Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1810/24.9YRLSB-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
MUDANÇA DE DIRECÇÃO
PRIORIDADE DE PASSAGEM
NEGLIGÊNCIA
MOTOCICLO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O condutor de um ligeiro que faz a manobra de mudança de direcção à esquerda com uma diagonal, viola as regras do art.º 44 do CE que, no caso, lhe impunham que se aproximasse, com a necessária antecedência e quanto possível, da margem esquerda do eixo da faixa de rodagem e de modo a dar a esquerda ao centro de intersecção das duas vias e a entrar na via que pretendia tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação.
II – A negligência pela eventual violação da regra da prioridade (art.º 29/1 e 30/1 do CE) pelo condutor do motociclo estaria excluída, pelo facto de o ligeiro ter feito a manobra de tal forma que surgiu ao condutor do motociclo como se viesse a sair de um caminho privado existente no local.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

A 15/09/2023, R apresentou uma reclamação no Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros contra a Seguradora, pedindo a condenação desta a pagar-lhe 12.990€ a título de valor do seu veículo e 500€, devido a um acidente de viação cuja culpa imputa a um condutor de um veículo cuja eventual responsabilidade civil decorrente da sua circulação estava transferida para a seguradora.
A seguradora contestou, impugnando a forma como o reclamante descrevia o acidente, dizendo que, pelo contrário, a culpa era do reclamante.
Depois de realizada a audiência arbitral, foi proferida decisão arbitral a 22/03/2024 condenando a seguradora a pagar ao reclamante 7.390€ a título de perda total do veículo.
A seguradora recorre desta decisão, para que seja alterada, concluindo pela absolvição da seguradora.
O reclamante não contra-alegou.
O recurso chegou a este TRL a 19/06/2024.
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Questão que importa resolver: se a seguradora não devia ter sido responsabilizada pelo acidente e, por isso, não devia ter sido condenada no pedido.
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Estão dados como provados os seguintes factos:
1\ No dia 07/5/2023, em Torres Vedras, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes um motociclo de propriedade do reclamante e conduzido por si, e ligeiro seguro na reclamada pelo contrato titulado pela apólice […], e conduzido por J.
2\ O acidente ocorreu num entroncamento de uma via com a Estrada Municipal M555-3, num local denominado Casal Castelão, ou Casal do Rossio, na Ventosa.
3\ O motociclo vinha a circular no sentido Andrinos/Ventosa, quando se apercebeu do ligeiro seguro na reclamada a entrar na referida artéria, para seguir no sentido oposto ao do motociclo, como se viesse do caminho de acesso privado aí existente.
4\ Onde o reclamante caiu, ao se tentar desviar do ligeiro.
5\ O condutor do ligeiro saiu da sua morada de residência, localizada na rua …, percorreu cerca de 1,3 km até chegar ao entroncamento com a EM555-3, com a intenção de mudar de direcção à esquerda.
6\ O motociclo embateu na lateral esquerda traseira do ligeiro, indo imobilizar a sua marcha na rampa do caminho privado existente junto do referido entroncamento.
7\ Não houve qualquer registo ou intervenção das autoridades competentes no presente sinistro.
8\ O ligeiro apresentava danos compatíveis com o sinistro em análise, isto é, na lateral esquerda traseira.
9\ Os danos no motociclo TN são dispersos por todo o veículo.
10\ A pedido da seguradora foi estimada a reparação de danos no motociclo que se apurou ser no valor de 12.720,19€.
11\ O valor venal do motociclo é de 12.490€, pelo que foi considerada a perda total do veículo, o que foi comunicado ao reclamante.
12\ O valor do salvado do motociclo é 5.100€ de acordo com tal comunicação.
Mais à frente a decisão recorrida acrescenta:
Ouvidos os intervenientes, resultou demonstrado que à data, o entroncamento não tinha qualquer tipo de sinalização vertical e de facto o ligeiro apresentava-se pela direita do motociclo.
A trajectória de mudança de direcção à esquerda, a manobra do condutor do ligeiro foi efectuada na diagonal […]
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E a seguir consta o seguinte:
Diz o artigo 44 do Código de Estrada (CE), sob a epigrafe "Mudança de direcção para a esquerda 1 - O condutor que pretenda mudar de direcção para a esquerda deve aproximar-se, com a necessária antecedência e o mais possível, do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afecta a um ou a ambos os sentidos de trânsito, e efectuar a manobra de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação.
2 - Se tanto na via que vai abandonar como naquela em que vai entrar o trânsito se processa nos dois sentidos, o condutor deve efectuar a manobra de modo a dar a esquerda ao centro de intersecção das duas vias.
[…]"
Ou seja, bem sabendo o condutor do veículo seguro na reclamada, por residir nas imediações do local do acidente, que tanto a via de onde provinha, como, nomeadamente, a estrada onde ia entrar, está afecta a ambos os sentidos de trânsito, deveria partir do eixo daquela, e efectuar a manobra de modo a entrar nesta, pelo lado destinado ao seu sentido de circulação. Ou seja, efectuar uma perpendicular, de modo a minimizar a circulação pela via destinada ao sentido contrário ao pretendido. Tal não se demonstrou que tivesse ocorrido, nem se demonstrou que tivesse parado - nem que estivesse obrigado a fazê-lo - mas tão só que alargou à direita a sua circulação, junto ao fim do caminho particular que finda na berma da via de onde provinha, para aceder à M555-3.
Os artigos 29 e 30 do CE contêm o princípio geral de cedência de passagem e a regra geral de prioridade a quem se apresenta pela direita, mas aquele contém no seu nº 2 limitações: "O condutor com prioridade de passagem deve observar as cautelas necessárias à segurança do trânsito."
Embora com trânsito prioritário no entroncamento em questão, o condutor do ligeiro deve observar as cautelas necessárias à segurança do trânsito, que incluem a execução de manobra de mudança de direcção à esquerda, como prescrito no citado artigo.
Ao prolongar, pela não execução da perpendicular, a circulação pela via destinada ao sentido contrário, contribui para o acidente, embaraça o trânsito e compromete a segurança dos demais utentes das vias.
Pelo exposto, resultou assim provado, uma manobra do condutor do veículo seguro na reclamada que resultou causal da produção de danos no veículo do reclamante.
A seguradora contrapõe o seguinte:
a\ Atendendo à matéria de facto dada como provada na decisão de arbitragem resulta assente que o acidente ocorreu num entroncamento em que o veículo seguro na seguradora se apresentava pela direita e que tinha prioridade.
b\ O facto de o reclamante não ter respeitado a regra da prioridade foi totalmente posto de parte pela decisão de arbitragem.
c\ Na decisão de arbitragem foi considerado como única causa para o acidente o facto de o condutor do veículo seguro ter efectuado a manobra de mudança de direcção sem efectuar a perpendicular, mas em momento algum foi tido em conta que o reclamante independentemente da forma como a manobra do condutor do veículo seguro foi efectuada, deveria ter cedido a passagem, o que não se verificou.
d\ Com efeito, o acidente teria sempre ocorrido, mesmo que o condutor do veículo seguro tivesse feito a perpendicular, uma vez que o veículo seguro estaria sempre a apresentar-se pela direita e como o reclamante vinha em excesso de velocidade para o local, considerando que se encontrava a aproximar de um entroncamento onde perdia a prioridade, era sua obrigação reduzir a e velocidade para lhe permitir ver outros veículos e parar para lhes ceder a passagem.
e\ Mesmo que o veículo seguro na requerente tivesse efectuado a perpendicular, o acidente ter-se-ia dado na mesma, porque o reclamante, devido à condução que vinha a fazer, iria-se sempre assustar-se com a presença do veículo seguro, porque não circulava com a cautela e os cuidados que o local obrigava.
f\ Pelos motivos supra expostos, a seguradora entende que a decisão de arbitragem deveria ser revista, por outra que considere que o nexo de causalidade do acidente foi a condução perigosa que o reclamante vinha a praticar que levou ao desrespeito, pelo disposto no artigo 30/1 do CE.
Apreciação:
Antes de mais note-se que não se está perante um embate, mas perante uma queda do motociclo (factos 3 e 4) que depois leva a que o motociclo vá embater no ligeiro. Não interessa, pois, o local do embate.
A decisão arbitral constata a ocorrência da violação, pelo condutor segurado, de uma infracção estradal (art.º 44/1-2 do CE), já que não fez a manobra de mudança de direcção para a esquerda da forma como o devia ter feito, ou seja, aproximando-se, com a necessária antecedência e quanto possível, da margem esquerda do eixo da faixa de rodagem e de modo a dar a esquerda ao centro de intersecção das duas vias e a entrar na via que pretendia tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação. Dito de outro modo: devia ter cortado, numa perpendicular, a metade direita da estrada por onde pretendia passar a circular, antes de entrar na metade destinada ao sentido de trânsito que pretendia tomar. Em vez disso, fez uma diagonal, o que quer dizer que ocupou durante necessariamente mais tempo e espaço aquela metade direita da faixa por onde circulava o motociclo, potenciando o embate.
Quanto ao motociclo, ao contrário do que a seguradora pretende, não se verificaria a negligência pelo violação da regra da prioridade (artigos 29/1 e 30/1 do CE) porque o ligeiro não apareceu ao condutor do motociclo pela via à direita, surgiu-lhe, sim, como se viesse do caminho de acesso privado aí [no local] existente. E até se sabe porque é que o fez: porque “alargou à direita a sua circulação, junto ao fim do caminho particular que finda na berma da via de onde provinha, para aceder à M555-3.”
Ou seja, devido à conduta do condutor seguro, o condutor do motociclo nem sequer teria sido colocado na situação de ter de dar prioridade a alguém que se apresentava pela direita (art.º 30/1 do CE). Ele foi sim surpreendido pelo surgimento de um veículo como se viesse de um caminho particular, sem qualquer prioridade (art.º 31/1 do CE: 1 - Deve sempre ceder a passagem o condutor: a) Que saia de um […] qualquer prédio ou caminho particular; […]). Assim, a negligência do condutor do motociclo estaria excluída, por ter actuado sem consciência da ilicitude do facto, erro que lhe não poderia ser censurado por ter sido provocado pela manobra errada feita pelo condutor do ligeiro (art.º 17/1 do Código Penal).
Mas a verdade é que, nem sequer se provou, ao contrário do que a seguradora pretende, que o motociclo se encontrava tão próximo da zona de intersecção das vias que já antes estivesse num estado de obrigação de ceder a prioridade. Nem sequer se sabe a que distância é que o motociclo vinha, podendo, por isso, estar ainda antes da via de trânsito destinada ao trânsito de sentido contrário àquele em que seguia o ligeiro.
Aliás, não se provaram, também, outros cinco factos invocados pela seguradora no recurso como se estivessem provados e de que a construção da seguradora dependia: “o reclamante vinha em excesso de velocidade para o local”; o reclamante “encontrava[-se] a aproximar de um entroncamento onde perdia a prioridade”; “o reclamante, devido à condução que vinha a fazer, iria-se sempre assustar-se com a presença do veículo seguro”; o reclamante “não circulava com a cautela e os cuidados que o local obrigava”; o reclamante vinha a praticar “condução perigosa.”
Em suma, prova-se a violação, pelo condutor seguro, de uma regra de segurança estradal que tem a ver com a forma como o acidente se deu, o que faz presumir que a culpa do acidente se deveu a tal condutor [“...Está pois bem acompanhado o nosso STJ (ac. de 21/2/1961, BMJ.104, 417/421), ao falar de '...negligência pre­sumida, quali­ficação que se traduz por inob­servân­cia de leis ou re­gulamentos, o que per se dispensa a prova em concre­to da falta de diligência” - Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por Conselhos, Reco­mendações ou Informações, Al­medina, Colecção Te­ses, 1989, pág. 267. Também o acórdão do STJ de 07/11/2000, publicado na CJ.STJ.2000.III.105, acompanha a doutrina segundo a qual a ocorrência, em termos objectivos, de uma situação que constitui contravenção a uma norma do CE deve implicar presunção juris tantum de negligência] e prova-se que o condutor do motociclo não teria culpa pela eventual violação da regra da prioridade dos artigos 29/1 e 30/1 do CE, pelo que a decisão arbitral, de responsabilizar a seguradora, está correcta.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
No recurso, a seguradora perde as suas custas de parte (não existem outras).

Lisboa, 12/09/2024
Pedro Martins
Susana Maria Mesquita Gonçalves
Paulo Fernandes da Silva