Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | PAULO REGISTO | ||
Descritores: | CONTRA-ORDENAÇÃO NULIDADE AVIAÇÃO ATERRAGEM PISTAS APROVADAS | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/11/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | I - Os tribunais da relação assumem a natureza de tribunais de revista nos recursos de contra-ordenação, pelo que, de acordo com o disposto no art. 75.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, apenas conhecem matéria de direito, sem prejuízo da apreciação dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP. II - Deste modo, estando este tribunal de recurso impedido de proceder à reapreciação da prova produzida no decurso da audiência de julgamento, não existe fundamento legal para que venha a considerar como não provada a matéria de facto invocada pelo recorrente, assim como para que sejam aditados novos factos ao quadro factual traçado pelo tribunal a quo. III - A contra-ordenação p. e p. pelos arts. 36.º, n.º 4, e 46.º, n.º 2, al. e), do DL n.º 238/2004, de 18-12, na redação introduzida pelo DL n.º 283/2007, de 13-08, sanciona o autor de operações de descolagem ou de aterragem de aparelhos ultra-leves fora de “pistas aprovadas” pelas autoridades. IV - O simples reconhecimento, que está previsto nos n.ºs 9 e 10 do art. 62.º do Regulamento n.º 164/2006, para as zonas de voo das aeronaves do grupo 1, não deixa de constituir uma forma de “aprovação” das pistas, ainda que submetida a um procedimento mais simplificado, por as autoridades competentes poderem dispensar a realização de uma vistoria ao local. V - Deste modo, a interpretação sufragada pelo tribunal de primeira instância não extravasou o texto da lei e limitou-se a deslindar o sentido da expressão “pistas aprovadas”, o que fez de acordo com o regime jurídico constante do Regulamento n.º 164/2006, 08-09, conforme imposição, aliás, decorrente da parte final do n.º 4 do art. 36.º do mencionado diploma legal. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes que integram a secção da propriedade intelectual, concorrência, regulação e supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa I - RELATÓRIO: (…), melhor identificado nos autos, veio interpor recurso da sentença proferida no dia 10-04-2024 pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão – Juiz 2, que o condenou pela prática, em autoria material, de 2 (duas) contraordenações p. e p. pelo art. 46.º, n.º 2, al. e), do DL n.º 238/2004, de 18-12, na redação do DL n.º 283/2007, de 13-08, na coima única de € 750 (setecentos e cinquenta euros) e na sanção acessória de publicação da condenação no site da ANAC. * Na parte final do recurso que interpôs, o recorrente (…) apresentou as seguintes conclusões: “1. O processo administrativo enferma de nulidade que não foi sanada. 2. A ANAC notificou o arguido de uma infração e, após apresentar a sua defesa, condenou-o por duas. 3. A M.ª Juiz errou na apreciação da prova, devia ter dado como não provados as alíneas a) e d) do ponto 14 da aliás mui douta decisão. 4. A ANAC e o MP não fizeram prova da descolagem, não tiveram qualquer suporte factual para além daquele máxima de “La Palice”, se alguém vai aterrar é porque descolou. De onde? 5. No máximo não fez qualquer prova, no mínimo a dúvida é um direito do arguido. 6. Quanto à aterragem, as regras de segurança não podem ser descuradas e se o piloto comandante tiver dúvidas a ele pertence a decisão de colocar no chão a si e ao passageiro com o máximo de segurança. 7. Os efeitos do windshear alegados pelo piloto não devem nunca ser subestimados e a segurança é o princípio que se deve sobrepor inclusivamente à legalidade constituindo causa de exclusão de ilicitude. 8. Interpretou extensivamente em matéria contraordenacional art. 46.º e) do DL 283/2007 DE 13-08 ao estipular que contraordenação aeronáutica civil muito grave realizar operação de descolagem ou aterragem de ultraleves em pistas que não tenham sido aprovadas. 9. Mas o art. 36.º/4 exclui as aeronaves do Grupo I da aprovação substituindo-se pelo reconhecimento simples. 10. Uma coisa é uma instalação aeroporto/aeródromo para aeronaves pesadas que necessitam de uma velocidade relativa mínima elevada, 11. … outra coisa é um mero terreno de onde uma pessoa descola e aterra com a força motriz das suas pernas ou de um motor às costas/triciclo. 12. Confundir as duas coisas é ir contra o espírito do legislador. 13. As regras sancionatórias do ponto de vista penal ou contraordenacional devem claras e esta é. 14. Ao fazer a interpretação extensiva a M.ª Juiz a quo violou as regras das multas que se aplicam às regras das coimas. 15. O processo de aprovação é diferente do reconhecimento simples e não se diga que faz parte do processo de aprovação porque foi expressamente prescindo, uma situação é um conjunto de ações e comportamentos humanos construtivos de uma instalação aeroportuária, 16. … outra coisa é a demonstração que um local reúne condições para a operação de descolagem e aterragem com a força motriz das pernas ou com o auxílio de um triciclo. 17. Violou a Mma. Juiz o art. 62.º/3, 10 Regulamento n.º 164/2008 e os art. 36.º e 46.º/2 e) do Decreto-Lei n.º 238/2004.” * O Ministério Público, junto do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, veio responder ao recurso interposto, que terminou com a formulação das seguintes conclusões: “A - O TCRS, analisando o teor da notificação do arguido no processo administrativo para apresentar a sua defesa escrita, reconheceu falta de rigor na respetiva organização e apresentação, mas, julgou-a inteligível e a permitir ao Recorrente perceber a imputação efetuada e que esta se referia à aterragem e à descolagem da aeronave por si tripulada, logo, a habilitá-lo ao exercício do direito de defesa, pelo que veio a julgar improcedente a nulidade invocada. B - A diferenciação que decorre da CRP entre o direito contraordenacional, e o direito penal, e processual penal, tem necessários reflexos no respetivo processo contraordenacional, quer em sede de – menores - garantias do visado, quer em sede de – menores - exigências formais. C - Por isso, quer no regime geral, quer nos setoriais, o processo de contraordenação encontra-se legalmente estruturado por princípios de celeridade e simplificação, não existindo uma tabela de nulidades processuais, até porque as normas de conduta dirigem-se a destinatários específicos, dotados de particulares conhecimentos sobre a atividade e consequentemente sobre as próprias disrupções da mesma que constituem as contraordenações legais, pelo que haverá de sobrelevar a compreensibilidade do ato processual e se esta viabiliza a efetiva realização dos direitos processuais do visado. D - Em concreto, o teor da notificação é compreensível, permitindo mesmo a um cidadão comum perceber a convicção da ANAC, o juízo interpretativo efetuado do meio de prova, que também é dado a conhecer, os factos imputados e a respetiva qualificação jurídica, tendo permitido um amplo e efetivo exercício do direito de defesa, tal e qual foi exercido o contraditório prévio à condenação pelo Recorrente. E - As conclusões 3, 4, e, 5 onde o Recorrente diz que o Tribunal errou no que concerne à apreciação da prova, e devia ter dado como não provados os factos provados 14.a e 14.d porque nem a ANAC, nem o MP fizeram prova da descolagem conforma impugnação da matéria de facto provada da douta sentença – negação da descolagem e do dolo do tipo – o que se mostra proibido pelo artigo 75.º/1 do RGCO. F - A douta sentença não enferma de qualquer vício, seja dos previstos no artigo 410.º do CPP, ou em outros, nem de nulidade, erro de direito ou de interpretação. G - O TCRS avaliou de forma correta, racional e segundo as regras da experiência todos os factos indiciários, tendo verificado a sua pluralidade, coerência, racionalidade e convergência, de onde inferiu o ato de descolagem da aeronave tripulada pelo Recorrente, o dolo do tipo e a culpa ou responsabilidade social pelo facto. H - A prova produzida não suscita dúvidas quanto à descolagem do terreno e o dolo do tipo, sendo que a prova (indireta) que foi validamente produzida nos autos, e, apreciada segundo critérios de matriz comum, racionalidade, coerência, convergência e lógica, permitiu ao TCRS alcançar um juízo de certeza quanto aos factos integradores do tipo de infração, não fazendo sentido discutir o princípio IN DUBIO PRO REO. I - A invocação do efeito wind shear, para procurar justificar a aterragem da aeronave, é impugnação de matéria de facto, concretamente, da aterragem enunciada na segunda parte do facto provado 14.º, proibida pelo artigo 75.º do RGCO. J - O efeito wind shear é um facto que não faz parte dos factos provados da douta sentença, pelo que, de novo se está em presença de impugnação de facto, sendo que, mesmo não tendo sido alegado no recurso de impugnação, foi apreciado e afastado pelo TCRS dada a sua implausibilidade, como se lê no ponto 27 da motivação da sentença. K - É o legislador que inclui na previsão do artigo 46.º/2/e do DL 238/2004 todas as pistas usadas na descolagem e aterragem de ultraleves não aprovadas pela ANAC, sendo que por via do disposto no artigo 62.º/10 do Regulamento 164/2008 cuja epígrafe é processo de aprovação, o reconhecimento é legalmente uma modalidade de aprovação da pista sujeita a um procedimento mais simplificado, onde se prescinde de inspeção da ANAC. L - A previsão do cit. artigo 46.º contempla as pistas usadas na descolagem e aterragem de ultraleves não sujeitas a reconhecimento simples, o que está, aliás, em coerência com o perigo presumido da conduta, tutelado através do regime jurídico da utilização de aeródinos de voo livre e ultraleves, onde sobressai a função do Regulador.” * Por seu turno, a Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC) também respondeu ao recurso interposto pelo recorrente (…), que terminou com a formulação das seguintes conclusões: “A. O Recorrente, não enquadrou, nos termos do art. 410.º, n.º 2, do CPP, qual ou quais os fundamentos para interpor o presente recurso. B. Apesar disso, ao longo da sua motivação clarificou que estavam em causa três situações: (i) a nulidade invocada pelo Recorrente e que foi julgada improcedente; (ii) erro na apreciação da prova, mormente os factos dados como provados no ponto 14 – alínea a) e alínea d); e erro na aplicação do direito. C. Quanto à nulidade invocada pelo Recorrente e que foi julgada improcedente, o Tribunal a quo demonstrou que o Recorrente foi efectivamente notificado das duas factualidades que consubstanciam dois ilícitos contra-ordenacionais – a aterragem e a descolagem. D. Perante a acusação que lhe foi notificada, o Recorrente defendeu-se em conformidade, alegando em sede de defesa argumentos “Quanto ao local de descolagem e aterragem (…)”. E. Mais: se o local em crise fosse utilizado apenas por precaução em aterragens de emergência, não havia necessidade de o Recorrente justificar na defesa apresentada que o local utilizado era apto para a aterragem e descolagem. F. Deste modo, ainda que, por mera cautela de patrocínio, se admitisse a existência da nulidade invocada, a mesma estaria sanada. G. No mesmo sentido concluiu o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, na sentença datada de 12-11-2022, proferida no Proc. n.º 209/22.6YUSTR: “Mesmo assim e ainda assim, a Arguida vem esgrimir este argumento formal, em sede de impugnação judicial, como se não percebesse aquilo que, obviamente, percebeu, pelo que, se nulidade existisse, a mesma mostrar-se-ia sanada” H. Semelhante entendimento havia sido sufragado através do acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 1/2003, publicado no DR-I-A, 814 de 25-01-2023, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 70/2008, de 26-11: “(…) se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada (arts. 121.º, n.º 2, al. c), do CPP e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações).” I. No que concerne ao erro na apreciação da prova, mormente os factos dados como provados no ponto 14 – al. a) e al. d) também não assiste razão ao Recorrente. J. No caso sub judicie, o Tribunal a quo cumpriu na íntegra o princípio da livre apreciação da prova estatuído no art. 127.º do CPP e socorreu-se da prova indirecta para demonstrar a actuação do Recorrente. K. Nos presentes autos, importava saber de que local havia descolado. L. Assim, segundo as declarações do Recorrente, o mesmo havia descolado a partir do Aeródromo de Águeda, acompanhado do Sr. (…), mas devido à existência de ventos “windshear” (facto não provado), terá sido forçado a aterrar de “emergência” no terreno adjacente às traseiras da uma residência sita na Rua ... Gafanha da Vagueira. M. Apesar disso, durante a mencionada aterragem de “emergência”, o Recorrente conseguiu estabelecer contacto telefónico com os familiares do Sr. (…), que se encontravam no Aeródromo de Águeda, para avisar qual seria o local de aterragem, sendo que quando aterraram, estes já estavam no local indicado, não obstante distar cerca de 35 quilómetros entre a Gafanha da Vagueira e Águeda. N. Acresce que o Recorrente afirmou ter autorização dos responsáveis da pista para descolar a partir do Aeródromo de Águeda, o que foi desmentido pelos responsáveis daquela infraestrutura. O. Ora, todos estes elementos permitiram ao Douto Tribunal dar como facto provado que “No dia 11 de setembro de 2022, o Arguido descolou com um para-motor bike bilugar, com as inscrições Vem Voar e 934460188 na asa num terreno adjacente às traseiras da uma residência sita na Rua ... Gafanha da Vagueira, com as coordenadas GPS … e aterrou no mesmo local pelas 12h15m.” P. Quanto ao segundo facto – al. d) do ponto 14. dos factos provados, relativo à intenção do Recorrente realizar a mencionada aterragem e descolagem, infere-se a partir do pedido de autorização realizado previamente ao proprietário do terreno, bem como a preparação do espaço, porquanto admitiu o Recorrente ser necessário apenas cortar as ervas existentes para permitir a utilização do local para efeitos de aterragem e descolagem. Q. Acresce que, o Recorrente tentou previamente na ANAC obter informações sobre o licenciamento do terreno para efeitos de utilização para aterragens e descolagens, não tendo depois efectuado qualquer outra diligência sobre o assunto. R. Do exposto, resulta que o iter cognoscitivo realizado pelo Tribunal a quo para concluir como concluiu encontra-se devidamente justificado. S. Quanto ao erro na aplicação do Direito, entende o Recorrente que o Douto Tribunal a quo violou a norma do art. 62º n.º 3 do Regulamento n.º 164/2006 de 08-09. T. Mas está equivocado, porquanto nos presentes autos estava em causa a realização de aterragem e descolagem num terreno que não tinha aprovação por parte da ANAC, por nunca a mesma ter sido pedida. U. Razão pela qual, a ANAC nunca teve a possibilidade de se pronunciar sobre a adequação do local para a realização de tais operações. V. Sendo por isso irrelevante, em termos administrativos, se se tratava de um reconhecimento ou de uma aprovação, porquanto, ao contrário do que defende o Recorrente, a ANAC teria sempre de se pronunciar sobre o local. W. Para que a ANAC pudesse exercer o poder de supervisão, seria necessário existir um pedido de aprovação, que posteriormente daria origem a uma inspeção ao local, cfr. estabelecido no n.º 3 do art. 62.º do Regulamento n.º 164/2006, de 8 de Setembro, ou à dispensa da mesma, com a substituição por um reconhecimento simples a ser comunicado ao requerente, cfr. n.º 10 do mencionado art. 62.º. X. Ora, se o Recorrente não apresentou nenhum pedido de aprovação, até porque não o podia fazer, uma vez que não é proprietário do terreno, a ANAC não poderia praticar qualquer acto de aprovação ou de reconhecimento simples do local utilizado para aterragens e descolagens. Y. Pelo que, resulta por demais evidente que o Recorrente realizou uma descolagem e uma aterragem num local que não se encontra aprovado para esse efeito e com a sua atuação cometeu a infracção estabelecida no artigo 46º n.º 2 – al. e) do DL n.º 238/2004, de 18-12, alterado e republicado pelo DL n.º 283/2007, de 13-08. Z. Razão pela qual, a Douta Sentença a quo também não padece de violação na aplicação do Direito.” * A Senhora Procuradora-Geral Adjunto, junto deste Tribunal da Relação de Lisboa, emitiu parecer, no qual apôs “visto”. * Mostrando-se colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. * II – FUNDAMENTAÇÃO: a) Factos provados: A primeira instância considerou como provados os seguintes factos: “a. No dia 11-09-2022, o Arguido descolou com um para-motor bike bilugar, com as inscrições Vem Voar e 934460188 na asa num terreno adjacente às traseiras da uma residência sita na Rua …, Gafanha da Vagueira, com as coordenadas GPS … e aterrou no mesmo local pelas 12h15m. b. O terreno utilizado não corresponde a local aprovado pela ANAC para operação de aeronave ultraleve. c. A aeronave operada pelo Arguido corresponde a um ultraleve do grupo 1. d. O Arguido representou e quis proceder à descolagem e aterragem do referido para-motor bike bilugar, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas e sabendo que não lhe era permitido fazê-lo no terreno referido, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente e com consciência de que tal conduta lhe era proibida. e. O Arguido não tem antecedentes contraordenacionais na ANAC. f. O Arguido transportava consigo um passageiro, (…). g. O arguido possuía licença de voo n o PRT 72245, válida para o ano de 2022, emitida pelo Clube Nacional de Para-motor, com as categorias piloto asa-delta bilugar, piloto para-motor N1 (RPF1 - N1), piloto paramotor bilugar (RPF2 – N1) piloto para-motor trike N1 (RPL1 N1), piloto para-motor trike bilugar (RPL2 – N1) e seguro da companhia Axa com a apólice ... . h. O Arguido não revela arrependimento, nem sentido crítico da sua conduta. i. No ano de 2022 obteve um montante total de € 1 916,13 em rendimentos por conta de trabalho dependente e atualmente trabalha por conta de outrem, na atividade de recolha de vidro para reciclagem, auferindo cerca de € 1 460 líquidos por mês. j. O Arguido, em data não concretamente apurada, mas anterior a 30-09-2022, contactou telefonicamente a ANAC a solicitar informação sobre procedimentos para emissão de uma autorização para uma Pista de Ultraleves, sem elementos concretos. k. A ANAC prestou as informações solicitadas através de mensagem de correio eletrónico remetida no dia 30-09-2022, não tendo o Arguido efetuado qualquer outra diligência relativa ao mesmo assunto.”. Para além dos que acima ficaram descritos, o tribunal de primeira instância não considerou como provados quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa. b) Enquadramento jurídico dos factos: O recurso em processo de contra-ordenação deve seguir a tramitação dos recursos em processo penal, com excepção das especialidades que resultem do Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27-10, na redacção que lhe foi introduzida pelo DL n.º 244/95, de 14-09. Dentro dessas especialidades, de acordo com o disposto no art. 75.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27-10, importa anotar que nos processos de contra-ordenação, os tribunais de segunda instância conhecem apenas, por regra, de matéria de direito, funcionado enquanto tribunais de revista. Deste modo, o art. 74.º, n.º 4, do DL n.º 433/82, de 27-10, remete para o regime jurídico dos recursos que se mostra vertido no Livro IX do CPP. Como decorre do disposto nos arts. 402.º, 403.º e 412.º, todos do CPP, as conclusões do recorrente delimitam o recurso apresentado, estando vedado ao tribunal hierarquicamente superior àquele que proferiu a decisão recorrida conhecer de questões ou de matérias que não tenham sido suscitadas, com excepção daquelas que sejam de conhecimento oficioso. Isto significa compete ao sujeito processual, que se mostra inconformado com a decisão judicial, indicar, nas conclusões do recurso, que segmento ou que segmentos decisórios pretende ver reapreciado(s), delimitando o recurso quanto aos seus sujeitos e/ou quanto ao seu objecto. A delimitação (objectiva e/ou subjectiva) do recurso condiciona a intervenção do tribunal hierarquicamente superior, que se deve cingir à apreciação e à decisão das matérias indicadas pela parte recorrente, com excepção de eventuais questões que se revelem de conhecimento oficioso. Está vedado ao tribunal de recurso proceder a uma reapreciação de questões que não tenham sido suscitadas e, por consequência, os seus poderes de cognição encontram-se delimitados pelo recurso interposto pelo sujeito processual, sem prejuízo daquelas que se revelem de conhecimento oficioso. Os recursos não se destinam a proceder a um novo julgamento de todo o objecto da causa, antes visam a reapreciação de questões anteriormente decididas, mediante o impulso processual do sujeito que se mostre afectado pela decisão. In casu, o recorrente (…) começa por sustentar que o processo administrativo enferma de nulidade que não foi sanada, na medida em que a Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC) o notificou de uma infracção e o condenou por duas, após apresentar a sua defesa. A este propósito, o Ministério Público veio defender que a notificação é compreensível, que permitia a um cidadão comum perceber a convicção da Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC), os factos imputados e a qualificação jurídica, o que permitiu ao recorrente (…) um amplo e efectivo exercício do direito de defesa. Por seu turno, a Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC) veio sustentar que o recorrente (…) foi notificado das factualidades que consubstanciavam dois ilícitos contra-ordenacionais (a aterragem e a descolagem), que se defendeu em conformidade e que alegou em sede de defesa que “quanto ao local de descolagem e aterragem (…)” Apreciando e decidindo: O Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão afirmou, a este respeito, que “(…) o Arguido estava em condições de perceber que a imputação efectuada se reportava também à descolagem, não tendo sido, por isso, violado o direito invocado, termos em que, se julga improcedente esta nulidade (…)”. Na realidade, conforme se deixa consignado na decisão recorrida, resulta textualmente do auto de notícia, elaborado pela Guarda Nacional Republicana – Comando Territorial de Aveiro, que o “(…) o terreno utilizado para pousar e levantar é da propriedade de (…) (…)”. Deste modo, muito embora na parte inicial deste auto de notícia seja feita uma descrição dos factos que foram presenciados pelos militares desta força policial na sequência da apresentação de uma denúncia (aterragem de um aparelho ultra-leve), não deixa de constar que o terreno em causa tinha sido utilizado para pousar e para fazer levantar a aeronave. Deste modo, sabendo-se que o ultra-leve teve de descolar e constando, expressamente, do auto de notícia que o terreno em causa foi utilizado para pousar e para levantar, não se consegue afirmar que o recorrente (…) tenha sido apanhado de surpresa ou que estivesse impossibilitado de ser defender das imputações que lhe foram dirigidas. O recorrente (…) teve todas as condições para se aperceber dos factos que lhe eram imputados e para estruturar a sua defesa, sendo certo que não compete ao auto notícia e à autoridade policial que procedeu à sua elaboração proceder à qualificação jurídica dessa factualidade. Em face do exposto, sem necessidade de outras considerações, mantêm-se a decisão recorrida na parte em que julgou improcedente a nulidade invocada pelo recorrente (…). Prosseguindo: O recorrente (…) veio também alegar que o tribunal de primeira instância errou na apreciação da prova, que devia ter dado como não provada a matéria de facto descrita nas als. a) e d) do ponto 14.º da decisão recorrida e que a Autoridade Nacional da Aviação Civil e o Ministério Público não lograram fazer prova da descolagem. Vejamos então: Os tribunais da relação assumem a natureza de tribunais de revista nos recursos de contra-ordenação, pelo que, de acordo com o disposto no art. 75.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, apenas conhecem matéria de direito, sem prejuízo da apreciação dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP. Nada impede este tribunal de segunda instância de conhecer, ainda que oficiosamente, dos vícios da decisão recorrida, não obstante os seus poderes de cognição estarem restritos à apreciação de matéria de direito. De acordo com disposto no art. 410.º, n.º 2, als. a), b) e c), do CPP, aplicável ex vi do art. 41.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27-10, “(…) mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: (…) a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) o erro notório na apreciação da prova”. Os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, devem resultar do próprio “texto da decisão recorrida”, ainda que conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, independentemente da apreciação que foi realizada pelo tribunal a quo da prova produzida em audiência de julgamento. Tratam-se de vícios da própria decisão, em si mesmo considerada, que se diferenciam de erros de julgamento, que servem de fundamento à apresentação de recurso da matéria de facto, com base em errada apreciação da prova produzida em audiência, nos termos do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP. Nestes casos, pede-se ao tribunal de recurso que proceda a uma reapreciação da prova que foi produzida em sede de audiência de julgamento, por forma a que seja alterada a matéria de facto provada e/ou não provada, que o recorrente entende ter sido mal julgada pelo tribunal a quo. Por seu turno, o recurso apresentado nos termos do disposto no art. 410.º, n.º 2, do CPP, deve assentar na própria decisão, avaliada de per si, sem recorrer à prova produzida e sem apreciar as conclusões que dela foram retiradas no âmbito do julgamento da matéria de facto. Os vícios que fundamentam a apresentação deste recurso encontram-se taxativamente enumerados nas três alíneas do n.º 2 do art. 410.º do CPP e traduzem-se, grosso modo, em faltarem factos indispensáveis à decisão, em ocorrerem contradições insanáveis ou em existirem erros manifestos na apreciação da prova, percepcionados através da simples leitura da decisão, ainda que conjugada com as regras da experiencia comum, mas sem necessidade de se proceder à reapreciação da prova produzida em audiência. Como decorre expressamente do normativo, os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP, todos eles relativos ao julgamento da matéria de facto, têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, seja quando ocorra insuficiência para a decisão da matéria de facto (al. a) ), seja quando a fundamentação da matéria de facto comporte, em si mesma, graves e insupríveis contradições ou quando essa fundamentação se mostre inconciliável com a decisão sobre os factos provados ou sobre os factos não provados (al. b) ), seja ainda quando a prova produzida foi apreciada de uma forma ilógica, arbitrária ou insustentável, na perspectiva do homem médio, quando os factos provados ou não provados se apresentem manifestamente incompatíveis com a prova que foi produzida em sede de audiência de julgamento (al. c) ). Como se deixou assinalado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-10-2008, Proc. n.º 1051/07.0GAFAF (www.dgsi.pt): “(…) o recurso da matéria de facto tem em vista questionar o passo que se deu da prova produzida aos factos dados por assentes e/ou o passo que se deu destes à decisão. No primeiro caso, o recorrente deverá impugnar a matéria de facto devido ao confronto entre a prova que se fez e o que se considerou provado, lançando mão do disposto no n.º 3 do art. 412.º do CPP, e podendo mesmo ser pedida a renovação de prova; no segundo, invocar um dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP. Neste caso, o vício há-de resultar da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e tanto pode incidir sobre a relação entre a prova efectivamente produzida e o que se considerou provado (al. c) do n.º 2 do art. 410.º), como sobre a relação entre o que se considerou provado e o que se decidiu (als. a) e b) do n.º 2 do art. 410.º). Quando o recorrente alega, por referência ao art. 410.º, n.º 2, do CPP, vícios da decisão recorrida, mas fora das condições previstas nesse normativo, limita-se a impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecendo a regra da livre apreciação da prova inserta no art. 127.º do CPP”. No caso vertente, estando este tribunal de recurso legalmente impedido de proceder à reapreciação da prova produzida no decurso da audiência de julgamento, de acordo com o disposto no art. 75.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, inexiste fundamento para que venha a considerar como não provada a matéria de facto descrita nas als. a) e d) do ponto 14.º da decisão recorrida. Por idênticos motivos, também não existe fundamento para que sejam aditados novos factos ao quadro factual traçado pelo tribunal a quo, muito em particular sobre os “efeitos do «windsherar” alegados pelo piloto”, que o recorrente (…) trouxe ao presente recurso. Acresce que este tribunal de recurso não vislumbra que a sentença recorrida, avaliada de per si e sem recorrer à prova produzida na audiência de julgamento, padeça de algum dos vícios previstos pelo art. 410.º, n.º 2, do CPP, susceptíveis de determinar a revogação da decisão ou o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do art. 426.º do CPP. Aliás, existiria “erro notório na apreciação da prova” caso a decisão recorrida tivesse considerado a descolagem como não provada, quando se aceita, de modo incontestado, que o ultra-leve aterrou pelas 12 horas e 15 minutos do dia 11-09-2022 num terreno adjacente às traseiras de uma residência localizada na Rua …, Gafanha da Vagueira. Por último, importa referir que, da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, não se induz qualquer dúvida por parte do tribunal a quo, que devesse ter determinado a aplicação do princípio in dubio pro reo. Aliás, resulta, inclusive, da sentença recorrida que o recorrente (…) admitiu, no decurso da audiência de julgamento, a prática de muitos dos factos que, nesta sede, impugna mediante a apresentação do presente recurso (als. a), b) e c) dos factos provados). Mais: O recorrente (…) foi condenado pela prática, em autoria material, de duas contraordenações p. e p. pelo art. 46.º, n.º 2, al. e), do DL n.º 238/2004, de 18-12, na redação introduzida pelo DL n.º 283/2007, de 13-08, por referência ao art. 36.º, n.º 4, do mesmo diploma legal. Estabelece o disposto no art. 36.º, n.º 4, do mencionado DL n.º 238/2004, sob a epígrafe “condições de operação”, que “(…) as operações de descolagem e aterragem dos ultraleves são efectuadas apenas em pistas aprovadas pelo INAC, nos termos de regulamentação complementar (…). Por seu turno, dispõe a al. e) do n.º 2 do art. 46.º, deste diploma legal, que prevê o regime jurídico sobre a utilização de aeronaves civis de voo livre e de ultra-leves, que “(…) constitui contra-ordenação aeronáutica civil grave (…) a violação do disposto nos n.ºs 4 e 6 do artigo 36.º (…)”. De acordo com a matéria de facto que o tribunal a quo considerou como provada, não subsistem quaisquer dívidas que se mostram preenchidos os elementos (objectivos e subjectivo) que integram a prática do ilícito de mera ordenação social imputado ao recorrente (…). Se, por um lado, no dia 11-09-2022, o recorrente (…) deslocou e aterrou um para-motor (aeronave ultra-leve) num local que não estava aprovado pela Autoridade Nacional da Aviação Civil (terreno adjacente às traseiras de uma residência sita na Rua …, Gafanha da Vagueira), por outro lado, representou e quis descolar e aterrar esse ultra-leve no mencionado terreno, o que sabia ser proibido por lei. Acresce que se discorda do recorrente (…) quando sustenta que o tribunal a quo realizou uma interpretação extensiva do texto da lei, mais propriamente do art. 46.º, n.º 2, al. e), do DL n.º 238/2004. Como se viu, esta contra-ordenação aeronáutica sanciona o autor de operações de descolagem ou de aterragem de aparelhos ultra-leves fora de “pistas aprovadas” pelas autoridades competentes. O art. 62.º do Regulamento n.º 164/2006, 08-09, sob a epigrafe “Processo de Aprovação”, prevê duas formas de aprovação das pistas para descolagem e aterragem das aeronaves ultra-leves: uma, sujeita ao procedimento previsto neste dispositivo, que inclui a apresentação de um requerimento, acompanhado por diversos elementos necessários à apreciação do pedido (v.g. comprovativo da titularidade do terreno, planta geral, planta de localização), sempre precedida de inspecção a realizar pelas autoridades competentes; outra, simplificada, em que pode ser dispensada a realização dessa inspecção, desde que as pistas de descolagem e de aterragem estejam destinadas a aeronaves do grupo 1. O simples reconhecimento, que está previsto nos n.ºs 9 e 10 do art. 62.º do Regulamento n.º 164/2006, para as zonas de voo das aeronaves do grupo 1, não deixa de constituir uma forma de “aprovação” das pistas em causa, ainda que submetida a um procedimento mais simplificado, por as autoridades competentes poderem dispensar a realização de uma vistoria ao local. Deste modo, verifica-se que o tribunal a quo não procedeu a uma interpretação extensiva dos preceitos aplicáveis ou, dito por outras palavras, que tenha ampliado a letra do art. 36.º, n.º 4, do DL n.º 238/2004, de 18-12, com o intuito de sancionar o recorrente (…). É o próprio texto da lei que remete, expressamente, para a “regulamentação complementar”, com o intuito de esclarecer o que se deve entender por “pistas aprovadas”. E, como se viu, o art. 62.º do Regulamento n.º 164/2006, 08-09, prevê duas formas de aprovação de terrenos destinados a operações de aterragem e de descolagem, sendo que o simples reconhecimento por parte das autoridades competentes, para as zonas de voo de aeronaves do grupo 1, não deixa de constituir uma forma de “aprovação” das pistas. Isto significa que a interpretação sufragada pelo tribunal de primeira instância não extravasou o texto da lei e que se limitou a deslindar o sentido da expressão “pistas aprovadas”, o que fez de acordo com o regime jurídico constante do Regulamento n.º 164/2006, 08-09, conforme imposição, aliás, decorrente da parte final do n.º 4 do art. 36.º do mencionado diploma legal. Nenhuma censura merece a sentença proferida pelo tribunal a quo. Como se deixou consignado na decisão recorrida: “Note-se que o facto desta norma referir “aprovadas” não exclui as pistas sujeitas a reconhecimento simples, pois, conforme decorre da inclusão do art. 62.º, n.º 10, do Regulamento n.º 164/2008, num artigo com a epígrafe “Processo de aprovação“, o reconhecimento não deixa de ser uma forma de aprovação em termos amplos. A diferença mais relevante em relação ao processo de aprovação em sentido estrito reside no facto de não ser necessária a visita de inspeção da ANAC a que alude o art. 62.º, n.º 3, do Regulamento”. Em face do exposto, improcede, in totum, por falta de fundamento, o recurso interposto pelo recorrente (…) e, em consequência, decide-se manter, integralmente, a decisão recorrida proferida pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão – Juiz 3. III – DECISÃO: Em face do exposto, acordam os juízes que integram a secção da propriedade intelectual, concorrência, regulação e supervisão deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo recorrente (…), e, em consequência, confirmar integralmente a sentença proferida no dia 10-04-2024 pelo Tribunal de Concorrência, Regulação e Supervisão – Juiz 2. Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 3 UCs. a taxa de justiça devida (art. 513.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, em conjugação com o art. 8.º, n.º 9, do RCP e com a Tabela III anexa a este diploma legal). Lisboa, 11 de Julho de 2024 Paulo Registo Bernardino Tavares Armando Cordeiro |