Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
324/14.0TELSB-EZ.L1-5
Relator: PAULO BARRETO
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
INTERESSES ECONÓMICOS
PESSOA COLECTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - Em sede de direito penal, os conceitos devem seguir a amplitude da conduta criminosa, sem se limitar ou fechar em conceitos estritamente jurídicos do direito civil e sobretudo do direito societário.
II - Isto para dizer que, no âmbito penal, o que interessa essencialmente são os interesses económicos que determinaram toda a prática criminosa e os seus diversos ramos de acção. Assim, mais do que o conceito de pessoa colectiva (sociedade comercial), importa sobretudo ponderar um conceito de empresa, grupo económico, como topo de negócios e interesses jurídicos e económicos, com capacidade para influenciar as diversas pessoas colectivas societariamente consideradas.
III - E é nesta perspectiva que se reconhece ao recorrente o direito de querer intervir nos autos. Pode não estar em causa, no objecto da acusação, o aumento do capital social que em concreto o recorrente subscreveu, mas é inquestionável que só comprou tais participações sociais porque foi enganado por factos e crimes constantes da acusação. (Sumariado pelo relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
No Juiz … do Juízo Central de Instrução Criminal foi proferido o seguinte despacho:
“Dos pedidos de constituição como assistente, formulados por (…) AA (…).
O detentor da acção penal deduziu oposição às requeridas constituições ­como assistentes.
Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 4.º do art.º 68.º do CPP, conforme ­despacho de fls.62680 a 62681.
Vieram (…) AA (…), requerer a respectiva constituição como assistente nos termos do art.º 68.º n.º 1, al. a) e 3, do Código de Processo Penal.
Todos fundamentam os seus pedidos (como decorre dos pedidos de indemnização civil) na aquisição de acções do BES.
Porém, verifica-se, como aduzido pelo titular da acção penal, tais instrumentos de dívida não são, todavia, objecto do despacho de encerramento do inquérito proferido nestes autos no dia 14.07.2020, a fls. 47935 e segs., máxime fls. 48004 a 48006, foi consignado que, com base em queixa apresentada no dia 2.12.2014, havia sido instaurado o processo com o NUIPC 6049/14……., que correu seus termos no DCIAP e cujo objecto se reconduz à apreciação dos factos relacionados com o aumento de capital do BES, concretizado em 2014.
Verifica-se que, os factos relatados e que fundamentam o pedido de constituição como assistente não são, pois, objecto dos presentes autos.
Assim, no âmbito do presente inquérito, corroboramos o entendimento sancionado pelo detentor da acção penal de que não têm os requerentes legitimidade para se constituírem assistentes, nos termos e para os efeitos do art.º 68.º n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal, pelo que se indeferem os respectivos pedidos.
Notifique”.
*
AA veio recorrer deste despacho, formulando as seguintes conclusões:
“I. O presente recurso tem como objeto o Douto Despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz a quo, que indeferiu o pedido de constituição de assistente.
II. Considerou o Douto Despacho que o recorrente e outros requerentes de constituição de assistente fundamentam o seu pedido na aquisição de ações do BES.
III. Considerou igualmente o Douto Despacho que, aquando do encerramento do inquérito, por despacho de 14.07.2020 foi consignado que, com base em queixa apresentada no dia 2.12.2014, havia sido instaurado o processo com o NUIPC 6049/14……, que corre seus termos no DCIAP e cujo objecto se reconduz à apreciação dos factos relacionados com o aumento de capital do BES, concretizado em 2014.
IV. Conclui o Douto Despacho que os factos relatados e que fundamentam os pedidos de constituição como assistente em causa, não são objecto destes autos, não tendo os requerentes legitimidade para se constituírem assistentes.
V. No requerimento de pedido de indemnização civil e constituição de assistente veio o recorrente indicar que subscreveu 64.600 ações ordinárias, escriturais, nominativas, emitidas pelo Banco Espírito Santo S.A, pelo valor de 71.825,35 euros.
VI. O BES, entidade emitente das ações era tida aos olhos do mercado, entidades reguladoras e ao público em geral como uma entidade de elevado grau de fiabilidade.
VII. A queda do valor de cotação de tais produtos financeiros, e consequente perda e danos na esfera patrimonial do recorrente, está intimamente relacionada com os factos descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público.
VIII. Com a resolução decretada pelo BES pelo Banco de Portugal, devido aos enormes passivos que este tinha ocultado nas sua contas e nas das sociedades que sobre elas exerciam controlo, gerou um prejuízo ao recorrente no montante de 71.825,35 euros, pois as suas ações deixaram de ser cotadas em mercado.
IX. Conforme resulta da acusação, no final de 2009 já o GES se encontrava em bancarrota.
X. Através de deliberações aprovadas nas diferentes reuniões dos Conselhos de Administração (CA) de cada uma das sociedades, foram fabricados instrumentos de dívida emitidos pelas diferentes sociedades do grupo com o objetivo virem a capitalizar e financiar as diferentes entidades, promovidos e vendidos junto dos clientes dos balcões do grupo, e em particular, junto de clientes do BES.
XI. Tal era legitimado pela certificação da documentação contabilística de entidades isentas e neutras, desconhecedoras de que já em 2009 a ESI se encontrava em bancarrota apresentando capitais próprios negativos.
XII. Violando a obrigação legal de apresentar a ESI a escrutínio judicial em processos de natureza falimentar, o arguido BB manteve a ESI como estrutura chave na captação de liquidez junto de terceiros, liquidez que redirecionou pelas várias áreas de negócio do Grupo, tendo ordenado atos de manipulação das contas (cfr. fls. 300 e 301 Acusação).
XIII. No BESI, de cuja administração fazia parte, o arguido BB socorreu-se de CC para que esta produzisse estudos sobre o valor da ESFG que em termos contabilísticos justificasse o seu empolamento nos ativos da ESI (Fls. 302 da Acusação).
XIV. A real situação negativa da ESI e a ficcionada situação que apresentava, diferente, lograda com documentos criados para este efeito, contaminou progressivamente a atividade dos bancos ESPÍRITO SANTO (Fls. 302 da Acusação).
XV. Com base neste aparelho fraudulento, BB usou da sua influência em todos os bancos ESPÍRITO SANTO para vender aos respetivos balcões várias modalidades de financiamento da ESI, quer em Portugal, quer no estrangeiro, com base em decisões tomadas em Portugal (Fls. 3030 da Acusação).
XVI. Resulta da acusação que "Foi com base nos trabalhos de auditoria a que se faz referência, e numa certificação legal de contas do BES de 2013 falsificada por BB, que se tornou possível o processo do aumento de capital do BES, culminado a 16.06.2014 "(Fls. 82), e "Os atos levados ao conhecimento da administração determinaram, no fecho do primeiro semestre de 2014, perdas históricas para um banco em Portugal, tornando o BES inelegível para manter relações de financiamento com contra partes do sistema bancário europeu. "(Fls. 83 da Acusação).
XVII. Sobre a ESFG importa reter que a atividade da ESI, RFI e ESR envolvia as unidades bancárias ESPÍRITO SANTO e ESFIL, tinha por efeito a exposição patrimonial e reputacional destas, com possibilidade de perdas que afetavam o seu valor, e por contaminação o valor dos ativos investidos pela ESFG nestas empresas (Fls. 308 da Acusação).
XVIII. Entre 2009 e 2014, a viciação de contas foi maquinada, executada ou mantida não só por BB, mas também, pelo menos, por DD, EE, FF e GG.
XIX. Os arguidos agiram com intenção de obter para si, ou para entidades do Grupo Espírito Santo, um enriquecimento ilegítimo, tendo, para o efeito utilizado as estruturas do BES de modo que estas comercializassem produtos financeiros que os primeiros sabiam não deter valor ou serem pouco fiáveis.
XX. Tendo com isso levado o recorrente a subscrever ações no aumento de capital, o que lhe causou um prejuízo patrimonial correspondente ao montante investido.
XXI. Os arguidos, com as suas condutas, bem sabiam que ao emitirem as indicadas ações e ao mandatarem entidades para, no mercado, promoverem e comercializarem a venda deste, iriam causar prejuízos aos adquirentes dos produtos financeiros.
XXII. Os factos expostos nas conclusões V a XXI foram relatados no pedido de constituição de assistente formulado pelo recorrente, sendo as condutas dos arguidos descritas no despacho de acusação.
XXIII. Considerou o Douto Despacho recorrido que o objeto do processo com o NUIPC 6049/14….., que corre seus termos no DCIAP se reconduz à apreciação dos factos relacionados com o aumento de capital do BES, concretizado em 2014.
XXIV. A manipulação de documentação contabilística, com vista a poder ser possível a realização de um aumento de capital do Banco Espírito Santo S.A., dá corpo ao texto que os concretiza em sede de acusação, na qual são imputados os crimes de associação criminosa para a prática de crimes de falsificação, previsto no art.° 256°, burla (qualificada), previsto nos art.ºs 217° e 218°, infidelidade, previsto no art.° 224°, branqueamento, previsto no art.° 368°-A, todos do Código Penal, e de corrupção ativa e passiva no setor privado, previstos nos art." 8° e 9° da Lei 32/2008, de 21.04, e de manipulação de mercado, previsto no art.º 379º do Código de Valores Mobiliários (Fls. 84 da Acusação).
XXV. Sendo factos objeto do despacho de acusação
XXVI. De acordo com o Acórdão TRL de 03.02.2016, proferido no âmbito dos presentes autos (processo 324/14.0TELSB-L.Ll-3), "Têm legitimidade para se constituírem assistentes, os lesados por uma instituição bancária onde se investigam os crimes de burla simples e qualificada, abuso de confiança, falsificação de documentos, branqueamento de capitais e fraude fiscal, e cujo processo tem como arguido, entre outros, o Presidente do respectivo Banco".
XXVII. No referido acórdão estava em causa a factualidade relativa à subscrição de ações por ocasião do aumento de capital lançado pelo Banco Espírito Santo (BES), em 2014.
XXVIII. Concluiu o referido Acórdão, perante a factualidade descrita pelos requerentes aquando do pedido para constituição como assistentes ser perfeitamente aceitável admitir os recorridos na qualidade de assistentes, como titulares dos interesses que a incriminação visou especialmente proteger, uma vez que, na sua óptica, viram o seu património afetado pelas condutas.
XXIX. Nas condutas referidas no requerimento de constituição de assistente e na acusação estão em causa crimes de burla qualificada e de infidelidade, tendo estas condutas produzido diretamente impacto no recorrente, confrontado com um prejuízo patrimonial elevado.
XXX. O recorrente é o titular do interesse que constitui objeto jurídico imediato dos crimes de burla qualificada e infidelidade, interesse próprio e direto que não se consubstancia somente na pessoa do lesado.
XXXI. O mesmo se conclui relativamente a eventuais crimes de falsificação e de abuso de confiança, atenta a descrição da factualidade alegada pelo recorrente.
XXXII. Com efeito, o crime de falsificação de documento é um crime contra a vida em sociedade, em que o bem jurídico segurança e confiança do tráfico probatório, mas não é o único bem jurídico particularmente protegido com a correspondente incriminação, atendendo ao conjunto do tipo.
XXXIII. Como requisito subjetivo, se exige que o agente tenha atuado com a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou Estado ou alcançar para si ou para terceiro benefício ilegítimo.
XXXIV. Quando for o caso, verificados os elementos materiais do iter criminis, é essa especial direção de vontade do agente: prejudicar outra pessoa, que dita o completamento do crime.
XXXV. O que impõe a conclusão, face a este elemento subjetivo, de que o tipo em causa visa proteger aqueles valores, mas (também) em razão do prejuízo que os atentados contra eles podem causar a interesses de particulares.
XXXVI. Esses interesses particulares, se bem que não exclusivamente, são pois protegidos de modo particular pela incriminação, constituindo um dos objetos imediatos da incriminação.
XXXVII. Assim, se num caso concreto os arguidos visaram com a falsificação causar prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa, neste caso todos os adquirentes de acções BES, estes poderão constituir-se assistentes.
XXXVIII. No tipo legal de falsificação de documento do artigo 256.° do Código Penal, a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afastou, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse suscetível de ser corporizado num concreto portador, aquele cujo prejuízo o agente visava, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente.
XXXIX. O Acórdão n." 112003 - Processo n." 609/02 - do Supremo Tribunal de Justiça, disponível in www.dgsi.pt concluiu, quanto ao crime de falsificação:
«No procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n. o 1 do artigo 256.º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente.»".
XL. Assim, o Acórdão 1/2003, estabelece que o vocábulo -, especialmente" usado pela lei significa "de modo especial, num sentido de particular e de não exclusivo" de sorte que" quando os interesses imediatamente protegidos pela incriminação, sejam, simultaneamente, do Estado e de particulares ... a pessoa que tenha sofrido danos em consequência da sua prática tem legitimidade para se constituir assistente."
XLI. O direito penal tem por encargo proteger os bens jurídicos e todos os preceitos penais podem reconduzir-se à proteção de um ou vários bens jurídicos que podem ser lesados cumulativamente ou alternativamente, sendo, neste caso, os interesses particulares também objeto imediato da proteção pela norma incriminadora.
XLII. A ampliação do conceito de ofendido, não deixando de estar ligada ao conceito de bem jurídico, consagrado no artigo 68°, n.º l alínea a) do CPP acarreta o correto equilíbrio entre a necessidade de punir a necessidade que esta punição seja feita de forma justa e ponderada contribuindo assim para a realização de um processo penal mais equitativo e pacificador, uma vez que a participação da vítima é um fator de extrema importância para o saudável funcionamento da Administração da Justiça pelo que, nunca deve ser menosprezada e abandonada.
XLIII. Neste contexto, o Recorrente apresenta-se com legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos.
XLIV. O Douto Despacho violou a al.º a) do n.º 1 do artigo 68.° do Código  de Processo”.
O Ministério Público apresentou Resposta, concluindo do seguinte modo:
“1. Importa, perante o teor do recurso, aquilatar se o recorrente se mostra investido na posição de titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação no âmbito destes autos.
2. O conceito de ofendido, para efeitos de legitimidade para constituição como assistente, coincide com o conceito adoptado para se aferir da legitimidade para apresentação de queixa, previsto no art° 113° n° 1 do Código Penal, onde igualmente se estabelece que ofendido é o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
3. A legitimidade do ofendido é aferida necessariamente em relação ao crime concreto que estiver em causa, e a delimitação do seu conceito encontrar-se-á na tipologia criminal concretamente expressa em lei. Só assim é possível determinar se uma pessoa viu os interesses que a lei quis especificamente proteger afectados pela conduta adoptada pelo arguido ou pelo suspeito.
4. É a norma incriminadora que fornece ao intérprete o interesse que o legislador quis proteger, ao tipificar determinada conduta como criminosa.
5. No caso vertente, o recorrente apresentou-se à constituição como assistente invocando apenas o disposto no art° 68° n° 1 al. a) do CPP, tendo o tribunal a quo necessidade de recorrer aos termos do pedido cível deduzido.
6. Sendo o seu fundamento a subscrição de 66.140 acções ordinárias, escriturais, nominativas, emitidas pelo Banco Espírito Santo S.A, pelo valor de € 71.825,35. Este produto financeiro foi adquirido no âmbito da operação de oferta pública de aumento de capital do BES.
7. Não foram apuradas neste inquérito as circunstâncias em que foram comercializadas as mencionadas acções.
7. O objecto do processo foi fixado com a acusação proferida no dia 14.07.2020.
8. Nela não foi imputada a prática de qualquer crime por aqueles factos, pelo que, e salvo melhor opinião, não assume o recorrente, nestes autos, a qualidade de ofendido nos termos e para os efeitos do art.º 68.º, n.º 1, al. a), do CPP.
9. E, por isso, carece de legitimidade para se constituir assistente, como se disse, no âmbito deste inquérito.
10. Sempre se dirá, contudo, que não estando o recorrente investido na qualidade de ofendido, como pretende, sempre poderia ser admitido a intervir como assistente ao abrigo do que dispõe o art.º 68º nº 1 al. e) do CPP (o que não requereu), já que se procede por crimes de corrupção no sector privado.
11. Todavia, nos termos pretendidos, deverá ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida”.
*
O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exm.ª Srª. Procuradora-Geral Adjunta deu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP.
Proferido despacho liminar e dispensados os “vistos”, teve lugar a conferência.
*
II – Objecto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões (já supra mencionadas) da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância – artigos 403º e 412º, nº 1, do Código do Processo Penal.
Fundamentalmente, sustenta o recorrente que deveria ter sido admitido como assistente nos presentes autos de inquérito.
*
III – Fundamentação
Comecemos por referir que, em sede de direito penal, os conceitos devem seguir a amplitude da conduta criminosa (por ora apenas indiciária e na perspectiva do MP, sem qualquer intuito pré-condenatório, como serão todas as considerações que se farão ao longo do presente acórdão) sem se limitar ou fechar em conceitos estritamente jurídicos do direito civil e sobretudo do direito societário.
Isto para dizer que, no âmbito penal, não interessa tanto a pessoa colectiva A, B ou C, mas essencialmente os interesses económicos que determinaram toda a prática criminosa e os seus diversos ramos de acção. Assim, mais do que o conceito de pessoa colectiva (sociedade comercial), importa sobretudo ponderar um conceito de empresa, grupo económico, como topo de negócios e interesses jurídicos e económicos, com capacidade para influenciar as diversas pessoas colectivas societariamente consideradas. Isto para dizer, e entrando no caso concreto, que, ao pequeno accionista do BES (em 2014 subscreveu 64.600 ações ordinárias, escriturais, nominativas, emitidas pelo Banco Espírito Santo S.A, pelo valor de 71.825,35 euros), tem que ser reconhecido o direito de ajudar/intervir na investigação criminal que incide sobre uma empresa (universo BES), responsável por condutas a montante, mas com reflexo muito a jusante no seu investimento no BES.
E é nesta perspectiva que se reconhece ao recorrente o direito de querer intervir nos autos. Porque se sente lesado pelas práticas criminosas a montante praticadas no âmbito do Grupo BES, e que levaram ao colapso deste grupo.
Aqui chegados, é inquestionável que o direito a se constituir assistente entronca na legitimidade para apresentar queixa criminal. Como se refere no CPP Comentado - António Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes Pereira Madeira e Henriques da Graça, 2014, p. 239, em anotação ao art.º 68.º -, “a primeira  - e verdadeiramente típica – categoria das pessoas que podem constituir-se assistentes no processo penal são os ofendidos, que a lei define como os titulares do interesse que a lei especificamente quis proteger com a incriminação, isto é, de um interesse específico, particularmente qualificado, que intercede na relação entre o bem jurídico e o sujeito afectado; para este efeito, só será ofendido quem for titular de um interesse legítimo, tutelado pela lei, concretizado e inserido de modo funcionalmente relevante na relação teleológica-funcional entre o bem jurídico e o sujeito afectado”.
Ora, face ao exposto, não oferece dúvidas que, face ao que se investigava, o aqui recorrente podia ser considerado ofendido e, como tal, tinha o direito de se constituir assistente em sede de inquérito.
Porém, não o fez. Só pediu a intervenção como assistente depois da conclusão das investigações e do inquérito, que, como é consabido, encerra com o despacho de acusação ou de arquivamento. Também é certo que o objecto da acusação define o objecto do processo.
Aqui chegados, vejamos qual o objecto do processo, especificamente em sede de crimes em que são feitas referências aos BES com reflexo nos investidores
- crime de falsificação de documento p. e p. pelo artº 256º nº 1 als. d) e), por referência ao artº 255º al. a), ambos do Código Penal (para as demonstrações financeiras da ESI, entre pelo menos 2009 e o dia 14.04.2014 – produção do contrato de concessão de crédito com a ESFIL) - (ponto 4.2.6. e 7.6);
- crime de manipulação de mercado p. e p. pelo artº 379º nºs 1 e 2 do Código de Valores Mobiliários, com referência aos artºs 7º e 311º, do mesmo diploma legal. Entre 2009 e junho de 2014, a ESI, com demonstrações financeiras deturpadas comercializou em emissões ad hoc e enquadradas em programas, ECP, e em 2013 DCP, obrigações/papel comercial junto de investidores aos balcões de instituições bancárias com credenciação na intermediação financeira (pontos 5.2.1, 5.2.2 e 7.5).
- crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – Entre 2009 e julho de 2014, Unidade BPES, venda de UP do Fundo ExS, com prejuízos computados para investidores em 61.784.219€ (ponto 5.2.1.3);
− crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – Entre 2009 e dezembro de 2013 - Unidade BPES como agente emissor, Unidades Grupo BES, entre outros bancos ESPÍRITO SANTO, como colocadores de obrigações ESI, fora de programas, no período compreendido entre 2009-2013, com prejuízos computados para investidores em 894.511.048,94€ (pontos 5.2.1.4 e 5.2.2.1);
− crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – Entre 2009 e dezembro de 2013, Unidade BPES como agente emissor de obrigações ESI ao abrigo de programa ECP, com prejuízo computado para investidores em 80.666.071,34€ (ponto 5.2.1.6.1);
− crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º no 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – Entre 2009 e abril de 2013, Unidades ESBP e BPES na colocação de ações preferenciais de ESIOL, com prejuízo computado para investidores em 160.353,98€ (ponto 5.2.1.7);
- crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – Entre dezembro de 2011 e outubro de 2012 (Unidades ESBP e BPES na colocação de ações preferenciais ESROL, com prejuízo computado para investidores em 60.557,50€ (ponto 5.2.1.8);
- crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – Entre agosto e dezembro de 2013, Unidades BPES como agente emissor ao abrigo de programa EMTN RIOFORTE, com prejuízo computado para investidores em 39.527.381,00€ (ponto 5.2.1.9);
− crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – Entre setembro e dezembro de 2013, Unidades Grupo BES como colocadores de um programa de papel comercial doméstico ESI, com o prejuízo computado para investidores nos 175.200.000€ (ponto 5.2.2.2 – Papel Doméstico ESI);
- crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – Entre setembro de 2013 e dezembro de 2013, Unidades do Grupo BES como colocador de um programa doméstico de papel comercial RIOFORTE, com um prejuízo computado para investidores nos 77.550.000€ (ponto 5.2.2.2).
- crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – Entre 2009 e julho de 2014, ocorreu a venda pelas Unidades do Grupo BES de obrigações ES TOURISM EUROPE, com um prejuízo computado para investidores em 146.155.594,59 (ponto 5.2.3);
- crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal - Entre 2009 e 2014, as Unidades do Grupo BES venderam aos clientes ações preferenciais e obrigações do Grupo ESCOM MINING, com o prejuízo estimado para investidores, de 91.670.565,77€ (ponto 5.2.4).
- crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – Até 2014 a ESFIL vendeu a investidores ao abrigo de um EMTN instrumentos de dívida, com prejuízo computado para estes de 200.000.000€ (ponto 5.3.1.3.2);
- crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – A utilização da Unidade bancária do ESBP, para a concessão de crédito e entidades do Grupo ESI até julho de 2014, com prejuízo para o ESBP de 548.900.000€ (ponto 5.3.2. ESBP);
- crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal − – Uso das unidades do Grupo BES, entre 2009 e 2012, na venda de obrigações BES FINANCE, com prejuízo para o banco computado em 1.190.134.174,83€; (ponto 5.4.7);
- crime de branqueamento p. e p. pelo artº 368-A, nos 1, 2, 3 e 6 do Código Penal – Uso do proveito do BRAX I na eliminação de dívida EG PREMIUM (ponto 5.4.7);
- crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – Entre 2012 e outubro de 2013, o uso das Unidades do Grupo BES na venda de obrigações BES PT, BES LONDON e BES LUXEMBOURG, com prejuízo para o banco computado em 1.033.481.150€ (ponto 5.4.7.2);
- crime de branqueamento, p. e p. nos termos do disposto no art.º 368.º-A, nº1, 2, 3 e 6, do Código Penal – Entre 2009 e 2014, em que os referidos contratos de opção foram a justificação aparente para a incorporação no património da ENTERPRISES, ALPHA MANAGEMENT, e para que assim fossem realizados pagamentos a pessoas físicas e legais, assimilando o produto dos crimes de burla praticados contra o BES, contra o mercado, e no contexto da associação criminosa (ponto 5.4.8);
- crime de branqueamento p. e p. pelo art.º 368-A, nºs 1, 2, 3 e 6 do Código Penal – Em dezembro de 2013, o emprego parcial do produto do crime antecedente, 46.700.000€, no contexto de associação criminosa, na eliminação de passivo ESI (Ponto 7.1.1 entrada na conta escrow);
- crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – Em dezembro de 2013 a venda de EG PREMIUM a SPV, que expunham clientes do Grupo BES, com o prejuízo para estes 98.579.975,00€ (7.1.1).
- crime de branqueamento p. e p. pelo artº 368-A, nos 1, 2, 3 e 6 do Código Penal (por burla e associação criminosa) – Em dezembro de 2013, o produto dos dois crimes antecedentes foi empregue também na eliminação de passivo ESI, (7.1.1. ESAF DEALS);
- crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – Entre janeiro e abril de 2014 com emissões BES LUXEMBOURG, com lesão do BES em 791.400.000€ (7.1.3. BRAX III);
- crime de branqueamento p. e p. pelo artº 368-A, nos 1, 2, 3 e 6 do Código Penal - No primeiro semestre de 2014, o emprego das mais-valias da venda de BES LUXEMBOURG na eliminação de passivo GES, incluindo entradas na conta escrow (7.1.3. BRAX III);
- crime de falsificação de documento p. e p. pelo artº 256º no 1 al. d), por referência ao artº 255º al. a), ambos do Código Penal – Em 28.02.2014, foi feito contrato de apoio ao crime descrito no ponto que antecede (7.1.3.6);
- crime de falsificação de documento qualificada p. e p. pelo artº 256º nºs 1 al. d), e 3 do Código Penal, por referência ao artº 255º al. a) e aos artºs 44º nº 6 do DL 487/99, de 16.11. (atualmente artºs 1º, 45º, 46º, todos da Lei 140/2015, de 07.09), e artº 363º no 2 do Código Civil - com referência à carta de representações para a certificação legal das contas do BES de 09.04.2014 (ponto 7.2);
- crime de falsificação de documento qualificada p. e p. pelo artº 256º nºs 1 al. d), e 3 do Código Penal, por referência ao artº 255º al. a) e aos artºs 44º nº 6 do DL 487/99, de 16.11. (atualmente artºs 1º, 45º, 46º, todos da Lei 140/2015, de 07.09), e artº 363º no 2 do Código Civil - com referência à carta de representações para a certificação legal das contas da ESFG, de 28.04.2014 (ponto 7.2);
- crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal –Em 2014 a unidade BPES fez aplicações fiduciárias dos seus clientes em ESI, gerando um prejuízo para estes de 175.468.697,82€ (ponto 7.5.2);
- crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – No decurso de 2014 a Unidade BPES, na qualidade de agente, permitiu a colocação de dívida ESI em clientes, gerando prejuízos nestes de 220.274.145,83€ (ponto 7.5.3);
- crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º nº 1, 218º nºs 1 e 2 al. a), por referência ao artº 202º al. b), todos do Código Penal – Em 2014, o BES através de linhas de mercado monetário com a ESFIL financiou a ESI, ficando prejudicado em 470.400.000€ (ponto 7.6);
- crime de infidelidade p. e p. pelos artº 224º nº 1 do Código Penal - Em junho de 2014 o BES assumiu o bom cumprimento da emitente ESI no pagamento de dívida colocada em clientes seus, incorrendo em perdas potenciais que se estimam em 267.200.000€ (ponto 7.7).
Por conseguinte, do objecto da acusação tal como foi definido pelo MP são muitos e diversos os factos e crimes imputados aos arguidos, por terem astuciosamente enganado os potenciais investidores no Grupo BES.
No caso do recorrente, que em 2014 investiu 71.825,35 € em acções do BES, só o fez porque estava convencido da robustez financeira do Grupo, conclusão a que erradamente chegou apenas em virtude das condutas criminosas dos arguidos, que muito mascararam e esconderam a verdade dos investidores.
Pode não estar em causa no objecto da acusação o aumento do capital social que em concreto o recorrente subscreveu, mas é inquestionável que só comprou tais participações sociais porque foi enganado por factos e crimes constantes da acusação.
Face ao exposto, mesmo tendo em conta o objecto do processo, o aqui recorrente pode continuar a ser considerado ofendido e, como tal, tem o direito de se constituir assistente, ao abrigo da al. a), do n.º 1, do art.º 68.º, do CPP.
E assim procede o presente recurso.
*
IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, e, em sequência, determinar que o recorrente deve ser admitido a intervir nos autos como assistente.
Sem custas.

Lisboa, 21 de Dezembro de 2021
Paulo Barreto
Manuel Advínculo Sequeira