Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14526/21.9T8LSB.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
USUCAPIÃO
OMISSÃO DE INSCRIÇÃO NA MATRIZ
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: É nula a escritura de justificação notarial de aquisição com fundamento na usucapião que tem por objeto parcela de terreno rústico não inscrita na matriz predial - arts. 92º, nº 1, e 98º, nº 1, al. b), ambos do Código do Notariado, e 280º, nº 1 do CC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
O Ministério Público[1] intentou a presente ação declarativa constitutiva sob a forma comum contra A, B, C e D, pedindo que o Tribunal declare a nulidade de uma escritura de justificação notarial que estes outorgam.
Para tal alegou, em síntese, que:
- existe um prédio misto, com a área de 19.750m2 (dezanove mil, setecentos e cinquenta) metros quadrados, implantado numa área classificada no Plano Diretor Municipal do Concelho de Almada como “espaço urbanizável de baixa densidade programado”, que foi objeto de pedido de licenciamento de operação de loteamento e de obras de urbanização que caducou;
- não foi pedido á Câmara Municipal de Almada qualquer parecer para parcelamento do prédio, conforme Lei n.º 91/95, de 02-09;
- no dia 23.09.2016 foi celebrada escritura de justificação notarial, invocando os réus a usucapião, sem que o prédio justificado tivesse uma inscrição própria/autónoma na matriz, sem que houvesse qualquer menção ao número do alvará de loteamento ou qualquer comunicação prévia, e, ainda, sem existir qualquer parecer da Câmara Municipal de Almada;
- no seguimento em 08-11-2016 foi apresentado junto da Conservatória do Registo Predial de Almada um pedido de destaque da citada parcela, o qual foi concedido, tendo sido atribuído à mesma parcela o n.º ...;
- a área do prédio objeto da escritura de justificação notarial impugnada e de acordo com a qual terá sido objeto de aquisição por usucapião, é inferior à área mínima de cultura fixada nas Portarias aplicáveis;
- perante a impossibilidade legal de dividir o prédio rústico, os réus atuaram com o propósito de contornar normas legais imperativas, entre as quais, as que interditam o fracionamento de prédios rústicos, as exigências de um processo de loteamento e a inscrição própria na matriz, conseguindo desta forma obter um resultado proibido por lei.
Citados os réus, os mesmos contestaram, argumentando que o Ministério Público não coloca em crise os factos aduzidos como justificação para a aquisição por usucapião, sustentando que não se verifica a suscitada nulidade, e concluindo pela improcedência da ação.
No desenvolvimento da causa, veio a ser proferido despacho saneador-sentença com o seguinte dispositivo:
“Por tudo o exposto, o Tribunal julga totalmente procedente a presente acção, por provada, e, em consequência:
i. Declara-se a nulidade da escritura de justificação notarial supra elencada.
ii. Determina-se o cancelamento do registo predial de Almada sob o n.º .../20161205, e registo aquisitivo pelos RR com base na citada escritura de justificação.
iii. Mais se determina o cancelamento da desanexação no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º ....
iv. Condena-se os Réus no pagamento das custas processuais.”
Inconformados, os réus interpuseram recurso de apelação, cuja motivação resumiram nas seguintes conclusões:

1. Por via deste recurso pretendem os ora recorrentes, em primeiro lugar, contestar o segmento decisório referente à aplicação do direito.
2. Em segundo lugar, demonstrar o desacerto da apreciação e decisão da instância recorrida.
3. Não restam dúvidas que a escritura de justificação posta em crise, não cria o direito nela declarado, mas sim a posse que se transformou a favor dos possuidores e aqui recorrentes, numa situação de direito.
4. O legislador permitiu a aquisição originária de um direito ex novo, a fim de que não haja lacunas na dominialidade, de modo a que não haja bens sem titular.
5. A escritura de justificação não é nula porque, na verdade, os justificantes adquiriram o prédio por usucapião.
6. Não sendo a invocação da usucapião proibida por lei, não houve qualquer fraude à lei.
7. Nunca podendo assim ser cancelada a inscrição de aquisição do prédio por usucapião nem a menção de desanexação.
8. Havendo o fracionamento, o mesmo foi dividido outrora por doação pelos cinco filhos e não agora com a escritura de justificação.
9. Pelo que nunca pretenderam os recorrentes fugir às leis sobre loteamentos.
10. Tanto no RGUE como na legislação que regula a RAN e a REN, inexistem normas imperativas de conhecimento oficioso cuja violação conduza à nulidade do negócio através do qual ocorra o fracionamento.
11. Atualmente o imóvel encontra-se inscrito na matriz sob parte do artigo 16 da Secção AJ, da União de Freguesias de Charneca de Caparica e Sobreda, e a parte urbana composta de casa de rés-do-chão e anexo, inscrita na respetiva matriz sob o artigo ..., daquela União de Freguesias e descrito na Conservatória do Registo Predial da freguesia da Charneca de Caparica sob o número ....
12. Ora, no entender dos ora recorrentes, a complexidade e importância da questão em apreciação nos presentes autos, associada à suscetibilidade de vir a gerar decisões contraditórias, justificam plenamente a intervenção do Tribunal da Relação, em ordem a encontrar uma solução orientadora para casos semelhantes no futuro.
13. Por todas as razões e factos supra expostos, é convicção plena dos recorrentes que a decisão proferida está flagrada de contradição com os fundamentos que a sustentam, pelo mesmo é nula nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil e que a MM Juiz a quo faz errada interpretação dos factos, bem como uma errada aplicação da lei aos mesmos. Tendo, nesta medida, violado o disposto nos artigos 1292º, 1...º do Código Civil.”.
Concluem nos seguintes termos:
“ Termos em que deve o presente recurso ser considerado procedente, sendo, consequentemente, revogada sentença em crise, substituindo-se por outra decisão que: 
a. Atentos os fundamentos vertidos nas alíneas das conclusões, seja reconhecido o direito
b) Concomitantemente, atentos aos fundamentos de facto e de direito explanados, seja a sentença recorrida declarada nula e substituída por outra que determine a ação totalmente improcedente e em consequência, sejam absolvidos os recorrentes de todos os pedidos, incluindo o de condenação nas custas e em procuradoria.”
O autor apresentou contra-alegações, cuja motivação sintetizou nas seguintes conclusões:

1. O artigo 607.º, número 3., do Código de Processo Civil, determina que, na elaboração da sentença, e após a identificação das partes e do tema do litígio, deve o juiz deduzir a fundamentação do julgado, explicitando “os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.”
2. Do teor da decisão recorrida é perfeitamente possível alcançar o quadro factual e jurídico subjacente ao sentido decisório contido na mesma decisão, nomeadamente é possível alcançar, sem particular esforço, que o Juiz a quo definiu concretamente a matéria de facto relevante para a decisão da causa, discriminando ainda a factualidade não considerada provada, apreciando ainda os meios probatórios produzidos, designadamente do ponto de vista documental.
3. Subsequentemente, na mesma decisão, subsumiu a factualidade assente ao Direito, fundamentando juridicamente a decisão em causa, concluindo fundadamente pela procedência da ação.
4. Porque tal ocorre, e nesta perspetiva, a fundamentação constante da decisão recorrida é a bastante para a decisão que ali era suposto ser proferida, sendo certo que é perfeitamente claro o enquadramento factual tido por assente e considerado relevante pelo tribunal a quo, assim como o quadro normativo aplicável e subjacente à decisão, permitindo, pois, aos respetivos destinatários exercer, de forma efetiva e cabal, a sua análise e a sua crítica, suscitando a sua reapreciação, como ora sucedeu.
5. Pelo que, não padece a referida de decisão/sentença de qualquer nulidade.
6. A escritura de justificação notarial outorgada pelos réus, ora recorrentes, é nula, não produzindo quaisquer efeitos jurídicos, porquanto o prédio justificado não tinha inscrição própria/autónoma na matriz, sendo que tal inscrição matricial ocorreu após a data da aludida escritura, violando o disposto no artigo 92.º, número 1., do Código de Notariado.
7. Acresce que, a aludida escritura de justificação notarial foi celebrada sem qualquer menção ao número do alvará de loteamento ou comunicação prévia, exigível nos termos do disposto no artigo 49.º, número 1º, do Decreto-lei número 555/99, de 16 de Dezembro.
8. Mais, resulta que o prédio objeto dos autos (escritura de justificação notarial) comporta uma área inferior à área mínima de cultura fixada (conforme artigo 49.º da Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto e Portarias números 202/70, de 21 de Abril, 219/16, de 9 de Agosto, 19/2019, de 15 de Janeiro = área de 3955,47 m2), violando assim o disposto no artigo 1376.º, número 1., do Código Civil.
9. As referidas normas legais são normas imperativas que não podem ser derrogadas ou sequer restringidas por vontade das partes, uma vez que visam proteger interesses de ordem pública.
10. Em suma, a aludida escritura de justificação notarial outorgada pelos réus, ora recorrentes, inobservou os normativos legais imperativos em vigor à data da aludida escritura.
11. Pelo que, outra solução ao Tribunal a quo não restaria senão declarar ineficaz a aludida escritura de justificação notarial, como efetivamente veio a ocorrer no segmento decisório da Douta Sentença que, como se referiu,
Nenhum reparo merece e deve ser mantida na integra.”
Admitido o recurso, remetidos os autos a este Tribunal e aqui recebidos, foram colhidos os vistos.
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[2]). Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.
Assim sendo, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
a) A nulidade do despacho saneador-sentença;
b) A nulidade da escritura de justificação notarial;
3. Fundamentação
3.1. Os factos
3.1.1. Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos[3]:
1. Desde, pelo menos, 1951, que existe um prédio em Vale Figueira, Azinhaga de Cima, concelho de Almada, freguesia da União das Freguesias de Charneca da Caparica e Sobreda, rústico, com a área de 19.750 metros quadrados, descrito na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o artigo 16, secção AJ da União das Freguesias de Charneca da Caparica e Sobreda.
2. O prédio descrito em 1. encontrava-se inscrito a favor de … pela Ap. n.º … de …, com menção de “aquisição”.
3. Posteriormente consta a ap. n.º 43, de 11.10.2007, com menção de “aquisição” por “sucessão hereditária”, em comum e sem determinação de parte ou de direito, a favor de:
(…)
4. Foi ainda registada a ap. n.º 17.12.2007, de 17.12.2007, a “transmissão de posição” tendo como sujeito ativo C …., A …. e como sujeito passivo C …. e esposa.
5. No dia 23.09.2016 foi celebrada escritura de justificação notarial, mediante a qual os Réus declararam: 
“Que, são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, em comum sem determinação de parte ou direito, do seguinte prédio: Prédio misto, sito em Vale Figueira, Azinhaga da Quinta de Cima, freguesia de Charneca da Caparica, concelho de Almada, com a área de três mil novecentos e cinquenta e cinco vírgula quarenta e sete metros quadrados (…) composta a parte rústica de cultura arvense, árvores de fruto, inscrita na matriz sob parte do artigo … da Secção AJ, da União das Freguesias de Charneca da Caparica e Sobreda, anteriormente artigo 16 da Secção AJ, da freguesia de Charneca da Caparica (…) a desanexar do prédio descrito na Segunda  Conservatória do Registo Predial de Almada sob o número …, da freguesia de Charneca da Caparica. (…)
Que atribuem ao prédio justificado valor global de seis mil oitocentos e setenta e oito euros e quarenta e oito cêntimos (…).
Que assim, os (…), ora justificantes, estão na posse do identificado imóvel há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, com ânimo de quem exerce direito próprio, sendo por isso uma posse pública, pacífica, contínua, pelo que adquiriram o referido imóvel por usucapião, não tendo assim, documentos que lhes permita fazer prova da aquisição pelos meios extrajudiciais normais.”
6. Aquando da celebração da escritura de justificação notarial a parcela referenciada na mesma não detinha uma inscrição autónoma na matriz.
7. Inexistia igualmente á data qualquer alvará de loteamento ou comunicação prévia, bem como inexistia parecer favorável da Câmara Municipal de Almada para efeitos de parcelamento, conforme informação camarária de 18.12.2020, e cujo teor se transcreve:
“Para o local existe um processo de loteamento, com o n.° 864/03, aprovado mediante deliberação da Câmara Municipal de Almada de 17/12/2014 e respeita a uma propriedade de 19.781,00m2, sito na Azinhaga da Quinta de Cima, freguesia da Charneca de Caparica. Em 29/12/2014, a requerente foi notificada para apresentar a comunicação prévia relativa às obras de urbanização, no prazo de um ano, o que não aconteceu, pelo que foi declarada a caducidade da licença de loteamento, em reunião de Câmara de 03/01/2018.
O pedido de licença de loteamento submetido, à data, para apreciação, não se enquadra na Lei n.° 91/95, de 2 de setembro, na sua atual redação, tendo sido instruído e deliberado nos termos do DL n.° 555/99, de 16 de dezembro.
Mais se informa que nos Serviços da Autarquia não se encontra registado qualquer pedido de parecer quanto à constituição de compropriedade ou aumento do número de compartes, nos termos do artigo 54° da Lei n.° 91/95, de 2 de setembro.”
8. Em 08.11.2016 os réus procederam ao registo e pedido de destaque da parcela identificada em 5), objecto da aludida escritura, com a área de 3.955,47 metros quadrados.
9. Em 05.12.2016 foi lavrado o registo predial da parcela justificada de 3.955,47 metros quadrados na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º .../20161205.
3.1.2. Factos não provados
O Tribunal a quo considerou inexistirem factos não provados com interesse para a decisão da causa.
3.2. Os factos e o direito
3.2.1. Da nulidade do despacho saneador-sentença
3.2.1.1. Considerações prévias
Em jeito de introito à análise das nulidades invocadas, justifica-se plenamente citar ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[4]:
“2. É verdadeiramente impressionante a frequência com que sede de recurso são invocadas nulidades da sentença ou de acórdãos, denotando o número significativo de situações em que o verdadeiro interesse da parte não é propriamente o de obter uma correta apreciação do mérito da causa, mas de “anular” a toda a força a sentença com que foi confrontada.
3. É claro que certas decisões poderão estar eivadas de nulidades, mas ainda assim seria bom que se interiorizasse que, atento o disposto no art. 655º nº 1, que regula os poderes da Relação no âmbito do recurso de apelação, a sua verificação não determina necessariamente a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância, antes implica a substituição imediata por parte da Relação, a não ser que alguma questão tenha sido considerada prejudicada e haja necessidade de recolher outros elementos. Mesmo quando as nulidades respeitam a acórdãos da Relação, a intervenção do Supremo também se faz, em regra, em regime de substituição, a não ser nas situações excluídas no nº 1 do art. 684º.
4. Acresce ainda uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida, ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso.
5. Porventura esta tendência encontrará a sua raiz num modelo processual em que o decurso do prazo para a interposição de recurso apenas iniciava depois de serem apreciados pelo tribunal a quo eventuais nulidades decisórias que eram autonomamente arguidas. Porém, há muito que foi ultrapassado esse quadro normativo, de modo que o prazo para interposição de recurso e apresentação de alegações apontada partir da notificação da sentença (art 638º nº 1) sem que haja a possibilidade de a parte dilatar (artificialmente) o exercício desse direito através da dedução de incidente de arguição de nulidade ou de reforma da sentença, questões que, quando surjam devem ser necessariamente integradas nas alegações de recurso, como claramente escreve nº 4. Seguro é que os resultados que se observam através da leitura dos acórdãos são reveladores da generalizada falta de consistência das nulidades que são frequentemente arguidas tendo como reflexo justificada a sua apreciação sumária que, na maior parte das vezes, é inteiramente merecida.”
Como bem apontam os citados autores, é realmente impressionante a circunstância de a grande maioria das arguições de nulidade da sentença se revelarem flagrantemente improcedentes e, mais do que isso, grosseiramente fundamentadas, demonstrando as mais das vezes profundo desconhecimento absoluta desconsideração do que há mais de setenta anos[5] constitui entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência acerca do correto âmbito de aplicação das normas que cominam a nulidade da sentença, sem que se denote, da parte dos recorrentes, qualquer esforço argumentativo no sentido de convencer o Tribunal de recurso das razões pelas quais arguem o apontado vício ao arrepio dos entendimentos dominantes na matéria.
Infelizmente, como veremos, o caso que nos ocupa constitui apenas mais um exemplo dessa postura.
3.2.1.2. As nulidades invocadas pelos apelantes
No caso vertente os apelantes invocaram duas nulidades, embora o façam de forma incoerente, visto que nos arts. 32 a 40 da motivação do recurso se reportam a uma alegada falta de fundamentação (art. 615º, nº 1, al. b) do CPC) e nas conclusões, mais precisamente no ponto 13 se refiram a uma suposta contradição entre os fundamentos e a decisão.
Perante tal incoerência sentimo-nos tentados a não apreciar nenhuma das nulidades, visto que só as conclusões delimitam o objeto do recurso, e concomitantemente só podem apreciar-se questões que sejam objeto de exposição na motivação do recurso, até porque a forma como tais vícios foram invocados raia a ininteligibilidade. Ainda assim cremos que se justifica a exposição dos motivos pelos quais entendemos que nenhuma dessas nulidades se verifica.
3.2.1.2.1. Falta de fundamentação
Nos termos do disposto no artigo 615º, nº1, alínea b) do CPC, a sentença é nula “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Esta disposição legal aplica-se igualmente ao despacho saneador-sentença, ex vi do art. 595º, nº 3, parte final do CPC.
O vício em questão reside na violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, consagrado no art. 208º, nº 1 da Constituição da República, e no art. 154º, do CPC.
Dispõe o nº 1 deste preceito que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.
E acrescenta o nº 2 que “a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
Resulta desta disposição que o dever de fundamentação das decisões judiciais conhece diferentes graus, consoante o tipo de decisão a proferir e a sua complexidade.
O grau máximo da exigência legal de fundamentação das decisões judiciais é representado pela sentença em ação contestada (art. 607º, nºs 3 e 4 do CPC), sendo a lei processual menos exigente, por exemplo, no caso das ações não contestadas (vd. art. 567º, nº 3 do CPC), nas decisões relativas aos incidentes da instância e procedimentos cautelares (arts. 295º e 365º, nº 2 do mesmo Código[6]), e nos despachos interlocutórios em que não tenha sido deduzida oposição e a questão a proferir seja manifestamente simples (art. 154º, n.º 2 do CPC).
Não obstante, nem todas as situações de incumprimento ou cumprimento defeituoso do dever de fundamentação configuram a nulidade em apreço.
Com efeito, a doutrina e a jurisprudência têm salientado com insistência que tal vício só se verifica em situações de falta absoluta ou total ininteligibilidade da indicação das razões de facto e de Direito que justificam a decisão e não também quando tais razões constem da sentença, mas de tal forma que pela sua insuficiência, laconismo ou mediocridade, se deve considerar a fundamentação deficiente.
Com efeito, já ALBERTO DOS REIS[7], ensinava que «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.»
Por outro lado, como bem salientou TOMÉ GOMES[8], «(…) a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adotada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão7.»
No mesmo sentido se pronunciou o ac. STJ de 26-04-1995 (Raul Mateus), CJ 1995 – II, p. 58[9], “(...) no caso, no aresto em recurso, alinharam-se, de um lado, os fundamentos de facto, e, de outro lado, os fundamentos de direito, nos quais, e em conjunto se baseou a decisão. Isto é tão evidente que uma mera leitura, ainda que oblíqua, de tal acórdão logo mostra que assim é. Se bons, se maus esses fundamentos, isso é outra questão que nesta sede não tem qualquer espécie de relevância.”
Em sintonia com tal entendimento vd. ac. STJ 15-12-2011 (Pereira Rodrigues), p. 2/08.9TTLMG.P1 [10] onde se sustentou que o vício da nulidade da sentença por falta de fundamentação não ocorre em situações de escassez, deficiência, ou implausibilidade das razões de facto e/ou direito indicadas para justificar a decisão, mas apenas quando se verifique uma total falta de motivação que impossibilite o escrutínio das razões que conduziram à decisão proferida a final.
No fundo, como lapidarmente se consignou no sumário do ac. STJ 02-06-2016 (Fernanda Isabel Pereira), p. 781/11.6TBMTJ.L1.S1, “Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento.”
E porque assim é, concluímos, como fez o ac. RL 17-05-2012 (Gilberto Jorge), p. 91/09.9T2MFR.L1-6, em cujo sumário se pode ler que “A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (…)”.
A exigência do caráter absoluto da falta de fundamentação incide separadamente sobre os fundamentos de facto e os fundamentos de Direito. Tal significa que se uma sentença ou despacho que decide uma questão de Direito suscitada pelas partes contiver a indicação dos factos em que se estriba, mas for absolutamente omissa quanto às razões de Direito que a sustentam, será nula. E o inverso é igualmente verdadeiro: a mesma decisão será nula se contiver a indicação das razões de Direito que a determinam, mas for absolutamente omissa quanto aos factos que a sustentam.
No caso em apreço, verifica-se que o despacho saneador-sentença apelado contém um elenco de factos provados e não provados, seguido da indicação dos meios de prova que determinaram a demonstração dos factos provados, e da fundamentação jurídica da causa, com a análise dos factos provados à luz das disposições legais que considerou aplicáveis e da jurisprudência tida por pertinente.
É por isso flagrante manifesto que o despacho saneador-sentença apelado não é nulo por falta de fundamentação.
3.2.1.2.2. Contradição entre os fundamentos e a decisão
Dispõe o art. 615º, nº 1, al. c) do CPC que a sentença é nula “quando os fundamentos estejam em contradição com a decisão, ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Também esta disposição se aplica ao despacho saneador-sentença, ex vi do art. 595º, nº 3 do CPC.
Como ensinava ALBERTO DOS REIS[11], a sentença ou acórdão serão obscuros quando neles se contenha “algum passo cujo sentido seja ininteligível” ou cujo sentido exato não se logre alcançar. Já a ambiguidade ocorre quando “alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos”.
Por seu turno, sustenta MANUEL TOMÉ SOARES GOMES[12]:
“segundo o artigo 607º, nº 3, parte final, o juiz na sentença deverá concluir pela decisão final, o que se reconduz, analiticamente, ao estabelecimento de uma equação discursiva entre:
- A base da facti species, simples ou complexa, plasmada no quadro normativo aplicável – a dita premissa maior;
- A factualidade dada como provada – a dita premissa menor; e uma conclusão sustentada na estatuição legal correspondente ao referido quadro normativo.
Entre tais premissas e conclusão deve existir portanto um nexo lógico que permita, no limite, a formulação de um juízo de conformidade ou de desconformidade, o que não se verifica quando as premissas e a conclusão se mostrem formalmente incompatíveis, numa relação de exclusão lógica. Na verdade, sobre dois termos excludentes nem tão pouco é possível formular um juízo de mérito ou de demérito; já não assim quando se trate de uma relação de mera inconcludência, sobre a qual é possível formular um juízo de demérito.
Ora, a oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de mera inconcludência estar-se-á já perante uma questão de mérito, reconduzida a erro de julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da acção.”
Finalmente, dizem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[13]:
“9. A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente.
10. A decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.”
No caso em apreço, sustentam os apelantes que o despacho saneador-sentença é nulo por considerarem que ocorre contradição entre os seus fundamentos e a decisão.
Não explicam, porém, em que consiste tal contradição.
Lida a fundamentação da decisão apelada não se descortina qualquer antinomia entre o raciocínio que conduziu à conclusão de que a escritura outorgada pelos apelantes é nula e a decisão proferida. Com efeito, na fundamentação da decisão apelada o Tribunal a quo expôs as razões pelas quais considera que a outorga da escritura em questão teve lugar com violação de disposições legais imperativas e que os negócios jurídicos celebrados em desrespeito de disposições legais imperativas são nulos, e no dispositivo limitou-se a declarar a nulidade da escritura e ordenar o cancelamento dos registos efetuados com base na mesma.
É por isso evidente que o despacho saneador-sentença não enferma de nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão.
3.2.2. Da nulidade da escritura de justificação notarial outorgada pelos apelantes
Sustentam os apelantes que a escritura de justificação que celebraram não padece das nulidades que lhe foram imputadas no despacho saneador-sentença apelado por considerarem que a usucapião configura uma forma de aquisição originária da propriedade que se sobrepõe às disposições legais imperativas que o Tribunal a quo considerou terem sido desrespeitadas e constituem a causa da nulidade declarada no despacho saneador-sentença apelado.
No que tange às apontadas nulidades, expôs o Tribunal a quo:
«Por via da presente acção, pretende o Autor obter a declaração de nulidade da escritura de justificação identificada supra, alegando que a mesma foi celebrada sem que o concreto prédio justificado tivesse uma inscrição própria/autónoma na matriz, sem que houvesse qualquer menção ao número do alvará de loteamento ou comunicação prévia, sem que existisse um parecer favorável da Câmara Municipal de Almada e pelo facto de ter como objecto um prédio com uma área inferior à área mínima de cultura fixada, contornando-se, assim, normas legais imperativas, entre as quais, as que interditam o fraccionamento de prédios rústicos e as que exigem a existência de um processo de loteamento, bem como a inscrição própria na matriz, conseguindo, desta forma, obter um resultado proibido por lei.
Verificamos, portanto, que o Ministério Público pretende que seja declarada a ineficácia de tal escritura de justificação, declarando-se que a mesma não produz efeitos, por falta de cumprimento de critérios legais/formais.
 Desde logo, cumpre atentar que, no termos do art. 31.º do Código de Processo Civil, o Ministério Público tem legitimidade para propor acções onde esteja em causa a tutela de interesses difusos.
A preservação do ambiente, o ordenamento do território, bem como a qualidade de vida inerente à comunidade, em causa nos presentes autos, são exemplos de interesses difusos, com consagração constitucional, mormente no artigo 52.º, n.º 3, alínea a) da Constituição da República Portuguesa, cuja defesa incumbe ao Ministério Público, no âmbito das suas atribuições (cfr. artigos 4,º, n.º 1, alínea h) e artigo 9.º, n.º 1, alínea f) da Lei n.º 68/19 de 27 de Agosto), advindo-lhe igualmente legitimidade através do já mencionado artigo 31.º do Código de Processo Civil, artigos 25.º, n.º 2 e 66.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e c) da Constituição da República Portuguesa e artigo 7.º, n.º 1 da Lei n.º 19/2014 de 14 de abril.
Já no que respeita à invocação da nulidade, importam os artigos 280.º, 286.º e 294.º do Código Civil.
Estabelece o artigo 280.º, n.º 1 do Código Civil que “é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável”, acrescentando o n.º 2 do mesmo diploma legal que “é nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes”.
Preceitua o artigo 286.º do Código Civil que “a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal”.
E estatui o artigo 294.º do Código Civil que “os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei”. 
Por seu turno, sob a epígrafe “Justificação relativa ao trato sucessivo”, dispõe o artigo 116.º do Código do Registo Predial que:
1- O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo.
2- Caso exista inscrição de aquisição, reconhecimento ou mera posse, a falta de intervenção do respetivo titular, exigida pela regra do n.º 2 do artigo 34.º, pode ser suprida mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo.
3- Na hipótese prevista no número anterior, a usucapião implica novo trato sucessivo a partir do titular do direito assim justificado.
Por seu turno, estatui o artigo 81.º do Código do Notariado que:
1 - A justificação, para os efeitos do n.º 1 do artigo 116.º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.
2 - Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.
Já o artigo 96.º, n.º 1 do Código do Notariado refere que as declarações prestadas pelo justificante têm que se confirmadas por três declarantes. 
Também com relevância dispõe o artigo 101.º do mesmo diploma legal, que:
1- Se algum interessado impugnar em juízo o facto justificado deve requerer simultaneamente ao tribunal a imediata comunicação ao notário da pendência da acção.
2- Só podem ser passadas certidões de escritura de justificação decorridos 30 dias sobre a data em que o extracto for publicado, se dentro desse prazo não for recebida comunicação da pendência da impugnação.
3- O disposto no número anterior não prejudica a passagem de certidão para efeito de impugnação, menção que da mesma deve constar expressamente.
4- Em caso de impugnação, as certidões só podem ser passadas depois de averbada a decisão definitiva da acção.
5- No caso de justificação simultânea, nos termos do artigo 93.º, não podem ser extraídas quaisquer certidões da escritura sem observância do prazo e das condições referidos nos números anteriores.”
Ora dos normativos legais supramencionados decorre que a justificação notarial consubstancia um expediente técnico simplificado, com vista a suprir a ausência de um título válido de aquisição de um determinado imóvel (in casu o de propriedade), a fim de permitir a primeira inscrição desse direito no registo.
Todavia, por assentar nas declarações das pessoas que pretendem justificar a aquisição de um determinado prédio e de testemunhas apresentadas pelas mesmas, a escritura de justificação notarial não oferece cabais garantias de segurança e de correspondência com a realidade, permitindo a sua utilização fraudulenta, com eventual lesão de direitos de terceiros.
Por isso mesmo, a justificação notarial não constitui acto translativo, pressupondo sempre, no caso de invocação de usucapião, uma sequência de actos a ela conducentes, que podem ser impugnados, antes ou depois de ser efectuado o registo, com base naquela escritura. 
De mencionar ainda que, o artigo 101.º, n.º 1 do Código do Notariado, não fixa qualquer prazo para propositura da acção de impugnação do facto justificado, sendo que nos termos do artigo 8.º, n.º 1 do Código do Registo Predial, “a impugnação judicial de factos registados faz presumir o pedido de cancelamento do respetivo registo”. 
Cumpre também referir que a acção de impugnação de escritura de justificação notarial é uma acção de simples apreciação negativa, conforme dispõe o artigo 10.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Civil, sendo que é ao  Réu que incumbe a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga, de acordo com o mencionado no artigo 343.º, n.º 1 do Código Civil. 
No entanto, como já mencionado supra, nos presentes autos o Autor, Ministério Público, não colocou em causa a veracidade dos factos vertidos na escritura de justificação notarial, mas tão somente questões formais de impossibilidade de obtenção da pretensão visada pelos Réus, pelo que não indagará o Tribunal acerca da verificação dos requisitos para operar a usucapião consagrada na escritura de justificação notarial. 
Vertendo ao caso concreto, verifica-se que os Réus através da celebração de uma escritura de justificação, pretenderam invocar a aquisição do direito de propriedade, tendo declarado no dia 23/09/2016, “que, são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, em comum sem determinação de parte ou direito, do seguinte prédio:  
Prédio misto, sito em Vale Figueira, Azinhaga da Quinta de Cima, freguesia de Charneca da Caparica, concelho de Almada, com a área de três mil novecentos e cinquenta e cinco vírgula quarenta e sete metros quadrados (…) composta a parte rústica de cultura arvense, árvores de fruto, inscrita na matriz sob parte do artigo 16 da Secção AJ, da União das Freguesias de Charneca da Caparica e Sobreda, anteriormente artigo 16 da Secção AJ, da freguesia de Charneca da Caparica (…) a desanexar do prédio descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Almada sob o número catorze mil novecentos e trinta e nove, da freguesia de Charneca da Caparica. (…) 
Que atribuem ao prédio justificado valor global de seis mil oitocentos e setenta e oito euros e quarenta e oito cêntimos (…).
Que assim, os (…), ora justificantes, estão na posse do identificado imóvel há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, com ânimo de quem exerce direito próprio, sendo por isso uma posse pública, pacífica, contínua, pelo que adquiriram o referido imóvel por usucapião, não tendo assim, documentos que lhes permita fazer prova da aquisição pelos meios extrajudiciais normais.”
Assim, os Réus alegaram ter adquirido a parcela do prédio em causa com recurso à usucapião, a qual fizeram constar de escritura de justificação notarial.
No entanto, aqui chegados importa aquilatar sobre se os RR observaram o procedimento legal inerente, mormente os fundamentos invocados pelo MP, aqui Autor.
De acordo com o disposto no artigo 92.º, n.º 1 do Código do Notariado exige-se que o prédio justificado tenha uma inscrição própria/autónoma na matriz, sendo que também o artigo 98.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma legal refere que a escritura de justificação para fins do registo predial é instruída com certidão de teor da correspondente inscrição matricial.
Nesta senda, verifica-se que resulta de normas imperativas (cfr. artigos 92.º, n.º 1 e 98.º, n.º 1, alínea b), do Código do Notariado) que a licitude do recurso à escritura de justificação notarial para os efeitos do n.º 1 do artigo 116.º do Código de Registo Predial pressupõe a efectiva inscrição na matriz do prédio em relação ao qual a titularidade do direito justificando se afirme.
Não obstante, constata-se que na situação dos presentes autos, tal inscrição não teve lugar, ou foi peticionada posteriormente.
Sobre a questão em apreço, perfilha-se o entendimento do douto acórdão do Tribunal da Relação de   Coimbra de 26.03.2019, processo n.º 3223/17.0T8LRA.C1JTRC, in www.dgsi.pt:
I– Verifica-se o pressuposto processual de interesse em agir sempre que o direito do demandante careça de tutela judicial.
II– O artigo 92º, nº1 do Código de Notariado, ao estabelecer que “a justificação de direitos que, nos termos da lei fiscal, devam constar da matriz, só é permitida em relação aos direitos nela inscritos”, constitui norma com carácter imperativo, pelo que a sua violação importa a nulidade do ato.
III– Para o prédio objecto da justificação notarial poder ser registado na Conservatória a favor do justificante, tem de ter uma inscrição própria, autónoma na matriz, e não de fazer parte de outro artigo matricial, pois neste caso a escritura de justificação notarial é nula (arts. 294º e 295º do C.Civil).
IV– Em acréscimo, é nula a escritura de justificação notarial instruída apenas com documento comprovativo do pedido de inscrição na matriz.
Cumpre, pois, considerar a escritura de justificação notarial sub judice nula por não preenchimento da formalidade de prévia inscrição matricial do prédio objecto de justificação notarial.
Ainda que assim sem não entendesse, cumpre atentar ainda no disposto no artigo 49.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro que “nos títulos de arrematação ou outros documentos judiciais, bem como nos instrumentos relativos a atos ou negócios jurídicos de que resulte, direta ou indiretamente, a constituição de lotes nos termos da alínea i) do artigo 2.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 6.º e 7.º, ou a transmissão de lotes legalmente constituídos, devem constar o número do alvará ou da comunicação prévia, a data de emissão do título, a data de caducidade e a certidão do registo predial”.
Sendo que, nos termos do artigo 2.º, alínea i) do mesmo diploma legal, entende-se por operações de loteamento, “as ações que tenham por objeto ou por efeito a constituição de um ou mais lotes destinados, imediata ou subsequentemente, à edificação urbana e que resulte da divisão de um ou vários prédios ou do seu reparcelamento”.
Ora, no caso em apreço também se constata que não foi observado o preceituado no citado normativo, visto que a escritura de justificação notarial foi celebrada sem qualquer menção ao número do alvará de loteamento ou comunicação prévia, verificando-se tal nulidade por via de preterição de formalidade essencial. 
 Por fim, importa aludir ao n.º 1, do artigo 1376.º do Código Civil que dispõe: “os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País”.
Concomitantemente dispõe o artigo 49.º, n.º 1 da Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto que se entende “por unidade de cultura a superfície mínima de um terreno rústico para que este possa ser gerido de uma forma sustentável, utilizando os meios e recursos normais e adequados à obtenção de um resultado satisfatório, atendendo às características desse terreno e às características geográficas, agrícolas e florestais da zona onde o mesmo se integra”.
Observando, resulta que o prédio objecto dos presentes autos (que adveio mormente do parcelamento de um prédio rústico, comporta uma área inferior à área mínima de cultura fixada em qualquer uma das Portarias convocáveis, mormente Portaria n.º 202/70, de 21 de Abril, Portaria n.º 219/16, de 09 de Agosto e Portaria n.º 19/2019, de 15 de Janeiro – 3955,47m2.
Assim, e por tudo o exposto, perante a inobservância dos dispositivos legais imperativos para efeitos da pretendida escritura de justificação notarial, mormente a falta de cumprimento de normais formais e procedimentos, e perante a impossibilidade legal de fraccionar o prédio rústico identificado supra (prédio originário), atendendo à unidade mínima de cultura fixada para a Área Metropolitana de Lisboa, cumpre concluir que  a escritura de justificação notarial padece de nulidade, não produzindo por isso, quaisquer efeitos jurídicos (cfr. artigos 280.º, 286.º e 294.º, todos do Código Civil).
Por seu turno, face à nulidade da escritura de justificação notarial, por força do disposto nos artigos 8.º, n.º 1 e 13.º do Código de Registo Predial, deve ser cancelada a inscrição de aquisição do prédio por usucapião a favor dos Réus, bem como a menção à desanexação no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º ....»
Apreciando, diremos que a questão de saber se podem ser adquiridos, por usucapião, prédios de área inferior à área de cultivo mínima tem dividido a jurisprudência.
Com efeito, se é certo que a tese do acórdão da Relação de Coimbra invocado pelo Tribunal a quo tem tido eco noutros arestos da mesma Relação, como por exemplo no ac. RC 09-04-2024 (Luís Cravo), p. 139/19.9T8CDR.C2., outros arestos têm sustentado que sendo a usucapião uma forma de aquisição originária da propriedade, a mesma não se acha sujeita aos limites de fracionamento da propriedade decorrentes das leis sobre emparcelamento – cfr. acs. RP 05-12-1994 (Simões Freire), p. 9450828; RL 24-09-2009 (Bruto da Costa), p. 896/2002-8; RL 15-10-2015 (Mª Manuela Gomes), p. 1737/11.4TBALM.L1-6; RE 08-06-2017 (Mário Serrano), p. 1011/16.0T8STB.E1; RE 26-04-2018 (Manuel Bargado), p. 418/15.4T8ALR.E1, e STJ 03-05-2018 (Fátima Gomes), p. 7859/15.5T8STB.E1, RE 07-06-2018 (Mª Domingas Simões), p. 145/16.5T8CCH.E1; e  RE 02-05-2019 (Mata Ribeiro), p. 941/17.6T8BNV.E1.
Mais recentemente, o STJ considerou que “os tribunais devem, casuística e não aprioristicamente, apreciar a validade dos actos de divisão e de fracionamento da propriedade rústica: a natureza da posse exercida pelos réus e da usucapião na estabilização e consolidação de posse no âmbito do direito real de propriedade, conduz à conclusão de que os réus adquiriram originariamente, por usucapião, o direito de propriedade sobre cada um dos referidos prédios” -  neste sentido cfr. ac. STJ 12-07-2018 (Fonseca Ramos), p. 7601/16.3T8STB.E1.S1.
Contudo, em arestos posteriores, parece ter prescindido dessa análise casuística -  vd. acs. STJ 21-02-2019 (Rosa Ribeiro Coelho), p. 7651/16.0T8STB.E1.S3; e STJ 18-06-2019 (Graça Amaral), p. 1786/17.9T8STB.E1.S1, no qual se considerou “válida a posse sobre parcelas inferiores à unidade de cultura vigente que levou à usucapião do direito de propriedade sobre os terrenos (…) não obstante ter subjacente a violação do então vigente artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil (na redacção anterior à alteração dada pela Lei 111/2015, de 27-08).”
Não obstante, importa ainda salientar que a discussão em torno desta questão tem relevado também o disposto no art. 1379º do CC, e a alteração da sua redação pela Lei nº 111/2015, de 27-08.
Seja como for, e qualquer que seja o entendimento que se subscreva no tocante à questão de saber se as parcelas de terreno de área inferior à área de cultivo mínima  podem ser adquiridas por usucapião, sempre se deverá considerar que a outorga de escritura de justificação com manifesto desrespeito pelas disposições legais imperativas consagradas nos arts. 92º, nº 1 e 98º, nº 1 do Código do Notariado gera a nulidade de tal escritura.
E compreende-se que assim seja já que, como bem aponta o ac. RE 08-03-2018 (Florbela Lança), p. 1415/15.5T8STR.E1., «esta forma de titulação presta-se ao uso fraudulento, já que se baseia em meras declarações dos interessados, corroboradas por três declarantes (sem que as mesmas sejam confrontadas com outra versão e sem que o notário averigue a sua razão de ciência), podendo, em suma, ser definida apenas “(...) um mero expediente técnico para registo, cuja autenticidade tem uma frágil base de apoio (...)[14]».
Nesta conformidade, quem se arroga do direito de propriedade de parcela de dimensão inferior à área de cultivo mínimo só pode inscrever tal direito no registo predial se vir esse direito reconhecido por sentença proferida por tribunal judicial, intentando para o efeito a competente ação declarativa.
Termos em que, tal como decidiu o Tribunal a quo, embora com fundamento não inteiramente coincidente, se conclui pela procedência da presente ação e, consequentemente, pela improcedência do recurso.
3.2.3. Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. arts. 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
Já em sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (arts. 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. arts. 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os arts. 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (arts. 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (arts. 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
No caso dos autos, face à total improcedência da presente apelação, as custas deverão ser suportadas pelos apelantes.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação improcedente, assim confirmando o despacho saneador-sentença apelado.
Custas pelos apelantes.

Lisboa, 11 de julho de 2024
Diogo Ravara
Ana Mónica Mendonça Pavão
Alexandra de Castro Rocha
_______________________________________________________
[1] Titular do nº de identificação civil 08271103 e do nº de identificação fiscal 113751605.
[2] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
[3] Suprimimos os parêntesis constantes da parte final dos pontos 1 a 6, que se limitam a remeter para meios de prova, visto que o lugar adequado para tais referências é a motivação da decisão sobre matéria de facto.
[4] “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, Almedina, 2018, pp. 736-737.
[5] Basta referir que os primeiros volumes da 1ª edição do “Código de Processo Civil Anotado” de ALBERTO DOS REIS foram publicados nos anos 40 do século passado.
[6] Cremos que a expressão “com as necessárias adaptações”, constante do art. 295º do CPC permite concluir que face à natureza urgente e tramitação simplificada dos procedimentos cautelares, se justifica que a sua fundamentação seja igualmente aligeirada.
[7] “Código de Processo Civil Anotado”, V Volume, 3ª Ed., Coimbra Editora, p. 140.
[8] “Da sentença cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 39, disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[9] Tanto quanto apurámos, este aresto não se acha publicado nas bases de dados de jurisprudência de acesso livre e gratuito.
[10] Todos os arestos invocados no presente acórdão sem indicação e proveniência se acham publicados nas bases de dados de jurisprudência dos Tribunais judiciais, de acesso universal e gratuito, disponíveis em https://jurisprudencia.csm.org.pt e http://www.dgsi.pt. A versão digital do presente acórdão contém hiperligações para os acórdãos nele citados.
[11] “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 151.
[12] “Da sentença cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 39, disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[13] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2018, 737-738.
[14] A citação é de ISABEL PEREIRA MENDES, ““Justificações Prediais para Registo Predial” in “Regestal”, ano VI, n.ºs 57 a 68, pp. 139 ss.