Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
531/20.6GALNH.L1-9
Relator: JORGE ROSAS DE CASTRO
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
JUIZO DE PROGNOSE
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade do relator)
I - A frase «O arguido (…), desde data não concretamente apurada mas, pelo menos, desde setembro de 2019, dedica-se ao cultivo de cannabis, que destina ao seu consumo e venda a terceiros consumidores.», inserida nos factos dados como provados, tem um perfil destituído de suficiente concretização, na medida em que dela não decorrem aspetos que densifiquem as atividades para que conclusivamente aponta, a saber e entre o mais: onde decorre o cultivo, de que forma e em que quantidades? A que consumidores vendeu, quantas vezes ou com que regularidade, e em que quantidades e por que preço?
II - Aceitar-se-ia essa frase em jeito de introito, se se lhe seguisse depois, como complemento concretizador, a referência especificada a um conjunto mais ou menos alargado de condutas, procedimentos, práticas, atos especificados; desacompanhada de tais elementos adicionais, fica a frase com um conteúdo descaracterizado e sem valia relevante.
III - A suspensão da execução de uma pena de prisão depende, além do mais, de um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do Arguido.
IV - A circunstância de o Arguido ter cometido os factos logo no ano seguinte ao da extinção do período de suspensão da execução de uma outra pena de prisão, aplicada por crime semelhante, condiciona sobremaneira o prognóstico daquele juízo.
V - Todavia, havendo a decisão recorrida sido proferida mais de três anos depois dos factos que a motivaram e sendo a vida uma realidade dinâmica, é pertinente que se olhe ao percurso do Arguido nestes anos que entretanto decorreram, em ordem a perceber se estamos diante alguém que pelo seu comportamento ulterior confirmou ou não o que a prática dos factos sugeriria, isto é, se confirmou ou não a inadequação ou insuficiência de nova pena suspensa na execução.
VI - Emitido um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do Arguido, a suspensão da execução da pena será possível se for compatível com as chamadas exigências de prevenção geral.
VII - Neste contexto, a perturbação e a comoção sociais provocadas pelo fenómeno do tráfico de droga, invocadas pela 1ª Instância para afastar a aplicação de pena substitutiva, representa uma fundamentação ponderosa, mas que não fecha a questão.
VIII - Reconhecendo-se naturalmente que o tráfico de estupefacientes é um fenómeno que gera enorme inquietação social, pelo flagelo que representa na vida dos consumidores e suas famílias e pela associação inevitável a formas de criminalidade conexas, não devemos também deixar de considerar a situação em apreço na sua real dimensão, considerando nomeadamente a natureza e a qualidade da substância apreendida e a maior ou menor gravidade objetiva da conduta apurada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório
Pelo Juízo Central Criminal de Loures (Juiz 2) foi proferido acórdão (com um voto de vencida), em 12 de abril de 2024, respeitante ao Arguido AA, nascido em ... de ... de 1962, com os demais sinais identificativos constantes dos autos, acórdão esse que contém o seguinte dispositivo (transcrição):
«Nestes termos, o Tribunal decide:
1. Absolver o arguido, AA, da prática de um crime tráfico e outras atividades ilícitas, previsto e punível pelos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, alíneas a), h) e i), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-C, anexa ao referido diploma;
2. Procedendo à convolação da qualificação jurídica, condenar o arguido, AA, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punível pelo artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
3. Condenar o arguido, AA, nas custas com a taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC’s – cfr. artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal, 5.º e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais.»
O Arguido interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
«A) O Tribunal a quo condenou o arguido AA, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punível pelo artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
B) A aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e a medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do ato e à perigosidade do agente, conforme consagra o art.º 40º, do CP.
C) A douta sentença não procedeu, como lhe está imposto ao exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, sendo certo que é desta correcta indicação que se entende qual o raciocínio lógico do tribunal para apreciar os factos.
D) O Tribunal “a quo” devia, nos termos da lei, ter ponderado toda a prova produzida, tê-la analisado e examinado de forma completa, rigorosa e criticamente, e só depois desse exame podia, de forma coerente, lógica e sobretudo garantística dos direitos fundamentais do recorrente, formar a sua convicção, devidamente sustentada nos meios probatórios no seu todo, e não de forma seletiva e insuficiente.
E) Pelo que, desde logo, ofendeu, de forma directa e intolerável os direitos e garantias do arguido, com consequente violação do artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
F) Consequentemente, o arguido esperava uma decisão completamente diferente e menos gravosa, em concordância com o voto de vencida da magistrada daquele coletivo de juízes do douto Tribunal.
G) Na fixação das medidas das penas há que atender aos critérios da culpa, da prevenção geral e da prevenção especial, sendo que quanto a esta importa a necessidade de ressocialização do arguido e a vertente da necessidade de advertência individual para que não volte a delinquir, bem como o facto de dever ser especialmente considerado um fator que, de certo modo, também toca a culpa: a suscetibilidade de o agente ser influenciado pela pena.
H) Entendemos que tendo em conta a prova produzida em audiência de discussão e julgamento e respeitando o preceituado nos artigos 50º, 71º e 72º do Código Penal, a condenação do arguido numa pena de prisão efetiva mostra-se desadequada e excessiva.
I) Ao determinar a concreta medida da pena, o tribunal a quo assentou na prevenção e repressão do crime, alheando-se da recuperação e ressocialização do delinquente, não tomando em boa conta a sua personalidade e a sua conduta posterior ao facto.
J) A postura do arguido posterior à prática dos factos deveria ter sido tida em consideração para efeitos de determinação da medida da pena concretamente aplicada, pelo que, não o tendo sido, o Tribunal a quo violou o estatuído nos artigos 40º, nº 2 e 71º do Código Penal.
K) Através da conjugação do disposto nos artigos 70º, 40º, nº 1 e 58º, nº 1, todos do Código Penal, deveria o Tribunal a quo optar, in casu, pela aplicação de uma pena não detentiva da liberdade.
L) Com efeito, as finalidades da punição realizam-se plenamente com a aplicação dessa medida punitiva.
M) Nessa medida e apenas no que concerne ao quantum da pena aplicada pelo Tribunal a quo ao arguido, houve, salvo o devido respeito, violação do disposto no Artigo 71.º do Código Penal.
N) A pena, além de ser uma retribuição justa do mal praticado, deve contribuir para a reinserção social do agente, por forma a não prejudicar a sua situação senão naquilo que é necessário e deve dar satisfação ao sentimento de justiça e servir de elemento dissuasor relativamente aos elementos da comunidade.
O) Pelo que a suspensão da execução da pena de prisão, in casu, realizará de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
P) Caso assim não se entenda sempre se dirá que deve este Douto Tribunal em alternativa conceder ao arguido a possibilidade de cumprimento da pena a que foi condenado em regime de permanência na habitação sob vigilância.
Nestes termos e nos melhores de Direito que Vossas Excelências melhor suprirão, deverá ser dado provimento ao presente Recurso e em consequência revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que suspenda a prisão na sua execução.»
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
O Ministério Público respondeu ao recurso dessa sentença, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
«i. O arguido AA foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punível pelo artigo 25.º, alínea a), do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-C anexa ao referido diploma, na pena de 1 (um) ano e 6 meses de prisão.
ii. Não se conformando com a decisão, o arguido dela interpôs recurso, alegando que a pena de 1 ano e 6 meses de prisão não é justa, adequada e proporcional, pecando por excesso, pugnando pela suspensão na sua execução, ou em alternativa, pela concessão da possibilidade de cumprimento da pena a que foi condenado em regime de permanência na habitação sob vigilância.
iii. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial, atendendo o tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido ou contra ele, como dita o artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal, havendo ainda a ter em atenção que, de acordo com o artigo 40.º, n.º 2, também do Código Penal, a pena não pode ultrapassar a medida da culpa.
iv. In casu, pelo tribunal «a quo» foram ponderadas devidamente as necessidades de prevenção geral, as quais se mostram intensas; as necessidades de prevenção especial, que também são preocupantes, a nível da média; e a ilicitude superior à média.
v. Importa não olvidar que o arguido tem antecedentes criminais por ilícito idêntico.
vi. Ademais, o arguido praticou os factos dos presentes autos em pleno decurso da suspensão da execução da pena de prisão de 3 anos e 6 meses em que havia sido condenado nesses outros autos por ilícito de idêntica natureza, o que revela uma personalidade desconforme com o Direito e a vivência em sociedade.
vii. Assim, o arguido não tem aproveitado as oportunidades concedidas pelo sistema de justiça e penitenciário para repensar as práticas delituosas, nem as penas que lhe foram aplicadas serviram de suficiente advertência.
viii. Pelo que, ponderadas as circunstâncias do caso concreto, as exigências de prevenção e a culpa do arguido é forçoso concluir que a pena concretamente aplicada coincidirá com o limite mínimo exigido pela tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, pelo que a redução dessa pena não será sustentável, pois poria certamente em causa a crença da comunidade na validade das normas jurídicas violadas e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.
ix. Além disso, da conjugação da factualidade provada, mormente, quanto à sua personalidade, condições de vida, conduta anterior e posterior aos crimes, e às suas circunstâncias, outra não podia ser a conclusão que não a formulação prognóstica desfavorável.
x. Donde razões de prevenção especial, e também de prevenção geral impedem, pois, a substituição da pena de prisão imposta pela suspensão da respetiva execução, mostrando-se esta incapaz de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
xi. De igual modo, quanto ao eventual cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação sob vigilância, também se nos afigura se mostra incapaz de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, considerando tudo o anteriormente exposto, a que acresce o tipo de crime em que o arguido foi condenado e as concretas circunstâncias em que o mesmo desenvolvia a actividade de cultivo para consumo próprio e também para venda a terceiros, detendo no interior da sua arrecadação o produto estupefaciente que comercializava/disponibilizava a partir da sua residência, conforme relato de testemunha ouvida na audiência de julgamento que afirmou ter comprado aquele estupefaciente ao arguido na residência daquele. Inclusivamente, o arguido admitiu dedicar-se ao cultivo de cannabis.
xii. O tribunal a quo fez uma correta valoração da prova produzida e aplicação da lei, concluindo que nenhuma outra pena substitutiva se revela adequada e suficiente à prossecução das finalidades visadas pela aplicação ao arguido da referida pena de um ano e seis meses de prisão, pelo que deve o acórdão recorrido ser mantido, e o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente.
Por tudo o que se disse, parece-nos que o recurso deve improceder e, em consequência, manter-se o douto acórdão recorrido.»
Chegados os autos a este Tribunal da Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto lavrou douto parecer no sentido de acompanhar a posição que fora expressa pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância, pugnando em suma pela improcedência do recurso.
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Cumprido o preceituado pelo art.º 417º/2 do Código de Processo Penal, nenhuma resposta foi junta.
Não se mostra requerida a realização de audiência.
Proferido despacho liminar, foram colhidos os “vistos” e teve lugar a conferência.
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2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Problemática a tratar
É consabido que são as conclusões do recorrente que definem o objeto do recurso, sem prejuízo da possibilidade de serem apreciadas questões de conhecimento oficioso.
À luz de tais conclusões, o que há a discutir neste recurso é essencialmente saber se deve ou não ser suspensa a execução da pena de prisão de 1 (um) ano e 6 (seis) meses aplicada ao Recorrente ou, subsidiariamente, se deve ser determinado o cumprimento da pena em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica.
2.2 O acórdão recorrido
O acórdão recorrido tem o seguinte teor (transcrição das partes relevantes):
«(…)
II. DA AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO RESULTARAM PROVADOS OS SEGUINTES FACTOS:
1. O arguido AA, desde data não concretamente apurada mas, pelo menos, desde setembro de 2019, dedica-se ao cultivo de cannabis, que destina ao seu consumo e venda a terceiros consumidores;
2. O arguido, conjuntamente com a sua mulher, BB, foi anteriormente condenado, no âmbito do processo comum singular n.º 134/16.0GALNH, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à Tabela I-C à mesma anexa, na pena de três anos e seis meses de prisão, suspensa por igual período e sujeita a regime de prova, a qual se encontra extinta pelo cumprimento desde 26.10.2020;
3. Tais autos tiveram por objeto a apreciação de factos relacionados com a plantação de cannabis sativa pelo arguido e sua mulher, de cujos produtos faziam negócio por meio da preparação e venda a terceiros consumidores;
4. A filha do arguido, CC, nasceu em ........2008 e em 2020 era aluna na ..., na ...;
5. No dia 6.01.2021, pelas 8 horas, o arguido tinha na sua posse, numa arrecadação na sua residência sita na ..., na qual mora com o seu agregado familiar, os seguintes objetos, que lhe pertenciam:
i) uma embalagem de tabaco marca Chesterfield contendo uma saqueta em plástico com cannabis (liamba), com o peso líquido de 1,880 g (L), correspondente a 3 doses, com o grau de pureza de 9,2 % (THC);
ii) uma embalagem de tabaco marca West contendo uma saqueta em plástico com cannabis (liamba) com o peso líquido de 1,873 g (L), correspondente a uma dose, com o grau de pureza de 4,7 % (THC);
iii) dezassete revistas/catálogos relativos ao cultivo de estupefacientes, nomeadamente de cannabis sativa;
iv) quatro embalagens com sementes de cannabis sativa;
v) uma lata redonda contendo cannabis (resina) com o peso líquido de 0,243 g (L), inferior a uma dose, com o grau de pureza de 13,0 % THC;
vi) uma saqueta em plástico com fecho hermético contendo cannabis (liamba) com o peso líquido de 124,000 g (L), correspondente a 151 doses, com um grau de pureza de com 6,1 % THC;
vii) oito saquelas em plástico com fecho hermético iguais à supra referida, vazias;
viii) um recipiente em plástico com sementes de cannabis sativa;
ix) um catálogo de sementes de cannabis sativa referente ao ano de 2019;
x) três caixas redondas em plástico transparente contendo cannabis (liamba) com o peso líquido de 62,000 g (L), correspondente a 59 doses, com um grau de pureza de 4,5 % THC, e com o peso líquido de 4,453 g (L), correspondente a 2 doses, com um grau de pureza de 3,3 % THC;
xi) um frasco em vidro contendo cannabis (liamba) com o peso líquido de 13,380 g (L), correspondente a 24 doses, com um grau de pureza de 9,0 % THC;
xii) uma caixa em cartão contendo 8 (oito) recipientes para germinação de plantas;
xiii) seis objetos redondos em cor castanha e duas seringas em plástico de cor azul, utilizados para a germinação e cuidado de plantas.
6. As sementes de cannabis sativa referidas eram em número não inferior a 120;
7. O arguido em data posterior à realização do 1.º interrogatório judicial, que teve lugar no dia 7.01.2021 e anterior a 9 de fevereiro de 2021, procedeu à venda de quantidade não apurada de cannabis (liamba), pelo preço de 20 €, a DD o qual, no dia 9.02.2021, ainda tinha na sua posse 3,634 g (L) gramas daquela quantidade de produto, equivalente a 10 doses, e com um grau de pureza de 13,9 % (THC);
8. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de adquirir sementes de cannabis sativa para proceder à plantação e exploração de tais plantas, com o propósito de consumir e vender os produtos das mesmas a terceiros adquirentes, tendo logrado tais intentos, conhecedor da natureza, qualidade, quantidade e composição estupefaciente de tais plantas, e que tais condutas, designadamente a sua plantação e cedência por qualquer título, designadamente a sua venda a terceiros sem autorização legal, é proibida e punida por lei penal;
9. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, e bem sabia que tais condutas eram proibidas e punidas por lei penal;
10. No período temporal dos factos acima descritos, AA residia com a companheira, com quem mantém relação há 16 anos e a filha menor, CC, sendo a situação económica do agregado familiar deficitária;
11. À data dos factos o arguido encontrava-se reformado por invalidez e era consumidor habitual de haxixe;
12. Atualmente, o arguido reside com a companheira, a filha do casal (16 anos de idade) e dois enteados com 20 e 22 anos de idade;
13. O agregado familiar reside numa casa propriedade da avó do arguido, tratando-se de uma habitação térrea, de tipologia T3, de construção antiga que carece de manutenção, mas que, ainda assim, não coloca em causa a privacidade e bem-estar de todos;
14. A companheira do arguido, pese embora o diagnóstico clínico de …, desenvolve atividade profissional como ..., na ... há cerca de um ano, auferindo mensalmente o montante de 656 €, a título de remuneração;
15. O arguido mantém a situação de reforma por invalidez, auferindo mensalmente pensão no montante de cerca de 300 €;
16. O agregado familiar apresenta despesas fixas mensais com gastos de manutenção doméstica (água, eletricidade, gás e internet/telecomunicações) na ordem dos 170 €, montante a que acrescem as despesas com alimentação, higiene, cujo valor ronda os 200 € mensais;
17. AA reconhece dificuldade em antecipar as consequências de alguns comportamentos, assumindo por vezes uma atitude de vitimização/desresponsabilização;
18. AA apresenta uma história de vida marcada pelo consumo de estupefacientes que iniciou com 16-17 anos, tendo consumido heroína entre os 30 e os 36 anos de idade e, após tratamento que realizou relativamente àquele consumo, passou a consumir regularmente haxixe, situação que pese embora não avalie como problemática, parece, conjuntamente com um problema físico, na sequência de acidente, ter condicionado o seu percurso profissional, relações sociais e falta de capacidade de estruturação e organização do seu dia a dia;
19. O arguido encontra-se em acompanhamento pelo ... e, de acordo com o terapeuta que o acompanhava em 22.06.2022, o arguido cumpriu até então o plano terapêutico, fazendo regularmente análises toxicológicas, sendo os resultados negativos para o consumo de estupefacientes;
20. O arguido desvaloriza a gravidade dos factos de cuja prática se encontra acusado;
21. O arguido tem, como habilitações literárias, o 4.º ano de escolaridade;
22. O arguido já foi condenado pela prática:
i. em 22.05.2016, de um crime de violência doméstica, por sentença de 17.11.2016, transitada em julgado em 9.12.2016, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período e sujeita ao cumprimento de deveres; e
ii. em 31.03.2016, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, por sentença de 9.03.2017, transitada em julgado em 27.03.2017, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período, com sujeição a regime de prova.
III. FACTOS NÃO PROVADOS
1. O arguido atua como descrito em 1. dos factos provados desde data anterior a 2019 e obtém de tal forma lucros avultados;
2. Para conseguir proceder à venda de produto estupefaciente, nomeadamente cannabis, em diferentes ambientes, o arguido aproveitou-se do facto de a sua filha, CC, nascida em ........ 2008, ser aluna na ..., na … e, assim, conseguiu chegar com o seu produto ao ambiente escolar, vendendo a jovens estudantes, maximizando os seus lucros através de negócios efetuados em local cuja frequência, pela sua natureza, estaria vedado ao arguido;
3. O arguido além de disponibilizar à sua filha produto estupefaciente, nomeadamente cannabis, para que esta o consumisse, também a instruiu para que levasse tal produto para escola que frequentava e frequenta e procedesse à oferta e venda de tais produtos junto de colegas, o que sucedeu, pelo menos, em 12.10.2020, com a venda ao aluno EE, nascido em ........2004, e ao aluno FF, nascido em ........2003;
4. Ao arguido não é conhecida fonte de rendimentos legítima;
5. A venda referida no ponto 7. da factualidade provada ocorreu no dia seguinte ao do primeiro interrogatório judicial de arguido detido e foi de 5 g de cannabis (liamba), pelo preço de 50 €;
6. O arguido costuma vender produto estupefaciente, habitualmente, a DD, entre outros, sendo a transação feita na sua residência;
7. O arguido agiu nos termos descritos em 8. dos factos provados com o propósito de daí retirar lucros avultados;
8. O arguido estava ciente que a disponibilização, por qualquer meio, a terceiras pessoas, no caso crianças, era especialmente censurável, e não obstante cedeu produto estupefaciente para consumo, entre outras pessoas, à sua própria filha menor e que conta atualmente com 13 anos de idade, bem como diligenciou pela venda de produtos de tal natureza a jovens menores de idade, para mais em ambiente escolar, e por meio de sua própria filha, era especialmente censurável, tudo isto revelador de uma postura perante a sociedade de total desrespeito pelas mais elementares regras de conduta para um são viver em comunidade, tanto enquanto cidadão, como enquanto pai.
IV. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos com base na análise conjugada que fez das declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento com aquelas prestadas pelas testemunhas GG, HH, II, JJ, DD, KK, CC, LL e MM.
Considerou, ainda, o Tribunal, o teor de fls. 2 e 3 (auto de notícia), 4 a 8 (autos de ocorrências por consumo), 34 (teste rápido), 35 (auto de pesagem), 36 a 39 (fotogramas), 40-41 (listagem de objetos), 46 a 55 (auto de busca e apreensão), 73 a 77 (certidão extraída do processo n.º 134/16.0GALNH), 79 (pesquisa serviços de identificação civil), 115-116 (aditamento ao auto de notícia), 117 (auto de ocorrência por consumo), 118 (auto de apreensão), 119 (auto de pesagem/suporte fotográfico), 124 a 127 (relatório de diligência de criminalística), 128 a 131 (relatório fotográfico), 145 e 186 (relatórios periciais) e 165 a 170 (certidão extraída do processo n.º 640/15.3T8TVD-B).
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O arguido, prestando declarações sobre os factos, afirmou nunca ter dado droga à sua filha para ela fumar, nem para levar para a escola. Disse que o estupefaciente estava num anexo à casa onde viviam e destinava-se ao seu consumo e que a sua filha descobriu onde estava e começou a ir lá tirar estupefaciente sem o seu conhecimento. Não sabe se a sua filha fumava. Questionado sobre o seu consumo, afirmou que fuma cannabis desde os 16-17 anos e que, ao fumar isto, se sente melhor, porque fica sem dores. Disse que as sementes que foram encontradas na sua casa já não estavam em condições de germinar. Afirmou que não vendia estupefaciente. Acrescentou que DD era seu vizinho e deu-lhe 3 sementes para plantar e depois ia lá a casa buscar o resultado da plantação daquelas 3 sementes, nunca lhe tendo pago qualquer quantia, tendo-se conhecido na praia. Mais disse que foram aquelas 3 sementes que deram as cerca de cem gramas.
GG, militar da GNR em exercício de funções no posto da GNR da ..., referiu que perto do final de 2020 estava na secção de contra-ordenações e no decurso de patrulhamento tiveram conhecimento de menores na posse de liamba (folhas), tendo surgido a informação de que quem lhes tinha vendido aquela substância tinha sido a menor CC, filha do arguido. Também foi relatado pelo diretor da escola ..., frequentada por aquela, que estava a decorrer uma situação de venda de droga na escola. De igual modo, a CPCJ comunicou ter visto a menor CC a vender qualquer coisa a terceiros, que suspeitaram tratar-se de estupefaciente. Como já conhecia o arguido de outra situação em que ele foi também arguido por uma situação de tráfico de estupefacientes, lavrou um auto de notícia em que propôs que fossem emitidos mandados de busca a realizar na residência do arguido, confirmando tratar-se do auto de notícia de fls. 2. Sabe que nessa sequência foram lavrados alguns autos por consumo, relativamente a menores, entre eles a filha do arguido. Organizou a diligência de busca na sequência dos mandados emitidos, confirmando o teor do auto de fls. 24. Fez reportagem fotográfica na residência do arguido. Desde estes factos não teve conhecimento de mais situações desta natureza por parte do arguido. Souberam que o arguido vendeu estupefaciente depois da busca que realizaram e do primeiro interrogatório judicial de arguido detido a que foi sujeito, porque foi apreendido estupefaciente a um consumidor que lhe havia comprado.
HH, militar da GNR à data dos factos, explicou que no decurso de um patrulhamento estava com os colegas num local conotado com o tráfico de estupefacientes e observaram a menor CC com outra menor na posse de estupefaciente. Confrontada com o auto de ocorrência por consumo de fls. 7, confirmou ser sua a assinatura ali aposta.
II, militar da GNR, referiu ter participado na busca domiciliária à casa do arguido, ter estado presente numa abordagem em que foi apreendido estupefaciente à filha do arguido e, ainda, numa apreensão de estupefaciente na ..., a um senhor que afirmou ter comprado ao arguido, isto já depois da busca realizada. Explicou que abordou aquele consumidor por ter sentido o odor a estupefaciente. Confrontado com fls. 115 e 116, confirmou ser a sua assinatura aposta nos dois autos. Confirmou, ainda, que elaborou o auto de ocorrência por consumo, o auto de apreensão, a reportagem fotográfica e o auto de pesagem de fls. 117 a 119.
JJ, militar da GNR, referiu ter sido chamado à escola ... por professores devido ao facto de alunos da escola terem sido detetados na posse de estupefaciente. Ali contactaram os mesmos, que disseram que tinham comprado o estupefaciente à filha do arguido, CC. Confirmou o teor dos autos de ocorrências por consumo de fls. 4, 5 e 6, recordando-se que eram três os alunos com os quais contactou.
DD, pessoa que foi abordada em 9 de janeiro de 2021 por militares da GNR na posse de cannabis, referiu que tinha comprado aquele estupefaciente ao arguido na residência daquele e que apenas o tinha feito por uma vez e pelo preço de 20 €. Explicou ter sido através de um amigo que soube que o arguido tinha produto estupefaciente para vender por ter uma ou duas plantas. Negou alguma vez ter entregue quaisquer sementes de cannabis ao arguido. Esclareceu que lhe comprou era erva suficiente para cerca de 3 cigarros por dia, ou seja, para cerca de duas semanas, pois fumava pouco.
KK, militar da GNR, referiu apenas recordar-se de ter lavrado auto de ocorrência por consumo relativamente à filha do arguido e talvez a outra rapariga, na proximidade de uma escola da ..., num local conotado com o consumo de estupefacientes por parte dos alunos daquela escola. Explicou que, nesse dia, passou lá para verificar esses factos por ser local referenciado e por ser na proximidade da escola o que levava a que fossem lá muitas vezes fazer policiamento, havendo muitas denúncias, nomeadamente dos vizinhos. Explicou que no dia em que se deslocou à zona da escola estava acompanhado dos seus colegas NN. Referiu que o produto apreendido era cannabis, vulgo erva. Disse terem sido abordadas duas menores, a filha do arguido e uma amiga daquela, tendo elaborado o expediente quanto a uma delas que disse ter sido o auto de ocorrência de fls. 8, apesar de não se encontrar assinado.
CC, filha do arguido, explicou que estava na escola e alguém chamou a polícia, motivo pelo qual juntamente com outros colegas, foram revistados e foi encontrado estupefaciente na sua posse. Estavam nas salas de aula e foram chamados à parte. Disse que tinha 13 anos e que fumava com amigos, tendo levado estupefaciente para a escola, sem o pai saber, porque na altura fumava com os amigos. O pai tinha cannabis na sala e também na parte onde o pai fumava, que ficava situada depois da sala, onde foi buscar estupefaciente. Levou para fumar. A porta tinha uma chave e levou a chave sem o pai saber. Afirmou que o seu pai só soube quando foi chamado à escola. Já antes tinha levado estupefaciente para a escola, mas não tinha sido apanhada. Identificou os amigos para quem tinha levado estupefaciente nesse dia como a LL e o MM, afirmando que o tinha feito antes. Antes de entrarem na escola tinham estado os três a consumir e, provavelmente os auxiliares da escola terão visto. Explicou que em casa, o pai tem uma mota numa espécie de casa de arrumações, que costumava estar fechada à chave quando o pai fumava cannabis e que, apesar de ele não fumar à sua frente, já tinha descoberto que ele fumava há algum tempo antes de isto acontecer, tendo havido um dia em que foi lá ter com ele e viu-o a fumar. Referiu que o que o pai e a própria fumavam era erva, as quais referiu ter encontrado num armário existente nessa sala de arrumações. Negou que o pai alguma vez lhe tivesse pedido para vender estupefaciente na escola. Acrescentou que, quando descobriu que tinha a chave (que encontrou num quadro da luz escondida) e que tinha levado para a escola e que também consumia, o seu pai ficou chateado. Depois disso passou a ser acompanhada no CAT e esteve institucionalizada até há pouco tempo atrás. Disse que aprendeu a fazer o cigarro por ver uns amigos a fazer. Confirmou que naquele dia deu erva aos amigos porque eles já lhe tinham dado antes também. Também tinha dado erva nesse dia ao FF. Todos eles já lhe tinham dado estupefaciente antes.
LL, colega da filha do arguido na escola referiu que, há algum tempo, quando estavam num parque onde costumavam ir alunos da escola, foi abordada pela GNR e depois levada para a esquadra. Nesse dia foi para a escola de autocarro, tendo antes de entrar na escola estado no referido parque mesmo ao lado da escola, ali costumando todos fumar. Apareceu a polícia e foram revistados. Não estavam a consumir naquele momento, apenas a conversar. A substância que tinha consigo era erva, sendo que a CC muitas vezes trazia para si e outros colegas. Acha que ela teve mais a iniciativa porque via muita gente na ... a fumar e depois dava-se com pessoas que fumavam e começou a fumar e trazia para si e outros amigos. Naquele dia ela tinha a erva dela e a testemunha tinha um bocadinho que a CC lhe tinha trazido uns dias antes. Afirmou nunca ter visto a CC a vender a ninguém, mas sim que ela trazia erva e depois fumavam juntos. Referiu que consumiam mais ali na escola, no grupo de amigos, a CC, a testemunha, o MM, o FF e alguns colegas mais. Umas vezes trazia a CC e outras vezes traziam outras pessoas do grupo. Disse que sempre recebeu a erva da CC. Afirmou pensar que a CC só começou a levar erva para a escola quando ela começou a fumar. Disse que a CC levou erva para a escola mais ou menos durante aquele ano letivo.
MM, colega de escola da filha do arguido à data dos factos, referiu que estava no recinto da escola com um colega seu e tinha substâncias ilícitas na sua posse, as quais foram encontradas por militares da GNR que ali o abordaram. Na altura consumia cannabis há cerca de um ano e meio. Foi chamado à direção da escola porque ia sair da escola sem autorização. Depois a diretora revistou a sua mochila, encontrou o estupefaciente e chamou a GNR. Consumia fora da escola, a poucos metros. Normalmente consumia sozinho, outra vezes juntavam-se vários amigos a consumir. Às vezes perguntava por estupefaciente a pessoas que apareciam à sua frente e que sabia que fumavam. Com a CC fumava quando ela tinha erva e ela consigo quando a testemunha tinha. Não trocavam o estupefaciente como se fosse uma dívida, mas sim como uma partilha. Com a CC e em grupo terá fumado umas duas vezes por semana. Mas todos os dias fumava sozinho. Nesse dia tinha comprado a um rapaz de .... Não eram da mesma turma. Fumavam juntos e em grupo por terem amigos comuns. Ela nunca lhe deu mesmo erva, apenas partilharam por algumas vezes um cigarro que ela tivesse feito. O FF também partilhava com a CC e era o colega que estava consigo no dia em que foi detetada a droga. Tem a certeza que a erva que tinha naquele dia não lhe tinha sido dada pela CC, embora ela lhe tivesse chegado a dar erva noutros dias. Sabe que a CC também chegou a dar erva ao seu colega FF, mas pensa que gratuitamente.
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Analisada que foi a prova produzida nos autos, importa referir que o Tribunal não logrou comprovar os factos que da acusação constavam e que se referiam à utilização pelo arguido da sua filha CC para conseguir introduzir o estupefaciente que cultivava na escola daquela, assim conseguindo naquele meio escolar.
Com efeito, o arguido negou ter procedido de tal forma e a sua filha CC veiculou junto do Tribunal uma versão de acordo com a qual o pai não sabia que tinha começado a consumir e que foi a própria que começou a levar “erva” para a escola onde partilhava com os amigos, sem que o pai tivesse disso conhecimento.
Por sua vez LL e MM, colegas de escola de CC, negaram que esta vendesse a “erva” que levava para a escola e que consumiam juntos.
No mais, importa referir que o arguido admitiu dedicar-se ao cultivo de cannabis, o que, de resto, resultou evidente do considerável número de sementes que mantinha na arrecadação existente em sua casa e referida em 5. dos factos provados.
Os factos julgados sob 2. e 3. resultaram provados através da análise da certidão de fls. 73 a 77, extraída do processo n.º 134/16.0GALNH.
A factualidade provada sob 3. resultou do teor de fls. 79, bem como das declarações da filha do arguido.
O auto de busca e apreensão de fls. 46 a 55 dos autos comprova a factualidade acima discriminada como pontos 5. e 6. dos factos provados, sendo que os factos descritos em 7. dos factos provados resultaram provados da conjugação do depoimento prestado pela testemunha DD com o teor de fls. 117 a 119 e 145.
No que se refere aos factos descritos sob 8. e 9. dos factos provados, referentes à atuação do arguido ao nível subjetivo, ou intencional, os mesmos resultaram provados da conjugação dos restantes factos.
Com efeito, sendo o dolo um facto interior que pertence exclusivamente à mente do arguido, de acordo com diversos autores e variada jurisprudência, a prova indiciária torna-se a prova mais utilizada na prática para delimitar os processos mentais em que o mesmo assenta.
Esta ideia é sustentada em diversos arestos jurisprudenciais, dos quais podemos referir, a título de exemplo, o acórdão da Relação de Coimbra, de 3.03.2010, de acordo com o qual “o meio probatório por excelência a que se recorre na prática para determinar a ocorrência de processos psíquicos sobre os quais assenta o dolo não são as ciências empíricas, nem tão pouco a confissão auto inculpatória do sujeito activo mas a aplicação das regras da experiência – premissa maior – aos factos previamente provados e que constituem a premissa".
Ainda, neste sentido, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 18-04-2007, este apontando no sentido de que "existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são suscetíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica”.
Esta ideia é também confirmada através do mais recente acórdão da Relação de Coimbra de 28.01.2015, disponível em www.dgsi.pt, no qual se refere que “a nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, deduz-se de factos externos, objetivos, revelados pela conduta do agente” (sublinhado nosso).
Esta ideia é também defendida pela doutrina, nomeadamente por Germano Marques da Silva que refere que "os actos interiores (ou “factos internos” como lhes chama Cavaleiro de Ferreira), que respeitam à vida psíquica, a maior parte das vezes não se provam directamente, mas por ilação de indícios ou factos exteriores” (Curso de Processo Penal, vol. II, 5.ª edição, Edições Verbo, Lisboa, pág. 149).
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Quanto às condições pessoais do arguido, atendeu o Tribunal às declarações prestadas pelo arguido a esse respeito, bem como ao teor do relatório social com a referência n.º 12491294, de 22.06.2022, tendo considerado certificado de registo criminal junto aos autos no que se refere às condenações anteriores sofridas pelo arguido.
V. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
Vem o arguido acusado da prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível pelos artigos 21.º, n.º 1, e 24, alíneas a), h), e i), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.
(…)
Impõe-se, assim, concluir que o comportamento do arguido integra os elementos essenciais do crime de tráfico de menor gravidade, pelo que, tendo atuado ilícita e culposamente, deve ser condenado pela sua prática, o que se decide.
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VI. DA MEDIDA DA PENA
Apreciada a conduta do arguido e feito o enquadramento jurídico-penal da mesma, cumpre agora determinar a natureza e a medida da sanção a aplicar-lhe.
O crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade é punível com pena de prisão compreendida entre 1 e 5 anos (cfr. artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro).
*
Nos termos do artigo 71º, n.º 1, do Código Penal, a medida da pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, dentro dos limites definidos pela lei.
Tal artigo consagra assim o princípio que representa a pedra de toque do Direito Penal português, o princípio da culpa. Com efeito, segundo tal princípio, toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, princípio que encontra desde logo consagração no artigo 13.º do Código Penal, que apenas prevê a punibilidade do facto praticado a título de dolo, ou em casos especialmente previstos na lei, a título negligente.
Na verdade, não só não há pena sem culpa, como é também a culpa que decide a medida da pena (artigos 40.º, n.º 2 e 71.º, n.º 1, do Código Penal).
Quanto à prevenção, a pena tem dois tipos de finalidades: por um lado, uma finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, visando a defesa da ordem jurídico-penal tal como é interiorizada pela consciência coletiva (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8/10/1997, cujo sumário está disponível em www.dgsi.pt) e, por outro lado, a prevenção especial positiva ou de socialização, a qual pressupõe que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá, no futuro, outro crime (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1/07/1998, cujo sumário se encontra disponível em www.dgsi.pt).
Culpa e prevenção ocupam assim papéis primordiais na determinação da medida da pena. A propósito do papel de ambas, diz o acórdão da Relação de Coimbra de 17/01/1996, in CJ, 1996, tomo I, pág. 38 “...III - Quanto à culpa, o facto ilícito é prevalentemente decisivo, devendo antes de tudo o mais, ser valorado em função do seu efeito externo (ataque ao objeto em particular, designadamente os danos ocasionados, a extensão dos efeitos produzidos). IV – Quanto à prevenção, constitui um fim, relevando para a determinação da pena necessária, em função da maior ou menor exigência do ponto de vista preventivo, acabando por fornecer, em último termo, a medida de pena...”.
No caso dos autos, a culpa é elevada já que o arguido agiu com dolo direto.
Os tráficos de droga constituem nas sociedades atuais um dos fatores que provoca maior perturbação e comoção social, tanto pelos riscos e danos para bens e valores fundamentais como a saúde física e psíquica de milhares de cidadãos, especialmente jovens, como pela exploração das dependências que gera lucros subterrâneos, alimentando economias criminais, que através de reciclagem contaminam a economia legal (cfr, neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de julho de 2004, in CJ, ano XII, tomo II, Coimbra, 2004, pág. 224).
Assim, dada a frequência do fenómeno e das circunstâncias comunitárias em que se manifesta, as necessidades de prevenção geral, no que a este tipo de ilícito respeita, são muito elevadas.
O reconhecimento do fenómeno e da comoção social que o mesmo provoca, faz salientar a necessidade de acautelar as necessidades de prevenção geral na determinação das penas como garantia da validade das normas e de confiança da comunidade. Porém, não podem, de igual modo, ser descuradas as finalidades de reinserção dentro do modelo de prevenção especial.
Assim, na determinação concreta da pena, tem o tribunal de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente os critérios referidos nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.
Assim, no caso dos autos, devem atender-se aos seguintes critérios, ao abrigo daquele artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal:
- Atendendo à quantidade (cerca de 247 doses individuais) e qualidade do produto estupefaciente (cannabis resina e cannabis liamba) que o arguido mantinha na sua posse com a finalidade de consumir e de ceder a terceiros mediante contrapartida monetária, a ilicitude é superior à média;
- O dolo do arguido é direto;
- No período temporal dos factos pelos quais está acusado, AA residia com a companheira, com quem mantém relação há 16 anos e a filha menor, CC, sendo a situação económica do agregado familiar deficitária;
- O arguido encontra-se reformado por invalidez e é consumidor habitual de haxixe desde os 16-17 anos;
- Atualmente, o arguido reside com a companheira, a filha do casal (16 anos de idade) e dois enteados com 20 e 22 anos de idade;
- O agregado familiar reside numa casa propriedade da avó do arguido, tratando-se de uma habitação térrea, de tipologia T3, de construção antiga que carece de manutenção, mas que, ainda assim, não coloca em causa a privacidade e bem-estar de todos;
- A companheira do arguido, pese embora o diagnóstico clínico de epilepsia, desenvolve atividade profissional como ajudante de cozinha, na ... há cerca de um ano, auferindo mensalmente o montante de 656 €, a título de remuneração;
- O arguido mantém a situação de reforma por invalidez, auferindo mensalmente pensão no montante de cerca de 300 €;
- O agregado familiar apresenta despesas fixas mensais com gastos de manutenção doméstica (água, eletricidade, gás e internet/telecomunicações) na ordem dos 170 €, montante a que acrescem as despesas com alimentação, higiene, cujo valor ronda os 200 € mensais;
- AA reconhece dificuldade em antecipar as consequências de alguns comportamentos, assumindo por vezes uma atitude de vitimização/desresponsabilização;
- AA apresenta uma história de vida marcada pelo consumo de estupefacientes que iniciou com 16-17 anos, tendo consumido heroína entre os 30 e os 36 anos de idade e, após tratamento que realizou relativamente àquele consumo, passou a consumir regularmente haxixe, situação que pese embora não avalie como problemática, parece, conjuntamente com um problema físico, na sequência de acidente, ter condicionado o seu percurso profissional, relações sociais e falta de capacidade de estruturação e organização do seu dia a dia;
- O arguido encontra-se em acompanhamento pelo ... e, de acordo com o terapeuta que o acompanhava em 22.06.2022, o arguido cumpriu até então o plano terapêutico, fazendo regularmente análises toxicológicas, sendo os resultados negativos para o consumo de estupefacientes;
- O arguido desvaloriza a gravidade dos factos de cuja prática se encontra acusado;
- O arguido tem, como habilitações literárias, o 4.º ano de escolaridade;
- O arguido já foi condenado pela prática:
i. em 22.05.2016, de um crime de violência doméstica, por sentença de 17.11.2016, transitada em julgado em 9.12.2016, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período e sujeita ao cumprimento de deveres; e
ii. em 31.03.2016, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, por sentença de 9.03.2017, transitada em julgado em 27.03.2017, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período, com sujeição a regime de prova.
*
Ponderando os vários elementos supra expostos, entende o Tribunal que relevam de forma média as exigências de prevenção especial positiva no caso concreto, decidindo o Tribunal condenar o arguido na pena de um ano e seis meses de prisão.
O arguido sofreu as condenações descritas em 7. dos factos provados, uma das quais por um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, tendo sido condenado numa pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova.
Por outro lado, constata-se que os factos pelos quais vai condenado nos presentes autos tiveram lugar no decorrer do período de suspensão na sua execução da referida pena de 3 anos e 6 meses de prisão em que foi condenado.
O arguido revelou ausência de interiorização do desvalor das suas condutas, assumindo em audiência de julgamento uma postura de total falta de arrependimento por tudo o sucedido, pautada por uma atitude reveladora de aparente sensação de normalidade por parte do arguido em relação à prática de factos como aqueles pelos quais vai agora condenado e aqueles pelos quais já foi condenado anteriormente.
Assim, no caso dos autos, não só não se verifica uma prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido, como a perturbação e comoção social provocada pelo fenómeno do tráfico de droga, praticado pelo arguido, desaconselha a aplicação de pena substitutiva, considerando os riscos e danos para bens e valores fundamentais como a saúde física e psíquica de milhares de cidadãos, especialmente jovens, das condutas por si praticadas.
Ora, para que o tribunal possa concluir pela possibilidade de suspensão na sua execução da pena em que o arguido vai condenado é necessário, além do mais, poder afirmar que, por este meio, se realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades visadas com a execução da pena, o que não se verifica no caso, denotando os factos praticados pelo arguido e o que em consequência dos mesmos sucedeu uma verdadeira alienação do mesmo da realidade, nomeadamente das suas obrigações para com a sua filha menor, ao ponto de não se ter sequer apercebido que aquele iniciara o consumo do estupefaciente que o próprio mantinha em casa e ali consumia.
Tal como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de janeiro de 2003 (processo n.º 3594/02, 5.ª Secção, relator Carmona da Mota), «a suspensão da execução da pena não deverá ser decretada – mesmo em caso de conclusão do tribunal por um prognóstico favorável (à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de sociabilização), se a ela se opuserem as finalidades da punição (art.º 50º nº 1 e 40º nº 1 do Código Penal), nomeadamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, pois que só por elas se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto (da suspensão). Impõe-se, numa palavra, “que o crime não compense”».
Em face do que já se deixou escrito, nomeadamente no que se refere ao que resultou para o Tribunal da postura assumida pelo arguido em audiência de julgamento, não obstante o segmento final do relatório elaborado pela DGRSP no sentido de que “o arguido apresenta atualmente uma situação familiar e económica mais estável e parece estar num novo ciclo motivacional, mais disponível para a mudança, encontrando-se abstinente do consumo de estupefacientes (…) consideramos que, em caso de condenação, existem condições compatíveis com a execução de uma medida na comunidade, com supervisão destes serviços e com indicação de manutenção do acompanhamento à sua problemática aditiva”, entende o Tribunal que nada lhe permite fazer um juízo de prognose favorável e concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, já que outras penas e flexibilização da execução das mesmas não foram suficientemente eficazes na reeducação do arguido para o Direito que, inclusivamente, praticou crimes no decurso da suspensão da execução da pena em que fora condenado pela prática de factos todos eles consubstanciadores do mesmo crime, tráfico de estupefacientes.
Termos em que, deve o arguido cumprir a pena de prisão de um ano e seis meses em que vai condenado nestes autos, pois que nenhuma outra pena substitutiva se revela adequada e suficiente à prossecução das finalidades visadas pela aplicação ao arguido da referida pena de um ano e seis meses de prisão.»
(…)»
*
2.3 Conhecendo do mérito
2.3.1 Delimitação do objeto do recurso
Dissemos atrás que a problemática a discutir neste recurso é essencialmente a de saber se deve ou não ser suspensa a execução da pena de prisão de 1 (um) ano e 6 (seis) meses aplicada ao Recorrente ou, subsidiariamente, se deve ser determinado o cumprimento da pena em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica.
Em defesa da sua pretensão não deixa contudo o Recorrente de dizer, em dado passo das conclusões que apresenta, que o Tribunal de 1ª Instância não procedeu a um exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção [C)] e que devia ter examinado toda a prova de forma completa, rigorosa e crítica e só depois formar a sua convicção [D)]. E na parte da motivação defende mesmo o Recorrente que não há prova de que tenha vendido ou dispensado produto estupefaciente a outras pessoas que não à testemunha DD [21)], que provou-se que o Recorrente não mais voltou a consumir [23)] e que resulta do depoimento da testemunha GG, Cabo da GNR, que desde os factos de que tratam estes autos não mais teve conhecimento de outras situações desta natureza.
Ora, cumpre deixar esclarecido que a Relação conhece de facto e de direito (art.º 428º do Código de Processo Penal); todavia, a impugnação dos factos dados como provados pode fazer-se:
i. por via da sinalização de um vício de entre os descritos no art.º 410º, nº 2 do Código de Processo Penal e nomeadamente de um erro notório na apreciação da prova, vício esse que tem, porém, de resultar expressamente do texto da decisão, em si mesmo ou conjugado com as regras da experiência;
ii. ou por via da identificação de meios de prova que imponham decisão diversa, caso este em que, tratando-se de depoimentos produzidos em audiência, não pode o Recorrente deixar de especificar as passagens relevantes em que se funda a sua pretensão, tudo nos termos previstos pelo art.º 412º, nº 3, alínea b) e 4 do Código de Processo Penal.
No caso concreto, e sem prejuízo do que adiante diremos, a Recorrente não aponta qualquer erro da decisão que pudesse integrar-se na situação que mencionámos em i) – nem nós o divisamos -, como não especifica as passagens da prova produzida em audiência que entende imporem decisão diversa, nos termos que apontámos em ii).
Assim é que o que faremos é ponderar a concreta factualidade dada como provada, e decidir à luz dela a problemática em causa.
2.3.2 Da suspensão da execução da pena de prisão
Estando diante uma pena de prisão em medida não superior a cinco anos, como é o caso, a suspensão da sua execução é aplicada «se, atendendo à personalidade do arguido, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior e às circunstâncias do cometimento dos crimes, possa considerar-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição», suspensão esta a definir por um período entre um e cinco anos (art.º 50º, nºs 1 e 5 do Código Penal).
E de acordo com o conjunto do seu regime legal, plasmado, para o que aqui releva, nos arts. 50º, nº 3 e 51º a 54º do Código Penal, a suspensão da execução da pena de prisão pode ter lugar:
i. sem mais;
ii. com deveres;
iii. com regras de conduta;
iv. com deveres e regras de conduta;
v. com regime de prova, assente num plano de reinserção social, eventualmente também com deveres e regras de conduta (André Lamas Leite, “A suspensão da execução da pena privativa da liberdade sob pretexto da revisão de 2007 do Código Penal”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, volume II, Coimbra Editora, pg. 600).
O pressuposto material da suspensão é o da adequação e suficiência da mera censura do facto e da ameaça da prisão à satisfação das finalidades da punição, que sabemos serem a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (cfr. art.º 40º, nº 1 do Código Penal). Dizendo o mesmo de outro modo, a suspensão da execução da pena de prisão, com ou sem deveres, regras de conduta e/ou regime de prova, torna-se imperativa se aquelas mera censura e ameaça de execução da pena de prisão forem suficientes e adequadas para a satisfação das necessidades preventivas do caso (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição, Universidade Católica Portuguesa, pg. 226).
Concretizando um pouco o conteúdo e modo de operar deste pressuposto material, afigura-se-nos que num primeiro momento o tribunal deve ponderar se consegue ou não, atendendo à personalidade do arguido e às circunstâncias do caso, emitir um prognóstico favorável relativamente ao seu comportamento, ou seja, se a simples censura do facto e a ameaça da prisão bastarão para o afastar da criminalidade; e, num segundo momento, emitido que seja o assinalado prognóstico favorável, assente em considerações exclusivas de prevenção especial de socialização, importará averiguar se as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico se não opõem à suspensão (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pgs. 342 a 344).
Sendo este o enquadramento legal a considerar, emerge como ponto fulcral a analisar a questão de saber se pode ou não emitir-se um prognóstico favorável quanto ao comportamento futuro do Arguido.
A posição que fez vencimento no acórdão recorrido entendeu que não, alinhando para o efeito e em síntese, as seguintes razões:
a. os antecedentes criminais do Arguido, sendo um deles já pelo crime de tráfico de estupefacientes, traduzido numa pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova;
b. a circunstância de ter praticado os factos aqui em causa no decurso do período de suspensão da execução da pena aplicada no âmbito da anterior condenação por tráfico de menor gravidade;
c. a ausência de interiorização do desvalor das suas condutas, manifestando total falta de arrependimento em relação aos factos pelos quais é agora condenado e por aqueles pelos quais foi condenado antes;
d. o ter-se o Arguido alienado da realidade, nomeadamente das suas obrigações para com a sua filha menor, ao ponto de nem sequer se ter apercebido que esta iniciara o consumo de estupefaciente que mantinha em casa e ali consumia;
e. a perturbação e comoção sociais provocadas pelo fenómeno do tráfico de droga, considerando os riscos e danos para bens e valores fundamentais, como a saúde física e psíquica de milhares de cidadãos, especialmente jovens, das condutas do Arguido.
Concluiu então o Tribunal de 1ª Instância que, pese embora alguns indicadores favoráveis expressos no relatório social elaborado pela DGRSP e o parecer positivo desta a uma pena a executar em meio aberto, outras penas e medidas de flexibilização das mesmas não foram suficientemente eficazes na reeducação do Arguido para o Direito; e deste modo considera que a pena de prisão tem que ser efetiva.
Vejamos.
Primeiro e preliminar aspeto: os factos concretos em causa nestes autos.
Assume o Tribunal de 1ª Instância que o Arguido praticou o crime pelo qual agora é condenado durante o período de suspensão da execução de pena de prisão anterior.
Trata-se de ponto que merece atenção.
O Arguido teve duas condenações criminais – a primeira por violência doméstica e a segunda por tráfico de estupefacientes de menor gravidade. Em ambas foi sujeito a penas de prisão suspensas na sua execução e ambas foram extintas, resultando do seu certificado do registo criminal que a primeira foi extinta por despacho de 28 de setembro de 2020, com efeitos reportados a 9 de junho de 2020 e a segunda o foi por despacho de 26 de outubro de 2020, com efeitos reportados a 27 de setembro de 2020.
Ou seja, os períodos de suspensão da execução das penas de prisão antes aplicadas terminaram, quanto à condenação por violência doméstica, em 9 de junho de 2020, e quanto ao tráfico de estupefacientes de menor gravidade, em 27 de setembro de 2020.
Olhemos agora a matéria de facto em causa nos presentes autos: por um lado, temos as apreensões de estupefaciente, que sabemos terem tido lugar em 6 de janeiro de 2021 (factos 5 e 6); por outro lado, temos a venda a DD, que está localizada entre 8 de janeiro e 9 de fevereiro de 2021 (facto 7). Umas e outra ocorreram, portanto, já depois de esgotados os períodos de suspensão anteriores.
Temos ainda, é certo, o que se acha descrito no ponto 1 da matéria de facto, que aqui recordamos:
«O arguido (…), desde data não concretamente apurada mas, pelo menos, desde setembro de 2019, dedica-se ao cultivo de cannabis, que destina ao seu consumo e venda a terceiros consumidores.»
Com o devido respeito, entendemos que esta frase tem um perfil destituído de suficiente concretização. Na verdade, dela não decorrem aspetos que densifiquem as atividades para que conclusivamente aponta, a saber e entre o mais: onde decorre o cultivo, de que forma e em que quantidades? A que consumidores vendeu, quantas vezes ou com que regularidade, e em que quantidades e por que preço?
Aceitar-se-ia aquela frase como em jeito de introito, se se lhe seguisse depois, como complemento concretizador, a referência especificada a um conjunto mais ou menos alargado de condutas, procedimentos, práticas, atos especificados; desacompanhada de tais elementos complementares, fica a frase com um conteúdo descaracterizado e sem valia relevante.
E na verdade, no caso concreto, dizendo-se naquele ponto 1), como se diz, que pelo menos desde setembro de 2019 que o arguido se dedica ao cultivo de cannabis, que destina ao seu consumo e à venda a consumidores, certo é que o primeiro gesto concreto que em seguida se lhe aponta – a detenção das substâncias apreendidas - se situa já em janeiro de 2021, o que é distante o bastante para que não possamos considerar estabelecido um nexo temporal e de sentido lógico, histórico e prático-jurídico relevante entre a frase como introito e aquela detenção.
Aliás, se considerássemos que o que se lê no ponto 1) da matéria de facto provada está dotado de suficiente concretização, então dificilmente evitaríamos considerar a existência de uma contradição, na parte da venda a consumidores, entre o que ali consta e o que consta no ponto 6) da matéria de facto não provada; repare-se que enquanto naquele primeiro ponto se lê que o Arguido destina a cannabis ao seu consumo e a venda a terceiros consumidores, no segundo lê-se, como não provado, que «o arguido costuma vender produto estupefacientes, habitualmente, a DD, entre outros (…)».
Afigura-se-nos pois e em suma que devermos desconsiderar, por conclusivo, o que se mostra dito no ponto 1) da matéria de facto provada.
Dito isto, não podemos consequentemente acompanhar o Tribunal de 1ª Instância quando afirma que o Arguido praticou os factos aqui em causa no período de suspensão da execução de qualquer das penas anteriores.
Não significa o que vimos de dizer que deva ser desvalorizado o facto de o Arguido ter voltado a praticar um crime do mesmo tipo do que antes motivara a sua condenação a uma pena de prisão de 3 anos e 6 meses suspensa na sua execução; ou o facto de ter voltado a enveredar por uma conduta criminosa depois de ter sido condenado em duas penas de prisão suspensas na sua execução, atentando-se aqui também à relativa à violência doméstica.
Na verdade, a circunstância de o Arguido cometer um crime de tráfico nas circunstâncias conhecidas não deixa de ter um significado: o de que a pena de prisão suspensa na execução com regime de prova de que beneficiara até pouco antes não foi suficientemente dissuasora para o afastar do mundo do tráfico de menor gravidade, nem suficientemente eficaz como instrumento ressocializador. Na verdade, extinta a pena de prisão suspensa, logo no ano seguinte o Arguido cometeu factos que se integram na previsão de novo crime de tráfico de menor gravidade.
Temos esta circunstância como particularmente preocupante do ponto de vista da compreensão da personalidade do Arguido e da sua (in)capacidade para orientar a sua vida quotidiana em moldes de respeito pelos valores comunitários vigentes; e nessa medida estamos em crer que o juízo de prognose favorável que aqui se procura fica, a uma primeira abordagem, comprometido.
Todavia, importa ter presente um dado que não pode ser ignorado: os factos em causa situam-se em janeiro e fevereiro de 2021 e o acórdão condenatório é de abril de 2024, ou seja, mais de três anos depois.
A vida, em todas as suas dimensões, é dinâmica, o que significa que é nesta matéria pertinente olharmos ao percurso do Arguido nestes anos que entretanto decorreram, em ordem a perceber se temos alguém que pelo seu comportamento ulterior confirmou ou não o que em janeiro e fevereiro de 2021 a sua conduta denunciava, isto é, se confirmou ou não que só com uma pena de prisão efetiva é que podia enveredar por uma matriz ressocializadora e afastar-se do crime.
Repare-se que a delonga havida entre os factos e a decisão condenatória, delonga essa cuja origem aqui obviamente se não discute, traduz-se num intervalo temporal que acaba por nos habilitar a ponderar com outra propriedade o comportamento do agente posterior ao crime, que tem relevo legal nesta matéria [cfr. art.º 71º, nº 2, alínea e) do Código Penal]. E se este comportamento posterior ao crime deve por regra ser ponderado, esta ponderação ainda maior importância terá em casos como o presente, em que é mister saber se houve ou não alguma mudança relevante nos comportamentos, na postura e/ou na forma de pensar do Arguido que nos façam supor que ele estará mais preparado ou menos preparado para uma ressocialização eficaz em liberdade.
Ora, no que respeita à sua integração familiar e às condições gerais de vida, a factualidade de que partimos não sugere mudanças significativas: o Arguido tem uma família, com quem vive; tem fontes de rendimento lícito; tem uma casa disponível.
No que respeita à sua postura perante os factos, a matéria de facto aponta no sentido de que o Arguido tem alguma dificuldade em reconhecer a gravidade das condutas que lhe são imputadas, o que constitui na verdade algo que nos preocupa. Todavia, ainda que nos inspirando, insista-se, preocupação, não podemos do mesmo passo deixar de notar que a substância estupefaciente em apreço era cannabis, muito comumente vista como uma «droga leve» e numa quantidade global relativamente limitada, pouco acima das duzentas gramas, tudo convergindo para uma certa mitigação do peso do grau de censura de que o Arguido é indiscutivelmente merecedor e mitigação ainda do tom de desfavor com que esta detenção se apresenta no juízo de prognose em causa.
Por outro lado, olhando em perspetiva alargada a vida do Arguido, tanto quanto a matéria de facto o permite e o relatório social junto aos autos documenta, fica-nos a clara perceção de que estamos diante uma pessoa que consumiu estupefacientes durante longos anos, com a desestruturação social, familiar e pessoal inerente, ao ponto de ter chegado a consumir heroína durante cerca de seis anos, mas que entretanto começou a ser objeto de acompanhamento e deixou de consumir. Este último dado aponta no bom sentido e surge reforçado com as ideias, de que aquele relatório social também dá nota, de que «encontra-se em acompanhamento pelo CRI ...», de que «tem vindo a cumprir com o plano terapêutico», de que se lhe percebe agora «alguma capacidade crítica e motivação para a mudança» e de que «apresenta atualmente uma situação familiar e económica mais estável».
Acresce que ao tempo do acórdão recorrido a informação processual disponível dizia que o Arguido não tinha outros processos pendentes (cfr. informação recolhida a 12 de abril de 2024 – referência eletrónica nº 15082776)
Tudo quanto vimos de dizer leva-nos a pensar que neste momento é possível emitir um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do Arguido. Não há – não há nunca – certezas absolutas nesta matéria, mas a margem de erro inerente àquele juízo já se contém em medida aceitável, podendo afirmar-se com razoável grau de segurança que o mais provável é que o Arguido não reincida nos comportamentos que o levam a esta condenação, tanto mais que, não o ignoremos também, estamos diante alguém que tem já mais de sessenta anos.
Aqui chegados, isto é, emitido um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do Arguido, a suspensão da execução da pena será possível se for compatível com as chamadas exigências de prevenção geral.
O acórdão recorrido também propugna nesta matéria uma posição desfavorável, dizendo, recorde-se, o seguinte:
«A perturbação e comoção social provocada pelo fenómeno do tráfico de droga, praticado pelo arguido, desaconselha a aplicação de pena substitutiva, considerando os riscos e danos para bens e valores fundamentais como a saúde física e psíquica de milhares de cidadãos, especialmente jovens, das condutas por si praticadas.»
É uma fundamentação ponderosa, mas que nos parece não fechar a questão. Isto porque, reconhecendo-se naturalmente que o tráfico de estupefacientes é um fenómeno que gera enorme inquietação social, pelo flagelo que representa na vida dos consumidores e suas famílias e pela associação inevitável a formas de criminalidade conexas, não devemos também deixar de considerar a situação em apreço na sua real dimensão; não estamos a falar de alguém que comprovadamente haja, pela sua conduta, afetado «milhares de cidadãos», nem tão pouco será apropriado fazer o Arguido responder por todo o tráfico existente.
O que temos é alguém que possuía, como atrás dito, uma quantidade relativamente limitada de cannabis e de sementes, tanto quanto se sabe à luz dos factos concretos provados e vendeu estupefaciente uma vez a um consumidor, num negócio cujo preço estipulado foi € 20,00.
Afigura-se-nos que nestas circunstâncias objetivas, tendo o Arguido feito já um percurso pessoal com relevo e face ao tempo já decorrido desde os factos sem que se conheça qualquer reiteração criminosa, a comunidade terá ainda por boa uma abordagem que passe pela suspensão da execução da pena, naturalmente que com regime de prova, em termos a detalhar ulteriormente, mas que passem por um acompanhamento próximo por parte da DGRSP e pela manutenção do acompanhamento à sua problemática aditiva.
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3 - Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido e determinando-se a suspensão da execução da pena de prisão de 1 (um) ano e 6 (seis) meses que fora aplicada ao Arguido, com regime de prova, assente num plano de readaptação social, sob a supervisão e com acompanhamento próximo por parte da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e pela manutenção do acompanhamento à problemática aditiva.
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Não são devidas custas (arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1, a contrario sensu, do Código de Processo Penal).
Registe e notifique.
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Lisboa, 10 de outubro de 2024
Os Juízes Desembargadores (processado a computador pelo relator e revisto por todos os signatários)
Jorge Rosas de Castro
Isabel Maria Trocado Monteiro
Ana Marisa Arnedo