Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17/21.1T8SCF.L1-2
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
RELAÇÃO DE BENS
ANALOGIA
INCIDENTES DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: No âmbito do processo especial de inventário, o erro na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro suscetível de viciar a vontade das partes, pode ser suscitado nos autos por qualquer interessado, independentemente do acordo dos restantes, depois de esgotado o prazo previsto no art.º 1104.º, do C. P. Civil, antes da emenda à partilha prevista no art.º 1126.º, do C. P. Civil, seguindo a forma processual dos incidentes da instância, por aplicação por analogia do disposto neste art.º 1126.º, do C. P. Civil.
(Pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO.
No âmbito do inventário subsequente a divórcio, o interessado AA …, inconformado com o despacho de 18 de Dezembro de 2021 que não admitiu, por intempestiva, a reclamação da relação de bens, dele interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação e a substituição por outro que admita e conheça da reclamação à relação de bens, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
1 Em suma, foi desde o acto de conversão do divórcio em mútuo consentimento que foi cometido o erro de relacionar os bens em causa como comuns.
2 Desde então até à audiência preliminar nunca o Recorrente se apercebeu da gravidade da situação – ter que partilhar bens que eram só seus.
3 Foi aí que, como está lavrado na acta, o Recorrente alarmado não quis entrar em acordo e clamou por advogado.
4 Nenhum dos participantes se apercebeu das suas razões.
5 Aqui fica uma crítica severa ao legislador por ter mantido a obrigatoriedade de advogado apenas para questões de direito neste tipo de processo.
6 O comum das pessoas não está habilitado a apreciar os pormenores técnicos da relação de bens.
7 Por isso desde aquele momento – ainda no divórcio - que os interessados e todos os outros intervenientes vem vogando sobre tal erro.
8 A permanecer assim, ao contrário do que espera o Recorrente, está-se a cometer, não uma ilegalidade processual, sem dúvida causada pela inabilidade do Recorrente, mas uma violação do direito substantivo da propriedade dos bens em causa, cuja titularidade, provada autenticamente, registada, é exclusivamente sua.
9 Conforme está regulado no art. 1722 nº 1 a) do Código Civil, são bens próprios de cada membro do casal aqueles que cada um tiver à data do casamento.
10 O Recorrente casou em data posterior à aquisição desse direito, sob o regime da comunhão de adquiridos.
11 Logo, os bens em causa são apenas seus.
12 A defesa da propriedade sobreleva à preclusão da faculdade processual de reclamação da relação de bens – arts. 1311 e 1313 do Código Civil.
13 As partes estão obrigadas ao dever de boa-fé processual – art. 8 do Código de Processo Civil.
14 A partir do momento em que tomou conhecimento das reclamações apresentadas pelo Recorrente, está a contra parte, ao manter-se em silêncio, a violar aquele princípio.
15 São essas as normas violadas, com o sentido supra.
16 Com estes fundamentos, deve o erro apontado ser corrigido, sendo eliminadas as verbas 1 e 2 da relação de bens, passando desta a constar apenas a verba de passivo.
17 Deve a cabeça de casal ser condenada como litigante de má-fé. No que espera seja feita Justiça.
Não foram apresentadas contra-alegações.
2. FUNDAMENTAÇÃO.
A) OS FACTOS.
A matéria de facto a considerar é a acima descrita, sendo certo que a questão submetida a decisão deste tribunal se configura, essencialmente, como uma questão de direito.
B) O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2 e 639.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões da apelação, acima descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal da Relação pelo apelante consiste, tão só, em saber, se tendo ocorrido erro na qualificação das verbas do ativo do inventário como bens comuns (verbas 1 e 2), quando as mesmas configuram bens próprios do apelante, nos termos do disposto na al. a), do n.º 1, do art. 1722.º, do C. Civil, esse erro ainda pode ser corrigido, nomeadamente com o conhecimento pelo tribunal de 1ª instância da reclamação à relação de bens, apresentada pelo apelante, como o próprio pretende, ou se, tendo já decorrido o prazo para “contestação” ao inventário pelos fundamentos previstos no art.º 1104.º, do C. P. Civil, em especial a al. d), do seu n.º 1, precludiu o direito do apelante a ver apreciado o erro que invoca, como decidiu o tribunal a quo.
Vejamos.
Como é pacífico nos autos, o apelante foi citado para os termos do inventário por carta que lhe foi remetida em 16 de fevereiro de 2021 e que recebeu na data que dos autos consta.
Tendo sido designada data para a conferência prevista no art.º 1109.º, do C. P. Civil, durante a realização da mesma o apelante formou a convicção de que precisava da assistência de advogado, o que veio a concretizar com requerimento de proteção jurídica na sequência do qual lhe foi nomeado advogado.
Posteriormente, já por intermédio do Exm.º Causídico, o apelante apresentou reclamação à relação de bens, com fundamento em síntese, em que os bens indicados à partilha são bens que lhe pertencem, bens próprios e não bens comuns.
O tribunal a quo não admitiu esta reclamação por entender que o prazo para a mesma, independentemente da constituição/nomeação de advogado, já se encontrava esgotado, não sendo repristinado com o ato de constituição/nomeação.
E com efeito assim é.
Como decorre da conjugação do instituto da oposição ao inventário, previsto no art.º 1104.º, do C. P. Civil, com a obrigatoriedade legal de constituição de advogado no processo de inventário, prevista no art.º 1090.º, do C. P. Civil, a decisão de constituição de advogado é uma decisão individual de cada interessado, que o tribunal só pode sindicar em face de qualquer intervenção no processo que não possa ser feita pela mão do próprio interessado e neste caso, apenas para lhe fixar prazo para constituir advogado, como determina o art.º 41.º do C. P. Civil.
Em face da tramitação do próprio processo especial de inventário e também de qualquer dos regimes substantivos de indivisão que o demandam, que nos indicam que a generalidade das questões que nele se podem suscitar são questões de direito, no estado atual da cidadania no que respeita ao acesso ao direito e aos tribunais, consagrado nos art.ºs 2.º e 20.º, n.ºs 1 e 2,, da Constituição da República Portuguesa, pode questionar-se, como faz o apelante, o acerto do regime de “Patrocínio judiciário obrigatório”, em face de tais princípios, sendo certo que o cidadão comum bem informado (bonus pater familiae) não tem conhecimentos próprios que lhe permitam definir, por si próprio, o que seja uma questão de direito.
Uma situação (extrema) de negação de direitos constitucionais por esse, aparentemente deficiente, sistema de “Patrocínio judiciário obrigatório”, poderia exigir/determinar uma inaplicação do mesmo por inconstitucionalidade material, assim se não prefigurasse uma outra forma legal de defesa e realização desses mesmos direitos.
Todavia, tal não acontece no caso sub judice, em que o interessado/apelante invoca erro, seu e da interessada requerente do inventário, na qualificação dos bens indicados para a partilha, uma vez que este erro pode e deve ser conhecido no âmbito da tramitação própria do processo de inventário, como passamos a demonstrar.
Dispõe o art.º 1126.º, do C. P. civil, sob a epígrafe “Emenda da partilha”, que “…se tiver havido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro suscetível de viciar a vontade das partes”, “…a partilha pode ser emedada no próprio inventário…”. “Ainda que a decisão homologatória tenha transitado em julgado…” (n.º 1 desse preceito), requerendo o interessado “…fundamentadamente, no próprio processo, que a ela se proceda, no prazo máximo de um ano a contar da cognoscibilidade do erro, desde que esta seja posterior à decisão, aplicando-se à tramitação o disposto quanto aos incidentes da instância” (n.º 2 do mesmo preceito legal).
Nos termos deste preceito legal, o erro na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro suscetível de viciar a vontade das partes, pode ser suscitado pelo interessado, mesmo depois de a decisão homologatória da partilha ter transitado em julgado, aplicando-se ao conhecimento do invocado erro por parte do tribunal a tramitação relativa aos incidentes da instância.
Se o erro pode e deve ser conhecido pelo tribunal mesmo depois de transitada em julgado a decisão homologatória da partilha, em ordem a que esta se aproxime do conceito ideal de realização da justiça material, por maioria de razão esse erro pode ser suscitado e conhecido em data anterior ao transito em julgado da decisão homologatória da partilha, no mesmo propósito legal de consecução da justiça material no ato.
Para que este erro determinante da emenda da partilha possa ser suscitado e conhecido, o n.º 2, do art.º 1126.º, exige apenas que o respectivo requerimento seja formulado no prazo máximo de um ano a contar da cognoscibilidade do erro, o que não deixa margem interpretativa para a invocação de qualquer preclusão relativa a ato processual anterior que tenha ou pudesse ter sido praticado.
Dispondo o n.º 1, do art.º 10.º, do C. Civil, sob a epígrafe “Integração das lacunas da lei” que “Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos” e dispondo o n.º 2, do mesmo preceito civilista que “Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei”, reconhecendo-se, como faz o tribunal a quo, que a questão de erro suscitada pelo interessado apelante não pode agora ser formulada e conhecida como reclamação à relação de bens, o invocado erro não poderá deixar de ser apreciado no âmbito da tramitação própria dos incidentes da instância, prevista nos art.ºs 292.º a 295.º, do C. P. Civil.
De facto, não há dúvida de que no caso sub judice procedem as mesmas razões justificativas, de realização de justiça material pelo ato de partilha, que autorizam a derrogação da regra geral do caso julgado, em caso de erro, determinada pelo propósito de eliminação deste mesmo erro no ato de partilha.
Procedendo, pois, as mesmas razões da situação processual expressamente consagrada, a tramitação para ela prevista, própria dos incidentes da instância, não poderá deixar de ser aplicada à situação objeto da apelação, processualmente omitida.
E note-se que esta aplicação em nada prejudica os restantes interessados no inventário, que sempre podem opor-se ao requerido, como previsto no n.º 2, do art.º 293.º, do C. P. Civil, não se vislumbrando que os valores inerentes à celeridade processual, possam constituir qualquer obstáculo à consecução do escopo de justiça material, já referido.
Na aplicação ao invocado erro da tramitação própria dos incidentes da instância, estabelecida pelos art.ºs 292.º a 295.º, do C. P. Civil, não podemos, todavia, esquecer que o interessado/apelante, com a intermediação técnica do Exm.º Causídico, apresentou requerimento que terá adequado à forma processual que se lhe afigurou própria, qual seja, a da reclamação à relação de bens, e por isso insuficiente para a forma processual agora indicada.
Confirmada por esta Relação a decisão do tribunal a quo no sentido da intempestividade dessa forma processual e indicada como forma processual própria, a aplicar por analogia, a dos incidentes da instância, prevista nos art.ºs 292.º a 295.º, do C. P. Civil, em aplicação do princípio processual previsto no art.º 547.º, do C. P, Civil, desde já se determina que o apelante apresente o requerimento previsto no n.º 1, do art.º 293.º, do C. P. Civil, no prazo de dez dias.
Procede, pois, em substância, a pretensão processual do apelante em ver apreciada a questão que suscitou sob a forma de reclamação à relação de bens, a qual não deixará de ser apreciada pelo tribunal recorrido, não no âmbito dessa forma processual, mas segundo a tramitação processualmente prevista para os incidentes da instância.
C) SUMÁRIO
 No âmbito do processo especial de inventário, o erro na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro suscetível de viciar a vontade das partes, pode ser suscitado nos autos por qualquer interessado, independentemente do acordo dos restantes, depois de esgotado o prazo previsto no art.º 1104.º, do C. P. Civil, antes da emenda à partilha prevista no art.º 1126.º, do C. P. Civil, seguindo a forma processual dos incidentes da instância, por aplicação por analogia do disposto neste art.º 1126.º, do C. P. Civil.

3. DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida e determinado que o apelante apresente no prazo de dez dias novo requerimento em que a questão já suscitada sob a forma de reclamação à relação de bens, tendo presente o disposto no art.º 1126.º do C. P. Civil, obedeça ao disposto no art.º 293.º, n.º 1, do mesmo Código, seguindo-se-lhe a tramitação prevista para os incidentes da instância, nos art.ºs 292.º a 295.º do C. P. Civil, devendo ser imprimida ao processo de inventário a tramitação posterior que venha a ser determinada pela decisão do incidente, transitada em julgado.
 Custas pelo apelante (que da apelação retirou proveito), sem prejuízo do apoio judiciário.

Lisboa, 26-05-2022
Orlando Santos Nascimento
José Maria Sousa Pinto
Vaz Gomes