Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1710/20.1T8CSC.L1-8
Relator: AMÉLIA PUNA LOUPO
Descritores: PROMESSA DE CUMPRIMENTO E RECONHECIMENTO DE DÍVIDA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
NEGÓCIO ABSTRACTO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: (Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art.º 663º n.º 7 do Código de processo Civil)
I - A apreciação da impugnação da matéria de facto não subsiste por si, assumindo um carácter instrumental face à decisão de mérito do pleito. Daí que só se justifique nos casos em que da modificação da decisão de facto possa resultar algum efeito útil relativamente à resolução do litígio no sentido propugnado pelo recorrente, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inconsequente o que, além de contrariar os princípios da celeridade e da economia processual, redundaria na prática de acto inútil.
II - O nº 1 do art.º 458º Código Civil tão só estabelece a presunção de existência da relação negocial que é fundamento da prestação prometida ou da dívida reconhecida, e por isso inverte o ónus da prova.
III - O preceito não consagra o princípio do negócio abstracto, antes tem subjacente a relação negocial, cuja existência presume e que constitui a fonte da obrigação; e por presumir a existência da relação negocial dispensa o credor de provar a existência dessa relação, mas não o dispensa do ónus de a alegar, isto é, de alegar os factos constitutivos da relação fundamental que é fonte da obrigação e que constitui a verdadeira causa de pedir.
IV - No regime do enriquecimento sem causa a falta de causa justificativa a que a lei alude é uma falta de causa jurídica, e esta não é confundível com a falta de prova da causa que tenha sido invocada para a transferência patrimonial ocorrida.
V - Sendo pelo Autor invocada uma causa jurídica justificativa para a transferência patrimonial da sua esfera jurídica para a esfera jurídica da Ré, tal mostra-se inconciliável com a aplicação do regime do enriquecimento sem causa, por este assentar na ausência de causa jurídica justificativa para a deslocação patrimonial.
VI - Para procedentemente accionar o regime do enriquecimento sem causa cabe ao Autor, nos termos do art.º 342º nº 1 CCivil, alegar e provar factos susceptíveis de demonstrar que não existia qualquer causa jurídica para a entrega das quantias à Ré ou que elas haviam sido entregues por uma causa jurídica que tinha deixado de existir ou em vista de um efeito que não se verificou, uma vez que esses são os pressupostos de aplicação do instituto (cfr. art.º 473º nº 2 CCivil), não incumbindo à Ré a prova de que ocorreu uma causa justificativa da deslocação patrimonial.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
JL, titular do cartão de cidadão nº…, contribuinte fiscal nº …, residente na Rua … nº …, apartamento …, em …,
intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma única de processo comum, contra
CS, titular do cartão de cidadão nº …, contribuinte fiscal nº …, residente na Rua … nº …, em …,
pedindo
«a) Seja a Ré condenada a restituir ao Autor a quantia de € 24.971,50 (vinte e quatro mil, novecentos e setenta e um euros, e cinquenta cêntimos), por ter reconhecido a dívida e tendo feito promessa de cumprimento de que restituiria tal quantia pecuniária que lhe fora adiantada e confiada pelo Autor, bem como seja condenada no pagamento dos juros de mora devidos, desde a data da respectiva interpelação, em 05/07/2017, nos termos e para os efeitos do art.º 805º do Código Civil, ex vi, art.º 217º e 458º, todos do mesmo diploma legal.
Em alternativa, e/ou caso assim não se entenda,
b) Seja a Ré condenada em abuso de direito e em violação do princípio da confiança, e, em consequência, seja condenada a restituir ao Autor a quantia de € 24.971,50 (vinte e quatro mil, novecentos e setenta e um euros, e cinquenta cêntimos), por ter reconhecido a dívida e tendo feito promessa de cumprimento de que restituiria tal quantia pecuniária que lhe fora adiantada e confiada pelo Autor, nunca tendo-a devolvido até à presente data, sabendo, porém, que estava adstrita a esse dever geral imposto pelo princípio da confiança e pela garantia constitucional do direito de propriedade privada, bem como,
c) Seja, nestes termos, a Ré condenada no pagamento dos juros de mora devidos, desde a data da respectiva interpelação, em 05/07/2017, tudo por força do artigo 334º do Código Civil, por violação do art.º 805º e 806º do Código Civil, ex vi, art.º 217º e 458º, todos do mesmo diploma legal, bem como por violação do art.º 62º da Constituição da República Portuguesa;
Subsidiariamente, sem prescindir e à cautela,
d) Seja a Ré condenada por enriquecimento sem causa, e em consequência, deverá ser obrigada a restituir ao Autor a quantia de € 24.971,50 (vinte e quatro mil, novecentos e setenta e um euros, e cinquenta cêntimos) que sem causa justificativa, foi transferida para a sua conta e, apesar de reconhecer que teria de proceder à sua respectiva devolução, a verdade é que nunca foi devolvida até à presente data, encontrando-se, nestes termos, preenchidos todos os requisitos do enriquecimento sem causa, nos termos do art.º 473º do Código Civil, bem como,
e) Seja, nestes termos, a Ré condenada no pagamento dos juros de mora devidos, desde a data da respectiva interpelação, em 05/07/2017, por força do artigo 805º e art.º 806º, ambos do Código Civil.»

Inicia o Autor a petição, com o que denominou “questão prévia”, aludindo a uma anterior acção por ele intentada contra a Ré em que, tal como na presente, peticionou a restituição da quantia também em causa nestes autos, porém ali sustentada em alegado contrato de mútuo, fundamento que improcedeu, tendo, contudo, a Ré sido condenada com base no enriquecimento sem causa, sentença que em sede de recurso veio a ser revogada por o Autor ali não ter subsidiariamente peticionado a restituição a coberto desse instituto. Tudo para expressar que, fundando esta acção em reconhecimento de dívida e promessa de cumprimento sob invocação do art.º 458º nº 1 CCivil, não existe caso julgado entre essa outra e a presente acção.
De seguida, alega, em suma, que A. e R. mantiveram uma relação de namoro entre 2005 e 2012 e nesse contexto disponibilizou à Ré diversas quantias entre 2009 e 2011, mediante transferências bancárias para conta desta, que perfazem o montante reclamado de € 24.971,50, para que a Ré fizesse face a despesas relacionadas com a  aquisição de um apartamento, tendo ficado entre ambos acordado que a Ré restituiria aquele valor na totalidade, o que não ocorreu apesar de diversas interpelações do Autor a partir do início de 2017.

Na sua contestação a Ré arguiu a excepção de caso de julgado e de autoridade de caso julgado com fundamento na pretérita acção que o Autor contra ela intentou e à qual o mesmo alude na parte introdutória da petição; e relativamente ao pedido subsidiário, sustentado em enriquecimento sem causa, arguiu ainda a prescrição.
Impugnou ainda os documentos apresentados pelo A., especialmente os que respeitam a alegadas transferências para a Ré mas que tiveram por destino conta bancária que não é da sua titularidade e ainda os que pela sua ilegibilidade não revelam as transferências alegadas. E no domínio dos factos refutou que tenha de restituir ao Autor qualquer valor invocando, em síntese, que as entregas de quantias que o Autor lhe fez ocorreram no contexto da vivência em comum de ambos e destinavam-se a despesas domésticas e à aquisição de bens para o Autor.

Foi elaborado despacho saneador em que foi dispensada a fixação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova e em cujo âmbito foram julgadas improcedentes as excepções de caso julgado e de autoridade de caso julgado aduzidas pela Ré.

A final foi proferida sentença que, dando provimento ao pedido subsidiário condenou a Ré, por enriquecimento sem causa, a pagar ao Autor a quantia de €18.820,00, acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde a data da interpelação (10.07.2017) até integral pagamento.

Inconformada, veio a ré interpor o presente recurso de apelação, com impugnação da decisão sobre a matéria de facto, sustentando a revogação da sentença de primeira 1ª instância e a sua substituição por outra que considere nada ser por ela devido ao autor Recorrido.
Das suas alegações extraiu a Recorrente as seguintes
Conclusões
« I- Vem o presente recurso, interposto da decisão proferida pelo Tribunal a quo, que considerou parcialmente procedente a Ação de Condenação sob a forma de processo comum, apresentada pelo aqui Recorrido e, em consequência, condenou a Recorrente CS a pagar ao Recorrido a quantia de € 18.820,00 acrescida de juros de mora à taxa de 7,00 %, contados desde a data da interpelação e até integral pagamento;
II- A aqui Recorrente entende e demonstrou que a decisão ora recorrida colide, em parte, com a prova produzida nos presentes autos, uma vez que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação da prova produzida em sede audiência de julgamento, bem como da prova documental e não julgou corretamente parte da matéria de facto e de direito que as partes submeteram à sua consideração;
III- O Tribunal a quo, na sentença da qual ora se recorre, entendeu dar como provados, nos pontos 6 a 16, os factos dos quais constam as alegadas transferências realizadas pelo Recorrido para a conta bancária da Recorrente, cujo valor se computa em € 18.820,00;
IV- Em sede de Contestação, a aqui Recorrente, além de impugnar todos os documentos juntos com a Petição Inicial genericamente, impugnou, em particular, alguns dos comprovativos de pagamento juntos pelo Recorrido, por se encontrarem ilegíveis;
V- No documento n.º 9, o valor da transferência é, precisamente, a informação menos perceptível de todo o alegado comprovativo de pagamento;
VI- Já no que concerne ao documento n.º 10, o que vemos é uma página com escritos feitos à mão por alguém, e um retângulo completamente impercetível no meio;
VII- Não se concebe, desta forma, com que fundamento o Tribunal a quo resolveu dar como provados, nos factos vertidos sob os pontos 9 e 10, a existência de duas transferências no valor de €2.000,00 cada uma, alegadamente feitas pelo Recorrido para a conta bancária da Recorrente;
VIII- Por outro lado, o Tribunal a quo decidiu dar como provado o facto vertido sob o n.º 13, com o seguinte teor:
“Em 28.03.2011, o Autor transferiu €1.800,00 e, na mesma data, transferiu a quantia de €120,00 para a conta bancária da Ré”;
IX- O referido facto reporta-se a uma transferência que foi realizada para uma conta bancária diferente da conta da aqui Recorrente – tendo a aqui Recorrente impugnado esse facto em sede de Contestação;
X- Não pode vir o Tribunal a quo dar como provado um facto que não corresponde à verdade e cuja prova apresentada pelo próprio Recorrido (documento n.º 13 junto com a Petição Inicial) transmite exatamente que a conta bancária para a qual foi transferido o referido valor não corresponde à conta bancária da aqui Recorrente;
XI- Só poderá o Tribunal ad quem concluir que tais factos não foram dados como provados, por inexistência de prova que os sustente, devendo assim os referidos factos vertidos sob os nº. 9, 10 e 13 da Sentença da qual se recorre, serem considerados não provados;
XII- O Tribunal a quo formulou a sua convicção com base na existência de alegado enriquecimento sem causa da Recorrente, no que às transferências realizadas pelo Recorrido diz respeito;
XIII- A própria sentença da qual se recorre dita que: “São requisitos do enriquecimento sem causa:
a) o enriquecimento de alguém; b) o consequente empobrecimento de outrem; c) o nexo causal entre o enriquecimento do primeiro e o empobrecimento do segundo; d) a falta de causa justificativa do enriquecimento”;
XIV- No entanto, não existe falta de causa justificativa do enriquecimento;
XV- A Recorrente veio explicar ao Tribunal a quo que as quantias que lhe foram entregues pelo Recorrido se destinavam ao exercício da vida comum de ambos, enquanto casal, bem como, à aquisição de bens para o Recorrido;
XVI- No decurso da vida comum do casal, era habitual que o Recorrido transferisse quantias monetárias para a conta bancária da Recorrente com o propósito de que esta última adquirisse os bens necessários, quer à vida comum de ambos, quer a alguns bens pessoais que o Recorrido desejava - o que, aliás, ficou provado através de prova testemunhal, conforme se passará a demonstrar infra;
XVII- Várias testemunhas, entre elas, a testemunha GM e a testemunha AF, demonstraram que a Recorrente e o Recorrido viveram juntos durante o período em que se encontravam na faculdade (e não só), o que só por si reflete a vivência em comum de ambos e a necessidade de partilha de despesas inerentes a essa mesma vivência;
XVIII- Ficou provado, pelos testemunhos de AF e MF, que o Recorrido não tem por hábito emprestar dinheiro, que é uma pessoa poupada, e, por essa razão e considerando estas suas características, ficou ainda demonstrado que o Recorrido não iria emprestar o seu dinheiro à aqui Recorrente sem qualquer fundamento para o efeito;
XIX- O que, mais uma vez, demonstra bem que o Recorrido apenas transferiu as quantias em questão para a Recorrente a título de despesas comuns do casal, uma vez que era a Recorrente quem procedia à aquisição dos bens necessários a ambos e, ainda, de alguns bens pessoais do Recorrido;
XX- Ficou ainda provado, pela testemunha MF, que as únicas pessoas que saberiam, com certeza, qual o fim destas transferências, eram os próprios Recorrente e Recorrido, não tendo nenhuma testemunha conseguido provar que, efetivamente, aquele dinheiro tinha sido transferido para qualquer outro fim que não o da vivência em comum do casal;
XXI- A Recorrente conseguiu demonstrar que as transferências que foram pelo Recorrido feitas, destinavam-se à compra de produtos essenciais para a vida em comum do casal e, ainda a produtos pessoais do Recorrido, cuja Recorrente, por vezes, enviava para este, quando o mesmo se encontrava na Madeira;
XXII- Neste sentido, acredita a Recorrente que o Tribunal a quo, não considerou, para a prova dos factos, duas realidades: o facto que deveria ter sido dado como provado – o qual passaremos a expor -, e, ainda, as declarações de parte, da aqui Recorrente;
XXIII- O facto que deveria ter sido dado como provado e o qual se pretende vir agora a aditar, com a interposição do presente recurso é o seguinte: “As transferências realizadas pelo Autor para a conta bancária da Ré, já melhor discriminadas, tinham como propósito fazer face às despesas comuns do casal e próprias do Autor”;
XXIV- Por outro lado, na Sentença da qual se recorre, o Tribunal a quo determinou o seguinte: “Não se consideraram os depoimentos e declarações de parte do A. e da R., uma vez que mantiveram as posições que constam dos seus articulados”;
XXV- Ora, quer-se acreditar que a razão pela qual o Tribunal a quo não aditou o facto acima indicado no elenco dos factos dados como provados, deriva da desconsideração das declarações e depoimentos de parte da Recorrente;
XXVI- As declarações e depoimentos de parte consubstanciam um meio de prova, que, apesar de sujeito à livre apreciação do julgador, não pode ser ignorado e desconsiderado de forma quase negligente, como o Tribunal a quo fez;
XXVII- Existem, pela sua natureza, factos que apenas podem ser provados através de declarações de parte, como é o caso de factos íntimos da vida de um casal. Factos aos quais terceiros não terão acesso, pela privacidade inerente a uma relação de namoro. No caso em apreço, estamos perante esses mesmos factos, isto é, as despesas partilhadas por um casal só a este dirão respeito e os membros do casal decidirão partilhar ou não com terceiros essas informações;
XXVIII- Requer-se que seja aditado ao elenco dos factos provados o facto provado n.º 17, com a seguinte redação: “As transferências realizadas pelo Autor para a conta bancária da Ré, já melhor discriminadas, tinham como propósito fazer face às despesas comuns do casal e próprias do Autor”;
XXIX- No que concerne ao Direito a aplicar ao caso concreto, só poderá o Tribunal ad quem concluir que os factos referentes às transferências bancárias já acima melhor identificadas não foram dados como provados, por inexistência de prova que os sustente, devendo assim os referidos factos vertidos sob os nº. 9, 10 e 13 da Sentença da qual se recorre, serem considerados não provados;
XXX- Por outro lado, o Tribunal a quo decidiu aplicar, aos factos julgados como provados, o instituto do enriquecimento sem causa, decidindo condenar a aqui Recorrente ao pagamento do valor de €18.820,00 acrescidos de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da interpelação;
XXXI- Na sequência de vir a ser dado como provado e aditado o facto n.º 17 (“As transferências realizadas pelo Autor para a conta bancária da Ré, já melhor discriminadas, tinham como propósito fazer face às despesas comuns do casal e próprias do Autor”), podemos concluir que não existiu qualquer enriquecimento da parte da aqui Recorrente;
XXXII- Se a Recorrente fez prova de que era ela quem procedia à aquisição dos bens necessários ao casal composto pela Recorrente e Recorrido, significa que a mesma não se encontrava a guardar para si aquelas quantias, não estando, portanto, a enriquecer à custa do Recorrido;
XXXIII- Não se encontra verificado o nexo causal entre o enriquecimento do primeiro e o empobrecimento do segundo, uma vez que, como vimos, não existe enriquecimento da Recorrente;
XXXIV- Ficou provado haver fundamento para o alegado “enriquecimento”, isto é, para a existência das referidas transferências. Como vimos, a causa era precisamente a vivência em comum do casal – o que ficou provado, quer através das declarações de parte da aqui Recorrente, mas também, através dos testemunhos que definiram a personalidade do Recorrido, o qual é uma pessoa poupada, que não tem por hábito emprestar dinheiro aos outros;
XXXV- Não se encontrando verificados os pressupostos do enriquecimento sem causa, não poderá este instituto ser aplicado à situação em apreço, e por consequência, deverá ser alterada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, não só pela alteração dos factos dados como provados n.º 9, 10 e 13 de provados para não provados, mas também pelo aditamento do facto provado nº 17.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ SER DADO INTEIRO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO-SE, EM CONSEQUÊNCIA, A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, NA PARTE EM QUE CONDENA A RECORRENTE AO PAGAMENTO DO VALOR DE €18.820,00, AO RECORRIDO, SENDO A MESMA SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE CONSIDERE NADA SER DEVIDO AO RECORRIDO, ASSIM SE FAZENDO A ACOSTUMADA JUSTIÇA!»

O Autor contra-alegou pugnando pela confirmação do julgado, alinhado as seguintes
Conclusões
«1. Vem o presente recurso interposto da decisão do tribunal de 1.ª instância, que considerou parcialmente procedente a Ação de Condenação sob a forma de processo comum, e em consequência condenou a Recorrente no pagamento ao Recorrido a quantia de 18.820,00€ acrescida de juros de mora à taxa de 7,00%, contados desde a data de interpelação e até integral pagamento;
2. Discordando da douta decisão judicial, veio a Recorrente apresentar recurso com os fundamentos e motivações que a mesma apresentou nos autos.
3. Estas contra-alegações têm como finalidade evidenciar que os argumentos utilizados pela Recorrente são contrários aos factos provados e são desprovidos de qualquer fundamentação idónea, o que só confirmou que com a interposição deste recurso se pretende protelar o desfecho da decisão tida pelo Tribunal a quo, adiando uma decisão perfeitamente justa.
4. Ao abrigo do disposto no artigo 640º do Código de Processo Civil, as alegações efetuadas pela Recorrente, uma vez que não cumpriram o ónus a cargo da Recorrente que tivesse logrado na impugnação da decisão relativa à matéria de facto, então, toda a matéria factual deverá ser dada como provada, assente e insuscetível de impugnação, por ter sido produzida toda a prova em audiência de julgamento e apreciada na douta sentença recorrida.
5. Pelo que, quanto à matéria de facto vertida na douta sentença recorrida, deverão ter-se os factos dados como provados e insuscetíveis de impugnação.
6. Destarte, não se pode aceitar a alegação de que os juntos aos autos são na generalidade ilegíveis, e em particular, os comprovativos juntos nos docs. 9 e 10 com a petição inicial.
7. A Recorrente teve à sua disposição outros instrumentos, nomeadamente requer a junção aos autos de comprovativos (extratos bancários da sua conta) que estão em sua posse para que fosse possível, efetivamente, comprovar a legibilidade dos documentos e não o fez.
8. A Recorrente quis procurar formas de sucumbir de prova as transferências feitas pelo Recorrido à primeira.
9. Ora, não tem fundamento o alegado supra, porquanto foi junto com a douta P.I. uma troca de mensagens e e-mails entre a Recorrente e o Recorrido, em que na ocasião deste último lhe requisitar a devolução do valor de cerca 24.000€ (junto como doc. 4 da douta P.I.), e no decorrer da conversação entre ambos, em momento algum, a Recorrente se nega à existência desse valor que foi mutuado, mais não negando à imputação que o Recorrido fez dizendo que apenas fez aquele empréstimo à Recorrente única e exclusivamente por insistência da Recorrente.
10. Quanto a essa troca de e-mails, temos de a considerar como uma verdadeira assunção de dívida, pois em momento algum a Recorrente se negou ao pagamento daquele valor, mais dizendo que o pretende devolver no futuro, e que apenas não o fez até agora (i.e. à data dos factos em 2017), porque não conseguia ter provimento de empréstimo junto da banca.
11. Ou seja, a Recorrente não só assume ser devedora daquela dívida, bem como se compromete a pagar/devolver aquele valor ao Recorrido.
12. Pelo que se considera inócuas todas as impugnações que a Recorrente faz da existência dos montantes transferidos.
13. Mais se diga que o Recorrido apenas juntou aos autos os comprovativos das transferências realizadas que conseguiu apurar junto do banco, e que totalizaram o valor de 18.820,00€, pois quanto às outras transferências anteriores realizadas, que totalizavam o valor de cerca 24.000€, não foi possível comprovar pelos extratos bancários, dada a sua antiguidade e modos de conservação de informação pela instituição bancária.
14. A Recorrente não negou que recebeu aqueles valores do Recorrido.
15. Alegou sim que os mesmos não ocorreram a título de empréstimo, mas que os mesmos destinavam-se à vida em comum de ambos, e para a aquisição de bens para o Recorrido.
16. Tais alegações carecem de total fundamento, pois a Recorrente e o Recorrido apenas viveram juntos durante o tempo em que frequentavam a Universidade, e nessa altura viviam juntos num imóvel propriedade dos pais do Recorrido.
17. A Recorrente na altura em que lá viveu, nunca teve de contribuir para despesas a título de renda, alimentação, ou outras despesas, cabendo toda essa logística às irmãs do Recorrido, que eram na íntegra suportadas pelos progenitores do Recorrido e das suas irmãs.
18. Se existiam as alegadas despesas em comum de casal, então mal andou a Recorrente em nunca trazer aos autos comprovativos concretos dessas despesas, pois questionamos como é que as mesmas poderiam existir se a Recorrente e o Recorrido nunca viveram juntos efetivamente, excluindo-se a altura em que ambos estudavam na Universidade e eram suportados pelos respectivos progenitores.
19. Não conseguiu a Recorrente provar que as transferências mensais que recebia do Recorrido destinavam-se às despesas em comum do casal ou que se destinavam para a aquisição de coisas para o Recorrido na altura em que o mesmo vivia na Madeira.
20. Também não se pode aceitar, por ser totalmente desprovido de sentido, o Recorrido necessitar todos os meses de bens para si que não pudesse adquirir na Região Autónoma da Madeira, e que o fazendo transferia à cabeça o valor para a então namorada, aqui Recorrente.
21. Denote-se que a Ilha da Madeira não obstante ser um meio pequeno e naturalmente mais limitado no leque de oferta de determinados objetos e serviços, não é um lugar totalmente desprovido dos mesmos, ou seja, existe, como sempre existiu uma oferta adequada e necessária à população. Ora, se o Recorrido era uma pessoa poupada e até considerado «forreta», naturalmente, não iria sentir a necessidade de fazer-se valer de objetos topo de gama e exclusivos - só existentes em Lisboa e só através da ajuda da Recorrente é que os poderia adquirir-, para a prática das suas atividades desportivas.
22. E, não tendo o Recorrido e a Recorrente vivido juntos, não se pode concluir pela existência de despesas em comum, nem tão pouco ficar convencidos que havendo as doutas despesas para a economia comum do casal, fazer de alguma forma sentido que as transferências ocorridas destinava-se ao pagamento de despesas correntes, como por exemplo o que é alegado pela Recorrente de que as transferências destinavam-se muitas vezes a idas ao supermercado, e que não foram e bem valoradas em sede de apreciação de prova pelo Tribunal a quo.
23. Ficou provada pela prova testemunhal, em especial pelo testemunho da mãe e da irmã do Recorrido, que este último era uma pessoa que não emprestava dinheiro a ninguém, sem que houvesse um forte fundamento que o justificasse.
24. Esse fundamento prendeu-se com a existência à data dos factos da relação amorosa entre o Recorrido e a Recorrente, pois era do conhecimento de quem lidava com ambos que era um desejo enorme da Recorrente adquirir um apartamento para si, como aliás ficou provado pelo testemunho do sr. GN.
25. Ora, ficou também demonstrado nos autos pelo doc. 4 junto com a P.I., em que o Recorrido ao interpelar a Recorrente para o pagamento, fá-lo dizendo que só realizou aquele empréstimo à Recorrente porque esta insistiu para que o fizesse.
26. Ou seja, a razão subjacente para a ocorrência daqueles empréstimos deveu-se ao facto do Recorrido querer contribuir para que a Recorrente conseguisse atingir os seus sonhos e objetivos, tendo só o feito porque na altura tinha uma relação de namoro com a Recorrente.
27. Inclusive, o Recorrido interveio na qualidade de fiador no âmbito do empréstimo feito pela instituição bancária à Recorrente.
28. Não obstante, o imóvel adquirido nunca teve como finalidade ser um bem comum do casal, e esteve sempre em nome da sua única proprietária, a Recorrente.
29. Pelo que é nesse seguimento, que se demonstra a existência de um enriquecimento sem causa por parte da Recorrente, pois não há nenhuma outra nenhuma justificação para a Recorrente ter-se valido das transferências efectuadas pelo Recorrido ao longo daqueles anos, que serviram para aquisição do seu imóvel, e essas quantias não serem devidamente restituídas ao Recorrido.
30. Nem sequer a Recorrente conseguiu provar nos autos que o destino daquelas transferências eram para a economia comum do casal ou para a aquisição de bens para o Recorrido.
31. Terminada a relação subjacente, nenhuma razão ou justificação de bom senso e protegida pelo Estado Democrático de Direito poderá permitir que a Recorrente faça seus valores sem uma única causa justificativa tutelada legalmente, o que nos remete para o instituto do enriquecimento sem causa, conforme bem analisou e decidiu o Tribunal a quo.
Termos em que V. Exas mantendo o já decidido farão a costumada JUSTIÇA!»
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Colhidos os vistos, importa apreciar e decidir.
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É sabido que nos termos dos artºs 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil são as conclusões que definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam, exercendo as mesmas função equivalente à do pedido (neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil” 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117), certo que esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica quanto à qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º nº 3 do CPC).

Assim, no caso as questões a decidir consistem em saber se:
- deve ser alterada a decisão de facto
- estão verificados os pressupostos do enriquecimento sem causa.

II – FUNDAMENTAÇÃO
A) DE FACTO
Na sentença sob recurso foi considerada a seguinte a factualidade:
«A – FACTOS PROVADOS
1- O A.  JL, e CS, ora Ré, mantiveram uma relação de namoro entre 2005 e o ano de 2012.
2 - Em 2011, a Ré adquiriu um apartamento sito no Beato em Lisboa.
3 - A relação pessoal entre o Autor e a Ré terminou em 2012.
4 - O Autor contactou a Ré, em data não concretamente apurada do início de 2017, solicitando a devolução de quantias.
5 - Por carta datada de 05.07.2017, recebida em 10.07.2017, o Autor interpelou a Ré para proceder ao pagamento de € 24.704,04. 6 - Em 02.09.2009, o Autor depositou € 200,00 na conta bancária da Ré.
7 - Em 02.04.2010, o Autor transferiu € 2.000,00 para a conta bancária da Ré.
8 - Em 05.04.2010, o Autor transferiu € 2.000,00 para a conta bancária da Ré.
9 - Em 07.04.2010, o Autor transferiu € 2.000,00 para a contra bancária da Ré.
10 - Em 14.04.2010, o Autor transferiu € 2.000,00 para a conta bancária da Ré.
11 - Em 31.12.2010, o Autor transferiu € 2.000,00 para a conta bancária da Ré.
12 - Em 03.01.2011, o Autor transferiu € 1.000,00 para a conta bancária da Ré.
13 - Em 28.03.2011, o Autor transferiu € 1.800,00 e, na mesma data, transferiu a quantia de € 120,00 para a conta bancária da Ré. 14 - Em 29.03.2011, o Autor transferiu € 1.800,00 para a conta bancária da Ré.
15 - Em 30.03.2011, o Autor transferiu € 1.900,00 para a conta bancária da Ré.
16 - Em 12.07.2011, o Autor transferiu € 2.000,00 para a conta bancária da Ré, tudo num total de €18.820,00
B – FACTOS NÃO PROVADOS
Não se mostra provado que:
1 - No contexto da relação de namoro, entre os anos de 2009 e 2011, o Autor tenha emprestado dinheiro à Ré para que esta pudesse avançar com determinados projectos pessoais, designadamente, para fazer face às despesas relacionadas com a compra de uma casa de habitação.
2 - As partes tenham acordado quanto ao dinheiro emprestado, que a Ré o restituiria quando tivesse disponibilidade.
3 - O montante entregue pelo A. à R. visasse, maioritariamente, a reunião pela Ré, dos capitais necessários para a compra do imóvel sito no Beato, em Lisboa, bem como a aquisição de mobiliário e electrodomésticos para equipar o referido imóvel.
4 - O Autor tenha aceitado ser fiador do contrato de mútuo celebrado com o Banco.
5 - A relação entre o Autor e a Ré tenha terminado sem que as quantias tenham sido restituídas, apesar dos pedidos de restituição de tais quantias.».
B) DE DIREITO
Da alteração da decisão de facto
É sabido ser ónus imposto ao Recorrente a apresentação de alegações, nas quais deve concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão (cfr. art.º 639º nº 1 CPC), sendo as conclusões que delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem.
Por outro lado, de acordo com o estipulado no art.º 640º nº 1 CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto o Recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (cfr. als. a), b) e c), do mencionado art.º 640º CPCivil), sendo que, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (nº 2 al. a) do citado artigo).
Muito embora para a admissão da impugnação da decisão sobre a matéria de facto não seja necessário que todos os ónus estabelecidos no artigo 640º do CPC constem da síntese conclusiva, dela deve necessariamente constar a especificação dos concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados [não sendo forçoso que delas conste a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações, nem a decisão alternativa pretendida - cfr. Acórdão do STJ de 12/07/2018, proc. 167/11.2TTTVD.L1.S1, in www.dgsi.pt e citado Acórdão Uniformizador nº 12/2023, de 17/10/2023 (proc. 8344/17.6T8STB.E1‑A.S1) publicado no Diário da República I série, de 14/11/2023], e a alegação/motivação deve obrigatoriamente especificar os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que impunham diversa decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, e a decisão que no entender do Recorrente deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Ónus que a Recorrente cumpriu.
No entanto há que ter presente que não haverá lugar à reapreciação da matéria de facto quando os concretos factos objecto da impugnação não forem susceptíveis de, face às circunstâncias próprias do caso sob apreciação, ter relevância jurídica para a decisão do litígio, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inconsequente o que, além de contrariar os princípios da celeridade e da economia processual, redundaria na prática de acto inútil o que se mostra vedado por lei (cfr. art.º 130º CPC).
Assim é porque a apreciação da impugnação da matéria de facto não subsiste por si, assumindo um carácter instrumental face à decisão de mérito do pleito. Daí que só se justifique nos casos em que da modificação da decisão de facto possa resultar algum efeito útil relativamente à resolução do litígio, no sentido propugnado pelo recorrente.
Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(veis) de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação ter relevância jurídica.
Veja-se, neste sentido, o Acórdão da RC de 27.05.2014, in www.dgsi.pt, onde se escreveu que «se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente destituído de qualquer eficácia, por não interferir com a solução de direito encontrada e com a decisão tomada».
No caso dos autos, como se demonstrará de seguida, mostra-se inútil a reapreciação de facto, por a decisão a tomar se colocar do estrito domínio do Direito, pelo que não se conhecerá da impugnação.
Da verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa
A sentença proferida, dando provimento ao pedido subsidiário, condenou a Ré por enriquecimento sem causa.
Como é sabido, trata-se de instituto regulado nos artºs 473º a 482º do Código Civil, fornecendo-nos o art.º 473º nº 1 o princípio geral de que aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou, e as diversas previsões constantes do regime remetem-nos para as situações de falta do resultado previsto (art.º 475º), repetição do indevido (art.º 476º), cumprimento de obrigação alheia na convicção de que é própria (art.º 477º), cumprimento de obrigação alheia na convicção de estar obrigado a cumpri-la (art.º 478º) e reportam-se sempre a prestação/obrigação, evidenciando que a falta de causa justificativa a que a lei alude é uma falta de causa jurídica, daí que o art.º 474º estabeleça a natureza subsidiária do instituto, estipulando que não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.
E a ausência de causa jurídica justificativa da deslocação patrimonial, em que assenta o enriquecimento sem causa, não é confundível com a falta de prova da causa que tenha sido invocada para a transferência patrimonial ocorrida, como, salvo o devido respeito, parece entender-se na sentença sob recurso.
No caso, na tentativa de não repetir a anterior causa intentada contra a Ré, o Autor, sob invocação do art.º 458º nº 1 do Código Civil, construiu a argumentação de que a presente acção tem como fonte da obrigação o reconhecimento de dívida e promessa de cumprimento, que o mesmo vislumbra constar da troca de correspondência electrónica entre ambos.
Esse normativo prevê que se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário (nº 1), devendo a promessa ou reconhecimento constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental (nº 2).
Independentemente de não se descortinar nos autos – maxime na troca de correspondência electrónica – o cumprimento do formalismo exigido pelo nº 2 do artigo, focando-nos no puro campo do Direito o que se verifica é que o citado nº 1 do art.º 458º tão só estabelece a presunção de existência da relação negocial que é fundamento da prestação prometida ou da dívida reconhecida (referindo-se o preceito explicitamente à relação fundamental) e por isso inverte o ónus da prova.
Apenas isso. O preceito não consagra o princípio do negócio abstracto, que existe apenas no domínio dos títulos de crédito, no campo do direito comercial; antes tem subjacente a relação negocial, cuja existência presume e que constitui a fonte da obrigação[1]: presume a existência da relação negocial e por isso dispensa o credor de provar a existência dessa relação, mas não o dispensa do ónus de alegar tal relação, isto é, de alegar os factos constitutivos da relação fundamental que é fonte da obrigação e que constitui a verdadeira causa de pedir (cfr. neste sentido, entre outros, Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 01/02/2024, proc. 1468/22.0T8BGC-A.G1, Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 25/09/2023, proc. nº 255/21.7T8VNG.P1, e o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de  26/03/2019, proc. 1534/18.6T8ACB.C1, este último invocado pela Ré na sua contestação).
Muito embora o Autor tenha anunciado fundar a presente acção exclusivamente no reconhecimento de dívida e promessa de cumprimento como se de um negócio abstracto se tratasse – o que, como vimos, não tem base legal, sendo inconsequente – a verdade é que ao longo da narrativa apresentada na petição alega que disponibilizou à Ré diversas quantias que totalizam o reclamado montante de € 24.971,50, tendo ambos acordado que a Ré lhe devolveria esse montante.
Ora, tal configura um contrato de mútuo tal como o mesmo se mostra definido no art.º 1142º do CCivil. E não é a circunstância de o Autor não lhe ter atribuído o nomem iuris – cuidadosamente, na tentativa de liminarmente excluir a verificação da excepção de caso julgado, aspecto sobre o qual não nos debruçaremos por a decisão que recaiu sobre a excepção se encontrar consolidada – que obsta à sua legal qualificação, pois o Tribunal é livre na indagação, interpretação e aplicação do Direito (cfr. art.º 5º nº 3 CPC).
E que o Autor quis efectivamente invocar o empréstimo decorre lapidarmente do final da petição, no segmento em que apresenta as questões que pretende ver colocadas à Ré em depoimento de parte, onde enuncia as seguintes questões ”(…) ii) O Eng. JL emprestou-lhe dinheiro entre os anos 2009 e 2012?; iii) foi combinado que esse dinheiro seria devolvido?; iv) Para que finalidades pediu dinheiro emprestado ao Eng. JL? (…); v) Quanto dinheiro lhe foi emprestado? (…)”, como igualmente decorre das suas contra-alegações onde em diversos passos se refere ao empréstimo (cfr., por exemplo, conclusões 25 e 26).
Portanto, a despeito de não ter logrado a respectiva prova (cfr. factos não provados 1 e 2), o Autor invocou uma causa jurídica justificativa para a transferência patrimonial da sua esfera jurídica para a esfera jurídica da Ré : o contrato de mútuo; o que se mostra inconciliável com a aplicação do regime do enriquecimento sem causa, por este, como acima explanado, assentar na ausência de causa jurídica justificativa para a transferência patrimonial, não se concebendo como poderia em abono dos pedidos principal e alternativo invocar um contrato de mútuo como causa geradora da obrigação de restituição e para fundar o pedido subsidiário invocar a inexistência de causa justificativa para a deslocação patrimonial.
Mesmo no hipotético cenário – agora concebido apenas para efeitos de exposição – de o Autor não ter invocado o empréstimo de quantias pecuniárias com obrigação da sua devolução, i.é o mútuo, como fonte da alegada obrigação de restituição por parte da Ré, para procedentemente accionar o regime do enriquecimento sem causa cabia-lhe alegar e provar factos susceptíveis de demonstrar que não existia qualquer causa jurídica para a entrega das quantias à Ré ou que elas haviam sido entregues por uma causa jurídica que tinha deixado de existir ou em vista de um efeito que não se verificou, uma vez que esses são os pressupostos de aplicação do instituto (cfr. art.º 473º nº 2 CCivil), factos cuja alegação, para subsequente prova, cabia ao Autor nos termos do art.º 342º nº 1 CCivil, e transcorrida a petição nela não se encontra a alegação de quaisquer factos nesse sentido; não incumbindo à Ré a prova de que ocorreu uma causa justificativa da deslocação patrimonial, daí a irrelevância, in casu, da apreciação da impugnação da matéria de facto formulada pela Ré.
A este respeito veja-se o Acórdão STJ de 22/01/2004, proc. 03B1815, publicado em www.dgsi.pt, em cujo sumário se lê:
“I - A falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento assume no tipo legal do artigo 473.º do Código Civil a natureza de elemento constitutivo do direito, devendo os respectivos factos integradores ser, pois, qualificados como constitutivos do direito à restituição, mesmo em caso de dúvida, e cabendo por consequência ao autor deste pedido o concernente ónus probatório, cujo incumprimento se resolve em seu desfavor (artigo 342.º, n.ºs 1 e 3);
II - No plano da interpretação e aplicação do direito envolvido na repartição do ónus da prova não relevam as dificuldades probatórias dos factos negativos;
III - Competindo ao autor do pedido de restituição o ónus da prova da falta de causa do enriquecimento, à prova que neste sentido seja lograda pode o réu opor contraprova destinada a tornar essa falta duvidosa, de forma que, alcançando sucesso, a questão é decidida contra o autor (artigo 346.º);
IV - No quadro das proposições antecedentes, a alegação pelo réu de factos integradores de uma causa justificativa do enriquecimento compreende-se unicamente como exercício de contraprova, e a falta de prova dos factos neste sentido alegados apenas surte consequentemente efeitos jurídico-processuais desfavoráveis ao réu caso seja cumprido pelo autor o correspectivo ónus probatório. (…)”.
E ainda o Acórdão do STJ de 16/09/2008, proc. 08B1644 (disponível na mesma base de dados), segundo o qual
“1. Tendo o autor estruturado a sua acção (também) com base no enriquecimento sem causa, compete-lhe alegar e provar os respectivos pressupostos, vertidos no art.º 473º, nº 1 do CC.
Sendo os mesmos:
a) a existência de um enriquecimento;
b) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem;
c) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento.
2. Tendo, assim, a falta de causa de ser não só alegada, como também provada, por quem pede a restituição.
Não bastando, segundo as regras do onus probandi, que não se prove a existência de uma causa da atribuição, sendo preciso convencer o tribunal da falta de causa.
3. Assim sucedendo, mesmo que o réu, na sua defesa por impugnação (por negação indirecta ou motivada), tenha alegado causa para a comprovada deslocação patrimonial (in casu, uma doação), que, entretanto, também não provou.
Pois, não é ele que necessita de demonstrar a inexactidão ou inexistência dos factos alegados pelo autor, o mesmo é dizer a existência de causa para a deslocação patrimonial verificada.”
Por conseguinte, aqui chegados, logo se conclui, tal como propugnado pela Recorrente embora por diversa ordem de razões, não estarem preenchidos os pressupostos de aplicação do regime do enriquecimento sem causa, devendo a sentença ser revogada e a Ré absolvida do pedido subsidiário, no mais se mantendo a decisão por não ter sido posto em crise e por isso definitivamente decidido.
III - DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, acorda-se em julgar a apelação procedente, em consequência do que se revoga a sentença de 1ª instância absolvendo a Ré do pedido subsidiário em que havia sido condenada, no mais se mantendo a decisão por não ter sido posto em crise e por isso definitivamente decidido.
Custas a cargo do Autor Recorrido.
Notifique.

Lisboa, 22/10/2024
Amélia Puna Loupo
Cristina Lourenço
Marília Leal Fontes
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[1] Veja-se a este respeito e por todos Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, em anotação ao artigo em causa.