Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7894/23.0T8LSB.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ARRENDAMENTO
RENDA
RETENÇÃO NA FONTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Se a arrendatária deixa de pagar a renda devida (que vinha a ser paga com retenção do IRC na fonte), a senhoria tem o direito de pedir o pagamento da renda bruta (incluindo a retenção na fonte) e esse direito só se extingue se, mais tarde, a arrendatária alegar e provar que acabou por entregar ao Estado valores iguais ao que devia ter retido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

G-Lda., intentou uma acção contra N-Lda., e A, pedindo (a) a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre a autora e a ré e que (b) esta fosse condenada na entrega imediata do imóvel arrendado livre e devoluto de pessoas e bens, bem como (c) a condenação solidária dos réus (o último como fiador) a pagar à autora as rendas de 3750€ mensais deixadas de pagar desde Junho de 2022 (+ 2,50€ da renda de Maio2022) e não pagas, e vincendas até efectiva entrega do locado, bem como nos correspondentes juros de mora à taxa legal de 4%, devidos desde a data de vencimento de cada uma das rendas, até efectivo e integral pagamento, descontando 7500€ pagos em 31/01/2023 e 3497,50€ pagos em 14/02/2023. Diz que o valor actual em dívida é de 26.502,50€. Na cláusula 6/4 do contrato de arrendamento, documento junto com a PI, consta que “fica desde já convencionado que a retenção na fonte à taxa anual de 25% será deduzida pelo arrendatário.”
Os réus contestaram, impugnando apenas o seguinte: os 7500€ foram pagos em 28/01/2023 e não 31, e em 14/02 foram pagos 3500€ e não 3497,50€; o montante em dívida à data da propositura era de 22.752,50€ (= 3750€ x 9 – 11.000€) e não 26.502,50€ como a autora indicou por erro; por outro lado, dizem que em 21/04/2023 a ré pagou mais 7000€ à autora, pelo que agora – mas a seguir referem a data da propositura da acção - só estariam em dívida 15.752,50€. 
Os réus, num articulado superveniente de 29/05/2023, vêm dizer que a ré, a 17/05/2023, pagou mais 10.000€, pelo que agora só está em dívida o montante bruto de 5.752,50€ (15.752,50€ menos os 10.000€); a autora está a reclamar montantes brutos de rendas, sem atender à retenção na fonte à taxa de 25% que impende sobre o montante de renda e que, como o nome indica, não é pago à autora, sendo antes entregue pela ré directamente à Autoridade Tributária. Pelo que o montante que se encontrava em dívida à autora à data da propositura da acção era [sem contar com os pagamentos - TRL] apenas 25.314,38€ (= 75% de 33.752,50€ [2,50€ + 9 x 3.750€ [até Fev2023]). Como a ré já pagou 28.000€, já se encontra pago o montante reclamado a título de rendas vencidas, sendo que quaisquer pretensas rendas vincendas, a existirem, também só poderão ser reclamadas no seu montante líquido (isto é 75%, após a retenção na fonte à taxa de 25%).
Quanto à entrega do locado, pelo menos desde 19/05/2023, a ré encontra-se disponível para entregar o locado à autora, conforme e-mail de 22/05/2023 enviado pela gerente da ré ao gerente da autora, onde aquela pergunta a este último como deseja proceder para efectivar essa entrega – vide doc. 2. Por razões imputáveis à autora e seu gerente (caixa de correio cheia), o e-mail acima referido veio devolvido – doc. 3. Por essa mesma razão, a gerente da ré enviou a mesma comunicação ao gerente da autora por mensagem de texto/SMS – doc. 4. Como tal, a ré apenas ainda não entregou o locado por se encontrar a aguardar que a autora confirme como deseja proceder e formalizar/confirmar a recepção do locado junto da ré, por forma a que se possa comprovar que a autora recebeu as chaves/locado. Destarte, ainda que se venha a considerar serem devidas rendas vincendas jamais poderá a ré ser condenada no pagamento de quaisquer rendas que tenham por referência o período posterior a 19/05/2023.
A 09/06/2023, os réus vieram dizer que no passado dia 30/05/2023, procederam à entrega do locado à autora, devoluto de pessoas e bens, conforme “declaração de entrega do locado e de chaves” com essa data e assinada pelo legal representante da autora, que ora se junta como doc.1, pelo que os réus devem ser absolvidos da instância quanto a esse pedido, por inutilidade superveniente da lide, o que se requer.
Notificada para o efeito, a autora veio confirmar a entrega e data e a inutilidade superveniente da lide quanto a este pedido, dizendo que os autos devem prosseguir no que respeita ao pedido de condenação dos réus ao pagamento das rendas vencidas e não pagas, até à data de entrega do locado, bem como, nos juros de mora correspondentes, à taxa legal de 4%, devidos desde a data de vencimento de cada uma das rendas até efectivo e integral pagamento, tal como foi peticionado.
A 11/09/2023, os réus vêm dizer, entre o mais, que juntando as alegadas rendas vincendas até à entrega do locado, torna-se necessário adicionar o montante bruto de 11.250€ (3.750€ x 3 meses) relativo às rendas brutas dos meses de Março, Abril e de Maio de 2023. Assim, a totalidade do montante bruto de rendas à data da entrega do locado seria 45.002,50€ (3750€ x 12 + 2,50€). Deste valor, só seria devido à autora o montante líquido de 33.751,88€ (45.002,50€ após a dedução dos 25% de retenção na fonte). A ré já tinha pago 28.000€ até 29/05/2023. No dia 28/07/2023, a ré transferiu 5.571,88€ para a autora – doc.1. Esse comprovativo foi enviado pela legal representante da ré ao legal representante da autora, que acusou a recepção do mesmo – doc.2. Destarte, a ré já pagou à autora os 33.751,88€ [note-se que os réus erram nas contas: 28.000€ + 5571,88€ = 33.571,88 e não 33.751,88€ - TRL]. Conclui-se assim que já foram pagos todos os valores peticionados e devidos à autora, pelo que, à semelhança do pedido de entrega do locado, os réus devem ser também absolvidos da instância quanto ao pedido de pagamento (c) da PI. Ou seja, devem os réus ser absolvidos da instância quanto a todos os pedidos, por inutilidade superveniente da lide, extinguindo-se a presente acção em conformidade, o que se requer.
A 21/09/2023, a autora veio responder o seguinte: a ré não logra fazer prova do que alega, nomeadamente que fez as devidas retenções na fonte à taxa de 25% e entregou os valores retidos “directamente à AT”. Acontece que, antes de entrar em incumprimento, a ré pagava a renda líquida, retendo na fonte 25% do valor da mesma, e remetia à autora, por e-mail, o correspondente comprovativo de entrega à AT dos valores retidos. A partir de 01/06/2022, todos os valores que a ré entregou à autora para abater às rendas em dívida, até à entrega do locado em 30/05/2023, foram valores brutos, sem retenção, tal como melhor se pode retirar da declaração do Técnico de Contas da autora, cf. doc.1, tendo em conta que a autora não recebeu quaisquer comprovativos de retenções e entrega dos valores retidos à AT. Pelo que, ao contrário daquilo que é alegado pela ré, a autora desconhece se esta fez as retenções devidas por lei e cumpriu com a sua obrigação de entrega desses valores à AT. Como tal, não é verdade - e a autora não pode aceitar - que os valores das rendas em dívida, por si peticionados, se encontrem totalmente liquidados pela ré. Não se podendo olvidar, que ao valor em dívida, ainda por liquidar, acrescem os juros de mora à taxa legal de 4% devidos desde a data de vencimento de cada uma das rendas até efectivo e integral pagamento. Destarte, em 13/09/2023, os réus devem à autora o valor de 11.430,62€, tal como resulta do documento “extractos de vendas” que se junta, e onde se podem verificar as imputações dos valores transferidos pela ré, na dívida referente às rendas vencidas e não liquidadas. Cf. docs. 1 e 2.
A 17/10/2023, foi proferido despacho julgando a instância parcialmente extinta por inutilidade superveniente da lide (artigo 277/-e do CPC) quanto aos pedidos (a) e (b) e consequentemente foi determinado o prosseguimento dos autos com vista ao conhecimento do pedido (C).
Depois, a 08/03/2024 foi proferida sentença, a condenar os réus a pagarem solidariamente à autora 17.002,50€, acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, a contar desde a data de vencimento de cada uma das rendas e até efectivo e integral pagamento, com custas a cargo dos réus.
Os réus recorrem desta sentença, para que seja revogada e substituída por outra que julgue que já se encontram pagos todos os valores de rendas devidos à autora e, como tal, absolva os réus da instância; ou, subsidiariamente, para que seja substituída por outra que condene os réus no pagamento à autora de apenas 11.430,62€, acrescido dos respectivos juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, a contar desde a data de vencimento de cada uma das rendas e até efectivo e integral pagamento. Dizem, em súmula, que (1) a sentença não considerou o pagamento feito a 28/07/2023, de 5571,88€; (2), a sentença não teve em conta que a ré só tinha que pagar à autora as rendas líquidas; a retenção na fonte de 25% da renda não é algo a que a autora tenha direito, pois que é uma dívida da ré para com a autoridade tributária).
Juntam documentos para prova de que está a ser feito o pagamento, em prestações, das retenções na fonte. Dizem que se trata de uma certidão de 18/04/2024 (e, portanto, posterior à sentença do tribunal a quo, sendo um documento objectivamente superveniente que o tribunal ad quem deve admitir para a correcta decisão da causa) que ora se junta como doc. 1 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais, onde, nas primeiras seis páginas, é possível ver em pormenor, segundo dizem, as primeiras cinco (de 24) prestações mensais já pagas e que, nas mesmas está incluído “RETENÇÕES NA FON”, que fazem parte das dívidas de IRC objecto do plano de pagamentos.
A autora contra-alegou, aceitando o erro, na sentença, da falta de consideração do pagamento de 5.571,88€, mas já não que não tenha direito aos 25% correspondentes à retenção na fonte, insistindo que os réus não fizeram prova desse pagamento, pois que, diz, o documento junto pelos réus não prova o pagamento da retenção na fonte.
A 20/06/2024, os réus apresentam um requerimento, com mais documentos, a tentar comprovar que está a ser feito o pagamento em 24 prestações dos 25% na retenção na fonte.
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Questões que importa decidir: da admissão dos documentos; da admissão da resposta dos réus à contra-alegação da autora; o erro manifesto da sentença de falta de consideração de um pagamento; se se deve manter a condenação dos réus a pagarem à autora os 25% da retenção na fonte das rendas.
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Quanto aos documentos:
Os documentos destinam-se à prova de factos. Os factos têm um momento próprio até ao qual podem ser alegados (até ao encerramento da discussão: art. 588/1 do CPC), verificando-se os pressupostos das respectivas normas. Os réus, como resulta do relatório deste acórdão, nunca alegaram ter procedido à retenção na fonte das rendas não pagas e/ou terem entregue, mesmo que fora do prazo em que o deviam ter feitos, aos cofres do Estado essas quantias. O que eles, a data altura, começaram a discutir era se a autora tinha o direito às rendas em bruto ou descontadas dos valores de retenção da fonte.
Como os réus não alegaram o facto, não o podem pretender provar num recurso com apresentação de documentos para prova do mesmo. Os factos não se alegam num recurso. É certo que há doutrina que admite essa possibilidade, mas sem razão, como decorre do que antecede e é melhor explicado por Lebre de Freitas / Ribeiro Mendes / Isabel Alexandre, no CPC anotado, vol. 3.º, 3.ª edição, 2022, Almedina, págs. 142-143: “A função do recurso (reponderação e não reexame da decisão recorrida […]) não se coaduna com a permissão de nele serem alegados factos novos. O limite do art. 611/1 (“encerramento da discussão” em 1.ª instância, como confirma o art. 729/-g) é intransponível, a não ser em recurso de revisão (arts. 696/-c, 700/1 e 701/1-b).” E lembram, a seguir, que “tratando-se de facto constitutivo de excepção peremptória, a oposição por embargos a uma eventual execução, permite, melhor que a instância de recurso ordinário, fazê-lo valer, quanto a questão possa ser litigiosa”.
É certo que, a seguir, os autores citados ainda dizem: “Tratando-se, porém, de mero facto extintivo, como o pagamento da obrigação, o princípio da economia processual é invocável, ao menos de jure condendo, no sentido de poder ser invocado em recurso de apelação, mantendo efeito no processo quando a contraparte, notificada, não impugne o documento que o prova.”  
Ora, esta abertura diz respeito ao direito a constituir, não ao direito existente. Por outro lado, a autora impugnou o documento. Por fim, acrescente-se: a certidão em causa prova que os réus estão a pagar em prestações dívidas em processos fiscais tendo por referência retenções na fonte. Mas do documento não decorre a que retenções em concreto se está a referir, ou seja, se estão em causa as retenções relativamente às rendas em dívida à autora.
Por tudo isto, o documento não é admissível, tendo de ser desentranhado e os réus condenados na multa correspondente prevista nos artigos 443/1 do CPC e 27/1 do RCP.
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Quanto à resposta dos réus à contra-alegação da autora.
A lei não prevê (e, por isso não o permite) que haja resposta às contra-alegações de um recurso, salvo situações excepcionais (caso da hipótese de ter sido requerida pelo recorrido a ampliação do objecto do recurso, nos termos do artigo 636.º do CPC - art. 638/8 do CPC) que não foram invocadas para o caso.
Assim sendo, terá de se determinar, a final, o desentranhamento da resposta de 20/06/2024 com o documento junto, com custas do incidente anómalo pelos réus.
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Quanto à questão dos 5.571,88€: trata-se de um erro manifesto da sentença, como resulta da admissão da autora nas contra-alegações e já resultava da resposta da autora de 21/09/2023. Repare-se, aliás, que a autora terminava essa resposta dizendo que estavam em dívida 11.430,62€ e a sentença condena em 17.002,50€, ou seja, mais 5571,88€ do que “pedido”. Assim, adita-se aos factos provados que a ré fez um outro pagamento, a 28/07/2023, de 5571,88€. Este pagamento será considerado na condenação, que, desde logo por esta razão, terá de ser alterada.
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Quanto ao direito aos 25% da retenção na fonte.
As conclusões do recurso dos réus sobre esta matéria constam do seguinte, que se transcreve com simplificações e eliminação de algumas das muitas repetições:
U\ O tribunal a quo ignora que apenas seria devido à autora o montante líquido das rendas peticionadas e não o montante bruto, já que as rendas estão sujeitas à retenção na fonte à taxa legal de 25%, entregue directamente à Autoridade Tributária, não à senhoria/autora.
V\ Para além de ser uma questão de direito que cumpre sempre ao tribunal a quo conhecer e que este omitiu por completo na sua sentença, os réus levantaram a questão da retenção na fonte nos seus requerimentos de 29/05/2023 e de 11/09/2023.
[…]
X\ A retenção na fonte, como o nome indica, é retida pela arrendatária (i.e., a ré) aquando do pagamento da renda à senhoria (i.e., a autora).
Y\ Ao não deduzir o montante da retenção da fonte das rendas peticionadas pela autora, o tribunal a quo encontra-se a condenar os réus no duplo pagamento das mesmas quantias, nomeadamente: pagamento de 11.250,63€ à AT, como é devido; pagamento de 11.250,63€ à autora, o que não é devido.
Z\ E note-se que os réus encontram-se efectivamente a pagar o montante de retenções na fonte à AT, juntamente com outras dívidas tributárias, ao abrigo de um plano de pagamentos, conforme certidão de 18/04/2024 […];
AA\ Com a sentença sob recurso, o tribunal a quo estabelece uma situação de enriquecimento sem causa da autora, já que condena aqueles a pagar a esta montantes brutos de rendas que incluem valores de retenção na fonte, que é uma prestação tributária.
BB\ Refere o artigo 20 da Lei Geral Tributária: “1 - A substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte. 2 - A substituição tributária é efectivada, designadamente, através do mecanismo de retenção na fonte do imposto devido.”
CC\ Refere ainda a parte relevante do artigo 94 do Código do IRC: “O IRC é objecto de retenção na fonte relativamente aos seguintes rendimentos obtidos em território português: (…) c) Rendimentos […] prediais, tal como são definidos para efeitos de IRS, quando o seu devedor seja sujeito passivo de IRC ou quando os mesmos constituam encargo relativo à actividade empresarial ou profissional de sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade; (…). 4 - As retenções na fonte de IRC são efectuadas à taxa de 25% […].”
DD\ O acórdão do TRL de 04/07/2023, proc. 25184/16.2T8LSB-A.L1-7 também refere: “Sendo as prestações contratualmente fixadas, a pagar por um contraente ao outro, susceptíveis de integrar a categoria de rendimentos prediais e, consequentemente, de estar sujeitas a retenção na fonte em sede de IRC, a obrigação de pagamento deve considerar-se extinta, pelo cumprimento, se o valor daquelas prestações tiver sido entregue, em parte, ao credor e, na outra parte, à AT.”
EE\ Destarte, o tribunal a quo deveria ter considerado que o único valor devido à autora era o valor de 33.751,88€, correspondente ao montante bruto de rendas de 45.002,50€ após a retenção na fonte à taxa legal de 25%,
FF\ Sendo que também deveria ter considerado que o montante de 33.751,88€ já se encontra pago à autora através dos valores pagos pelos réus e documentalmente comprovados nos autos (€7500 + €3500 + 7000 + 10.000€ + 5571,88€).
Posto isto,
Da nulidade
Na contestação, os réus não questionaram o direito da autora às rendas brutas, nem disseram que nos valores que, entretanto, tinham pago, tinham retido o IRC devido, nem disseram nada quanto à entrega de montantes nos cofres do Estado a título de IRC devido pela autora pelas rendas devidas.
Assim sendo, não havia nem impugnação, nem excepções deduzidas que tivessem de ser conhecidas pelo tribunal.
Mais tarde (29/05/2023), os réus vêm, apenas com base nos factos alegados nos autos pela autora, dizer que esta não tinha direito aos valores de IRC que deviam ter sido retidos quando eles fizeram entrega de valores à autora. Também aqui, os réus não estão a deduzir nenhuma excepção, mas sim a impugnar o direito da autora (art. 571/2 do CPC: O réu defende-se por impugnação quando afirma que os factos articulados na petição não podem produzir o efeito jurídico pretendido pelo autor).  Impugnação que os réus já nem estavam em tempo de deduzir, porque já tinha sido ultrapassado o prazo da contestação (art. 573/1 do CPC).
Noutro requerimento, de 11/09/2023, os réus, ao invocarem mais pagamentos posteriores, limitam-se a pressupor que o devido são as rendas líquidas, não as brutas, só que agora as coisas são vistas do ponto de vista da inutilidade superveniente da lide. Daqui não resulta a alteração da natureza da defesa dos réus – simples impugnação. Impugnação que, já se viu, era extemporânea.
Assim sendo, não havia nenhuma questão a decidir que não tivesse sido decidida na sentença, pois que as questões são os pedidos, as causas de pedir e as excepções invocadas e as excepções de conhecimento oficioso de que caiba conhecer (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, páginas 703-704, 737).
Pelo que não se verifica a apontada nulidade da sentença.
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Quanto aos factos, visto que a decisão da matéria de facto não foi impugnada (excepto quanto à questão do pagamento não considerado que já foi tido em conta agora), nem há lugar a qualquer alteração da matéria de facto, este acórdão remete para os termos da decisão da 1.ª instância que decidiu aquela matéria (art. 663/6 do CPC).    
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Do recurso sobre matéria de direito
De qualquer modo, a argumentação dos réus é uma argumentação de direito que tem cabimento como recurso sobre a matéria de direito.
Pelo que se passa a apreciar a mesma.
Antes de mais, vejam-se as normas que têm a ver com a questão:
Art. 94/1-c do Código do Imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas: O IRC é objecto de retenção na fonte relativamente aos seguintes rendimentos obtidos em território português: Rendimentos […] rendimentos prediais, tal como são definidos para efeitos de IRS, quando o seu devedor seja sujeito passivo de IRC […]
Art. 8 do Código do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares:  1 - Consideram-se rendimentos prediais as rendas dos prédios rústicos, urbanos e mistos pagas ou colocadas à disposição dos respectivos titulares, quando estes não optarem pela sua tributação no âmbito da categoria B. 2 - São havidas como rendas: a) As importâncias relativas à cedência do uso do prédio ou de parte dele e aos serviços relacionados com aquela cedência; […]
Art. 94/4 do CIRC: As retenções na fonte de IRC são efectuadas à taxa de 25 %, […]. 94/6: A obrigação de efectuar a retenção na fonte de IRC ocorre na data que estiver estabelecida para obrigação idêntica no Código do IRS ou, na sua falta, na data da colocação à disposição dos rendimentos, devendo as importâncias retidas ser entregues ao Estado até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas e essa entrega ser feita nos termos estabelecidos no Código do IRS ou em legislação complementar.
Art. 101/8 do CIRS: A retenção que incide sobre os rendimentos das categorias B e F referidos no n.º 1 é efectuada no momento do respectivo pagamento ou colocação à disposição e a que incide sobre os rendimentos da categoria E em conformidade com o disposto no artigo 7.º         
Resulta das normas que antecedem - que têm excepções que não se aplicam ao caso como resulta do facto de até Maio de 2022 a ré sempre ter retido o imposto com a concordância da autora (tal como, aliás, constava da cláusula 6/4 do contrato) – que, em condições normais, estando a ré a pagar as rendas, a ré devia reter 25% do valor das rendas [rendimentos prediais] a que a autora tinha direito, tendo depois de entregar esses 25% nos cofres do Estado (a título de pagamento por conta do imposto de IRC da autora).
Segundo o art. 18/3 da Lei geral tributária, o sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.
Segundo o art. 20 da LGT: 1 - A substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte. 2 - A substituição tributária é efectivada, designadamente, através do mecanismo de retenção na fonte do imposto devido.
Segundo o art. 34 da LGT, as entregas pecuniárias efectuadas por dedução nos rendimentos pagos ou postos à disposição do titular pelo substituto tributário constituem retenção na fonte.
Segundo o art. 28 da LGT: 1 - Em caso de substituição tributária, a entidade obrigada à retenção é responsável pelas importâncias retidas e não entregues nos cofres do Estado, ficando o substituído desonerado de qualquer responsabilidade no seu pagamento, sem prejuízo do disposto nos números seguintes. 2 - Quando a retenção tiver a natureza de pagamento por conta do imposto devido a final, cabe ao substituído a responsabilidade originária pelo imposto não retido e ao substituto a responsabilidade subsidiária, ficando este ainda sujeito aos juros compensatórios devidos desde o termo do prazo de entrega até ao termo do prazo para apresentação da declaração pelo responsável originário ou até à data da entrega do imposto retido, se anterior. 3 - Nos restantes casos, o substituído é apenas subsidiariamente responsável pelo pagamento da diferença entre as importâncias que deveriam ter sido deduzidas e as que efectivamente o foram [a questão é ainda desenvolvida no art. 114 do CIRC, entre elas o n.º 4: No caso das retenções na fonte contempladas no n.º 1, a entidade devedora dos rendimentos é subsidiariamente responsável pelo pagamento do imposto que vier a revelar-se devido pelo sujeito passivo titular dos rendimentos, até à concorrência da diferença entre o imposto que tenha sido deduzido e o que deveria tê-lo sido.]
Ora, no momento em que a autora intenta a acção por as rendas não terem sido pagas, não se verificou nenhuma retenção na fonte. Assim, a regra a aplicar não é a do art. 28/1 da LGT, mas a do art. 28/2 da LGT, passando a ser a autora a responsável principal e a ré a responsável subsidiária. Como tal e porque não pode dizer que os 25% de pagamento por conta do IRC já foi pago, a autora terá que pedir tudo da ré para poder vir a entregar nos cofres do Estado o IRC devido pelos rendimentos por si auferidos (se e quando ganhar a acção e receber as rendas).
Quanto, no decurso da acção, mais de 6 meses depois da 1.ª renda em dívida, os réus lhe entregam valores, sem dizer nada quanto à retenção na fonte nem quanto ao pagamento do imposto, não há razão para que a autora considere que se verificou a retenção do IRC nas rendas, até porque os réus não contestaram o direito da autora ao valor bruto das rendas (só o vêm fazer mais tarde). A autora apenas deixaria de ter direito aos 25% que em situação normal devia ter sido retido por conta do IRC devido a final do ano, se a ré tivesse alegado e provado o pagamento de IRC ao Estado (extinguindo o direito da autora a recebê-lo, para mais tarde o pagar ao Estado como parte do IRC pelos seus rendimentos).
(consideraram-se: para além do ac. citado pelos réus – sendo que esse acórdão do TRL de 2023 pressupõe a prova do pagamento pela arrendatária ao Estado -, e o ac. do STA de 6/5/2020, proc. 01978/11.4BELRS 0297/15 citado por aquele, o ac. da 2..ª secção do contencioso tributário do TCAN de 07/05/2020, proc. 00083/14.6BEMDL, e dois pareceres da OCC - PT27421 - Fevereiro de 2023, publicado em 28/04/2023, em https://www.occ.pt/en/node/793498 e PT27823 - Dezembro de 2023, Parecer técnico elaborado pelo departamento de consultoria da OCC, publicado em 19/01/2024 em https://www.occ.pt/pt-pt/noticias/irc-retencao-na-fonte-4).
Assim, os réus não têm razão: as rendas a que a autora tem direito, não se demonstrando que a ré fez a retenção na fonte e a entregou nos cofres do Estado, são as rendas brutas e não as líquidas.
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Não quer isto dizer que o tribunal tenha condenado ou esteja a condenar os réus a um duplo pagamento.
Para já, não está demonstrado que a ré tenha retido e entregue nos cofres do Estado qualquer quantia equivalente aos 25% que devia ter retido nas rendas da autora, até porque os réus nunca alegaram tal facto e tinham-no de fazer como facto extintivo do direito da autora (no mesmo sentido, aliás, o acórdão do TRL que os próprios réus invocam).
Depois porque, se a ré tivesse feito o pagamento ao Estado, não foi o tribunal que a condenou a fazê-lo e se a ré não alegou a tempo o pagamento tal não ocorreu por culpa do tribunal.
Por outro lado, não é inevitável que, havendo condenação dos réus a pagaram as rendas (brutas), os réus não possam invocar, ainda, depois da sentença, que já fizeram esse pagamento, desde que esse facto extintivo (total ou parcial) se tenha verificado depois do momento em que o pudessem alegar nestes autos.
Mais: não se pode afastar a hipótese de, por algum modo, os réus possam recuperar (talvez por via do enriquecimento sem causa) o que vierem a pagar por duas vezes, tendo de se apurar, sempre perante as circunstâncias concretas, de quem é que têm o direito de o recuperar (da autora ou do Estado).
Ainda, se os réus ainda estiverem a fazer o pagamento em prestações à AT, podem tentar fazer cessar esse pagamento dizendo que já pagaram – se o pagaram – à autora as rendas brutas (com o imposto), evitando desse modo o agravar do prejuízo.
Mais, nada garante que a autora, colocada perante eventual prova evidente do pagamento do que seria devido a título de retenção na fonte, não aceite não se aproveitar da sentença para obter esse pagamento, de modo a evitar um enriquecimento sem causa que eventualmente tenha de restituir.
De qualquer modo, tudo isto são consequências, primeiro, da ré ter deixado de pagar as rendas; segundo, de os réus não terem alegado, em tempo, o pagamento – a ter ocorrido - das quantias devidas a título de retenção na fonte.
Tudo o que antecede, depende dos factos que ocorreram de facto e daquilo que de facto se conseguir provar noutros processos e noutros tribunais, sendo, por isso, uma apreciação perfunctória que se faz apenas para se poder afirmar que o que réus dizem a propósito do duplo pagamento ou do enriquecimento não é certo e, por isso, não seria motivo para evitar a condenação.
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A ré deixou de pagar as rendas em Junho de 2022 (para além dos 2,50€ de Maio) e só fez um primeiro pagamento do valor em dívida em 31/01/2023, pelo que, entretanto, se venceram juros (artigos 804, 805 e 806 do CPC). Depois disso, fez vários outros pagamentos, em intervalos, e nesses intervalos foram-se vencendo mais juros. O pagamento começa-se por imputar nos juros e só depois no capital, não havendo acordo em contrário (art. 785 do CC), como no caso não há. Pelo que, para além da parte do capital em divida, existem juros de mora vencidos por pagar e juros de mora vincendos até integral pagamento, como a autora lembrou e foi desconsiderado pelos réus no recurso.
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida e, em sua substituição condena-se agora solidariamente  os réus a pagar à autora o que estiver em dívida das 12 rendas mensais de 3750€ desde Junho de 2022, para além dos 2,50€ de Maio de 2022, e respectivos juros de mora, vencidos a contar desde a data de vencimento de cada uma das rendas e vincendos até integral pagamento, à taxa legal anual de 4%, depois de descontadas, primeiro nos juros, as entregas de 7500€ em 28/01/2023, de 3500€ em 14/02/2023, de 7000€ em 21/04/2023, de 10.000€ em 17/05/2023 e de 5571,88€ em 28/07/2023.
Custas, na vertente de custas de parte (já que não há outras) da acção e do recurso na proporção do decaimento, considerando-se que a autora, à data da acção, não tinha direito ao valor dos 26.502,50€ pedidos a título de capital, mas apenas a 22.752,50€ (9 x 3750€ + 2,50€ - 11.000€), o que é também um decaimento.
Retire do processo em papel e oculte do processo electrónico os documentos juntos pelos réus com o recurso com 2 UC de multa (artigos 443/1 do CPC e 27/1 do RCP).
Determina-se o desentranhamento (e oculte no processo electrónico) do requerimento de 20/06/2024, com o documento junto, com custas do incidente anómalo pelos réus, que se fixam em 2 UC de taxa de justiça.

Lisboa, 24/10/2024
Pedro Martins
Ana Cristina Clemente
Paulo Fernandes da Silva