Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18175/20.0T8LSB.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: POSSE
CORPUS
ANIMUS
CASAL DE FAMÍLIA
IMÓVEL
HABITAÇÃO
SOCIEDADE COMERCIAL
USO HABITACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- Como vem afirmando pacificamente a doutrina e a jurisprudência, a posse está definida no art.º 1251º do Código Civil segundo a adopção da concepção subjectivista da iuris possessio de tradição romanista, pela conjugação daqueles dois elementos, o corpus e o animus, expressando‑se o primeiro pela prática de actos materiais sobre a coisa, pelo exercício de poderes de facto sobre ela, e sendo o segundo retratado pela intenção do agente, exteriori­zada na prática desses actos, de actuar como titular do direito a que o exercício do poder de facto sobre a coisa corresponda.
2- Querendo um casal utilizar um imóvel como sua habitação, mas optando por não o adquirir em nome próprio e com registo a seu favor, antes recorrendo a uma sociedade comercial por si detida e que adquiriu o imóvel (ficando registado em nome da mesma), já que os membros do casal tinham em vista obter a vantagem (designadamente fiscal) de utilizar o imóvel sem suportar os encargos próprios de um proprietário (como o pagamento de IMI), fica excluída a verificação da referida intenção de actuarem como titulares do direito de propriedade.
3- A inversão do título da posse supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio, tornando‑se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía, e exigindo-se que o detentor torne directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía a sua intenção de actuar como titular do direito.
4- Resultando demonstrada uma actuação conjunta (ou, pelo menos, indistinta) da sociedade comercial que adquiriu o imóvel (e em nome de quem ficou registado), e dos membros do casal que passaram a utilizá-lo como sua habitação após a aquisição, relativamente a tal uso habitacional, e não uma actuação dos segundos tendente à exclusão da primeira dos seus poderes próprios de proprietária, não se pode afirmar qualquer aquisição da posse por parte dos segundos, por inversão do título, antes sendo de considerar que os actos praticados pelos mesmos correspondem aos de um possuidor precário, face à posse que adveio derivadamente à primeira da celebração do contrato de compra e venda.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

A.C. intentou acção declarativa com forma comum contra L. LLC, pedindo o reconhecimento da propriedade, por parte da herança aberta por óbito de T.C., relativamente ao imóvel sito na Rua (…), em Lisboa, e subsidiariamente o reconhecimento da aquisição originária, por usucapião, do seu direito de propriedade sobre o mesmo imóvel, com a condenação da R. a abster-se da prática de quaisquer actos que impeçam ou diminuam a utilização do imóvel pela A.
Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese, que:
- É cabeça de casal da herança deixada por óbito de T.C., seu falecido marido, com quem foi casada cerca de 50 anos, e sendo que no decurso desse casamento o casal construiu um extenso património;
- No âmbito desse património consta a R., que foi constituída para “alojar” o imóvel objecto do pedido;
- A aquisição do imóvel foi feita em nome da R. mas o preço foi pago pelo casal, que aí instalou a sua residência e sempre utilizou o imóvel como se fosse proprietário do mesmo, sem que a R. se insurgisse contra tal utilização;
- Após o óbito do seu marido tal utilização continuou a ser feita por si nos mesmos termos.
Citada a R., apresentou contestação com reconvenção, aí sustentando que é proprietária do imóvel porque o adquiriu por escritura pública de compra e venda, mais impugnando que a R. ou o imóvel integrem os bens da herança, e impugnando ainda que o falecido marido da A. se comportasse como proprietário do imóvel, já que outorgou com a R. um contrato pelo qual tomou a posição de comodatário do imóvel, a caducar com a sua morte, e sendo em consequência de tal contrato que a A. utilizou o imóvel até ao óbito do seu marido, deixando de ter título para o fazer com a extinção do comodato ditada pelo morte do mesmo, e não passando de uma possuidora precária. Conclui pela improcedência da acção e, em reconvenção, pede o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel e a condenação da A. a abster-se da prática de quaisquer actos que impeçam ou diminuam a sua utilização pela R., sendo condenada na entrega do mesmo à R.
Em réplica a A. impugna a celebração do contrato de comodato invocado pela R., mais invocando que a R. era uma sociedade offshore do seu falecido marido e de que o seu filho mais velho se apropriou, após o óbito, criada apenas para ser proprietária do imóvel em discussão, reafirmando ainda o alegado na P.I. e concluindo como na P.I. e pela sua absolvição do pedido reconvencional.
Com dispensa de audiência prévia foi admitida a reconvenção, proferido despacho saneador tabelar, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Após realização da audiência final foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julgo a acção totalmente improcedente e a reconvenção parcialmente procedente e, consequentemente:
i)
Absolvo a ré do pedido contra si formulado.
ii)
Condeno a autora a reconhecer que a ré é a proprietária do prédio sito na Rua (…) Lisboa, freguesia de Santa Maria de Belém, (...).
iii)
Mais condeno a autora a entregar o prédio acima identificado à ré e a abster-se da prática de quaisquer actos que impeçam ou diminuam a sua utilização por parte da ré.
iv)
Custas pela autora”.
A A. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem (com excepção das notas de rodapé):
A.As presentes alegações de recurso têm por objecto a sentença proferida no dia 19.03.2024, sendo que tanto se irá impugnar determinados pontos da matéria de facto, como se irá impugnar a matéria de Direito.
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Impugnação do facto 14 da lista de factos provados
B.A Recorrente não pretende impugnar o facto 14 da lista de factos provados em si mesmo considerado, pretende, ao invés, que sejam acrescentados os seguintes elementos ao mesmo: i) as obras, a que se reporta o facto 14 da lista de factos provados, começaram logo em 1995, quando o imóvel foi adquirido, ii) a Sociedade Ré nunca se insurgiu ou quis saber destas obras e iii) a Sociedade Ré não suportou o pagamento das referidas obras
C.Quanto ao primeiro elemento acima indicado, este resulta demonstrado, não só do depoimento da testemunha A.A. [minutos 04:44 – 08:10, 08:28 – 08:49 e 09:13 – 09:59], testemunha esta que foi o empreiteiro que realizou as referidas obras no Imóvel, logo em 1995, como, também decorre da própria fundamentação do tribunal a quo para a fundamentação deste facto, dado que é aí referido que resulta do depoimento da testemunha indicada que as obras no Imóvel se iniciaram em 1995.
D.Para além disso, as testemunhas J.C. [minutos 02:15 – 04:19] e M.C. [minutos 02:33 – 05:05], também elas trabalhadores que realizaram obras no Imóvel, confirmaram que fizeram obras no Imóvel, tanto antes, como após o falecimento de T.C., em 2019, pelo que ficou demonstrado que a Recorrente e o seu falecido marido começaram a fazer obras no Imóvel, desde 1995 até ao presente momento.
E.Quanto ao segundo elemento acima identificado, resulta a sua demonstração dos depoimentos dos empreiteiros que realizaram obras no Imóvel –A.A. [minutos 07:06 – 08:10 e 11:30 – 11:55] e M.C. [minutos 04:05 – 05:46] – dado que estas testemunhas são peremptórias ao dizer que nunca tiveram qualquer conhecimento da Sociedade Ré e, muito menos, de que era esta que emita as ordens dos trabalhos, por ser proprietária do Imóvel.
F.Quanto ao terceiro elemento identificado, uma vez mais, este resulta demonstrado dos depoimentos dos empreiteiros que realizaram obras no Imóvel – A.A. [minutos 08:25 – 08:57 e 14:27 - 14:57] e M.C. [minutos 05:35 – 06:35] -, dado que estes indicam expressamente, que nunca receberam qualquer quantia da Sociedade Ré.
G.Assim, em face do acima exposto, devem os três elementos indicados ser aditados ao facto 14) da lista de factos provados, passando este a ter a seguinte redacção:
A Autora, desde 1995 até ao presente momento, zelou pelo bom estado de conservação da moradia, diligenciando pela realização de arranjos e trabalhos de reparação que se mostraram necessários, nunca tendo a Sociedade Ré suportado o pagamento de tais obras e reparações, assim como nunca teve qualquer intervenção nas mesmas.
Impugnação do facto 15 da lista de factos provados
H.Pretende-se que seja retirado do facto 15 da lista de factos provados, a expressão “[o]u outras não concretamente identificadas”.
I.De acordo com o entendimento dos tribunais superiores, apenas podem constar na lista de factos provados factos concretos, não podendo aí constar locuções genéricas ou conclusivas, pelo que nunca se pode admitir que conste de um facto dado como provado que se pretendia obter vantagens, mas que se assuma que não se conseguem identificar quais as concretas vantagens que estão em jogo.
J.Assim, o facto 15 da lista de factos provados deve passar a ter a seguinte redacção:
Facto 15 da lista de factos provados- Com vista a colher vantagens fiscais, a autora e o seu falecido marido, ao longo da sua vida, optaram por não adquirir, em nome próprio e com registo a seu favor, diversos bens de valor considerável – imóveis, automóveis, uma embarcação e uma aeronave –recorrendo às diversas sociedades comerciais de que eram sócios e/ou gerentes/administradores, as quais adquiriam tais bens e os registavam em seu nome, bens que eram, contudo, utilizados pela autora e pelo seu marido, e entre os quais se inclui o prédio acima identificado.
Impugnação do facto A) da lista de factos não provados
K.Pretende-se aditar à lista de factos provados que a Sociedade Ré foi constituída, unicamente, para albergar o Imóvel.
L.Tal facto resulta, desde logo, do depoimento de F.C. [minutos 02:13 – 03:11], o qual detinha conhecimento directo sobre esta matéria, visto que, não só auxiliou T.C. na constituição da Sociedade Ré, como foi representante fiscal desta sociedade durante cerca de 18 anos (cf. facto 4 da lista de factos provados) e foi representante da Sociedade Ré na aquisição do Imóvel (cf. facto 5 da lista de factos provados).
M.Para além do depoimento desta testemunha, tal facto também se encontra demonstrado através da aplicação das regras de experiência comum: se a Sociedade Ré foi constituída num paraíso fiscal, e teve como intuito T.C. e a aqui Recorrente obterem vantagens fiscais com a mesma (cf. facto 15 da lista de factos provados, já com alteração acima indicada), então é de presumir que a Sociedade Ré apenas servia para deter o Imóvel.
N.Deve, deste modo, ser aditado à lista de factos provados o seguinte facto:
Que a sociedade ré foi constituída em 1995, para alojar a moradia sita no Restelo, na Rua (…)
Impugnação do facto C) da lista de factos não provados
O.O facto c) da lista de factos não provados é composto por duas premissas – i) a Recorrente e o seu marido suportaram o preço de aquisição do Imóvel, e ii) tal assim foi porque a Sociedade Ré era uma start up – sendo que a verificação da primeira premissa não implica necessariamente a verificação da segunda premissa; da prova produzida nos presentes autos, a primeira premissa ficou demonstrada à saciedade, devendo, por isso, ser aditado à lista de factos provados que a Recorrente e o seu falecido marido suportaram o preço de aquisição do Imóvel.
P.Ao contrário do que o tribunal a quo pretende fazer crer, não existe nenhuma regra no CC ou no CPC que imponha que a prova do pagamento do preço, num contrato de compra e venda, apenas possa ser provado com recurso ao cheque aí utilizado, sendo, aliás, esta circunstância especialmente relevante nos presentes autos, pois i) quem ficou com o cheque foi o vendedor, e não o comprador e ii) as instituições bancárias apenas são obrigadas a conservar os documentos bancários pelo período de 10 (dez) anos (cf. artigo 40.º do Código Comercial).
Q.Do depoimento de F.C. [minutos 05:05 – 06:21], o qual, recorde-se, tem conhecimento directo sobre esta matéria, visto que foi este quem representou a sociedade Ré na compra e venda do Imóvel, resulta claro que o preço do Imóvel foi suportado pela Recorrente e o seu falecido marido, tendo esta testemunha, ao contrário do que consta da fundamentação da sentença, identificado que o cheque provinha do Banco Espírito Santo.
R.Para além do mais, o pagamento do preço do Imóvel afigura-se como um facto pessoal relativo à Sociedade e devidamente analisado o depoimento do legal representante da Sociedade Ré [minutos 03:51 – 04:20, 04:20 – 04:25], este acaba por, materialmente, indicar que não tem a certeza de como o Imóvel foi pago e que o seu conhecimento sobre esta matéria advém de uma conversa que teve, recentemente, com um amigo do vendedor que lhe explicou os termos do negócio [21:03 – 22:41], para além de que não chegou a consultar as contas da Sociedade para averiguar sobre esta situação [minutos 22:10 – 22:40].
S.Assim, do depoimento de F.C., que foi quem representou a sociedade Ré na compra e venda, e tendo em conta o conteúdo do depoimento do legal representante da Ré, ficou manifestamente demonstrado que o pagamento do preço do Imóvel foi suportado pela Recorrente e o seu falecido marido, pelo que deve ser aditado à lista de factos provados o seguinte facto:
A Recorrente e o seu falecido marido suportaram o pagamento de aquisição do Imóvel
Impugnação do Facto E) da lista de factos não provados
T.Resulta do depoimento da testemunha J.F. [minutos 16:00 – 16:34], amigo de R.C., que F.F. é um “faz-tudo” de R.C., ou seja, é motorista, assim como trata da segurança de R.C., entre outras situações.
U.Tendo esta realidade presente e sabendo que F.F. celebrou com a Sociedade Ré um contrato de arrendamento sobre o Imóvel, no qual tinha de pagar mensalmente 2.000€ (cf. facto 11 da lista de factos provados) e tendo consciência de que este contrato foi celebrado e registado na altura em que existia uma enorme tensão entre a Recorrente e R.C., resulta evidente que este contrato foi só um meio utilizado para pressionar a Recorrente.
V.Se o contrato de arrendamento serviu para pressionar a Recorrente, então é evidente que F.F. era um testa de ferro de R.C., devendo ser aditado à lista de factos provados o seguinte facto:
F.F. é testa de ferro de R.C., filho da aqui Recorrente
Aditamento de um novo facto à lista de factos provados
W.Pretende-se aditar à lista de factos provados, dado ter ficado demonstrado durante a instrução do processo, que as obras de remodelação ocorridas em 1995 alteraram estruturalmente o Imóvel.
X.Resultou do depoimento da testemunha A.A. [minutos 04:41 – 06:54], o qual foi, recorde-se, o empreiteiro encarregue de realizar as obras no Imóvel em 1995, que tais obras foram de remodelação total do Imóvel, tendo, inclusivamente, demorado um ano a serem realizadas.
Y.Para além disso, o próprio legal representante da Sociedade Ré [minutos 04:34 – 04:50] acabou por reconhecer que as obras ocorridas em 1995, no Imóvel, demoraram mais de um ano, o que é condizente com o alegado de que tais obras alteraram estruturalmente o Imóvel; esta situação foi igualmente reconhecida pela Recorrente [minutos 21:35 – 22:01], dado ter mencionado expressamente que quando o Imóvel foi adquirido, este necessitava de intensas obras de remodelação.
Z.Este facto afigura-se como sendo concretizador do facto alegado pela Recorrente de que sempre tratou do Imóvel e aí realizou obras de reparação, pelo que o mesmo deveria ter ficado provado, ainda que não tinha sido alegado, caso resulte da instrução da causa a sua demonstração (cf. artigo 5.º, n.º 2, al. b) do CPC), o que foi o que aconteceu.
AA.Caso se venha a entender, ao abrigo do artigo 5.º, n.º 2, al. b) do CPC, de que os factos complementares ou concretizadores apenas podem ser atendidos pelo tribunal, quando resultem da instrução da causa, caso a parte apresente um requerimento para o efeito, afigura-se como inconstitucional, por violação do princípio da separação de poderes, visto que tal exigência consubstanciaria um novo requisito legal, criado pelo tribunal a quo.
BB.Assim, que deve ser aditado à lista de factos provados o seguinte facto:
As obras realizadas no Imóvel em 1995, implicaram uma alteração estrutural no mesmo, tendo tido a duração de um ano
Aditamento de um novo facto à lista de factos provados
CC.Pretende-se aditar à lista de factos provados, dado ter ficado demonstrado durante a instrução do processo, que as obras de reparação que foram sendo realizadas no Imóvel sempre atenderam aos interesses da Recorrente e do seu falecido marido.
DD.Do depoimento da testemunha A.A. [minutos 06:57 – 07:06 e 07:35 – 08:14] resulta que todas as intervenções que realizou no Imóvel, eram de acordo com as indicações de T.C. e da Recorrente, esclarecendo ainda esta testemunha que não existia qualquer outra pessoa ou entidade a quem este reportasse.
EE.Tanto do depoimento de J.C. [minutos 03:55 – 04:32] e do depoimento de M.C. [minutos 03:55 – 04:32] resulta claro que as obras que este realizava no Imóvel servia para atender aos interesses de T.C. e da sua esposa, dando, para este efeito, o exemplo da remodelação da casa-de-banho, a qual foi alterada em virtude do AVC que T.C. sofreu.
FF.Este facto que se pretende aditar é um facto concretizador do facto alegado (e dado como provado) de que a Recorrente realizou, ao longo dos anos, várias obras no Imóvel, pelo que não era necessária a sua alegação (artigo 5.º, n.º 2. al. b) do CPC).
GG.Assim, deve ser aditado à lista de factos provados, dado que o mesmo ficou demonstrado, no âmbito da instrução da causa, o seguinte facto:
As obras de reparação e conservação que foram sendo realizadas no Imóvel, atendiam sempre aos interesses e circunstâncias da Recorrente e do seu falecido marido.
Aditamento de um novo facto à lista de factos provados
HH.Pretende a Recorrente que seja aditado à lista de factos provados, o facto segundo o qual, desde 1995 até, pelo menos, 2012, a Sociedade Ré não teve qualquer actividade.
II.A demonstração deste facto resulta, não só dos depoimentos de algumas testemunhas, como também de regras de experiência comum.
JJ.Em primeiro lugar, se ficou demonstrado que a Sociedade Ré foi adquirida apenas para que a Recorrente e o seu falecido marido obtivessem vantagens fiscais, então, por maioria de razão, a Sociedade Ré não tinha qualquer actividade.
KK.Para além disso, a Sociedade Ré viu ser-lhe registado em seu nome o Imóvel, nunca tendo, no entanto, celebrado qualquer contrato de arrendamento sobre o mesmo, ou vendido o Imóvel, de forma a obter algum rendimento com o Imóvel, o que inculca a ideia de que não exista qualquer actividade.
LL.Resulta do depoimento de F.C. [minutos 02:14 – 03:10] que a única finalidade da Sociedade Ré era a de deter o Imóvel, enquanto o legal representante da Ré [minutos 21:20 – 22:38] reconheceu que não tratou de consultar as contas da Sociedade. Estes dois depoimentos demonstram que a Sociedade Ré, pelo menos até 2012, não tinha qualquer actividade.
MM.Já o depoimento da testemunha A.A. [minutos 14:30 – 14:56] indica expressamente que as obras ocorridas no Imóvel, logo em 1995, não foram passadas em nome da Sociedade Ré, mas sim de uma outra sociedade (detida por T.C.), o que se afigura como bastante expressivo da ausência de actividade da sociedade Ré.
NN.Assim, deve ser aditado à lista de factos provados, o seguinte facto:
Desde 1995 até, pelo menos, 2012, a sociedade Ré não tinha qualquer actividade
Impugnação da matéria de Direito
OO.Pese embora o tribunal a quo diga, correctamente, que a Recorrente tem a detenção material sobre o Imóvel (corpus), acaba por desqualificar a situação da mesma, para um caso de mera detenção, por esta não ter o animus necessário, dado que, segundo o tribunal a quo, ao ter a possibilidade de registar a propriedade em seu nome, mas escolhendo registar em nome da Sociedade Ré, demonstra não ter a intenção de agir como proprietária do Imóvel (cf. artigo 1253.º, al. a) do CC).
PP.Este entendimento encontra-se, manifestamente, incorrecto, pois, não só a situação que o tribunal a quo aponta não é motivadora de uma declaração de quem não quer ser proprietária, bem pelo contrário, como, toda a restante factualidade aponta no sentido de que a Recorrente age e tem a intenção de ser proprietária do Imóvel.
Antes de mais,
QQ.O entendimento sufragado pelo tribunal a quo de que uma declaração do agente no sentido de que não é proprietário do Imóvel pode, ao abrigo do artigo 1253.º, al. a) do CC, tornar tal agente um mero detentor do bem em questão, encontra-se incorrecta, por duas ordens de razão: i) a irrelevância da protestio ficta contraria e, ii) a posse não confere apenas direitos, também confere deveres, pelo que não pode o possuidor eximir-se desses deveres, com uma sua declaração de que não é possuidor.
RR.Contudo, qualquer que seja o entendimento que se assuma quanto à posse (quer em sentido subjectivo, quer em sentido objectivo), em face da factualidade do presente caso, a Recorrente tem de ser havida como possuidora do Imóvel.
SS.A declaração de que se vai registar em nome da Sociedade Ré a propriedade do Imóvel, para que, com isso, se consiga obter vantagens fiscais, demonstra exactamente o contrário do que foi decidido pelo tribunal a quo: se a Recorrente e o seu falecido marido queriam obter vantagens fiscais, então estão a reconhecer que são os proprietários do Imóvel e que vão ser eles a suportar o pagamento dos impostos relativos à detenção da sociedade.
TT.Todos os exemplos apresentados pela doutrina quanto a declarações expressas, por parte do agente, de que não é proprietário do bem em questão, e, assim, não é possuidor ao abrigo do artigo 1253.º, al. a) do CC, são diametralmente opostos ao caso dos presentes autos: aí existe uma vontade exteriorizada na qual se afirma que não se é proprietário do bem e que assim que o efectivo proprietário regressar, este receberá tudo aquilo que o bem produziu.
UU.Nos presentes autos é exactamente o contrário: a Recorrente e o seu marido suportaram o pagamento do preço do Imóvel, fizeram obras no Imóvel sem nunca atender à vontade da Sociedade Ré, nunca pagaram qualquer valor para residir no Imóvel.
VV.Toda esta factualidade demonstra, sem margem para qualquer dúvida, que a Recorrente e o seu falecido marido sempre agiram e tiveram a intenção de agir como proprietários do Imóvel, pelo que não pode a sua posição ser descaracterizada para uma situação de mera detenção, ao abrigo do artigo 1253.º, al. a) do CC.
WW.Contudo, caso se perfilhe de uma posição objectivista da posse, a Recorrente e o seu falecido marido sempre teriam de ser considerados possuidores do Imóvel, pois se é inegável que ambos tinham o controlo material sobre o Imóvel (corpus), não existe qualquer norma no ordenamento jurídico português que descaracterize a sua situação para um caso de mera detenção.
XX.Assim, estando verificados todos os pressupostos do instituto da usucapião, deve o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa considerar procedente o presente recurso e revogar a decisão do tribunal a quo.
YY.A interpretação do artigo 1253.º, al. a) do CC, propugnada pelo tribunal a quo, de que aquele que regista um bem em nome da sua empresa offshore, apenas por razões fiscais, não é possuidor, viola o princípio da igualdade, dado que a actuação de tal pessoa seria exactamente a mesma do que aquele que tem a propriedade registada em seu nome.
ZZ.Nos presentes autos, o comportamento da Recorrente e do seu falecido marido, teria sido exactamente igual, àquele que teria se o Imóvel estivesse registado em seu nome, pelo que fazer uma distinção com base nesta diferenciação implica uma violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP.
AAA.Contudo, caso assim não se entenda, o que apenas por mero dever de patrocínio se equaciona, então, deve-se entender que com a realização das obras ao Imóvel, em 1995, ocorreu a inversão do título da posse: não só as obras aí ocorridas alteraram estruturalmente o Imóvel, como a Recorrente e o seu falecido marido agiram publicamente, tendo o legal representante da Sociedade Ré na altura (F.C.) tomado conhecimento destas obras.
BBB.Assim, ainda que se entenda que ao registar em nome da sociedade Ré a propriedade do Imóvel (para a obtenção de vantagens fiscais) está-se a declarar que não se está a agir como proprietário do Imóvel, situação que não se aceita, o certo é que com as obras ocorridas em 1995 a Recorrente e o seu falecido marido tornaram-se possuidores do Imóvel, em virtude da inversão do título da posse, pelo que, estando os demais pressupostos da usucapião verificados, deve o presente recurso ser considerado procedente, e, em consequência, deve ser revogada a decisão do tribunal a quo, substituindo-a por uma decisão que declare a Recorrente e a herança do seu falecido marido proprietários do Imóvel.
A R. apresentou alegação de resposta, aí pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
***
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem-se tão só com a alteração da matéria de facto e com a consequente verificação da aquisição do direito de propriedade do imóvel em causa nos autos, por usucapião.
***
Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto (corrigem-se as referências processuais):
1)A A. casou em xx.xx.1973 com T.C., no regime da comunhão de adquiridos.
2)T.C. faleceu em xx.xx.2019, sendo a A. actualmente viúva.
3)T.C. faleceu sem deixar testamento, tendo deixado como únicos herdeiros a A. e dois filhos.
4)A R. tem representação fiscal em Portugal, e foi representada por F.C. até cerca de 2012.
5)Em 10 de Novembro de 1995, no (já extinto) 18º Cartório Notarial de Lisboa, foi outorgada escritura de compra e venda do prédio sito na Rua (…), Lisboa, freguesia de Santa Maria de Belém, (…), tendo F.C. outorgado a mesma na qualidade de procurador, representando a R.
6)Desde pelo menos 1996, a família constituída pela A., seu marido e filhos passaram a ter residência no prédio acima identificado.
7)A A. residiu no prédio entre, pelo menos, 1996 e 2014, com o seu marido, sendo aí que pernoitava, tomava as suas refeições, recebia família e amigos.
8)Encontra-se registada, pela apresentação número 19 de 24.01.1996, a aquisição por compra a favor da R. do prédio identificado em 5).
9)Nunca a R. se insurgiu contra a habitação permanente que a A. e o seu marido fizeram do imóvel.
10)Não houve oposição por parte de terceiros a que a A. e o seu marido continuassem a residir e usar com carácter de permanência o imóvel acima identificado.
11)Sobre o prédio identificado em 5) e 8) encontra-se registado, pela apresentação n.º 3104 de 03.09.2020, um arrendamento, pelo prazo de 20 anos, pela renda mensal de € 2.000,00 e com início em 04.09.2020, tendo como sujeito activo F.F.
12)A A. reside no prédio em causa (a referência a uma “fracção” corresponde a um lapso manifesto, que fica desde já aqui corrigido), de forma ininterrupta, desde 1996 a 2014 e a seguir a essa data continuou a pernoitar, tomar as suas refeições, passar aí os seus tempos de lazer, receber familiares e amigos, fazendo-o perante todos os vizinhos e demais pessoas, incluindo R.C.
13)A R. tinha conhecimento de que a A. fazia do prédio acima identificado a sua casa de habitação própria permanente, e que faz actualmente uso da mesma quando se encontra em férias ou por outro motivo em Portugal, sendo que a R. a tanto nunca se opôs.
14)A A. zelou pelo bom estado de conservação da moradia, diligenciando pela realização de arranjos e trabalhos de reparação que se mostraram necessários.
15)Com vista a colher vantagens, fiscais ou outras não concretamente apuradas, a A. e o seu falecido marido, ao longo da sua vida, optaram por não adquirir, em nome próprio e com registo a seu favor, diversos bens de valor considerável – imóveis, automóveis, uma embarcação e uma aeronave – recorrendo às diversas sociedades comerciais de que eram sócios e/ou gerentes/administradores, as quais adquiriam tais bens e os registavam em seu nome, bens que eram, contudo, utilizados pela A. e pelo seu marido, e entre os quais se inclui o prédio acima identificado.
***
Na sentença recorrida considerou-se como não provada a seguinte matéria de facto:
a)Que a R. foi constituída em 1995, para alojar o imóvel identificado em 5);
b)Que F.C. tenha sido representante da R. em Portugal depois de 2012;
c)Que o preço da compra tenha sido pago pela A. e pelo seu marido, pois a R., como start-up que era, não tinha capacidade financeira de custear a compra da moradia;
d)Que desde 2014, a A. e o seu marido passaram, com carácter permanente, a residir na Suíça, mas passando todas as épocas festivas na moradia acima identificada;
e)Que F.F. seja “testa de ferro” de R.C., filho da A.;
f)Que o falecido T.C. tenha assinado o documento datado de 31 de Agosto de 2014, intitulado “Declaração Conjunta” e junto como documento 5 da contestação, ou seja, que aquele tenha acordado com a R. que esta lhe emprestava a moradia identificada nos autos enquanto fosse vivo, assumindo o primeiro as despesas do imóvel.
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Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 196-197):
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
E, mais adiante, afirma (pág. 199-200) a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 770) afirmam que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objecto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões (art. 635º)”, mais afirmando que “relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder apresentar a respectiva transcrição”.
E, do mesmo modo, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29/10/2015, relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”.
Por outro lado, e impondo-se a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há-de a mesma reportar-se, em primeira linha, ao conjunto de factos constitutivos da causa de pedir e das excepções invocadas. É que, face ao disposto no nº 1 do art.º 5º do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto tem por objecto, desde logo, os factos essenciais alegados pelas partes, quer integrantes da causa de pedir, quer integrantes das excepções invocadas. Todavia, e porque do nº 2 do mesmo art.º 5º resulta que o tribunal deve ainda considerar os factos instrumentais, bem como os factos complementares e concretizadores daqueles que as partes hajam alegado, e que resultem da instrução da causa, daí decorre que na decisão da matéria de facto devem esses factos ser tidos em consideração.
Tal não significa, no entanto, que a decisão da matéria de facto (provada e não provada) deve comportar toda a matéria alegada pelas partes e bem ainda aquela que resulte da prova produzida, já que apenas a factualidade que assuma juridicidade relevante em razão das questões a conhecer é que deve ser objecto dessa decisão.
Isso mesmo enfatizam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 721),  quando explicam que o juiz da causa deve optar “por uma descrição mais ou menos pormenorizada ou concretizada, de acordo com as necessidades do pleito, desde que seja assegurada uma descrição natural e inteligível da realidade que, para além de revelar o contexto jurídico em que se integra, permita a qualquer das partes a sua impugnação”. E mais explicam (pág. 722) que “o regime consagrado no CPC de 2013 propugna uma verdadeira concentração naquilo que é essencial, depreciando o acessório, sendo importante que o juiz consiga traduzir em linguagem normal a realidade apreendida, explicitando, depois, os motivos que o determinaram, com destaque para a explanação dos factos instrumentais que o levaram a extrair as ilações ou presunções judiciais”.
Assim, e como tal delimitação deve estar igualmente presente na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/2017, relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt, quando conclui que “o princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo”, e bem ainda que “nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir”), só há lugar à apreciação dos pontos indicados como impugnados na medida em que, não só devam constar do elenco de factos provados e não provados, no respeito pelo disposto no art.º 5º, nº 1 e nº 2, al b), do Código de Processo Civil, mas igualmente correspondam a factos com efectivo interesse para a decisão do recurso.
Por outro lado, e a respeito da enunciação dos factos instrumentais, decorre do nº 4 do art.º 607º do Código de Processo Civil que os mesmos não carecem de ser discriminados no elenco de factos provados, mas apenas referidos na medida das ilações que forem tiradas dos mesmos, para a demonstração dos factos essenciais alegados pelas partes.
Isso mesmo explicam igualmente António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 718‑719), afirmando a necessidade de enunciação dos “factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as excepções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a acção ou a excepção proceda”, bem como a necessidade de “enunciação dos factos concretizadores da factualidade que se apresente mais difusa” (e sendo que “a enunciação dos factos complementares e concretizadores far-se-á desde que se revelem imprescindíveis para a procedência da acção ou da defesa, tendo em conta os diversos segmentos normativos relevantes para o caso”), mas afirmando igualmente que, quanto aos factos instrumentais, “atenta a função secundária que desempenham no processo, tendente a justificar simplesmente a prova dos factos essenciais, para além de, em regra, não integrarem os temas da prova, nem sequer deverão ser objecto de um juízo probatório específico”, já que “o seu relevo estará limitado à motivação da decisão sobre os restantes factos, designadamente quando a convicção sobre a sua prova resulte da assunção de presunções judiciais”.
Revertendo tais considerações para o caso concreto, pode-se desde logo afirmar que a A. deu cumprimento ao ónus de especificação a que alude o art.º 640º do Código de Processo Civil, na sua vertente primária, já que resulta das conclusões B., G., H., J., K., N., O., S., T., V., W., BB., CC., GG., HH. e NN. a delimitação do objecto da impugnação, por referência aos pontos 14) e 15) dos factos provados, aos pontos a), c) e e) dos factos não provados, e a três novos pontos que a A. invoca resultarem da instrução da causa, mais invocando, quanto aos dois primeiros, que correspondem a factualidade concretizadora do ponto 14) (já com a nova redacção por si proposta).
Assim, é em relação aos referidos pontos de facto, e apenas relativamente a estes, que deve ser conhecida a impugnação da decisão de facto, mas não esquecendo que apenas na medida da sua relevância darão lugar às alterações visadas.
Nesta medida, e começando desde logo pela inclusão da matéria do ponto e) dos factos não provados no elenco dos factos provados, apresenta-se a mesma como totalmente irrelevante para a decisão do presente recurso e, nessa medida, determinante da inutilidade da reapreciação da decisão do tribunal recorrido, nesta parte.
Com efeito, o facto em questão prende-se com a justificação para F.F. figurar como arrendatário no contrato de arrendamento cujo registo está identificado no ponto 11).
Ora, estando em causa apreciar e decidir se a actuação da A. (e do seu falecido marido) face ao imóvel identificado em 5) pode ser caracterizada como uma posse que reúne as características para a aquisição originária do direito correspondente (de propriedade), assim afastando a presunção que resulta do registo da aquisição do mesmo imóvel a favor da R., logo se alcança que o referido F.F. “não é tido nem achado” nesta questão da titularidade do direito de propriedade, porque do registo do arrendamento em questão (eventualmente inválido, já que só pode ser essa a consequência visada pela afirmação da posição do mesmo como “testa de ferro” do representante da R.) não emerge qualquer direito da titularidade do mesmo F.F., que seja incompatível com o direito de propriedade aqui em discussão.
Pelo que, nesta parte, não há que aditar ao elenco de factos provados a matéria em questão, constante do ponto e) do elenco de factos provados.
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Quanto à factualidade do ponto 14), que respeita à relação da A. (e do seu falecido marido) com o imóvel em questão nos autos, alegou a mesma no art.º 41º da P.I. que desde 1995 vem habitando o mesmo de forma ininterrupta, permanentemente até 2014 e de forma contínua nas suas deslocações a Portugal, após tal data. E no art.º 42º da P.I. alegou igualmente que sempre zelou pelo bom estado de conservação do imóvel em questão, diligenciando pela realização dos arranjos e obras de reparação que se mostraram necessários.
Ou seja, se tal sucedeu “sempre”, isso significa que sucedeu desde o início da invocada utilização habitacional do imóvel.
Pelo que se mostra inútil, por redundante, estar a incluir no ponto 14) (que corresponde à matéria do art.º 42º da P.I.) que tal actuação da A. (zelando pelo bom estado de conservação do imóvel e realizando todas as obras necessárias a tanto) ocorreu “desde 1995 até ao presente momento”, pois que essa conclusão já se retira da factualidade apurada, no seu todo (e apesar de o seu início não se reportar a 1995, mas a 1996, como decorre da conjugação dos pontos 6), 7) e 12) dos factos provados).
Do mesmo modo, torna-se inútil estar a incluir nos factos provados o facto negativo correspondente à falta de intervenção da R. no que respeita a tais obras e reparações. É que se já está afirmado que foi a A. quem diligenciou pela realização das mesmas obras e reparações, naturalmente que isso permite formular o juízo conclusivo de que não foi a R. a fazê-lo. E se não foi a R. a fazê-lo, isso equivale a dizer que não foi a R. a “dona de obra” (quanto a cada uma das intervenções). Pelo que também não lhe assistia a obrigação de pagamento do preço respectivo ao empreiteiro.
Mas ainda que assim não se entendesse, sempre haveria que reconhecer a inutilidade da afirmação dos factos negativos em questão.
Com efeito, e tendo presente que a causa de pedir se prende com a aquisição originária pela A. do direito de propriedade do imóvel, a factualidade relevante para tanto é aquela alegada na P.I., e que se prende com o comportamento da A. como proprietária do imóvel, e não com a afirmação de que a R. não diligenciou pela realização de obras no imóvel, nem tão pouco as pagou, porque esta factualidade nunca seria apta à determinação de tal comportamento da A., nos termos alegados pela mesma.
Ou seja, não há que alterar o ponto 14) dos factos provados nos termos pretendidos pela A., face à irrelevância das alterações visadas.
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Ainda no domínio da realização das obras, visa a A. que se adite à factualidade provada que aquelas que foram realizadas em 1995 (ou seja, logo após a celebração da escritura identificada em 5) dos factos provados) corresponderam a obras que duraram um ano e que implicaram uma “alteração estrutural” do imóvel. E mais visa que se adite que as referidas obras de reparação e conservação “atendiam sempre aos interesses e circunstâncias” da A. e do seu falecido marido.
Para sustentar a necessidade do primeiro dos aditamentos em questão a A. convoca o depoimento de A.A. (empreiteiro da construção civil que foi contratado por mais de uma vez para a realização de obras no imóvel), conjugado com as declarações da A. e do representante da R. (filho da A.), para daí retirar que o imóvel sofreu uma “remodelação total” e que as obras respectivas duraram cerca de um ano, assim concluindo que as mesmas “alteraram estruturalmente o imóvel”.
Sucede que o conceito de alteração estrutural de um imóvel tem de passar por algo mais profundo que a remodelação integral do mesmo. Com efeito, e tendo presente que um edifício se define pela sua área de implantação, a par do número de pisos (acima e abaixo do solo) e da área bruta de construção, só haverá que falar em alteração estrutural do mesmo na medida em que estas realidades sejam alteradas, seja pelo aumento (ou diminuição) da área de implantação do edifício no terreno onde se situa, seja pelo aumento (ou diminuição) do número de pisos, e tudo com necessária repercussão na área bruta de construção. Dito de forma mais simples, na medida em que a volumetria de um edifício seja alterada (ou mesmo quando sejam acrescentados edifícios dentro do mesmo terreno, como é o caso dos anexos, garagens ou dependências do edifício principal), pode e deve falar-se de alteração estrutural do imóvel. Mas quando não é alterada a área bruta de construção, apesar de todo o “miolo” de um edifício habitacional ser “deitado abaixo” e “feito de novo”, aquilo de que se trata é de uma remodelação (ou renovação, ou recuperação, se se preferir), mais ou menos extensa, mas não de uma alteração estrutural.
Ora, da prova acima referida (testemunhal e por declarações das partes) o que resulta evidenciado é que as obras que tiveram lugar no imóvel iniciaram-se após a escritura de 10/11/1995 e duraram cerca de um ano, relacionando-se com a alteração do tal “miolo” (o referido A.A., enquanto responsável por tais obras, caracterizou as mesmas como uma remodelação que compreendeu quatro casas de banho, cozinhas, soalhos, pinturas, papel de parede, canalizações gerais, águas quentes e frias e caldeiras, e ainda o telhado, para além da piscina).
Mas em momento algum foi afirmado pela testemunha em questão, pela A. ou pelo representante da R., ou mesmo por qualquer outra testemunha, que a geometria/volumetria do edifício principal (ou de edifícios dependentes do mesmo) sofreu alguma alteração.
O que é quanto basta para afastar a verificação da invocada “alteração estrutural” do imóvel, que a A. pretende que se assume como facto concretizador do facto dado como provado em 14) e que resultaria demonstrada a partir da instrução da causa. E, nesta medida, não há que aditar ao elenco dos factos provados o ponto de facto proposto na conclusão BB.
Quanto ao ponto proposto na conclusão GG., mais uma vez é de afirmar a irrelevância do aditamento em questão.
Com efeito, se desde 1996 o agregado familiar da A. passou a utilizar o imóvel como sua habitação permanente, aí passando a residir e a fazer a sua vida domiciliária, e se nessa medida a A. zelou pelo bom estado de conservação do mesmo imóvel, diligenciando pela realização dos arranjos e trabalhos de reparação que se mostravam necessários, torna-se evidente que as obras de reparação em questão haveriam de atender aos interesses (habitacionais) do agregado familiar em questão. O que é o mesmo que dizer, os interesses e necessidades da A. e do seu marido, até porque não foi alegado que essas obras, sendo diligenciadas por quem residia no imóvel, tinham em vista a satisfação de interesses de terceiros, não residentes.
Pelo que se trata de uma conclusão, e não de um qualquer facto concretizador daquele outro já constante do ponto 14), nem sequer de um facto que complemente o mesmo, e que nessa medida se apresentasse com relevância para ser considerado enquanto tal, no elenco de factos provados.
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Passando agora à temática relativa ao pagamento do preço do imóvel, pretende a A. que se elimine do elenco de factos não provados a primeira parte do ponto c), passando a mesma a integrar o elenco de factos provados, com a redacção que consta da conclusão S.
A este respeito ficou a constar da sentença recorrida a seguinte motivação, para dar como não provado o facto em questão (ou seja, o pagamento do preço da compra do imóvel pela A. e pelo seu marido):
No que respeita à alínea c), reitera-se que não foi feita prova disto. Como referido, ninguém revelou ter conhecimento concreto da vida e actividade da sociedade ré, nem agora nem em 1995, e designadamente, qual era o seu património, se tinha contas bancárias, qual era o seu saldo, etc..
Da escritura (documento 5 da petição) não resulta qual foi o meio de pagamento empregue, mas tão só que o preço já se encontrava pago.
Tanto a autora como F.C. referiram que o preço foi pago em cheque passado pelo marido daquela e, em parte, em dinheiro vivo, mas nenhum soube identificar a conta bancária sobre a qual foi o mesmo sacado. Não foi junto tal cheque nem qualquer outro documento revelador de que o pagamento tenha sido feito dessa maneira e de que o dinheiro para o pagamento do preço proviesse directamente de fundos pessoais da família – e diz-se directamente porquanto o capital eventualmente utilizado para constituir a sociedade ou financiá-la passaria a ser dinheiro da empresa.
Não há por isso, qualquer prova minimamente convincente de que o preço tenha sido pago com dinheiro próprio da autora e seu marido”.
Contrapõe a A. que do depoimento da testemunha F.C. resulta a verificação da factualidade em questão, não sendo necessária a prova documental do pagamento. E mais contrapõe que a circunstância de o representante da R. ter declarado o seu desconhecimento sobre se o preço em questão foi pago pelos seus pais (a A. e o falecido marido da mesma) equivale ao reconhecimento do facto em causa, porque o pagamento do preço do imóvel corresponde a um facto pessoal da R., que o mesmo depoente representa.
Começando por valorar o depoimento da testemunha em questão (e desconsiderando, nesta parte, as declarações da A., posto que a mesma afirmou ter sido o seu marido a efectuar o pagamento mas, ao mesmo tempo, reconheceu só conhecer em traços muito gerais a actividade do mesmo, do mesmo passo revelando desconhecer em absoluto a actividade da R.), a referida testemunha não foi suficientemente objectiva ao tentar afirmar o pagamento pelo seu irmão (o marido da A.). Assim, referiu um cheque do BES, mencionando que era o banco com que o irmão trabalhava na altura, mas não logrando concretizar se tal cheque estava emitido a partir de uma conta do seu irmão, ou a partir de uma conta de alguma das sociedades que o seu irmão administrava (e do ponto 15. emerge a demonstração de que o marido da A. administrava várias sociedades comerciais, do mesmo passo fazendo uma utilização pessoal de bens integrados no património das mesmas). Do mesmo modo, e depois de afirmar que o “cheque teria o valor do valor patrimonial do prédio”, não perfazendo o preço total, referiu que “penso, penso não, tenho a certeza, que para além deste cheque foi entregue dinheiro em notas”.
Todavia, em momento algum esta testemunha logrou quantificar o valor constante do cheque e o valor em numerário, do mesmo modo que nunca referiu o preço da compra e venda (recorde-se que na escritura consta como preço a quantia de 107.100.000$00, constando igualmente a declaração do recebimento desse montante pelos vendedores).
Do mesmo modo, e fazendo apelo ao teor da escritura, da mesma resulta que o marido da A. representou os vendedores e a referida testemunha representou a R. compradora. Nesta medida, a afirmação da testemunha da existência de uma entrega do remanescente do preço em numerário, feita pela testemunha depois de tal numerário lhe ter sido entregue pelo seu irmão, não se apresenta como verosímil. É que, a atender à versão desta testemunha, quem estava a receber o numerário era a mesma pessoa (o seu irmão, na qualidade de representante dos vendedores) que lho havia entregue antes, como pretenso pagador. Não faz qualquer sentido e só conduz à descredibilização do depoimento do referido F.C.
Do mesmo modo, ainda, inexiste a invocada confissão retirada do desconhecimento manifestado pelo representante da R., no âmbito do depoimento prestado pelo mesmo na audiência final.
Com efeito, o facto controvertido e carecido de prova é um facto pessoal da A. (e do seu falecido marido), a saber, o pagamento do preço do imóvel com dinheiro próprio dos mesmos, não representando, pois, um facto pessoal da R. Pelo que se o representante da R. declara desconhecer os factos relativos a tal pagamento do preço do imóvel, isso não corresponde a qualquer confissão, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 3 do art.º 574º do Código de Processo Civil (que, aliás, nem sequer é aplicável à confissão judicial provocada em sede de depoimento de parte, mas à confissão escrita em sede de articulados, antes havendo que atentar, no que ao depoimento de parte respeita, ao disposto no art.º 357º, nº 2, do Código Civil).
De todo o modo, e ainda relativamente à falta de qualquer documento que permitisse a demonstração desse pagamento pela A. e pelo seu marido (ou, pelo menos, que constituísse um indício, ainda que ténue, da ocorrência do mesmo pagamento), insurge-se a A. contra a motivação expressa na sentença recorrida, sustentando que inexiste qualquer norma que imponha a conservação de documento comprovativo do pagamento por tão longo período. Mas certamente que a A. não ignora que o que está em causa é afirmar o pagamento do preço de uma compra e venda de um imóvel por quem não figura como comprador na escritura respectiva. Ora, numa circunstância destas, em que alguém se considera dono de um imóvel porque pagou o preço do mesmo, apesar de não ter ficado com o bem registado em seu nome (e propositadamente está-se a utilizar linguagem juridicamente imperfeita, mas mais facilmente perceptível para o cidadão comum), naturalmente que tenderá a conservar suportes duradouros (v.g. papéis) que ajudem a comprovar, se necessário for, tal pagamento. E é exactamente a total ausência de qualquer suporte duradouro (o que é o mesmo que dizer, um qualquer escrito que possa ser considerado um documento para efeitos probatórios), indiciador desse pagamento por parte da A. e do seu marido, que se verifica no caso presente, sem que a A. tenha cuidado, sequer, de alegar a existência do mesmo e/ou a impossibilidade de o ver apresentado como prova (ou princípio de prova) desse alegado pagamento.
Assim, se o pagamento do preço pela A. e pelo seu marido, com dinheiro próprio dos mesmos, não é afirmado pelo representante da R., se das declarações da A. também o mesmo não se pode retirar, face ao acima já afirmado quanto à desconsideração do relatado pela mesma nesta parte, se do depoimento da testemunha F.C. também não se pode retirar tal facto, face à inverosimilhança do que afirmou a este respeito, e se inexiste outra prova (documental ou testemunhal) produzida sobre tal pagamento suportado pela A. e pelo seu marido, tal insuficiência probatória conduz a dar o facto em questão como não provado, como na sentença recorrida.
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Por último, e quanto à questão da alteração do ponto 15) dos factos provados, a par da eliminação do ponto a) dos facto não provados e sua inclusão no elenco de factos provados, bem como da introdução de um novo ponto relativo à falta de actividade da R., as alterações visadas prendem-se com a razão de ser do surgimento da R. como compradora na escritura de 10/11/1995.
Começando pela questão da “vantagem” referida no ponto 15), a A. entende que deve ser eliminada a referência a outras vantagens “não concretamente apuradas”, que estiveram na base da decisão da A. e do seu marido de não adquirirem bens em nome próprio e com registo a seu favor, mas antes com recurso a sociedades de que eram sócios e/ou gerentes/administradores, não obstante tais bens serem utilizados pelo casal.
Mas tal afirmação apenas releva na medida do surgimento da R., pois que a A. pretende que se dê também como provado que a R. foi constituída tão só para “alojar” o imóvel, não tendo actividade desde a data da sua constituição (que situa em 1995) e até pelo menos 2012.
Dito de outra forma, a A. pretende que fique a constar dos factos provados que foi com vista a colher apenas vantagens fiscais que o casal optou por não ser dono dos bens de valor considerável que utilizava, antes sendo os mesmos adquiridos pelas sociedades que detinham, entre as quais se conta a R., e sendo que esta foi constituída propositadamente para adquirir o imóvel em questão nos autos, não tendo outra actividade.
No art.º 37º da P.I. a A. qualificou a R. como “sociedade fantasma”, porque “serviu apenas por questões fiscais para a aquisição do imóvel”.
Do mesmo modo, nos art.º 23º e 24º da réplica a A. alegou que a R. é uma sociedade offshore constituída pelo seu marido por questões de índole fiscal, tendo sido criada apenas para ser proprietária do imóvel em causa.
Já na P.I. (art.º 9º) a A. havia alegado que ao longo da vida de casados a A. e o seu marido haviam construído um “extenso património constituído por empresas nacionais e estrangeiras, e o correspondente acervo de bens imóveis das empresas”, entre elas a R. (art.º 10º).
Ou seja, não está em causa que a intenção da A. e do seu marido, ao não adquirirem os bens que utilizavam (não só o imóvel em questão mas também outros imóveis, veículos automóveis, uma embarcação e uma aeronave) era a obtenção de uma vantagem, desde logo uma vantagem fiscal, porque não suportavam os impostos que se prendem com a titularidade desse património mobiliário e imobiliário.
Todavia, este facto assim genericamente afirmado foi depois densificado através da prova produzida na audiência final, quando surgiram testemunhas que afirmaram prestar serviços de que a A. e o seu marido eram os beneficiários, mas sendo as correspondentes retribuições pagas por sociedades em relação às quais se apura que eram administradas pelo marido da A. (como resulta da factualidade indiciariamente apurada no procedimento cautelar cuja certidão foi junta pela A. com a P.I.). Concretizando, a testemunha M.M., que exercia funções de caseira num imóvel dos RR., afirmou que quem lhe pagava o salário era a G.L., sociedade comercial cujo presidente do conselho de administração era o marido da A. Também a já identificada testemunha A.A. referiu que as obras que realizou, desde logo as referentes ao imóvel em causa nos autos, foram facturadas à C., sociedade comercial cujo presidente do conselho de administração também era o marido da A. Estas práticas estão ainda indiciariamente demonstradas no identificado procedimento cautelar, seja quanto a empregadas domésticas, seja quanto a despesas domiciliárias de imóveis utilizados pela A., mas que estão em nome das sociedades comerciais ali identificadas.
Ora, a diferente natureza de cada uma das actuações em questão permite afirmar inequivocamente a intenção de uma qualquer vantagem por parte da A. e do seu marido (desde logo a fiscal, por ser a mais evidente). Mas a mesma diferente natureza de cada uma das actuações permite afirmar, segundo as regras da experiência comum, que as vantagens não se esgotavam no plano fiscal, mas estendiam-se a outros planos (desde logo não esquecendo a dimensão não patrimonial dessas vantagens, expressa na comodidade de gozar os benefícios dos bens e serviços em questão, sem o correspondente incómodo de suportar os encargos correspectivos), e ainda que não tivesse emergido da prova a concreta identificação de cada uma das vantagens, a par da sua categorização.
Todavia, isso não invalida que as vantagens estejam presentes, não só as de natureza fiscal mas as restantes não concretamente categorizadas.
E, nesta medida, desde logo não há que eliminar do teor do ponto 15) a referência às outras vantagens “não concretamente identificadas”.
Por outro lado, e quanto à data da constituição da R. e seu objecto, visa a A. que se dê como provado que a R. foi constituída em 1995 e tão só para “alojar” o imóvel em questão nos autos, não tendo outra actividade, pelo menos até 2012.
A referência ao “alojamento” já foi tratada pelo tribunal recorrido em termos que importa aqui reproduzir, por se afigurarem como correctos:
No que respeita ao facto da alínea a), importa fazer uma referência à utilização de um vocábulo desadequado a exprimir a situação de facto.
O vocábulo alojar significa “Conseguir ou proporcionar um local onde residir ou ficar determinado tempo (ex.: alojaram a família temporariamente; alojou-se em casa de amigos). = albergar, hospedar”.
É, por isso, evidente que uma empresa não aloja empresas, é uma impossibilidade lógica.
Por isso, interpretar-se-á a alegação da autora com o sentido que nos parece mais lógico e abrangente, face ao demais alegado, ou seja, que se quis dizer que a sociedade foi constituída para ser proprietária do prédio identificado, ou seja, para nela ficar registada a aquisição da sua propriedade”.
Aliás, este sentido interpretativo foi aquele que a A. utilizou, nos já referidos art.º 37º da P.I. e 23 e 24º da réplica, não se alcançando porque é que a mesma insiste em utilizar um vocábulo que não se adequa à realidade que se pretende ver afirmada.
Todavia, ultrapassando este pormenor interpretativo, e fazendo apelo à prova produzida, não se pode de forma alguma afirmar que a R. foi constituída em 1995 (pelo marido da A. ou por terceiro em representação e/ou no interesse daquele), tendo em vista tornar-se proprietária do imóvel e não tendo outra actividade, para além desta de celebrar a escritura de compra e venda de 10/11/1995.
Assim, a testemunha F.C. afirmou, relativamente à R., que se tratava de uma “sociedade offshore, penso que teria sede no Panamá, enfim, num país desses em que habitualmente proliferam as offshore”, e que teria sido “constituída lá” e “negociada pelo meu irmão (…), com a finalidade de se adquirir uma moradia no Restelo”. Para além de tal afirmação se revelar, por si só, extremamente vaga, os documentos juntos pela R. com o seu requerimento de 28/3/2022 afastam a mesma. Com efeitos, resulta de tais documentos a certificação da constituição da R. em 28/9/1994, nas Ilhas Virgens Britânicas, com a sua posterior deslocação para o Estado do Delaware (nos Estados Unidos da América), e sem que se verifique qualquer referência ou conexão ao Panamá, durante toda a existência da R.
Do mesmo modo, e se a R. foi constituída mais de um ano antes da celebração da escritura de 10/11/1995, não é possível afirmar, sem mais, que foi constituída para servir de veículo à aquisição do imóvel objecto dessa escritura.
É certo que a testemunha F.C. ensaiou uma narrativa nesse sentido, mas logo demonstrando nada conhecer de concreto sobre a vida societária da R. antes (ou mesmo depois) da escritura em questão, começando por referir o errado “local de nascimento” da mesma, e continuando com a formulação de dúvidas sobre se a R. tinha sido constituída pelo marido da A. ou se tinha sido “negociada” pelo marido da A. O que acentua a já mencionada descredibilização do seu depoimento, também nesta parte.
Aliás, também a própria A. encerra em si igualmente essa dúvida, pois que nos articulados sempre alegou que a R. foi constituída pelo seu marido, vindo agora em sede recursória invocar (art.º 87º da alegação de recurso) que o seu marido “constituiu (ou adquiriu) a Sociedade Ré”.
Ou seja, e tal como referiu o tribunal recorrido, no que aqui se acompanha, “ninguém revelou suficiente conhecimento da actividade da sociedade ré, designadamente desde a sua constituição e até ao presente, de molde a poder afirmar tal coisa.
A autora declarou que o marido é que geria as empresas todas e só lhe dava a conhecer traços gerais do que se passava. A testemunha F.C., advogado, revelou nada saber em concreto da actividade da empresa, desconhecendo até se ainda é ou não representante fiscal da empresa em Portugal, bem como desconhecer o paraíso fiscal em que estava sedeada (Panamá ou um país desses). Mais nenhuma testemunha revelou conhecimento da vida da empresa e não foram juntos documentos respeitantes à sua actividade. Assim, não foi feita prova de que esta sociedade tenha sido constituída unicamente para adquirir o prédio, sendo de admitir que possa ter qualquer outra actividade”.
O que faz concluir, sem necessidade de ulteriores considerações, que não há que aditar ao elenco dos factos provados o ponto a) dos factos não provados, da mesma forma que não há que dar como provado que desde 1995 e até 2012, pelo menos, a R. não teve qualquer actividade.
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Em síntese, e no que respeita à impugnação da decisão de facto, é de manter na sua totalidade a decisão de facto constante da sentença recorrida, assim improcedendo as conclusões do recurso da A., nesta parte.
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Na sentença recorrida ficou assim fundamentado o não reconhecimento da aquisição por usucapião da propriedade do imóvel identificado em 5):
Voltando ao caso dos autos, não tendo a sociedade ré conseguido provar a alegada celebração de um contrato de comodato, a magna questão a apreciar é a de saber se algo obsta a que o indiscutível poder material de facto sobre o prédio exercido pela autora (e pelo seu marido, até ao seu decesso) seja qualificado como posse, nos termos previstos no artigo 1251º do Código Civil.
Note-se que a própria Lei, no artigo 1252º, n.º 2 do Código Civil, faz presumir a posse na pessoa que exerce tal poder de facto sobre a coisa.
Questiona-se, então, se algo ilide esta presunção.
A resposta é afirmativa, a nosso ver, e resulta do facto provado sob a alínea 15) e da própria alegação da autora, que constitui uma clara admissão/confissão da descaracterização da posse, que não passa de mera detenção.
Desses elementos se retira à saciedade que nem a autora nem o seu marido exerceram os poderes de facto com a intenção de agir como proprietários do imóvel porquanto estes, podendo ter adquirido a moradia em seu próprio nome preferiram que fosse a sociedade ré, controlada pelo falecido marido da autora, a adquirir o prédio.
A autora e o seu marido, podendo fazê-lo, não quiseram adquirir a moradia para si, em seu nome, preferindo a compra por uma sociedade que controlavam. Ou seja, os autores não quiseram ser proprietários, antes quiseram, pelas alegadas razões fiscais ou outras, afastar-se da situação de proprietários do prédio, daí retirando as vantagens que terão levado à preferência por esta situação.
Face à referida opção da autora e do seu marido, existe, no caso dos autos uma clara evidência da intenção da autora e seu marido de não serem proprietários, porque isso lhes era mais vantajoso do que serem proprietários. Tendo o controlo da sociedade que era proprietária, podiam ter o livre uso das coisas, sem qualquer oposição por parte do proprietário, com menores encargos fiscais e outras vantagens que porventura adviriam da situação jurídica do prédio que escolheram. A preferência por esta situação conferia-lhes a vantagem de usar o prédio da maneira que um proprietário faria, mas sem os incómodos ou os encargos que a titularidade da propriedade lhes conferiria.
Face a isto, é manifesta a conclusão que a autora e o seu marido exerceram o seu domínio de facto sobre o imóvel sem a intenção de serem dele proprietários, sem animus do proprietário.
Equivalendo esta atitude a uma intenção de não agir como proprietário, constitui aquilo de José de Oliveira Ascensão chamou de “intenção declarada, elemento objectivo que retira ao ‘corpus’ a sua consequência normal”.
Concluímos, por isso, que a situação, alegada e confessada pela própria autora, provada sob a alínea 15), preenche cabalmente a previsão do artigo 1253º, alínea a) do Código Civil: a autora e o seu marido exerceram o poder de facto sobre o prédio sem intenção de agir como proprietários, antes tiveram e mantiveram a firme intenção de que fosse uma sociedade offshore que controlavam a proprietária do imóvel.
E, descaracterizado o corpus, face à negação do animus, a autora e o seu marido foram meros detentores do prédio identificado nos autos, nos termos previstos no artigo 1253º, alínea a) do Código Civil, sendo que a detenção, não sendo posse, não permite a aquisição originária por usucapião, prevista no artigo 1287º do Código Civil, o que conduz à improcedência do pedido subsidiário e dos demais pedidos formulados, deles dependentes, ou seja, à total improcedência da acção”.
Contrapõe a A. que o preceituado na al. a) do art.º 1253º do Código Civil se encontra incorrectamente interpretado e aplicado à actuação material da mesma e do seu falecido marido, tal como a mesma é revelada pelos factos provados, já que resulta do mesmo preceito que só haveria lugar a falar de mera detenção se estivesse demonstrada uma conduta da A. e do seu falecido marido que exteriorizasse a intenção dos mesmos de não agirem como titulares do direito de propriedade sobre o imóvel. E mais entende que os factos provados não revelam a exteriorização dessa intenção, não só porque não foi celebrado qualquer contrato com a R. para o agregado familiar da A. residir no imóvel, mas também porque a A. e o seu marido nunca pagaram qualquer valor à R. pela utilização do imóvel, porque fizeram as obras que sempre entenderam no imóvel, sem procurarem a aprovação prévia da R., e para corresponder às suas necessidades específicas, igualmente porque foi a A. e o seu falecido marido que suportaram o pagamento do preço do imóvel, e porque a vontade de ambos de pretenderem pagar menos impostos com a detenção do imóvel demonstra que “estes assumem que querem pagar os impostos advenientes da detenção de um imóvel, mas querem-no fazer na menor medida possível, recorrendo assim a planeamento fiscal”. Ou, ainda no entendimento da A., “é o facto de quererem [a mesma e o seu falecido marido] pagar os impostos relativos à detenção do Imóvel (embora em menos quantidade, daí o recurso à sociedade Ré) que demonstra que estes tinham a intenção de agir como proprietários”.
Contrapõe ainda a A. que a interpretação da al. a) do art.º 1253º do Código Civil feita pelo tribunal recorrido representa uma violação do princípio da igualdade, porque “a actuação daquele que tem a propriedade registada em nome de uma empresa sediada num paraíso fiscal iria ser exactamente a mesma do que aquele que tem a propriedade registada em seu nome”.
Contrapõe, por último, a A. que da factualidade apurada decorre a aquisição da posse por inversão do título, logo em 1995, já que a remodelação do imóvel feita pela A. e pelo seu falecido marido após a aquisição do mesmo, sem qualquer intervenção ou envolvimento da R., demonstra que os mesmos passaram a actuar como possuidores do imóvel, e não mais como meros detentores.
Recuperando o entendimento quanto às características que a posse deve revestir para que conduza à aquisição do direito de propriedade por usucapião, releva desde logo a verificação do corpus e do animus. Como se explica no Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela (volume III, 2ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 5), “o nosso legislador não aceitou a concepção objectiva da posse, consagrada em alguns códigos estrangeiros (cfr., por ex. o §854 do Código alemão, segundo o qual a posse sobre uma coisa se adquire pela mera obtenção do poder de facto)”. E, por isso, é que aí se conclui que para “que haja posse (…) é preciso que haja por parte do detentor a intenção (animus) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa, e não um mero poder de facto sobre ela”.
Ou seja, e como vem afirmando pacificamente a doutrina e a jurisprudência, a posse está definida no art.º 1251º do Código Civil, segundo a adopção da concepção subjectivista da iuris possessio de tradição romanista, pela conjugação daqueles dois elementos: o corpus e o animus. O corpus expressa‑se pela prática de actos materiais sobre a coisa; pelo exercício de poderes de facto sobre ela; pela apreensão mate­rial, física, sobre a coisa; é uma afirmação traduzida em actos materiais e jurídicos a que a or­dem jurídica atribui efeitos. O animus é retratado pela intenção do agente, exteriorizada na prática desses actos, de actuar como titular do direito a que o exercício do poder de facto sobre a coisa corresponda.
Caso contrário, sobrevindo apenas o corpus sem o animus, está-se perante a simples detenção, nos termos definidos pelo art.º 1253º do Código Civil.
Dito de outra forma, para que se possa afirmar a aquisição da posse, nos termos e para os efeitos do disposto na al. a) do art.º 1263º do Código Civil (que dispõe que a posse se adquire pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito), é necessário que se verifique que o seu titular exerce os poderes correspondentes aos do titular do direito real respectivo, com a intenção de os exercer enquanto titular desse direito real, e não apenas por mera tolerância do titular do mesmo, sem intenção de agir como beneficiário do direito, ou na qualidade de simples possuidor em nome de outrem.
Recorrendo uma vez mais à doutrina expressa no Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela (volume III, 2ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 25‑27), aí se explica que “para que a posse se adquira sem intervenção do antigo possuidor, é necessário que se estabeleça entre a pessoa e a coisa uma relação de facto que contenha todos os elementos daquela figura. Daí o ter-se exigido a prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito. Estes actos, de per si, podem não conduzir à posse se faltar o animus possidendi; mas sem eles é que a posse não existe, nem se constitui. Esta alínea vale assim como um complemento ou uma confirmação do conceito de posse expresso no artigo 1251º. Os elementos nela referidos são os conceitos integrantes do corpus. «O acto de investidura na posse, escreve Manuel Rodrigues (ob. cit., nº 36), porque dele deriva a relação possessória, há-de conter os elementos desta mesma relação. Há-de conter um elemento que estabeleça a relação material da pessoa com a coisa, e há-de conter um elemento espiritual que signifique a intenção de exercer um direito no próprio interesse”. Mais se explica aí que por actos materiais se deve entender aqueles “actos que incidem directa e materialmente sobre a coisa” e não actos de disposição ou de administração, “que podem ser praticados por qualquer pessoa, não pressupondo uma relação de facto sobre a coisa”. E explica-se ainda que a inversão do título da posse (a que alude a al. d) do mesmo art.º 1263º do Código Civil) mais não é que “um caso especial de aquisição originária”.
Importa ainda reter que, de acordo com o disposto no art.º 1290º do Código Civil, “os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título”.
Do mesmo modo resulta ainda do nº 1 do art.º 1268º do Código Civil que “o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”. Ou seja, e tendo presente o disposto no art.º 350º do Código Civil, o possuidor está dispensado de efectuar a prova da titularidade do direito real respectivo, o que equivale a dizer (como José de Oliveira Ascensão, Direito Civil Reais, 4ª edição, reimpressão, Coimbra, 1987, pág. 110) que “o sujeito está ao abrigo de surpresas: a presunção que a lei lhe outorga basta normalmente para manter os estranhos em respeito”.
Reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, é patente que por força do contrato de compra e venda celebrado em 10/11/1995 foi transmitida à R. a posse correspondente ao exercício do direito de propriedade sobre o imóvel identificado em 5). Ou seja, trata-se da forma de aquisição derivada a que respeita a al. b) do art.º 1263º do Código Civil, por força da tradição da coisa operada como efeito essencial da compra e venda (art.º 879º do Código Civil).
Embora a A. nada refira no sentido de contrariar a afirmação dessa aquisição (derivada) da posse pela R., deixa implicitamente entendido que a R. perdeu tal posse por haver cedido a mesma à A. e ao seu falecido marido, já que é nesta medida que sustenta que os actos praticados por si e pelo seu marido relativamente ao imóvel, a partir da escritura de compra e venda, representam actos materiais praticados no âmbito dos poderes próprios de proprietários desse imóvel, e com a intenção de exercer tal direito de propriedade no próprio interesse do casal, através dos quais adquiriram a posse, nos termos da al. a) do art.º 1263º do Código Civil (ou seja, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito).
Todavia, o apelo da A. a que se considere igualmente a aquisição da posse nos termos da al. d) do mesmo art.º 1263º (ou seja, por inversão do título da posse), deixa antever o reconhecimento da aquisição (derivada) da posse pela R., em razão da tradição do imóvel operada como efeito da compra e venda.
De todo o modo, adiante-se desde já que a factualidade apurada no caso concreto dos autos não permite essa afirmação da aquisição da posse por inversão do título, segundo a definição do art.º 1265º do Código Civil.
Com efeito, e recorrendo à doutrina expressa no Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela (volume III, 2ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 30), “a inversão do título da posse (…) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio”, tornando‑se necessário “um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía”, e exigindo-se que o detentor torne “directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía (…) a sua intenção de actuar como titular do direito”.
Do mesmo modo, e como resulta do acórdão de 20/3/2014 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Nuno Cameira e disponível em www.dgsi.pt), “não chega para se verificar a inversão do título da posse que tenha havido por parte do detentor precário a intenção de o inverter; exige-se que a oposição se concretize em actos materiais ou jurídicos inequivocamente reveladores de que o opositor quer actuar, a partir da oposição, como titular do direito sobre a coisa e que essa actuação se dirija contra a pessoa em nome de quem detinha e dela se torne conhecida”.
Do mesmo modo, ainda, sinaliza-se no acórdão de 17/12/2014 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Maria Clara Sottomayor e disponível em www.dgsi.pt), que a “doutrina exige, também, uma oposição formal, por meios notificativos directos e levada ao conhecimento do possuidor, isto é, dirigida contra a pessoa em nome de quem o opositor detém a coisa para que se torne dela conhecida, e defende que o detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía (quer judicial, quer extrajudicialmente) a sua intenção de actuar como titular do direito”.
Tal interpretação é aquela que continua pacificamente a ser feita pela jurisprudência até ao presente, como nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25/6/2015 (relatado por Abrantes Geraldes) ou de 14/7/2021 (relatado por Tibério Nunes da Silva), ambos identificados pela A. na sua alegação de recurso, e cuja repetição aqui se dispensa.
Ora, a prática de actos sobre o imóvel referido em 5) inequivocamente reveladores da vontade da A. e do seu falecido marido de actuarem como titulares do direito de propriedade sobre esse imóvel, dirigidos contra a R. e tornando-se conhecidos da mesma, apenas poderia ser afirmada na medida em que a factualidade provada não fosse a que ficou acima elencada, mas antes a que a A. pretendia que fosse dada como provada, em sede de impugnação da decisão de facto.
Com efeito, e ao contrário do invocado pela A., não está demonstrada a “alteração estrutural” do imóvel, promovida pela A. e pelo seu falecido marido no âmbito das obras realizadas após a escritura de 10/11/1995, através das quais diligenciaram pela realização dos arranjos e trabalhos de reparação necessários ao bom estado de conservação do imóvel (ponto 14) dos factos provados).
Do mesmo modo, não está demonstrado que o preço da compra do imóvel tenha sido suportado pela A. e pelo seu falecido marido.
Mas, mais relevante ainda, apurou-se que a A. e o seu falecido marido optaram por não adquirir tal imóvel em nome próprio e com registo a seu favor, do mesmo modo que fizeram essa opção relativamente a outros bens móveis e imóveis, também utilizados pela A. e pelo seu falecido marido, mas cuja aquisição foi feita com recurso a sociedades comerciais de que eram sócios e/ou gerentes/administradores (ponto 15) dos factos provados).
Dito de outra forma, apenas se poderia afirmar a inversão do título da posse na medida em que se apurasse que a actuação da A. e do seu marido estava em oposição com a actuação da R. ao celebrar o contrato de compra e venda do imóvel referido em 5), sendo representativa de uma vontade de actuarem como proprietários exclusivos desse imóvel, por oposição à qualidade de proprietária adquirida pela R., por força da celebração desse contrato de compra e venda, desde logo sendo eles (a A. e o seu marido) a pagar o preço do imóvel, e praticando actos que ultrapassavam “o plano da utilização e fruição de um imóvel no quadro de um simples direito pessoal de gozo” (na expressão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/7/2011, relatado por Lopes do Rego e igualmente identificado pela A. na sua alegação de recurso).
Mas como aquilo que resulta demonstrado não passa do referido “plano da utilização e fruição de um imóvel”, em linha com a intenção da A. e do seu falecido marido de que assim fosse, relativamente a vários bens móveis e imóveis que igualmente usavam, e que foram adquiridos pelas sociedades comerciais que detinham, por opção dos próprios, pode-se afirmar que o que resulta da factualidade apurada é uma actuação conjunta (ou, pelo menos, indistinta) do casal formado pela A. e pelo seu marido, por um lado, e da R., por outro lado, relativamente ao uso habitacional do imóvel, e não uma actuação da A. e do seu marido tendente à exclusão da R. do exercício dos seus poderes próprios de proprietária. Assim, não se pode afirmar qualquer aquisição da posse por parte da A. e do seu marido, por inversão do título, antes sendo de considerar que os actos praticados pela A. e pelo seu marido após a escritura de compra e venda correspondem aos de um possuidor precário, face à posse que adveio derivadamente à R. da celebração do contrato de compra e venda.
Não obstante, e como já se referiu, a A. também invoca que a posse foi adquirida por si e pelo seu marido nos termos da al. a) do art.º 1263º do Código Civil, ou seja, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, apesar de não invocar expressamente em que termos ocorreu a perda da posse pela R.
Sendo evidente que à face da factualidade apurada não se pode falar de cedência da posse, porque não está demonstrado qualquer negócio jurídico entre a R. e a A. e o seu marido, nos termos do qual tal posse tenha sido transmitida pela primeira aos segundos, resta apurar se a R. perdeu a posse nos termos da al. d) do nº 1 do art.º 1267º do Código Civil (ou seja, pelo exercício da posse da A. e do seu marido por mais de um ano).
E para tal importa regressar ao que ficou dito anteriormente, sobre as características da actuação da A. e do seu marido.
Recorde-se então que, para além do exercício do “poder material de facto sobre o prédio” (na expressão da sentença recorrida, e que dispensa outras considerações sobre o corpus da posse, porque a A. não coloca em crise a verificação desse corpus), torna‑se necessário estar verificado o referido “elemento espiritual que signifique a intenção de exercer um direito no próprio interesse”, já que, como também já ficou referido, o conceito de posse adoptado pelo legislador não dispensa o elemento subjectivo (o animus).
É isso mesmo que igualmente se explica no Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela (volume III, 2ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 5), quando aí se afirma que “ao elemento subjectivo – o animus – não se refere ostensivamente o artigo 1251º, mas ele deriva de outras disposições do Código, especialmente do preceito do artigo 1253º”.
Ora, quanto ao referido elemento subjectivo da posse, entende desde logo a A. que tudo se reconduz à vontade de a mesma e o seu marido pretenderem ser proprietários do imóvel e exercerem todos os poderes de facto correspondentes, mas sendo que no âmbito fiscal recorreram a um “planeamento” destinado a “pagar os impostos advenientes da detenção de um imóvel, mas (…) na menor medida possível”, sendo por isso que recorreram à R. e foi por isso que a mesma passou a figurar como proprietária do imóvel.
Não admitindo que este argumento signifique o reconhecimento, pela A., que a mesma e o seu falecido marido pretendiam “enganar” a administração fiscal, através de um negócio jurídico simulado em consequência do qual pagavam menos impostos que aqueles devidos por qualquer pessoa singular que tivesse a propriedade do imóvel registada em seu nome (e correspondentemente fosse titular do mesmo, para efeitos tributários), tal argumento só pode então significar que a A. e o seu falecido marido pretendiam gozar das vantagens inerentes à detenção do imóvel (a sua utilização para habitação do agregado familiar), mas sem os correspondentes encargos decorrentes da propriedade do mesmo (desde logo o pagamento de IMI).
É que não se trata de obter um qualquer regime fiscal mais favorável, pagando menos IMI (ou qualquer outro imposto relacionado com a titularidade do imóvel), mas pura e simplesmente de não pagar IMI (ou qualquer outro imposto relacionado com a titularidade do imóvel), porque o sujeito passivo da tributação em questão é o titular do imóvel junto da administração fiscal. E esse titular passou a ser a R., por ser a compradora do imóvel.
Do mesmo modo, a afirmação da A. de que a mesma e o seu marido pretendiam pagar os “impostos advenientes da detenção de um imóvel, mas (…) na menor medida possível”, não encontra qualquer amparo na factualidade apurada, porque não resulta provado (nem a A. alegou o que quer que fosse nesse sentido) que o casal tenha suportado qualquer montante para efeitos tributários (ainda que com o “desconto” emergente do “planeamento fiscal” invocado), ou mesmo para qualquer outro efeito (para além das obras referidas em 14) dos factos provados), como por exemplo os consumos de electricidade, água, gás ou telecomunicações, próprios de um imóvel destinado a habitação, e habitado em permanência (pelo menos até 2014).
Ou seja, a A. e o seu marido até podem ter pensado em ser proprietários do imóvel que queriam utilizar como sua habitação. Mas a opção pela obtenção de vantagens, designadamente fiscais (à semelhança da opção que tomaram quanto a outros bens que também utilizavam a título pessoal) determinou-os a não actuar em conformidade com tal intenção, não adquirindo em nome próprio e com registo a seu favor tal imóvel, e comportando-se relativamente ao mesmo imóvel como alguém a quem o mesmo foi cedido para que aí habitassem, sem qualquer contrapartida conhecida, para além de zelarem pelo bom estado de conservação do mesmo, diligenciando pela realização de arranjos e trabalhos de reparação que se mostraram necessários.
Ora, tal actuação exclui a afirmação da vertente subjectiva da posse, quanto ao “poder material de facto” exercido sobre o imóvel, nos termos que emergem da factualidade apurada.
Mas então não se pode falar do preenchimento da previsão da al. a) do art.º 1263º do Código Civil, porque não está demonstrada a prática dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, não se podendo fazer na aquisição originária da posse do imóvel pela A. e pelo seu marido.
Também não faz qualquer sentido a invocada violação do princípio da igualdade, exactamente porque se está a tratar de forma distinta aquilo que se apresenta com contornos materialmente distintos. Com efeito, apenas na medida em que se verificasse que, não obstante a propriedade do imóvel estar registada em nome da R., tinham sido a A. e o seu marido que pagaram o preço da compra e suportaram todos os encargos decorrentes da propriedade do imóvel (começando pela assunção da responsabilidade tributária correspondente), é que se poderia falar de uma situação de igualdade de situações materiais, a demandar igual tratamento (que corresponderia à consideração da actuação material da A. e do seu marido como apresentando as características próprias da actuação de proprietários do imóvel).
Dito de outra forma, a A. e o seu marido actuaram em relação ao imóvel como actuaria um qualquer titular do direito pessoal ao gozo do mesmo, mas não como actuaria um proprietário do mesmo, caindo então a sua actuação na previsão do art.º 1253º do Código Civil, e devendo afirmar-se, como na sentença recorrida, que os mesmos devem ser havidos como meros detentores do imóvel, e não como possuidores, porque nunca foram titulares dessa posse, antes sendo titular da posse correspondente ao exercício do direito de propriedade a R., por força da sua aquisição derivada, nos termos da al. b) do art.º 1263º do Código Civil.
Ou, dito ainda de forma mais simples, não se podendo falar de qualquer acto de investidura da A. e do seu marido na posse correspondente ao exercício do direito de propriedade sobre o imóvel identificado em 5), não se tem a mesma posse por adquirida (e mantida) pelos mesmos. O que significa que não se pode igualmente afirmar a aquisição originária desse direito real por usucapião, nos termos do art.º 1287º do Código Civil.
Pelo que, assentando a pretensão manifestada pela A. na verificação de tal aquisição originária por usucapião, e ficando a mesma por demonstrar, nenhuma censura pode ser feita à sentença recorrida, face à improcedência das conclusões do recurso da A., igualmente nesta parte.
***
DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.

24 de Outubro de 2024
António Moreira
Rute Sobral
Vaz Gomes