Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA RODRIGUES DA SILVA | ||
Descritores: | DECLARAÇÕES DE PARTE FORÇA PROBATÓRIA | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/28/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | · As declarações de parte devem ser valoradas autonomamente, mas de forma integrada com os demais elementos de prova. · Sendo as declarações de parte o único suporte probatório nesse sentido, não se pode dar como provados os factos constitutivos do direito alegado pelo A. unicamente com base nas suas declarações de parte. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO 1. A. intentou a presente acção especial de injunção contra B. pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 7 000,00, acrescidos de juros, alegando como fundamento a existência de um contrato de mútuo celebrado entre as partes, não tendo a R. procedido à devolução da quantia mutuada. 2. Contestando, a R. defendeu a improcedência da acção, mais alegando que a entrega do cheque dos autos se deveu a um acerto de contas no âmbito das sociedades de que A. e R. eram sócios. 3. Efectuada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença julgando a acção improcedente. 4. O A. recorre desta sentença, formulando as seguintes conclusões: “1. A análise crítica e conjugada da prova documental junta aos autos e das declarações de parte do Autor permite concluir que o cheque de € 7.000,00 entregue pelo Apelante à Ré em 20.07.2006, sacada da conta do primeiro e emitido à ordem da segunda, e por esta apresentado a pagamento e creditado na respectiva conta bancária, foi entregue a título de empréstimo, tendo a Apelada assumido a obrigação de restituir tal quantia, acrescida de juros, restituição que nunca se concretizou. 2. O mesmo é dizer que não pode haver qualquer dúvida sobre a existência de um contrato de mútuo entre Apelante e Apelada, o qual, devido à relação de parentesco jamais se equacionou reduzir a escrito. 3. E essa conclusão não pode ser abalada por não terem sido apresentadas testemunhas: é que, não as havendo, não podiam – de boa fé - ser inventadas pelo Apelante! 4. O Apelante não indicou testemunhas. Fê-lo em consciência e de acordo com a rectidão e honestidade com que sempre pautou a sua vida, pois sabe que o contrato não presenciado senão por ele e pela sua irmã. 5. O facto é que o Apelante não pode ser duplamente prejudicado, ao ter facilitado o empréstimo à sua irmã, não a ter submetido ao óbvio desconforto de lhe dar um contrato para assinar, e agora ver-se privado do direito a receber a quantia que lhe emprestou!!! 6. A matéria de facto dada como provada pelo Tribunal quo revela-se incompleta, porque omite factos que ficaram provados pelas declarações de parte. 7. Não existe qualquer motivo válido para questionar a seriedade e credibilidade com que as mesmas foram prestadas. 8. Dos Factos Provados, constam os seguintes enunciados: 1. O Autor entregou à Ré o cheque n.º 96963483, do Banco BPI, S.A., referente à conta n.º 1-9122214-000-001, titulada pelo Autor, datado de 20.07.2006, no valor de 7.000,00 euros, à ordem da Ré, o qual foi apresentado a pagamento e creditado em conta do beneficiário. 2. O Autor enviou à Ré carta registada com aviso de recepção que aquela recebeu em 27.02.2018, com o seguinte teor: “verificando-se até à presente data a quantia mutuada ainda não me foi restituída nem foi apresentada nenhuma forma de liquidação, concedo-lhe um prazo de quinze dias para a resolução da situação sob pena de não o fazendo darei instruções para a minha advogada para que instaure os procedimentos judiciais adequados.” 9. Quer face às declarações de parte, quer devido às regras da lógica, do bom senso e da experiência de vida, o tribunal a quo deveria ter considerado provado que a quantia de € 7.000,00 inscrita no cheque dos autos, e que foi entregue pelo Apelante à Apelada, foi cedida a título de empréstimo, com a inerente obrigação de restituição, jamais se tratando de uma liberalidade entre irmãos! 10. Como decorre da lógica e das regras da experiência de vida, jamais se entregam quantias monetárias desta ordem de grandeza (como a que está em causa nos autos) a título gratuito!! 11. Mais ainda quando essas duas pessoas são irmãos, em que, consabidamente, são frequentes os empréstimos!! 12. Razão pela qual muito surpreendeu que o tribunal a quo ficasse com dúvidas acerca do carácter oneroso com que o Apelante entregou € 7.000,00 à Apelada! 13. Como bem sabemos, não é de todo crível ou plausível que tal quantia tenha sido entregue a título de liberalidade. 14. Tal cenário é, de todo em todo, inverosímil. 15. Por outro lado, o Apelante explicou quais os termos do contrato verbal feito com a irmã, que esta lhe pediu dinheiro emprestado, que este emprestou para aquela fazer obras na loja que à data explorava no C…, ficando a irmã obrigada a restituí-lo no prazo de 1 ano, quantias que necessitava. 16. Na gravação do CD 20190114142043_19629085_2871103 dos minutos 08:59 a 10:05 pode escutar-se o Autor a explicar à Mma. Juiz que se trata de “dinheiro que eu emprestei à minha irmã, que ela me pediu, que eu lhe emprestei e que ela ecusou-se a pagar. Só isso.” 17. Tendo acrescentado que: “Obrigou-se a pagar passado um ano, ou seja, ela … estava a pagar uma dívida da filha…contraiu um empréstimo para liquidar uma dívida da filha e disse-me “Oh A., agora não tenho dinheiro, se puderes emprestar eu agradeço. Preciso de fazer obras na loja, para o ano já tenho a dívida, as prestações…já acaba o empréstimo e eu faço outro empréstimo para te pagar.”Somos irmãos, foi na base da confiança…” 18. E que esta não foi a única quantia que lhe emprestou, correndo em tribunal outros processos para cobrança dessas quantias que nunca foram restituídas… 19. Mais explicou o Apelante que no campo “à ordem”, o nome da Apelada foi aposto pelo punho da própria, previamente ao desconto do cheque. 20. E que a loja na qual a irmã precisava de fazer obras se situava no C…, e que a empresa que explorava tinha o nome “P….”. 21. Ou seja, da análise crítica dos documentos juntos aos autos e das declarações do Autor conjugada com as regras da lógica e da experiência de vida, decorre a verificação dos requisitos do contrato de mútuo, designadamente: - a existência de uma quantia cedida pelo Apelante à Apelada - o cheque dos autos preenchido pelo Apelante (à excepção do campo “à ordem de”) e entregue à Apelada que, com o seu punho, apôs o seu nome no campo “à ordem de” - o propósito específico para a entrega da quantia - a realização de obras numa loja explorada, à data, pela Apelada) - a assunção da obrigação de restituição num prazo certo – um ano, assim que a Apelada terminasse de liquidar as prestações do empréstimo que tinha contraído para pagar uma dívida da sua filha. 22. Como é evidente e foi explicado pelo Apelante, ele e a Apelada são irmãos e o dinheiro foi emprestado “na base da confiança”, razão de confiança e de parentesco que torna não expectável que um mútuo entre irmãos seja reduzido a escrito. 23. Aliás, a redução a escrito de tal tipo de acordos acarreta, consabidamente, um grande desconforto entre ambas as partes, pelo que facilmente se percebe que Apelante e Apelada não tenham procurado elaborar um documento para titular este empréstimo – nem os restantes que se seguiram... 24. E nem se refira que o Apelante demorou a vir exigir a restituição do dinheiro emprestado, pois, em primeiro lugar, mesmo tendo o empréstimo sido feito por 1 ano, não tinha o Apelante qualquer obrigação de exigir a quantia findo esse prazo, e em segundo lugar, o dinheiro, felizmente, não lhe fez falta, pelo que só quando se confrontou com problemas de liquidez é decidiu exigir a quantia mutuada. 25. Face a todo o exposto, dúvidas não podem existir quanto à qualificação factual do contrato como um mútuo, ficando obviamente afastada a existência de qualquer liberalidade ou doação, cenário que, como já referido, fica necessariamente excluído face às regras da experiência de vida. 26. Deve, pois, ser a matéria assente aditada com os seguintes factos: 1. No dia 20.07.2006, requerente e requerida celebraram um contrato pelo qual o requerente emprestou à requerida a quantia de € 7.000,00 (sete mil euros), ficando esta obrigada à sua restituição no prazo de 1 (um) ano a partir daquela data. 2. A quantia mutuada destinava-se ao pagamento de obras a realizar em estabelecimento comercial explorado pela requerida. 27. Rectificando-se o erro de julgamento em que incorreu o Tribunal a quo, com a corresponde alteração à matéria de facto provada, será forçoso reconhecer a existência do mútuo invocado nos autos, a qual já decorre, segundo as regras de experiência e da lógica, dos factos dados como provados. 28. O mútuo é, na noção constante no artigo 1142.º do Código Civil, “o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”. 29. Ficou provado que o Apelante emprestou à Apelada, em 20.07.2006, a quantia de € 7.000,00; tendo a última – justamente por se tratar de um empréstimo – que devolver tal quantia ao seu irmão, aqui Apelante. 30. Mais ficou provado a que título o Apelante cedeu o dinheiro à Apelada, qual o fim a que se destinava tal quantia. 31. Como já se referiu, compreende-se porque razão este empréstimo não foi reduzido a escrito. 32. Não obstante, ainda que se defenda a nulidade do mútuo por ser superior a € 2.500,00 e depender de documento assinado pelo mutuário, o facto é que a consequência sempre seria a restituição das quantias mutuadas (artigo 289.º do Código Civil), pelo que sempre competiria à Apelada entregar ao Apelante a quantia mutuada acrescida dos juros que entretanto se venceram. 1) Por todo o supra exposto, fica evidente o erro de julgamento em que incorreu o Tribunal a quo, impondo-se a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que considere a acção integralmente procedente, condenando-se a Apelada no pagamento do capital mutuado acrescido dos juros de mora vencidos, num total de € 10.114,52.” 5. Em sede de contra-alegações, a R. defendeu a improcedência do recurso. II. QUESTÕES A DECIDIR Considerando o disposto nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, são: - da impugnação da matéria de facto; - da existência de um contrato de mútuo celebrado entre as partes. III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A decisão recorrida considerou os seguintes factos: “Factos Provados: 1. O Autor entregou à Ré o cheque n.º 96963..., do Banco BPI, S.A., referente à conta n.º 1-9122...-000-..., titulada pelo Autor, datado de 20/07/2006, no valor de 7.000,00 euros, à ordem da Ré, o qual foi apresentado a pagamento e creditado em conta do beneficiário. 2. O Autor enviou à Ré carta registada com aviso de recepção que aquela recebeu em 27/02/2018, com o seguinte teor: “Verificando-se até á presente data a quantia mutuada ainda não me foi restituída nem foi apresentada nenhuma forma de liquidação, concedo-lhe um prazo de quinze dias para a resolução da situação sob pena de não o fazendo darei instruções para a minha advogada para que instaure os procedimentos judiciais adequados.” Factos não Provados: 1. No dia 20.07.2006, requerente e requerida celebraram um contrato pelo qual o requerente emprestou à requerida a quantia de € 7.000,00 (sete mil euros), ficando esta obrigada à sua restituição no prazo de 1 (um) ano a partir daquela data. 2. A quantia mutuada destinava-se ao pagamento da renda do estabelecimento comercial que era, à data, explorado pela requerida, bem como para a realização de algumas obras no locado. 3. O requerente interpelou inúmeras vezes a requerida para que esta procedesse à restituição da quantia mutuada. 4. A entrega do cheque mencionado supra ficou a dever-se a um acerto de contas entre as partes, relacionado com a actividade de gerente do Requerente em diversas sociedades de que a Ré era sócia, destinando-se a pagar valores que teria a receber por conta da sua posição societária nessas sociedades”. * IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Face ao teor das alegações de recurso e às questões a decidir, importa iniciar a sua análise de forma lógica, o que se passa a efectuar. 1. Da impugnação da matéria de facto: Nos termos do art. 662º, nº 1 do CPC, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Por outro lado, dispõe o art. 640º, nº 1 do CPC que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.” Tal como vem sendo entendido pela Doutrina e pela Jurisprudência, resulta deste preceito o ónus de fundamentação da discordância quanto à decisão de facto proferida, fundamentando os pontos da divergência, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, abarcando a totalidade da prova produzida em primeira instância. Ou seja, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto tem como objectivo colocar em crise a decisão do tribunal recorrido, quanto aos seus argumentos e ponderação dos elementos de prova em que se baseou. Quer isto dizer que incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o recurso, podendo transcrever os excertos relevantes. Por seu turno, o recorrido indicará os meios de prova que entenda como relevantes para sustentar tese diversa, indicando as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal. Tem sido entendido que, ao abrigo do disposto no art. 662º do CPC, a Relação tem os mesmos poderes de apreciação da prova do que a 1ª instância, por forma a garantir um segundo grau de jurisdição em matéria de facto. Donde, deve a Relação apreciar a prova e sindicar a formação da convicção do juiz, analisando o processo lógico da decisão e recorrendo às regras de experiência comum e demais princípios da livre apreciação da prova, reexaminando as provas indicadas pelo recorrente, pelo recorrido e na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto. Neste sentido, vide António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pág. 283 e ss.. No caso dos autos, pretende o apelante que se adite à matéria de facto provada os seguintes factos: “1. No dia 20.07.2006, requerente e requerida celebraram um contrato pelo qual o requerente emprestou à requerida a quantia de € 7.000,00 (sete mil euros), ficando esta obrigada à sua restituição no prazo de 1 (um) ano a partir daquela data. 2. A quantia mutuada destinava-se ao pagamento de obras a realizar em estabelecimento comercial explorado pela requerida”. Para tanto, alega que estes factos resultam “da análise crítica dos documentos juntos aos autos e das declarações do Autor conjugada com as regras da lógica e da experiência de vida”. Vejamos. Na sentença recorrida entendeu-se que estes factos não podem ser dados como provados, constando da mesma a seguinte fundamentação: “O Tribunal fundou a sua convicção sobre os factos provados no teor da documentação junta que os comprova, designadamente, o cheque mencionado e carta enviada pelo Autor à Ré. Tudo o mais alegado na petição inicial e na oposição foi julgado não provado tendo o tribunal baseado a sua convicção no raciocínio que a seguir se expende. Começamos por frisar que nenhuma das partes apresentou testemunhas de qualquer facto respeitante ao acordo ou causa que terá estado na origem da entrega da quantia titulada pelo cheque referido na matéria de facto provada, não tendo a Ré aceite tratar-se de um mútuo. O único meio de prova apresentado foi constituído pelas declarações de parte do Autor que reafirmou, de forma genérica, os factos alegados no requerimento inicial. As declarações de parte têm que ser ponderadas tendo presente que a parte que as presta tem interesse na matéria em discussão e, por isso, releva essencialmente para formar no julgador a convicção de que os factos se passaram conforme descrito pela parte, a forma como as declarações são prestadas, o que é dito espontaneamente e o que é omitido, a coerência com aquilo que é a experiência comum, os restantes meios de prova que suportam ou não tais declarações. No caso em apreço, não existe qualquer suporte probatório para os factos para além das declarações de parte do Autor, sendo ainda de referir a inexistência de quaisquer elementos indirectos ou indiciários que nos permitam formar uma convicção objectiva sobre a credibilidade de tais declarações. Com efeito, considerando que a existência do cheque ou da carta de interpelação enviada mais de dez anos depois da ocorrência dos factos não chegam para indiciar a obrigação de restituir própria do mútuo, nem tendo sido indicada prova testemunhal de factos que possam constituir prova directa ou indiciária do acordo alegado, entendemos que as declarações de parte do Autor não são suficientes para dar como provados os factos em questão. Não demonstrou igualmente a Ré a causa por si alegada para justificar a entrega do cheque, não sendo a certidão comercial de duas sociedades de que Autor e Ré são sócios elemento suficiente para a comprovar”. Analisemos, pois, a prova produzida por forma a aferir da possibilidade de modificação da matéria de facto nos termos pretendidos. Antes de mais, importa referir que a única prova constante dos autos consiste nas declarações de parte do A. e nos documentos juntos em sede de audiência de julgamento. Destes documentos não consta qualquer contrato celebrado entre as partes, nem qualquer documento relativo à entrega da quantia peticionada, motivos dessa entrega, momento da sua restituição ou qualquer outro elemento de onde se possa retirar qualquer conexão com a entrega de numerário ou de cheque. Por outro lado, em sede de declarações de parte, o A. relatou os motivos da entrega de um cheque à R. e acordo celebrado com esta, referindo ainda ter procedido a outras entregas, tal como seu pai, sem que a R. tenha procedido à restituição de quaisquer quantias. Serão estes elementos suficientes para concluir no sentido pugnado pelo apelante? Julgamos que não. Nos termos do art. 466º, nº 3 do CPC, “O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão”. Tem vindo a ser amplamente discutido na doutrina e na jurisprudência o modo como esta apreciação deve ser efectuada, podendo dizer-se, tal como no Ac. TRL de 26/04/2018, relator Luís Filipe Pires de Sousa, proc. 18591/15.0T8SNT.L.1, in www.dgsi.pt, que as várias posições relativas à função e valoração das declarações de parte são reconduzíveis a três teses essenciais: - a tese do carácter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos; -a tese do princípio de prova; - a tese da auto-suficiência das declarações de parte. Tendemos a aderir a esta terceira tese, no seguimento de Luís Filipe Pires de Sousa, in Declarações de Parte. Uma síntese, em www.trl.mj.pt, 2017 e António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2018, pág. 539 e ss., em anotação ao citado art. 466º. No seguimento destes autores, as declarações de parte estão ao mesmo nível que os demais meios de prova, sendo valoradas de forma autónoma e integrada, sem que se estabeleça qualquer hierarquia entre os vários elementos probatórios. Quer isto dizer que é em sede de fundamentação da matéria de facto que as declarações de parte devem ser valoradas, ponderando-se o seu conjunto com os demais elementos de prova, sem prejuízo da eventual confissão que ocorra. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/04/2018 supra referido “os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente. Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.” No caso dos autos, analisando conjugada e criticamente os documentos em causa e as declarações de parte do A., constata-se que o tribunal recorrido procedeu a uma correcta valoração destes meios de prova, nada havendo a censurar nos factos dados como não provados e com os quais o apelante discorda. Senão vejamos. Como já se referiu, os documentos em causa apenas podem sustentar os factos dados como assentes, não sendo possível extrair dos mesmos qualquer conexão com o objecto do litígio, nomeadamente as razões alegadas pela R. para a entrega do cheque. No que se refere às declarações de parte, constata-se que não podem as mesmas, por si só, sustentar a tese do A., ora apelante. Com efeito, e tal como já referido, estas declarações de parte devem ser valoradas autonomamente, mas de forma integrada com os demais elementos de prova. Ora, não existindo qualquer outro suporte probatório, não nos parece que se possa, neste caso concreto, dar como provado os factos constitutivos do direito alegado pelo A. unicamente com base nas suas declarações de parte. Defende o apelante que a conjugação das declarações de parte com regras de lógica e de experiência de vida levam a dar como provados os factos relativos à existência de um contrato de mútuo. Salvo o devido respeito, não nos parece que assim seja. Na verdade, considerando o parentesco entre as partes, pode assumir-se como natural a eventual existência de um mútuo não reduzido a escrito, mas já não que o mesmo se mantenha por mais de dez anos sem qualquer interpelação, o que contraria as referidas regras de lógica e de experiência de vida. E esta conclusão não coloca em crise a seriedade e credibilidade das declarações de parte do A., como parece vir alegado, mas apenas realça a impossibilidade de dar como assente a existência de um contrato celebrado tendo por base unicamente um só depoimento, independentemente de quem o presta. Com efeito, e se as declarações de parte do A. constituíssem confissão, poderiam valer como único meio de prova. Em caso contrário, essas declarações devem ser conjugadas e valoradas com a demais prova, a qual, no caso vertente, é inexistente. Donde, e por falta de elementos de prova nesse sentido, não é possível dar como assentes os factos pretendidos pelo A.. Assim sendo, o julgamento da matéria de facto provada afigura-se-nos correcto e não pode ser alterado no sentido proposto, improcedendo todas as conclusões do apelante relativas à impugnação da matéria de facto, devendo manter-se como assentes os factos dados como provados e apenas estes. 2. Da existência de um contrato de mútuo celebrado entre as partes: Aqui chegados, há que referir que da análise das alegações e respectivas conclusões apresentadas resulta que os fundamentos de discordância do apelante com a decisão recorrida relativos ao mérito da causa tinham como pressupostos a alteração da matéria de facto. Com efeito, nas suas conclusões o apelante refere expressamente que “rectificando-se o erro de julgamento em que incorreu o Tribunal a quo, com a corresponde alteração à matéria de facto provada, será forçoso reconhecer a existência do mútuo invocado nos autos, a qual já decorre, segundo as regras de experiência e da lógica, dos factos dados como provados”, terminando dizendo que “fica evidente o erro de julgamento em que incorreu o Tribunal a quo, impondo-se a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que considere a acção integralmente procedente, condenando-se a Apelada no pagamento do capital mutuado acrescido dos juros de mora vencidos, num total de € 10.114,52”. Ora, tendo a impugnação da matéria de facto sido julgada improcedente, e não existindo qualquer fundamento que determine a alteração oficiosa da decisão sobre a matéria de facto, temos de concluir que a apreciação do mérito da causa se mostra prejudicada, já que a mesma dependia de ser dado como provados factos integradores do contrato de mútuo que, in casu, não estão verificados. Assim sendo, e estando a alteração da decisão de mérito proferida dependente da alteração da matéria de facto, fica prejudicado o seu conhecimento, concluindo-se pela improcedência da apelação, nos termos do art. 608º, nº 2 do CPC, aplicável ex vi do disposto no art. 663º, nº 2, in fine, do mesmo diploma. Neste sentido cfr., por todos, o Ac. TRG, de 11-07-2017, proc. 5527/16.0T8GMR.G1, relator Maria João Matos. Ainda assim, sempre se dirá que não se pode concluir dos autos qual o motivo da entrega do cheque em causa, não se sabendo se a mesma se deveu a um empréstimo, a liberalidade, ou a um acerto de contas, como alegado pela R.. Isto é, da prova produzida não foi possível apurar o motivo dessa entrega e demais contornos de um eventual acordo entre as partes. Acresce que não é suficiente a mera entrega ou depósito de dinheiro para concluir pela existência de um contrato de mútuo (ou qualquer outro), já que a mesma pode ter como causa qualquer outra fonte de obrigação. Por outro lado, também têm de estar assentes factos relativos à assunção da obrigação de restituição de outro tanto do mesmo género e qualidade, que, no caso vertente, não se mostra provado. Concluindo, por não merecer qualquer censura, conclui-se pela manutenção da decisão recorrida. V. DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida. Custas pelo apelante. * Lisboa, 28 de Maio de 2019 Ana Rodrigues da Silva Micaela Sousa Maria Amélia Ribeiro |