a discutir matéria externa ao princípio da indisponibilidade dos referidos créditos. O mesmo sucede com as custas e encargos emergentes das execuções fiscais instauradas para cobrança dos impostos e juros. Não só essa responsabilidade impende diretamente sobre o sujeito passivo da obrigação tributária, como é transmitida nos casos de substituição tributária, previstos nos artigos 20º e ss. da LGT. Como se refere no art. 22º, n.º1 da LGT, a responsabilidade tributária abrange, nos termos fixados na lei, a totalidade da dívida tributária, os juros e demais encargos legais. Naturalmente, se cabe na ampla responsabilidade tributária dos devedores solidários/subsidiários a obrigação de suportar os juros e demais encargos legais do processo de execução fiscal instaurado para cobrança de impostos, não se antevê de que modo poderia o sujeito passivo direito da obrigação tributária ver excluída da sua “responsabilidade tributária” a obrigação de pagamento das sanções e encargos que, por efeito do não cumprimento pontual das suas obrigações fiscais, são reclamados pela administração tributária. Como se refere no Acórdão do TCA Sul de 14.02.2012 (processo 5380/12, rel. Joaquim Condesso), “o processo de execução fiscal tem como objectivo primacial a cobrança dos créditos tributários, de qualquer natureza, estando estruturado em termos mais simples do que o processo de execução comum, com o intuito de conseguir uma maior celeridade na cobrança dos créditos, recomendada pelas finalidades de interesse público das receitas que através dele são cobradas. Do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, enunciado no art.º 30º, nº.2, da L.G.T., decorre a inadmissibilidade, em execuções fiscais em que esteja em causa a sua cobrança, de causas de extinção da execução não previstas nas leis tributárias. A indisponibilidade do crédito tributário estende-se, por identidade de razões, a todos os outros vínculos creditícios da relação jurídica tributária, nomeadamente, o direito a juros (cfr.Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, II volume, Áreas Editora, 5ª. edição, 2007, pág.214; Diogo L. Campos e Outros, L.G.T. comentada e anotada, Vislis Editores, 3ª. edição, 2003, pág.160)”. Em suma, para além dos quantitativos referentes a IUC não pago, todos os juros vencidos sobre estes, bem como custas e encargos processuais associados à sua cobrança – compreendidos no contexto da relação tributária complexa «que integra como prestação fundamental o dever de entregar uma quantia em dinheiro e, bem assim, (…) outros vínculos complementares de carácter pecuniário e obrigações acessórias de carácter procedimental (que compreendem "os direitos e deveres que são úteis para o correcto desenvolvimento e execução da obrigação …; direitos e deveres que visam a liquidação e a exigibilidade da obrigação e o seu cumprimento")» - cfr. Acórdão do STJ de 10.05.2021, processo n.º243/20.0T8FND.C1.S1, rel. Pinto de Almeida -, constituem crédito tributário, não assistindo, nesta parte, razão à recorrente. * Resta apreciar a questão da natureza tributária dos créditos referentes a coimas, incluídos no valor global do crédito reconhecido à AT, bem como a custas e encargos processuais referentes à cobrança coerciva de tais valores. Os créditos reclamados têm comprovação documental (v. apenso D) assente em certidões extraídas de processos de execução fiscal que corriam termos contra a devedora insolvente. Refere-se, na decisão recorrida que “a competência para instaurar e instruir os processos contraordenação, bem como, aplicar as coimas, é exclusiva da repartição de finanças e o produto da coima cobrado reverte totalmente para o Estado, como receita fiscal, pois as coimas em apreço têm subjacente o incumprimento da relação jurídica tributária estabelecida entre o Estado titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias (IUC) e o contribuinte que nos termos da lei está vinculado ao cumprimento da prestação tributária. Ora, desta interpretação ressalta a conclusão de que a dívida exequenda de juros, coimas e custas tem natureza tributária, pois reúne todas as características acima descritas que definem a natureza tributária da mesma, que nasce de uma relação jurídica tributária”. Se, como dissemos, partilhamos este entendimento no que respeita aos juros dos impostos cujo pagamento foi omitido e às custas/encargos associados à respetiva cobrança, dissentimos da conclusão extraída na decisão recorrida no que respeita ao crédito reconhecido por referência a coimas e custas/encargos de cobrança daquelas. A questão da inclusão das coimas na ampla noção de créditos tributários foi já objeto de apreciação nos tribunais superiores. No já citado acórdão do STJ de 10.05.2021, refere-se que o facto de estar em causa um crédito do Estado não significa que a coima aplicada deva ser considerada como um crédito tributário para efeitos de aferir da sua indisponibilidade. Ainda que a propósito da taxa de portagem, refere-se no sobredito acórdão que “o pagamento da coima aplicada pela aludida infracção do dever de pagamento da portagem não se integra em qualquer dessas prestações: não constitui, evidentemente, a prestação principal (o pagamento da taxa de portagem), nem se identifica com uma qualquer prestação complementar ou acessória; antes deve ser considerada como uma obrigação autónoma, resultante de uma sanção legal. Os tributos visam a satisfação de fins públicos, mas não fins sancionatórios de actos ilícitos”. Como decorre da conjugação dos artigos 148º, 149º, 150º e 152º do CPPT, as coimas constituem dívidas cuja cobrança coerciva é abarcada pelo âmbito da execução fiscal, sendo o órgão de execução fiscal – administração tributária – quem tem competência e legitimidade para promover a execução das dívidas. Estamos perante um crédito do Estado, que, através da administração tributária, assume a cobrança coerciva de valores que têm na sua base uma infração tributária, definida no art.º 2º, n.º1 do RGIT como “todo o facto típico, ilícito e culposo declarado punível por lei tributária anterior”, dividindo-se, como refere o n.º2, em crimes e contraordenações. Por seu turno, o art.º 114º do RGIT prevê as consequências punitivas da falta de entrega “da prestação tributária”, definindo as coimas como punições aplicáveis ao devedor que omite o cumprimento atempado da obrigação tributária que, no que respeita ao IUC, foi regulada pelo CIUC (atualmente pelo Código do Imposto sobre Veículos e Código do Imposto Único de Circulação). A LGT, no já referido art.º 30º, delimita o objeto da relação jurídica tributária e estipula o princípio da indisponibilidade do crédito tributário (n.º2), estabelecendo, na parte relevante, que integram essa relação jurídica tributária (al. a) do n.º1) o crédito e dívida tributários, sendo os tributos classificados no art.º 3º (fiscais, parafiscais, compreendendo impostos e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas), integrando ainda o direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição (al. b) do n.º1 do art.º 30º). O art.º 5º da LGT estabelece que a tributação visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas. A questão sob apreciação impõe que se afira da possibilidade de as coimas, enquanto consequência da prática de uma infração contraordenacional, poderem ser vistas como parte integrante da relação jurídica tributária, ou seja, impõe-se apreciar se aquelas podem assumir a qualidade de crédito ou dívida tributários ou de prestações acessórias de qualquer natureza. Quanto às prestações acessórias, a exclusão é diretamente operada por efeito do art.º 31º, n.º2 da LGT, que estipula serem obrigações acessórias do sujeito passivo, designadamente, as que visam possibilitar o apuramento da obrigação de imposto, nomeadamente a apresentação de declarações, a exibição de documentos fiscalmente relevantes, incluindo a contabilidade ou escrita, e a prestação de informações, aqui não se incluindo, naturalmente, as sanções aplicadas por efeito da prática de contraordenações. Adiantamos considerar que a sua inclusão no contexto do “crédito tributário” se mostra, igualmente, inviável. Em particular desenvolvimento desta questão, no Acórdão do STA de 07.04.2022 (processo n.º 0655/17.7BEBRG, rel. Nuno Bastos) refere-se que decorre do referido artigo 30.º da Lei Geral Tributária que, ao aludir ao crédito e à dívida tributários, o legislador não teve em vista todos os créditos ou dívidas cobrados em execução fiscal, mas apenas os que se constituam no âmbito da relação jurídica tributária. Assim, não concorrem para a delimitação do conceito nem o âmbito da execução fiscal estabelecido pelo artigo 148.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário nem a natureza jurídica da entidade a quem a lei atribui competência para executar. Por outro lado, ao aludir à relação jurídica tributária, o legislador teve ali em vista o conjunto de relações que por vezes se designa de «relações de obrigação tributária» [e que ali são tomadas em sentido amplo, de forma a abranger as relações acessórias de cooperação tributária, isto é, as que envolvem prestações de facto acessórias à obrigação de contribuir – ver a alínea b) do n.º 1 do referido artigo 30.º]. Ora, estas relações devem ser distinguidas de outras relações da ordem tributária, como as denominadas «relações de infração tributária» (expressão que extraímos da obra de Vítor Faveiro, in «O Estatuto do Contribuinte…», Coimbra Editora 2002, pág. 401). Porque, embora tenham conexão com as outras, os seus elementos constitutivos, modificativos e extintivos não são os mesmos (…) Este entendimento conjuga-se, a nosso ver, com o que tem prevalecido na doutrina a respeito do próprio conceito de tributo. Que abrange as receitas criadas para a satisfação de necessidades públicas que não tenham função sancionatória (o que tem algum respaldo no artigo 5.º da Lei Geral Tributária). Arredando a validade do argumento que faz assentar a natureza tributária do crédito no facto de o essencial do produto das coimas reverter na sua quase totalidade para o Estado, refere-se no citado acórdão que “daí não deriva que devam ser consideradas dívidas tributárias. Deriva apenas que são dívidas ao Estado ou que devam ser equiparadas a estas para efeitos do artigo 148.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (…) Assim sendo, deve concluir-se que as dívidas constituídas por coimas fixadas no âmbito das supra denominadas «relações de infração tributária» não constituem dívidas tributárias para os efeitos do artigo 30.º da Lei Geral Tributária. Pelo que o legislador não poderia ter pretendido englobá-las no âmbito da indisponibilidade tributária que consagrou no n.º 2 daquele dispositivo legal”. No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do STJ de 2021-05-10 (Processo n.º 243/20.0T8FND.C1.S1). Em sentido contrário, considerando as coimas como créditos tributários v., entre outros, Acórdão do TRC de 25.01.2021, processo 243/20.0T8FND.C1, do STA de 03.06.2020, proc.º01092/19.4BEPNF. O facto de o essencial dos quantitativos reverterem para o Estado não autoriza, por si, a consideração da coima como crédito tributário, como se referiu no Acórdão de 07.04.2022, já citado. A única dívida tributária é a “prestação tributária”, o imposto, a que alude o art.º 114º do RGIT como valor cuja não entrega ao credor tributário, no tempo e modo ali definidos, integra a prática de uma contraordenação e dá causa à aplicação da coima, sendo esta uma sanção autónoma, de cariz punitivo, prevista para o incumprimento da obrigação tributária, que subsiste, mantendo intocado o direito do Estado ao recebimento da receita fiscal. A definição de “crédito tributário” apenas com base na identidade da autoridade (administração tributária) a quem compete a sua cobrança ou na circunstância de o seu valor corresponder a receita do Estado, não encontra apoio em qualquer dos preceitos da LGT. A propósito do crédito relativo a coimas e emergente dos ilícitos cometidos pelo insolvente, Sara Luís Dias (in O Crédito Tributário e as Obrigações Fiscais no Processo de Insolvência, dissertação de mestrado em direito tributário e fiscal, Abril de 2012, Universidade do Minho, Escola de Direito, p.30/31, disponível nesta ligação), refletindo sobre o momento determinante para a qualificação de tais “sanções de carácter tributário” como créditos sobre a insolvência, salienta a sua sujeição ao princípio da pessoalidade das penas e sanções e, por referência à posição jurisprudencial maioritária nesse sentido, cita o Acórdão do STA de 28/05/2008, processo n.º 031/08 (relator: Pimenta do Vale), onde se refere: «no n.º 3 do art. 30.º da C.R.P., enuncia-se o princípio da intransmissibilidade das penas, que, embora previsto apenas para estas, deverá aplicar-se a qualquer outro tipo de sanções, por ser essa a única solução que se harmoniza com os fins específicos que justificam a aplicação de sanções, que são de repressão e prevenção e não de obtenção de receitas. Os fins das sanções aplicáveis por infracções tributárias são exclusivamente de prevenção especial e geral, pelo efeito ressocializador ou a ameaça da sanção levar o infractor a alterar o seu comportamento futuro e conseguir que outras pessoas, constando a aplicação àquele da sanção, se abstenham de praticar factos idênticos aos por ele praticados (…). As finalidades de repressão e prevenção associadas às sanções/coimas aplicadas às infrações fiscais distingue-as e autonomiza-as dos créditos tributários, aos quais subjaz a finalidade de obtenção de receitas que norteia o sistema fiscal, não podendo perder-se de vista que este, como consigna o art.º 103º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa, visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza. Cremos, assim, contrariamente ao que se entendeu na decisão recorrida, que o crédito da AT referente a coimas, juros calculados sobre os valores destas, bem como custas e encargos dos processos de execução fiscal destinados à sua cobrança, não tem a natureza de crédito tributário. A alteração da decisão recorrida, na parte em que negou procedência à impugnação dirigida pela insolvente à relação de créditos reconhecidos, afeta os créditos identificados no ponto 3 dos factos provados. Sempre se dirá, porém, que, na perspetiva daquele que é o fim último da recorrente, tal classificação terá parca utilidade, já que parte do crédito, apesar de não ser tributário, não deixa de ser um crédito “por multas, coimas e outra sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações”, excluído do âmbito da exoneração do passivo por aplicação da al. c) do n.º2 do art.º 245º do CIRE. V. Nos termos e fundamentos expostos, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação e, em consequência, em revogar parcialmente a decisão recorrida, decidindo-se negar a natureza de crédito tributário ao crédito comum da Autoridade Tributária sobre a Insolvente no valor de 2.090,50 €, por coimas aplicadas nos anos de 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2022 e 2023, acrescidas de juros de mora no valor 420,96 € e custas no valor de 1.266,37 €, mantendo-se, no mais, o ali decidido. * Custas do recurso a cargo da recorrente, na proporção do decaimento (art.º 527º, n.º1 e n.º2 do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia. * Lisboa, 15-10-2024 Ana Rute Costa Pereira Isabel Fonseca Elisabete Assunção |