Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | MARIA TERESA LOPES CATROLA | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE PASSAGENS DA GRAVAÇÃO INOBSERVÂNCIA REJEIÇÃO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/22/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | (elaborado pela relatora - artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil): «1. A referência nas alegações aos depoimentos das testemunhas em audiência, com transcrição integral dos mesmos, e aos períodos de tempo de cada um dos seus depoimentos não satisfaz o ónus legal de especificação referido no artigo 640/2-a) do CPC. 2. As palavras “concreto” e “exactidão” contidas nas alíneas do artigo 640 do CPC constituem os critérios para aferir do cumprimento do ónus a cargo do apelante. E este ónus não se verifica quando o apelante não indica quais os concretos pontos de facto que consideram merecerem diferente resposta e qual a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto que concretamente deveria ter impugnado. Este ónus também não se verifica quando o apelante também não indica, com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso nem transcreve os excertos que considera relevantes (é manifesto que o recorrente não cumpre este ónus, quando reproduz a totalidade de cada um dos depoimentos das testemunhas referidas, desde a sua identificação à sua despedida da sala de audiências).» | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes que compõem a 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório “A…, Ldª” intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “B…, SA” e C…, peticionando que: 1. Seja reconhecido o direito de propriedade da autora sobre a viatura Ferrari 488 GTB, preto, matrícula …. E ainda, 2. Sejam os réus condenados a entregarem à autora o requerimento do registo automóvel da viatura Ferrari 488 GTB, preto, matrícula … a favor da autora. E ainda, 3. Sejam os 1.º e 2.º réus condenados a título de sanção pecuniária compulsória no montante de 100€/dia, a contar da citação da presente ação até ao preenchimento e registo do automóvel a favor da autora. Alegou, para tanto, e em síntese, que o 2º réu colocou a viatura em causa nas instalações da 1ª ré e mandatou-a para proceder à venda da mesma; o legal representante da autora celebrou com a 1ª ré um contrato de compra e venda da dita viatura, tendo feito o pagamento integral do preço e recebido a documentação do veículo, com exceção do requerimento do registo automóvel; o representante da 1ª ré disse estar com problemas financeiros e, por isso, não conseguiu entregar o montante devido ao proprietário da viatura, o 2º réu, que disse que não assinava o requerimento enquanto não recebesse a totalidade do valor combinado. O 2.º réu contestou, alegando em síntese, que desconhece o negócio invocado pela Autora, nunca autorizou nem mandatou a 1ª Ré para o efeito, tratando-se de venda de bem alheio, pelo que, é nula. Deduziu pedido reconvencional de condenação da Autora a entregar-lhe o veículo, devendo ainda ser condenada em sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na entrega do mesmo, em valor a fixar pelo Tribunal. Juntou documentos. A Autora replicou, pugnando pela improcedência da reconvenção e concluindo como na Petição Inicial. Foi realizada audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio, enunciados os temas da prova e agendada a audiência final. Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, que culminou com o seguinte dispositivo: “Em face do exposto, julga-se: a) a presente ação procedente e, consequentemente, decide-se reconhecer e declarar a Autora como proprietária do veículo Ferrari 488 GTB, de cor preta, com a matrícula …, absolvendo-se os Réus do mais peticionado; b) improcedente o pedido reconvencional. Custas pelos Réus.” O 2.º réu, não se conformando com a sentença proferida nos autos, vem interpor recurso de apelação da sentença proferida pedindo que tal sentença seja revogada e substituída por decisão que declare a improcedência total do mandato sem representação, restituindo-se o veículo automóvel ao recorrente, seu proprietário, enquanto o 1.º réu não proceder ao pagamento do montante devido. No recurso apresentado o réu pretende também impugnar a decisão sobre a matéria de facto. O recorrente apresenta as seguintes conclusões: “1. O Recorrente deixou o veículo da marca Ferrari 488 GTB, matrícula …, no stand da 1ª Ré, acompanhado dos documentos, apenas para que fosse publicitado e encontrado um interessado na compra, que seria vendido após todas as partes acordarem no preço de venda. 2. A 1ª Ré é uma sociedade comercial que se dedica à comercialização de viaturas de luxo. 3. A venda seria o recorrente a fazê-la, se algum interessado na compra lhe fosse apresentado e aceitasse o preço e este lhe fosse a si, diretamente pago; 4. A indicação dada pelo recorrente ao 1º Réu foi que, quando surgisse um comprador, seria contactado para o conhecer e ser celebrado o negócio. 5. O que veio a acontecer foi que, o sócio gerente da Autora entrou em contato telefónico com o representante da 1ª Ré e deslocou-se ao stand onde pôde ver a viatura e discutir os detalhes e condições do negócio. 6. Foi acordado entre Autora e 1º Réu o valor de venda da viatura em €205.000,00, valor que nunca foi comunicado ao Recorrente para aceitação ou ratificação, que só veio a conhecer posteriormente que o negócio se havia, efectivamente, concretizado. 7. O sócio gerente da Autora fez uma transferência de €5.000,00 para reservar a viatura em 2 de agosto de 2021 ao stand. 8. Nessa mesma data, Autora e 1ª Ré subscreveram um “contrato de compra e venda de viatura usada”, sem alteração do registo de propriedade pois não era possível sem o conhecimento pelo recorrente que a venda se iria concretizar, com referência à mara/modelo Ferrari 488 GTB, preto, matrícula …., chassis número ….04, nos termos do qual a 1ª Ré receberia o remanescente do preço com a entrega da viatura e, contra o pagamento desse preço e entrega da viatura, a 1ª Ré entregaria a Autora os seguintes documentos e equipamentos: - Livrete; - Folha de Inspeção; - Declaração de circulação; - Fatura de compra; - Pneu suplente ou kit de reparação; - Colete e Triângulo. 9. Os documentos e equipamentos supra referidos foram todos entregues, assim como as sucessivas declarações de circulação, com excepção do requerimento de registo automóvel assinado, pois estava em falta a definição do preço de venda. 10. No dia 6 de agosto de 2021, a Autora fez o pagamento do remanescente do preço, no valor de €200.000,00. 11. O único elemento que ficou em falta foi o requerimento do registo automóvel. 12. Corria já o ano de 2022 quando o 1º Réu informou o legal representante da Autora que estava com problemas financeiros e não estava a conseguir entregar todo o montante ao proprietário da viatura, ora recorrente, e que este não assinava o requerimento enquanto não recebesse a totalidade do valor combinado. 13. Decorrente da sentença proferida nos autos de processo ....9T8LSB, datada de 23/05/2024, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz …, veio a decisão julgar procedente a ação interposta pela Autora e consequentemente reconhecer e declarar a Autora como proprietária do veículo Ferrari 488 GTB, de cor preta, com a matrícula …, absolvendo-se os Réus do mais peticionado e improcedendo o pedido reconvencional. 14. Desta forma, entende-se que o Tribunal a quo, deveria ter tido em conta o facto, de o Recorrente ser o único e legitimo proprietário do veículo automóvel, por força do registo de propriedade, constante na Conservatória do Registo Automóvel, que é prova bastante da existência do direito de propriedade invocado pelo próprio. 15. Que, apesar de ter entregue o veículo ao stand para que este o publicitasse, certo é que o Recorrente nunca assinou qualquer contrato ou procuração que desse poderes ao mesmo para efetuar a venda do veículo e a mesma foi efetuada sem o seu conhecimento e sem a sua autorização. 16. Sendo certo que, revestindo o preço da coisa o elemento essencial de qualquer venda, a sua aceitação e conhecimento é, por natureza, condição também essencial e necessária para a concretização da venda. 17. Porquanto, independentemente, da entrega das chaves ao stand e do negócio realizado entre o Recorrente e o Stand, certo é que a propriedade não foi transmitida ao 2º Réu, por ser o Recorrente alheio ao negócio e não produzir o mesmo, qualquer efeito na sua esfera jurídica, nunca poderíamos estar perante um mandato sem representação. 18. Ora, tal declaração manifesta apenas poderia ser transmitida de forma expressa para que a mesma pudesse ser válida, ou seja, por referência ao preço da coisa. 19. Para que qualquer negócio pudesse ser realizado, sempre teria o Recorrente de, primeiramente, conhecer os seus elementos essenciais, o que nunca ocorreu durante todo o processo de negociação entre a Autora e o stand, sendo o Recorrente completamente alheio à celebração de qualquer negócio jurídico entre ambos. 20. Desta forma seriam elementos essenciais e requisitos da eficácia de uma eventual compra e venda, o conhecimento das condições do negócio por parte do Recorrente nomeadamente o preço de venda do mesmo. 21. Insurge-se também o recorrente contra a decisão de considerar ter ele agido, na compra e venda do automóvel, onde interveio o 1º Réu na qualidade de vendedor, como seu mandatário, em nome próprio e sem poderes de representação. 22. Pois, do factualismo provado na douta sentença, não resulta minimamente provado o indispensável acordo de vontades que revele que o recorrente encarregou o 1º Réu de vender o veículo automóvel referido e sobretudo aceitou essa incumbência e se obrigou a transmitir à Autora o dito automóvel. 23.Não resulta de qualquer depoimento testemunhal, em especial aqueles que a Julgadora entendeu como essencial para a motivação da sentença recorrida ou sequer de qualquer prova documental, que o 1º Réu tenha sido mandatado, com ou sem representação pelo recorrente. 24. Ora, inexistindo qualquer prova a tal respeito, por mínima que fosse, não poderia este ser condenado nos termos em que o foi, até porque nenhuma prova existe que possa sustentar tal condenação, sendo assim evidente a nulidade da persente sentença, “in casu”, ao abrigo do disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea b) do CPC, que ora se invoca. 25. Assim, por manifesta violação do disposto nos artigos 1157.º, 1180.º e 1181.º, nº 1 do CC, deve a sentença ser revogada. Mesmo que porventura se viesse a considerar existir tal contrato de mandato sem representação, o que não se concebe nem concede, sempre o mesmo está ferido de nulidade. 26. Para sustentar a defesa do recorrente teria sido necessário, que tivessem sido levados à base instrutória, factos que contrariassem a existência de um contrato de mandato sem representação, pois ao abrigo do mesmo, o consentimento para a venda apenas é dado e só após o conhecimento dos elementos essenciais do negócio, nomeadamente o conhecimento do preço pelo vendedor (ora Recorrente). 27. Pois, pressuposto do consentimento para que o mesmo se concretize, elemento basilar do negócio de compra e venda de um veículo automóvel, é exatamente, o preço. Como seria possível se o recorrente desconhecia o preço da venda e as condições essenciais do negócio, aliás desconhecendo a própria venda, não deu nem poderia ter dado o seu consentimento, sendo certo que nunca o deu. Aliás, nem tão pouco ratificou alguma vez o negócio. 28. No mandato sem representação, o mandatário, conquanto intervenha por conta e no interesse do mandante, atua em seu próprio nome e não em nome do mandante, pelo que é o mandatário quem adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos atos celebrados. Ainda que assim, fosse, ficaria porém, o 1º Réu, constituído na obrigação de transferir para o recorrente os direitos adquiridos em execução do mandato. Pois não mais quis do que apropriar-se de um bem que não lhe pertencia. 29. Desta forma entende-se que o Tribunal a quo, deveria ter tido em conta o instituto do enriquecimento sem causa, porque houve significativamente o enriquecimento do 1º Réu e o empobrecimento do ora recorrente. Havendo manifesto nexo causal entre aquele e este. E sobretudo a falta de causa justificativa desse enriquecimento. 30. Sendo legitimo ao recorrente, se assim for, reclamar a quantia de €205.000,00, ou em alternativa, seja reconhecido que o 1º Réu agiu como mandatário, em nome próprio, mas por conta e no interesse do recorrente, sem o seu consentimento e em consequência condenado a reconhecer que o recorrente é o verdadeiro proprietário do veículo automóvel. 31. Só com o pagamento ao efetivo titular do veículo, constante da certidão do registo automóvel, do preço por este pretendido, se poderá efetivamente transmitir a propriedade do veículo automóvel, por ora do Recorrente. 32. Conforme decorre dos autos e da prova produzida o 1º Réu e as testemunhas, invocaram factos que bem sabiam que não eram verídicos e que não podiam deixar de ser do seu conhecimento pessoal. 33. Em relação à fundamentação de facto, a decisão do tribunal a quo, quanto à matéria de facto provada teve por base a confissão e análise conjugada e critica da prova produzida, nomeadamente: dos documentos juntos (os comprovativos das transferências de €5.000,00 e de €200.000,00; cópia do “contrato de compra e venda de viatura usada”; cópia do certificado de matrícula; do certificado de inspeção técnica periódica do IMT; “Declaração de circulação” emitidas pela 1ª Ré; fatura e recibo referentes ao pagamento do preço acordado. 34. Do depoimento/declarações do Réu, ora Recorrente, C…, constantes do processo e do registo da gravação da audiência realizada, resultou claro e evidente, que a sua intenção nunca foi a de vender o veículo em causa, pelo depoimento do mesmo, o mesmo encontrava-se exposto no stand do 1º Réu, para ser mostrado. 35. Este depoimento, impunha, desde logo, decisão sobre a matéria de facto impugnada, diversa da recorrida; 36. Pois foi valorado e entendido, pelo tribunal a quo, precisamente o contrário, de acordo com a sentença, a páginas 5, ou seja, - “do depoimento/declarações do Réu – C…” resultou claro que a sua intenção foi a de vender o veículo em causa, uma vez que adquiriu um novo, da mesma marca, tendo começado por pô-lo à venda na Ferrari e, não tendo conseguido que fosse aí vendido, transferiu-o para o stand da 1ª Ré, que lhe disse que arranjava um comprador e que já conhecia bem, até porque o havia aí adquirido em 2015, esclarecendo que estes carros não são fáceis de vender particularmente.” 37. Não há de todo intenção de vender. Como haveria intenção de vender se não estipularam, acordaram, valores quanto ao preço! 38. Da transcrição resulta claro: “00:04:03 a 00:04:10 – C…: “Comprei um Ferrari na Ferrari e nessa altura deixei lá esse Ferrari que eu tinha na Ferrari para vender.” 00:04:11 a 00:04:46 – C…: “E ele sabendo que eu tinha lá esse carro para vender, disse-me assim, ‘Eh Pá, Eu sou capaz de arranjar comprador para o carro. E o carro a data do 2 de dessa data. O carro tinha um valor de tabela de mercado de 230 mil euros, 240. Pronto, por aí assim. A Ferrari também foi a mesma coisa. Deixei lá na Ferrari eles disseram, ‘olha, vou ver se lhe arranjo um comprador. Se arranjar um comprador, faço-lhe uma proposta. Consoante o que a gente vender, a gente depois fica com uma comissão, mas você toma a decisão se quer vender ou não, portanto, consoante o valor que for… Portanto, porque esses carros é um carro que não se vende facilmente na, eu não conseguia chegar à Internet e vender um carro desses, não é, não é fácil.” 39. Aliás, ao contrário do salientado, na douta sentença, o discurso do ora Recorrente, nunca foi contraditório e pouco coerente, basta ler o que disse, em sede de audiência, para perceber que nunca permitiu a execução de um mandato sem representação. 40. Salienta ainda a douta sentença, sobre o depoimento do ora Recorrente, que “em agosto, decidiu não vender ( não se sabe porquê) e que nessa altura D… lhe disse que “ já o tinha vendido” mas nunca falaram de valores (!) ( nem ele terá perguntado!!),para depois dizer que “ainda andou um tempo a falar com o … que lhe dizia que lhe ia dar o dinheiro”! Perguntando sobre qual dinheiro (?) já disse que “iam fazer contas”. 41. A esse propósito é clara a transcrição do depoimento e contrária à douta sentença: 00:05:43 a 00:06:15 – C…: “Entre… Entre junho e agosto por aí assim. Foi nessa, foi entre essa época, porque eu depois tirei o carro, então, daqui da Ferrari e ele disse-me, “deixa-me aqui o carro” e eu deixei lá o carro com uma chave. “Deixe-me os documentos”, até lhe deixei o meu seguro “porque eu tenho que mostrar o carro. Se for para mostrar o carro”. Eu deixei-lhe uma chave, tenho a outra chave comigo, e deixei-lhe os documentos e vou de férias. Entretanto, ele faz-me 2 chamadas, “Olhe, nós temos aqui uma proposta”, porque ele tinha sempre de me informar as propostas, se é que havia propostas, porque eu tinha que concordar ou não.” 00:06:14 – Mandatário da Autora: “Não sabemos” 00:06:15 a 00:07:25 – C…: “Entretanto, e ele telefona-me e disse-me “Olhe, tenho aqui um cliente que tem um Ferrari de 97/98, salvo erro. E nós ficamos com esse Ferrari à troca e mais parte do dinheiro”, e eu disse, “Não quero, eu quero venda direta e quero o dinheiro, não quero trocas, não quero receber trocas. Pronto, ele comunicou-me dois negócios desses. Outro deles era um salvo erro, um Aston Martin, também à troca e mais dinheiro e eu disse ‘Não quero”. Isto passou-se. Entretanto, e agosto, quando eu venho para cima, disse à minha esposa, ‘olha, é pá, não vou vender o carro. Olha vou para cima, vou telefonar ao D… que já não vende o carro e vou ficar com o carro. Foi quando eu lhe disse: “Oh D…, olha, você, é pá, não venda o carro que eu vou buscar o carro.” “E já o vendi, foi quando ele disse, Eu já vendi o carro.” “Já vendeu o carro, então não me informa que já vendeu o carro.” “C…, eu vou tirar uma comissão, mas a gente depois faz contas e tal eu já o vendi.” “Nunca me disse a quem, entretanto, deu através do seguro. Consegui saber quem é que tinha o carro, foi aí que soube quanto é que o carro tinha sido vendido, porque eu não fui informado sequer por quanto é que foi vendido? Falei com um senhor, que era o senhor E…”. 42. Pois foi desta forma que se passou, diversa da recorrida! 43. Refere ainda a douta sentença, que… “Disse ainda que foi ele quem chegou ao “proprietário”, “através do seguro(?), que foi quem lhe disse o valor da compra. Referiu ainda que o “valor de referência” era 230/240 mil euros e que o que queria era que ele (o D…) lhe pedisse para assinar o registo, porque era sinal que lhe ia dar o dinheiro! 44. Nesse sentido e totalmente contrário, o que levou a uma incorreção dos factos julgados, o depoimento seguinte: 00:23:44 a 00:23:50 – C…: “Eu soube o valor através do senhor E…, salvo erro, que é E…, é que me disse ‘Ah eu comprei por 200…” 00:23:50 a 00:23:56 – Magistrado Judicial: “E quando o senhor diz que ficou ali um tempo a ver se ele lhe entregava o dinheiro. Qual era o dinheiro?” 00:23:56 a 00:24:02 – C…: “Não. Ele não chegou a referir. Tanto é que ele andou-me a encobrir sempre até que tinha vendido o carro. Ele andou-me a encobrir.” 45. No que se reporta às declarações do legal representante da Autora – E…, refere a douta sentença o seguinte: “resultou clarificada a forma como chegou ao anúncio de venda e quais os termos da negociação, nomeadamente as informações que lhe foram prestadas pelo representante da 1ª Ré no que se refere à relação com o ora 2º Réu; disse ainda que tomou a iniciativa de contactar o ora 2ª Réu, telefonicamente, no inicio de 2022, tendo-lhe sido por este dito que enquanto não recebesse o pagamento do stand não ia assinar nada, esclarecendo ainda que nunca foi abordado o tema da entrega do carro”. 46. Mais uma questão julgada incorreta do ponto de vista do ora Recorrente. 47. Em relação às testemunhas, os seus depoimentos em nada contribuíram para a valoração da verdade. 48. Refere ainda a douta sentença… “Da análise conjugada da prova, à luz das regras da experiência comum, não se mostra crível a versão do 2º Réu. Basta questionar a que titulo se predispunha o representante da 1ª Ré a ter o carro em “depósito” e a “mostrá-lo” sem qualquer contrapartida, quando é certo que o seu negócio era, reconhecidamente, o de venda de veículos daquela gama e, por outro lado, qual a razão de o 2ª Réu não ter tomado qualquer iniciativa sendo, ainda hoje, a sua verdadeira preocupação o recebimento “do dinheiro”(ainda que diga não saber qual o seu valor!).” 49. Mais uma vez, essa prova foi mal valorada e incorretamente julgada, tal como pode ser comprovada da transcrição efetuada. 50. Ora, perante tais contradições em sede de sentença, e inteligibilidade, nada mais resta referir, que se entende, a reapreciação da matéria de facto. 51. Sem prejuízo, da aplicação do direito aos factos provados. 52. E porque vem a douta sentença, justificar a venda efetuada ao abrigo de um mandato sem representação. 53. No entanto, ainda que ao abrigo de tal regime, o consentimento é dado apenas e só após o conhecimento dos elementos essenciais do negócio. 54. Pressuposto do consentimento para que a mesma se concretize. 55. E o elemento basilar do negócio de venda de veículo automóvel, e tantas outras, é exatamente, o preço. 56. Desconhecendo o ora Recorrente o preço da venda e as condições essenciais do negócio, aliás desconhecendo a própria venda, não deu, nem poderia ter dado o seu consentimento, que não deu e tampouco ratificou. 57. É no mínimo estranho que alguém, no caso os representantes da Autora, tivessem efetuado um pagamento autónomo de valor avultado, por uma viatura automóvel sem se certificarem de assegurar de imediato o registo da viatura em nome próprio. 58. Em face das circunstâncias supervenientes alegadas, fazia todo o sentido ouvir novamente, em sede de audiência e julgamento todas as partes envolvidas no presente litígio. 59. Termos em que dando V. Exas., provimento ao recurso e substituindo a sentença recorrida por outra que determine a renovação da prova e ordenação de novos meios de prova, farão a costumada justiça”. A autora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso. Alinha as seguintes conclusões: “1. Perante a factualidade dada como provada e não provada, a decisão não poderia ser outra. 2. No entanto, como questão prévia, importa salientar que o presente recurso não tem como objeto a apreciação da matéria de facto, porquanto, em momento algum nas conclusões o 2º Réu/Recorrente cumpre com o ónus consagrado no artigo 640º do CPC, tal como se fundamenta no capítulo A das presentes contra-alegações, para onde remetemos por uma questão de economia processual. 3. A AUTORA/RECORRIDA É A LEGÍTIMA PROPRIETÁRIA DO FERRARI 488 GTB, MATRÍCULA …, TAL COMO JULGOU NÃO SÓ O TRIBUNAL A QUO, MAS TAMBÉM O JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LISBOA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA (JUIZ …) E O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, NO PROCESSO N.º …SB. 4. O 2º Réu/Recorrente colocou o Ferrari nas instalações da 1ª Ré com o único objetivo de proceder à sua venda, tal como resulta do ponto 2. dos factos provados e alínea a) dos factos não provados, não tendo o 2º Réu/Recorrente impugnado os mesmos. 5. De acordo com as regras da experiência comum, não tem o menor cabimento lógico que o 2º Réu/Recorrente entregara o veículo para que o 1º Réu apenas o publicitasse, tal como se fundamenta nos artigos 29 a 35 do capítulo B, para onde remetemos por uma questão de economia processual. 6. FOI O PRÓPRIO TRIBUNAL A QUO QUE CONSIDEROU A O DISCURSO DO 2º R. “CONTRADITÓRIO E POUCO COERENTE”! Pelo que, 7. Se a única prova que conseguiu produzir foram as suas declarações tidas como não credíveis, nunca a decisão poderá ser alterada, quanto mais não seja, por falta de prova. 8. Todo o depoimento do 2º Réu/Recorrente revela que a sua verdadeira preocupação é a de receber o dinheiro e não a de questionar a validade da venda. A este respeito, note-se as declarações do 2º Réu/Recorrente durante os minutos 00:08:49 a 00:08:50 e 00:09:35 a 00:09:38, transcritas nos artigos 37 e 38 do capítulo B, respetivamente, para onde remetemos por uma questão de economia processual. 9. Aliás, o próprio Tribunal a quo, na fundamentação da decisão de facto, alerta para isso mesmo, para além de dar como provado que o 2º Réu/Recorrente não assinava o requerimento de registo automóvel enquanto não recebesse a totalidade do valor combinado – cfr. ponto 12 dos factos provados. 10. Neste sentido, dúvidas não existem de que o 2º Réu/Recorrente quis, efetivamente, proceder à venda do referido veículo automóvel, existindo entre ele e a 1ª Ré um mandato sem representação, tal como se demonstra nos artigos 47º a 58º do capítulo B, para onde remetemos por uma questão de economia processual, sendo também este o entendimento do Tribunal a quo. 11. Por força de tal instituto, a 1ª Ré estava devidamente legitimada a proceder à venda do Ferrari, não conseguindo o 2º Réu/Recorrente provar que não tinha acordado vender o carro. 12. As declarações do 2º Réu/Recorrente na audiência de julgamento são incoerentes e contraditórias, tal como realça o Tribunal a quo na fundamentação da decisão de facto e que aqui reproduzimos: “de resto, o seu discurso foi contraditório e pouco coerente. Disse que, em agosto, decidiu não vender (não se sabe porquê), e que nessa altura D… lhe disse que já o tinha vendido, mas nunca falaram de valores (!) (nem ele terá perguntado!!), para depois dizer que ainda andou um tempo a falar com o Fraga que lhe dizia que lhe ia dar o dinheiro! Perguntando sobre qual dinheiro (?) já disse que iam fazer contas” (negrito nosso). 13. E sem esquecer que o 2ª Réu/Recorrente e a 1ª Ré haviam já celebrado negócios de compra e venda de automóveis de topo de gama juntos, tal como é mencionado no artigo 35º do capítulo B, para onde remetemos por uma questão de economia processual. 14. Assim sendo, nunca poderão proceder os argumentos invocados pelo 2º Réu/Recorrente, por não terem qualquer suporte na letra da lei, nem da jurisprudência, como se fundamenta nos artigos 65º a 73º do capítulo B, para onde remetemos por uma questão de economia processual. 15. Sendo o contrato de compra e venda do Ferrari 488 GTB, matrícula … celebrado entre a Autora/Recorrida e a 1ª Ré perfeitamente válido e eficaz. Concretizando, 16. É entendimento da jurisprudência, em casos semelhantes a estes, o reconhecimento da existência do mandato sem representação. 17. A 1ª Ré estava devidamente legitimada a proceder à venda da viatura Ferrari 488 GTB, matrícula …. 18. Uma vez celebrado o contrato de compra e venda, o direito de propriedade da referida viatura transmitiu-se para a esfera jurídica da Autora/Recorrida por mero efeito contrato, nos termos do artigo 408º, n.º 1 do CC. 19. Sendo a Autora/Recorrida a legítima proprietária da viatura Ferrari 488 GTB, matrícula …. 20. Em conformidade com as conclusões supra formuladas e com a factualidade provada, deve o presente recurso ser julgado improcedente e manter-se a decisão recorrida”. Admitido o recurso e colhidos os vistos cumpre decidir. II. Questões a decidir: Sabendo que o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a apreciar, no caso concreto, consistem: - Na apreciação da arguida nulidade da sentença- artigo 615-b) do CPC. - Na reapreciação da matéria de facto. - Na apreciação do mérito da ação. III – Fundamentação de Facto. Em sede de sentença, fixou o tribunal a quo, a seguinte Factualidade: “II - FUNDAMENTOS DE FACTO 1. A 1ª Ré é uma sociedade comercial que se dedica à comercialização de viaturas de luxo. 2. O 2º Réu colocou a viatura Ferrari 488 GTB, matrícula …, nas instalações da 1ª Ré para que fosse colocada à venda. 3. O sócio-gerente da Autora fez uma pesquisa online e ficou agradado com a referida viatura, que se encontrava anunciada pela 1ª Ré por €210.000,00. 4. O sócio-gerente da Autora entrou em contato telefónico com o representante da 1ª Ré, D…, e deslocou-se ao stand onde pôde ver a viatura e discutir os detalhes e condições do negócio. 5. Nessa sequência, D… indicou que a viatura era de um cliente habitual (o 2º Réu) que havia ganho o Euromilhões, afirmando até que tinha sido o próprio a vender a viatura ao 2º Réu quando este a comprou. 6. Foi acordado, com D…, o valor de venda da viatura em €205.000,00. 7. O sócio-gerente da Autora fez uma transferência de €5.000,00 para reservar a viatura em 2 de agosto de 2021. 8. Nessa mesma data, Autora e 1ª Ré subscreveram um “contrato de compra e venda de viatura usada”, com referência à marca/modelo Ferrari 488 GTB, preto, matricula …, chassis número ….04, nos termos do qual a 1ª Ré receberia o remanescente do preço com a entrega da viatura e, contra o pagamento desse preço e entrega da viatura, a 1ª Ré entregaria à Autora os seguintes documentos e equipamentos: - Livrete; - Folha de Inspeção; - Declaração de circulação; - Fatura de compra; - Pneu suplente ou kit de reparação; - Colete e Triângulo. 9. Os documentos e equipamentos supra referidos foram todos entregues, assim como as sucessivas declarações de circulação. 10. No dia 6 de agosto de 2021, a Autora fez o pagamento do remanescente do preço, no valor de €200.000,00. 11. O único elemento que ficou em falta foi o requerimento do registo automóvel. 12. Corria já o ano de 2022 quando D… informou o legal representante da Autora que estava com problemas financeiros e não estava a conseguir entregar todo o montante ao proprietário da viatura, ora 2º Réu, e que este não assinava o requerimento enquanto não recebesse a totalidade do valor combinado. * Com interesse para a boa decisão da causa, não resultou provado que: a) o 2º Réu deixou o veículo no stand da 1ª Ré, acompanhado dos documentos, apenas para que fosse publicitado e encontrado um interessado na compra mas não para ser vendido; b) a venda seria o Réu a fazê-la, se algum interessado na compra lhe fosse apresentado e aceitasse o preço e este lhe fosse a si (diretamente) pago; c) a indicação dada pelo Réu a D… foi que, quando surgisse um comprador, seria contactado para o conhecer e ser celebrado o negócio. * O demais alegado mostra-se instrumental ou conclusivo ou consubstancia matéria de direito”. IV. Da nulidade da sentença As causas de nulidade da Sentença vêm taxativamente enunciadas no art.º 615º nº 1 do Código de Processo Civil (antigo art.º 668º nº 1), onde se estabelece que é nula a sentença: - Quando não contenha a assinatura do juiz (al. a)). - Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b)). - Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c)). - Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. d)). - Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (al. e)). O Prof. Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pg. 297), na análise dos vícios da Sentença enumera cinco tipos: - vícios de essência; - vícios de formação; - vícios de conteúdo; - vícios de forma; - vícios de limites. Refere o mesmo Professor (in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pg. 308), que uma Sentença nula “não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia”. Por seu turno, o Prof. Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil”, pg. 686), no sentido de delimitar o conceito, face à previsão do art.º 668º do Código de Processo Civil (actual art.º 615º), salienta que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”. Lebre de Freitas (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, pgs. 668 e 669) considera que apenas a “falta de assinatura do juiz” constitui fundamento de nulidade, pois trata-se de “um requisito de forma essencial. O acto nem sequer tem a aparência de sentença, tal como não tem a respectiva aparência o documento autêntico e o documento particular não assinados”. A respeito das demais situações previstas na norma, considera o mesmo autor tratar-se de “anulabilidade” da sentença e respeitam “à estrutura ou aos limites da sentença”. Entende o recorrente que a sentença proferida é nula, invocando a alínea b) do artigo 615/1 do CPC- “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. Salvo melhor opinião, a patologia que o recorrente invoca assenta na circunstância de na decisão recorrida se terem dado como provados certos factos e como não provados outros (sendo certo que não concretiza nem uns nem outros). Ora, a patologia que esta alegação do recorrente convoca é um erro de julgamento da matéria de facto, enquadrável no artigo 662/1 do CPC, mas nunca uma nulidade da sentença. Assim, face ao exposto, improcede a arguição da nulidade da sentença recorrida deduzida pelo recorrente. V. Da reapreciação da matéria de facto. 5.1. Admissibilidade do recurso da impugnação da matéria de facto O actual Código de Processo Civil introduziu um duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, sujeitando a sua admissão aos requisitos previstos pelo art.º 640º do Código de Processo Civil. Embora tal reapreciação tenha alcançado contornos mais abrangentes, não pretendeu o Legislador que se procedesse, no Tribunal Superior, a um novo Julgamento, com a repetição da prova já produzida nem com o mesmo limitar de alguma forma o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção acerca de cada facto controvertido. Apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no art.º 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o Tribunal de recurso não pode já recorrer. Para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada convicção, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos ou com outros factos que deu como assentes. Posto isto, para que o Tribunal Superior assim se possa pronunciar sobre a prova produzida e reapreciar e decidir sobre a matéria de facto, sem que tal acarrete na verdade todo um novo julgamento e repetição da prova produzida, impõe-se à parte que assim pretende recorrer que cumpra determinados requisitos, previstos no citado art.º 640º do Código de Processo Civil: “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto 1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.” Como sintetiza Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 7ª Ed., págs. 197 e 198, o recorrente deve: - Indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; - Especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; - Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considera oportunos; - O recorrente pode sugerir à Relação a renovação da produção de certos meios de prova, nos termos do artigo 662º, n.º 2, a), ou mesmo a produção de novos meios de prova nas situações referidas na alínea b); - O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente. Concomitantemente, o recurso deve ser rejeitado, total ou parcialmente, sempre que se verifique alguma das seguintes situações: - Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, conf. art.º 635º, n.º 4 e 641º, n.º 2, b); - Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados – art.º 640º, n.º 1, a); - Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados; - Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; - Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação. A inobservância destes requisitos leva à rejeição (total ou parcial) do recurso para reapreciação de matéria de facto sem possibilidade de aperfeiçoamento (como defendido por Abrantes Geraldes, ob. cit., pg. 199). Este também é o entendimento plasmado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/6/2021, Proc. n.º 10300/18.8T8SNT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt e onde pode ler-se: “Tal como se fez dogmática na jurisprudência do STJ, “é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…); e [em referência ao art.º 640º, 2] um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida” [V. Ac. De 20/10/2015, processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, Rel. Lopes do Rego, in www.dgsi.pt. Mais recentes: Acs. de 21/3/2019, processo n.º 3683/16.6T8CBR.C1.S2, Rel. Rosa Tching, e de 17/12/2019, processo n.º 363/07.7TVPRT-D.P2.S1, Rel. Maria da Graça Trigo, in www.dgsi.pt.]. Estes ónus assumem-se verdadeiramente como “garantia de um julgamento equitativo das questões de facto e da legitimidade da decisão que sobre elas venha a recair, com observância dos princípios do contraditório e do tratamento igual das partes. Por outro lado, o legislador terá sido cauteloso em não permitir a utilização abusiva ou facilitação do mecanismo- remédio de impugnação da decisão de facto. Aliás, mal se perceberia que o impugnante atacasse a decisão de facto sem ter bem presente cada um dos enunciados probatórios e os meios de prova utilizados ou a utilizar na sua fundamentação cirúrgica. Daí a cominação severa da sua imediata rejeição” [Atenta a jurisprudência abundante do STJ sobre este regime, v., com este ênfase, o Ac. de 17/3/2016, Processo n.º 124/12.1TBMTJ.L1.S1, Rel. Tomé Gomes, in www.dgsi.pt,]. De acordo com a doutrina processualista, as referidas exigências legais “devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” [Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, sub art.º 640º, págs. 201-202.], “sem real mais valia funcional ”[Convergente: Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546.º a 1085.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, sub art.º 640º, pág. 142.]. Esse rigor deve ser filtrado pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a fim de não ser denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontrem sustentação clara na letra e no espírito do legislador, dando prevalência aos aspectos de ordem material. Assim, “[o]s aspetos fundamentais a assegurar neste campo são os relacionados com a definição clara do objeto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova que são indicados ou em meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido” [ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art.º 640º, pág. 208.] De todo o modo, esta impugnação não pode deixar de ser relacionada com o ónus de formulação de conclusões, cominado, em caso de incumprimento, com o indeferimento do recurso. Tendo presentes tais regras e pressupostos orientadores e exigíveis, para que ao Tribunal da Relação seja lícito alterar a decisão do Tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto, e tal como bem nota Abrantes Geraldes (in “ Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, 2010, pg. 152), dir-se-á que o legislador (“maxime” com as alterações introduzidas na lei adjectiva aquando da publicação do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/8) veio introduzir mais rigor no modo como deve ser apresentado o recurso de impugnação da matéria de facto, com a indicação exacta dos trechos da gravação, com referência ao que tenha ficado assinalado na acta. Postas estas breves considerações, há que verificar se logrou o recorrente cumprir a sua obrigação processual. Comecemos desde logo por enfatizar duas palavras repetidas nas alíneas do artigo 640 do CPC: “concretos” e “exatidão”. Ora, lendo as alegações de recurso do recorrente logo se constata que as mesmas estão longe de cumprir o ónus de alegação previsto na referida disposição legal: o recorrente insurge-se contra a decisão da matéria de facto, mas não concretiza qual os quais os factos que no seu entender mereceriam diferente resposta. Quais são então o facto ou os factos que o recorrente considera incorrectamente julgado(s)? Não o(s) indica(m). Falta a concretização dos factos cuja reapreciação pretende. Não fazendo esta concretização, falta, no seguimento dessa omissão, a redação proposta para o(s) facto(s) impugnado(s). O recorrente também não indica, com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso nem transcreve os excertos que considera relevantes (é manifesto que o recorrente não cumpre este ónus, quando reproduz a totalidade de cada um dos depoimentos das testemunhas, declarações/depoimento de parte do réu e declarações do legal representante da autora, desde a sua identificação à sua despedida da sala de audiências, e também, pasme-se, das alegações proferidas pelos ilustres mandatários das partes, sendo que apenas nas conclusões 38, 41 e 44 transcreve alguns segmentos das declarações de parte/depoimento do recorrente/réu com indicação, logo no início, dos timings da gravação. É manifesto que esta referência indiscriminada e genérica de toda a prova produzida no tribunal a quo não satisfaz o ónus legal de especificação: remete para o tribunal a tarefa de escolher as passagens relevantes de onde o recorrente pretende extrair as conclusões factuais desejadas (que, insiste-se, o tribunal de recurso, desconhece quais sejam). Neste sentido cfr. Acórdão da Relação de Évora de 9 de junho de 2022, disponível em www.dgsi.pt: “Não constitui impugnação do julgamento da matéria de facto nos termos legais a discordância com o julgado, quanto a factos provados e não provados, acompanhada da indicação também genérica e global de um acervo probatório disponível que deveria levar diferente julgamento”. O que consta das alegações de recurso são referências a declarações e depoimentos prestados e não a transcrição da parte de cada um deles que, na perspetiva do recorrente, deveria motivar de modo diferente, os factos que impugnam (O tribunal não sabe quais são…) e conduzir a uma alteração da resposta dada a cada um deles. A falta de cumprimento deste ónus implica, sem possibilidade de aperfeiçoamento, a rejeição do recurso (cf. Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, 2010, pg. 154, e Carlos Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Vol. I, 2ª Ed., pg. 585). Salientamos que o facto do recorrente, nas conclusões 38, 41 e 44, transcrever segmentos das declarações de parte/depoimento do recorrente/réu com indicação, logo no início, dos timings da gravação, não é bastante e suficiente para o recurso de impugnação da matéria de facto. O Tribunal continua sem saber quais são os factos que pretende impugnar com recurso às aludidas transcrições. Em consequência, ao abrigo do disposto no art.º 640º nºs. 1 e 2 do Código de Processo Civil rejeita-se o recurso na parte atinente à impugnação da decisão da matéria de facto por parte do apelante. Não se podendo considerar como impugnada a decisão sobre a matéria de facto, só os factos considerados provados pela 1ª instância podem servir de fundamento à solução a dar ao litígio. VI. O mérito da ação Da leitura da motivação do recurso e das respetivas conclusões decorre que todos os fundamentos invocados pelo recorrente no que tange à discussão do mérito da causa pressupunham a alteração da decisão sobre matéria de facto. Porém, tendo o elenco de factos provados e não provados permanecido inalterado, forçoso é considerar que não se verificou o pressuposto da pretendida revogação da decisão recorrida. Com efeito, a jurisprudência tem entendido que nos casos em que a reapreciação do mérito da causa em recurso depende da alteração dos factos que o Tribunal a quo considerou provados e não provados, a rejeição ou improcedência da impugnação da decisão sobre matéria de facto determina a improcedência do recurso quanto ao mérito da causa, sem necessidade de reapreciação deste, por constituir questão cuja apreciação resultou prejudicada (art.º 608.º, n.º 2, 2ª proposição, do CPC, ex vi do art.º 663º, nº 2, do mesmo código). Neste mesmo sentido cfr., por todos, os acs: - RG de 11-07-2017 (Maria João Matos), p. 5527/16.0T8GMR.G1; - RG 02-11-2017 (Maria João Matos), p. 501/12.8TBCBC.G1; - RE 28-06-2018 (Florbela Lança), p. 170/16.6T8MMN.E1; - RL 28-05-2019 (Ana Rodrigues da Silva[9]), p. 97280/18.4YIPRT.L1-7; - RL 10-09-2020 (Carlos Castelo Branco), p. 518/18.9T8AGH.L1-2; - RL 05-11-2020 (Carlos Castelo Branco), p. 1812/19.7T8LSB.L1-2. Mantendo-se inalterada a decisão sobre matéria de facto, não tendo o recorrente invocado quaisquer argumentos que permitam questionar, de facto e/ou de Direito os pressupostos em que assentou a decisão alcançada pelo Tribunal recorrido, e não se descortinando motivo ou fundamento para proferir decisão diversa, forçoso é concluir pela total improcedência do presente recurso. VII. Decisão Por todo o exposto, acordam os Juízes desta 8.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa: 1. Julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo réu e, em consequência, manter a decisão recorrida. Custas pelo recorrente. Lisboa, 22 de outubro de 2022 Maria Teresa Lopes Catrola Carla Matos Carla Figueiredo |