Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1130/15.0T8BRR.1.L2-4
Relator: CELINA NÓBREGA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
JUNTA MÉDICA
IPATH
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: É de considerar afetado por uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH), o motorista de veículos pesados de mercadorias que, na sequência do acidente apresenta dor constante na perna, no pé e tornozelo direitos, diminuição da sensibilidade e parestesias (sensação de formigueiro ou dormência) no pé, acentuada limitação da mobilidade no tornozelo direito e atrofia da coxa, por constituírem entraves ao exercício, em segurança, da condução, pelo mesmo de um veículo daquela categoria.


(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


Relatório:


Nos presentes autos em que é Sinistrado AAA, residente … Loures, e entidades responsáveis BBB e CCC a 23.10.2019, veio o Sinistrado requerer o presente incidente de revisão da incapacidade invocando, para tanto, ter mais limitações dos movimentos, ter perdido a capacidade de trabalhar e estar com síndrome doloroso de ambos os pés, verificando-se, assim, uma agravação da sua situação.
Requereu a realização de exame médico de revisão e formulou quesitos.

O incidente foi admitido e o Tribunal a quo fixou o objecto da perícia nos seguintes termos:
Houve agravamento das sequelas de que ficou afetado o Sinistrado na sequência do acidente de trabalho? Em caso afirmativo, qual?
Qual o grau de incapacidade que lhes corresponde, em conformidade com a TNI?
O sinistrado padece de IPATH para a profissão de motorista?

Foi solicitado parecer ao IEFP que, quanto às tarefas e exigências do posto de trabalho do Sinistrado refere o seguinte:
IX.–O conteúdo funcional da atividade profissional do Sr. AAA, ou seja, as tarefas exercidas habitualmente pelo trabalhador no concreto posto de trabalho que ocupava à data do acidente, segundo análise da entrevista de posto de trabalho e consulta de documentação compilada acerca da profissão, é o abaixo descrito:
Conduz veículos pesados de transporte de mercadorias em percursos regionais, respeitando os percursos definidos, as normas e regras de condução e circulação rodoviária, assegurando a carga, descarga, o acondicionamento e segurança da carga, desenvolvendo as seguintes tarefas e operações:

1.–Recebe instruções da empresa sobre o trabalho a realizar, consulta os destinos, itinerários e quantidade e tipo de carga que vai transportar:
1.1.-Realiza uma pequena vistoria ao veículo, verificando a existência de alguma anomalia (pressão de pneus, liquido/óleo derramado, verificação de níveis, etc.);
1.2.-Verifica se possui todos os documentos necessários para efetuar o transporte da mercadoria;
1.3.-Posiciona o veículo pesado de mercadorias no cais de carga do armazém de logística da empresa;
1.4.-Procede à abertura do compartimento frigorifico de carga;
1.5.-Verifica a quantidade de carga a transportar, número de contentores, e controla as guias de transporte, nomeadamente os destinos.
1.6.-Desloca os contentores de mercadorias da plataforma do cais para o interior do compartimento de carga do veículo, empurrando e puxando os mesmos, juntamente com o ajudante;
1.7.-Arruma adequadamente os contentores no compartimento de carga do veículo, de forma a facilitar a descarga nas respetivas lojas;
1.8.-Assegura a estabilidade da carga e procede à sua imobilização;
1.9.-Regula a temperatura do compartimento de carga; frigorifico, de acordo com o tipo de mercadorias que transporta (produtos alimentares);
1.10.-Procede ao fecho das portas do compartimento frigorífico ou contentor.

2.–Conduz o veículo pesado de mercadorias em percursos regionais, respeitando as regras de segurança, horários de recolha e entrega da carga, zelando pela viatura e salvaguarda pelo estado de segurança da mercadoria:
2.1.-Controla a velocidade e direção do veículo procedendo às manobras necessárias, por meio da utilização coordenada dos comandos e instrumentos adequados (volante, alavanca da caixa de velocidades, pedais, etc.) atendendo ao estado da via e do veículo, à circulação de outros veículos e peões, às regras e sinais de trânsito e aos tempos de condução;
2.2.-Efetua com frequência manobras de parqueamento em locais de espaço limitado-locais de descarga de mercadorias nas lojas - recorrendo com persistência ao manuseamento do volante, utilização dos pedais e caixa de velocidades e visualização de ambos os espelhos retrovisores.
2.3.-Assegura as condições de segurança da carga;
2.4.-Respeita os horários de descargas e de tempos máximos de condução.

3.–Colabora nas operações de descarga da mercadoria:
3.1.- Posiciona o veículo no local mais próximo possível da loja;
3.2.- Abre as portas do compartimento de carga: frigorífico;
3.3.- Aciona o elevador;

1.1.- Desprende os contentores e desloca-os, manualmente, para a plataforma do elevador;
1.2.- Aciona a descida do elevador;
1.3.- Desloca manualmente os contentores da viatura até à loja, empurrando-os/puxando-os pelo asfalto e passeios;
1.4.- Fecha o compartimento de carga;
1.5.- Conduz a viatura para a próxima loja do itinerário;
1.6.- Volta a repetir as operações 3.1 a 3.7, várias vezes ao dia.”

E sob o título “Análise e Parecer” consta o seguinte:

“A análise conjugada dos elementos disponíveis essencialmente os recolhidos através da entrevista ao trabalhador sinistrado AAA é possível considerar as seguintes evidências:

A capacidade de mobilização e força dinâmica do membro inferior direito, ao nível da articulação tibio-társica, força muscular e sensibilidade da perna, parecem apresentar significativas limitações:

2.– Das principais tarefas e suas exigências, de posto de trabalho de motorista de pesados de mercadorias e que o sr. AAA desempenhava à data do acidente destacam-se as seguintes por considerarmos serem as mais relevantes para a avaliação da incapacidade para o trabalho habitual:
a.- É requerido a persistente mobilização do membro inferior direito, ao nível do sistema coxa-perna-pé, e articulação tibio társica que permita executar em segurança as manobras de condução de um veículo, designadamente os gestos frequentes, precisos e coordenados de utilização dos pedais de travão e acelerador.
b.-É requerido a persistente força dinâmica de ambos os membros inferiores ao nível do sistema-coxa-perna-pé, e articulação tibio-társica, que permita puxar e empurrar em terreno diverso, contentores com pesos que podem ser superiores a 300Kg, subir e descer para a cabine de condução e para o compartimento de carga do veículo.

3.–Atendendo às principais exigências para o desempenho das tarefas, de motorista profissional de veículos pesados de mercadorias, particularmente as exigidas no regulamento da habilitação para conduzir, Anexo II ao Decreto-Lei n.º 37/2014, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 40/2016 de 29 de Julho,  com relevo para as normas mínimas relativas à aptidão física para a condução de um veículo a motor de grupo 2, entendemos que as limitações funcionais que o trabalhador sinistrado apresenta ao nível do membro inferior direito, podem ser causa de inaptidão para a condução de veículos a motor do grupo 2.

4.–Na verdade o membro inferior direito e o sistema coxa-perna-pé, mantêm durante todo o período de tempo de condução, um nível constante de força dinâmica e estática controlada, alternado com força dinâmica estática alternado com força dinâmica controlada, no pedal de travão, em função das exigências particulares da condução- subidas, descidas, curva, chuva.

5.–A articulação tibio-társica direita revela-se essencial para a execução, em segurança, dos gestos de travagem do veículo de pesados de mercadoria; pressão do pedal de travão; e do controle de velocidade do veículo; pressão controlado do pedal de acelerador.

6.–Atendendo à idade, habilitações académicas e habilitações profissionais, avaliamos também de muito restrita a possibilidade de equacionar a possibilidade de reintegração profissional do sr. AAA em profissões compatíveis, atendendo às suas limitações físicas.

7.–De referir que o Sr. AAA não efectuou a renovação do título de autorização para a condução de veículos de Grupo 2.”

A Ré Seguradora opôs-se ao parecer do IEFP.
          
O Sinistrado recorreu do despacho que fixou o objecto da perícia.

Foi proferido despacho que indeferiu o recurso interposto, por intempestivo.

O Sinistrado apresentou reclamação.

Realizou-se o exame médico de revisão tendo o Sr. Perito Médico respondido aos quesitos nos seguintes termos:
“-Face ao descrito nos exames médicos prévios (fls. 4 do processo e 13 do apenso), não se apura agravamento das sequelas.
-IPP no quadro anexo (salvaguarda-se que o ligeiro desvio de ±0,08% na IPP se deve a um reajuste das sequelas em cada alínea em relação ao constante a fl. 13 do apenso, sendo o somatório aritmético sobreponível, mas face ao princípio da capacidade restante existindo esse ligeiro desvio; assim, não se invalida o expresso no ponto 1 – não se apura agravamento das sequelas).”

E concluiu que o Sinistrado está afectado de um coeficiente global de incapacidade de IPP = 0,14255 x 1,5 (idade) = 21,383232%.

O Sinistrado requereu a realização de exame por Junta Médica e formulou quesitos.

Foi proferido despacho que admitiu a realização do exame e fixou o objecto da perícia nos seguintes termos:
-Houve agravamento das sequelas de que ficou afetado o Sinistrado na sequência do acidente de trabalho? Em caso afirmativo, qual?
-Qual o grau de incapacidade que lhes corresponde, em conformidade com a TNI ?”

O Sinistrado interpôs recurso deste despacho que não foi admitido por intempestivo.

O Sinistrado veio aos autos dizer que reitera a sua discordância sobre o despacho que indeferiu os recursos e expressar a sua intenção de impugnar a decisão sobre os quesitos no recurso que venha a ser interposto da decisão a final.

Teve lugar o exame por Junta Médica constando do respectivo auto, além do mais, o seguinte:
“AT sofrido no dia 05-07-2014, do qual resultou traumatismo da perna direita.
Fixada IPP de 21,29856 desde 18-11-2015.
Refere agravamento das queixas dolorosas no pé direito.
Não retomou a profissão habitual. Refere não ter renovado a habilitação para conduzir.
Refere que tentou trabalhar em limpezas, que mantém à data.
Situação actual (descrição das lesões e respectivas sequelas anatómicas e disfunções)
Dor na perna direita, com diminuição da sensibilidade e parestesias. Medicado com metamizol e pregabalina em SOS.
Exame objetivo:
Acentuada limitação da mobilidade no tornozelo direito, sobreponível à descrita no exame médico singular de fls. 302 e seguintes.
Atrofia da coxa de 1,5 cm e da perna de 2,5 cm.

Aos quesitos médicos de fls. 310, a junta médica responde, por maioria (perito do sinistrado e do tribunal):
1.-Sim, tendo em conta o parecer do IEFP e o referido pelo sinistrado neste exame. Não tendo havido agravamento da sequela a nível anatomico ou funcional, é de admitir agravamento a nível situacional, decorre da incapacidade permanente, não tendo retomado à profissão habitual nem tendo renovado o titulo de condução.
2.- Ver quadro anexo.
Cabe ao perito da companhia seguradora referir que não concorda com a atribuição de IPATH, pelo seguintes motivos: pé direito em posição funcional com limitações que não excedem a IPP de 14%, por sequelas pelas quais nunca foi atribuída IPATH, inclusive no recente exame de revisão, mantendo a IPP anterior, ou seja, não havendo agravamento. A atribuição de uma IPATH só pode assim ser entendida pela opinião da maioria. O parecer do IEFP continua a não nos merecer opinião vinculativa, tendo em conta por quem e como é feito. De referir que o sinistrado não tentou renovar a carta de condução.”

Por unanimidade, entenderam os Srs. Peritos que o Sinistrado está afectado com uma IPP de 21,383232% e a maioria dos Srs. Peritos considerou ser de atribuir uma IPATH.

Foi proferido o despacho a que se refere o n.º 6 do artigo 145.º do CPT.

Inconformado com tal decisão, o Sinistrado recorreu tendo a Ré Seguradora apresentado contra-alegações.

Em 27 de Outubro de 2021 foi proferido Acórdão por este Tribunal da Relação que julgou improcedente a impugnação da decisão interlocutória que limitou o âmbito do objecto da perícia, bem como anulou a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância a fim de ser determinada a realização de nova Junta Médica que esclarecesse as questões identificadas no Acórdão (quais as razões que determinaram a alteração do coeficiente de incapacidade anteriormente atribuído ao Sinistrado, em que consiste o “agravamento situacional” e se o Sinistrado pode, ou não, desempenhar as funções de motorista de pesados e desde quando).

Os autos baixaram ao Tribunal de 1.ª Instância e no dia 10.02.2022 realizou-se o exame por Junta Médica constando do respectivo auto, além do mais, o seguinte:

“Em resposta ao pedido de esclarecimento de fls.390, a junta responde por maioria (perito do tribunal e do sinistrado):
1)-Os exames objectivos realizados em 17.06.2020, no âmbito do exame médico singular, e em 23.04.2021, no âmbito do exame por junta médica, revelam-se ligeiramente diferentes dos anteriores, pelo que a IPP foi reajustada em algumas das alíneas e calculada com base nesses mesmos exames. Tal IPP difere da anteriormente fixada em algumas centésimas de ponto percentual, não configurando um agravamento funcional relevante como referido no auto de junta médica de 23.04.2021.
2)-Os peritos consideraram que as circunstâncias descritas no parecer técnico do IEFP e a circunstância de não ter renovado o título de condução, configuram um agravamento da repercussão das sequelas a nível da situação profissional.
3)-Não desde a data do pedido de revisão da incapacidade (23.10.2019).
O perito da responsável mantém a posição exarada no auto de junta médica de 23.04.2021.
Acrescenta que a informação de não renovação da carta foi meramente referida pelo sinistrado, não tendo sido presente à junta qualquer documento comprovativo.”

Notificados do parecer da Junta Médica, veio o Autor requerer que lhe fosse atribuída IPATH e juntar aos autos imagens radiológicas e a entidade responsável, invocando não aceitar o parecer do IEFP, requereu que fosse solicitado parecer ao Centro Nacional de Proteção Contra Riscos Profissionais com vista a apurar a situação do Sinistrado e que, após a junção de tal parecer, fosse realizada junta Médica da Especialidade de Medicina do Trabalho, pretensões que não foram atendidas.

Foi proferido o despacho a que alude o n.º 6 do artigo 145.º do CPT que finalizou nos seguintes termos:

“Pelos fundamentos de facto e de direito supra expostos o tribunal decide:
a)- Considerar o sinistrado afetado de uma IPP de 21,383232% desde 23.10.2019;
b)- Consequentemente, condenar:
a.- A entidade seguradora BBB a proceder ao pagamento do sinistrado:
i.- De 68% do capital de remição correspondente a uma pensão anual e vitalícia de € 9,15, já efetuado o desconto do capital de remição já recebido;
ii.- De 68% dos juros moratórios vencidos desde 24.10.2019 e vincendos até efetivo e integral pagamento sobre a quantia referida em i.
b.- A entidade empregadora CCC. a proceder ao pagamento ao sinistrado:
i.- De 32% do capital de remição correspondente a uma pensão anual e vitalícia de € 9,15, já efetuado o desconto do capital de remição já recebido;
ii.- De 32% dos juros moratórios vencidos desde 24.10.2019 e vincendos até efetivo e integral pagamento sobre a quantia referida em i.
Custas do incidente a cargo da entidade seguradora e da entidade responsável, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Registe e notifique.”

Inconformado, o Sinistrado recorreu e formulou as seguintes conclusões:
(…)
A Ré Seguradora contra-alegou e sem formular conclusões pugnou pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido.

Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

As partes responderam ao parecer; o Sinistrado aderiu ao seu teor e a Ré Seguradora invocou não concordar com o mesmo e dever ser mantida a sentença.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso

Sendo pacífico que o âmbito do recurso é delimitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º nº 4 e 639º do CPC, ex vi do nº 1 do artigo 87º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608º nº 2 do CPC), nos presentes autos a única questão a decidir consiste em saber se deve ser atribuída ao Sinistrado uma Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (IPATH), com as consequências que daí decorrem.

Fundamentação de facto

Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:
A.-Por sentença transitada em julgado no âmbito dos presentes autos foi reconhecida ao sinistrado uma IPP de 21,29856% desde 18.11.2015, considerando uma retribuição de € 15.435.
B.-O sinistrado padece de uma IPP de 21,383232%.

E foi considerado não provado:
a.-Que o sinistrado padeça de IPATH.

Fundamentação de direito.

Da junção de um documento pelo Sinistrado:
Por requerimento datado de 04.07.2022, veio o Sinistrado requerer a junção aos autos de um relatório médico com data de 27.06.2022.
Considerando o disposto no artigo 651.º do CPC a requerida junção é manifestamente extemporânea.
Assim, ao abrigo da referida disposição legal e visto a manifesta desnecessidade de ouvir a parte contrária (art.3.º n.º 4 do CPC), não se admite o documento e determina-se o seu desentranhamento e entrega à parte.
Uma vez que o acidente dos autos ocorreu no dia 5 de Julho de 2014, ao caso, são aplicáveis a normas da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (LAT) que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2010 (cfr. arts. 187.º n.º 1 e 188º da referida Lei).
Apreciemos, então, se ao Sinistrado deve ser atribuída uma Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (IPATH), com as consequências que daí decorrem.
Tal significa, antes de mais, questionar se a decisão da matéria de facto no que respeita ao facto não provado constante da al.a) merece censura, sendo certo que estão minimamente cumpridos os ónus previstos no artigo 640.º do CPC e que impendiam sobre o Recorrente.

O Tribunal a quo motivou a decisão de facto nos seguintes termos:
“O facto relativo à decisão anteriormente proferida consta de fls. 209 e seguintes dos autos principais, que a consubstancia.
No que respeita à incapacidade de que o sinistrado padece, relativamente à IPP, a convicção do tribunal resultou do relatório de exame médico de revisão e do parecer do colégio de peritos que integraram a junta médica, inexistindo nos autos motivos para discordar com tais perícias no que tange à fixação da IPP.
Factos não provados:
No que tange à ausência de prova de o sinistrado padecer de IPATH, a convicção do tribunal alicerçou-se no auto de exame médico singular atenta a fundamentação esgrimida.
Efetivamente, não foi apurada existência do quadro sequelar desde a junta médica de 19.10.2017 tendo, nesta sede, o colégio de peritos concluído pela inexistência de IPATH (o que fundamentou a decisão proferida e referida em A. dos factos provados).
Acresce que do relatório do IEFP apenas se conclui pela existência de IPATH por se considerar que “Atendendo às principais exigências para o desempenho das tarefas de motorista profissional de veículos pesados de mercadorias, particularmente as exigidas no Regulamento da Habilitação Legal para conduzir, anexo II ao Decreto-Lei n.º 37/2014, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 40/2016 de 29 de julho, com relevo para as normas mínimas relativas à aptidão física para a condução de um veículo a motor de grupo 2, entendemos que as limitações funcionais que o sinistrado apresenta ao nível do membro inferior direito podem ser causa de inaptidão para a condução de veículos a motor do grupo 2”.
Salienta-se, em primeiro lugar, que acompanhamos a fundamentação esgrimida pelo perito médico da entidade seguradora em sede de junta médica, ao referir que o agravamento sequelar da IPP não tem implicações na atribuição da IPATH.
Esta constatação, aliada à circunstância de a conclusão do IEFP se basear numa possibilidade leva o tribunal a considerar que, tal como na sentença inicialmente proferida, apesar do agravamento da IPP (que não é expressivo), o sinistrado não se encontra em situação de IPATH. Efetivamente, o sinistrado não “testou” a convicção do IEFP ao renovar a sua carta de condução. Apenas o IMTT poderia sustentar se as limitações de que o sinistrado padece o impediriam de renovar a carta de condução.
Acresce que a fundamentação da maioria do colégio de peritos que integrou a junta médica não é técnica, para efeitos de atribuição de IPATH: efetivamente, o agravamento situacional que referem decorre do próprio relatório do IEFP, não tendo este o alcance objetivo necessário nos termos supra referidos.
Por este motivo, deu-se o facto vertido em a. como não provado.”

Ou seja, o Tribunal a quo aderiu ao exame de revisão e à posição do Sr. Perito da Seguradora excluindo, assim, o entendimento da maioria dos Srs. Peritos que integraram a Junta Médica e o parecer do IEFP quanto à atribuição de IPATH. 

Ora, como é sabido, a perícia médica constitui um meio de prova sujeito à livre apreciação do tribunal, do que resulta que o juiz não está vinculado ao resultado da perícia singular ou da perícia colegial, sendo que na fixação da incapacidade deverá ponderar e valorar, segundo o seu prudente juízo, todos os elementos constantes dos autos que permitam determinar a incapacidade de que é portador o sinistrado.

Contudo, como se afirma no Acórdão deste Tribunal e Secção, de 17.10.2012, proferido no Processo nº 25094/11.TTSNT.L1 e em que a ora relatora interveio como 2ª adjunta, ”Porém, quer adira ou quer se desvie, precisamente por a ele caber na sua livre convicção decidir, é-lhe sempre exigido que deixe expressa a sua motivação, isto é, os fundamentos ou razões por que o faz, ainda que com diferentes níveis de exigência.”

Por outro lado, o parecer do IEFP, na medida em que constitui um exame pericial, naturalmente que também está sujeito à livre apreciação do Tribunal.

Por isso, neste quadro de livre apreciação da prova, não se impunha ao Tribunal a quo que aderisse ao parecer da maioria dos Peritos que integraram a Junta Médica ou que tomasse como essenciais as conclusões constantes do parecer do IEFP. O que se lhe impunha era que fundamentasse a sua decisão. E da leitura da motivação resulta perfeitamente perceptível a razão da sua convicção. Resta, porém, saber se, face aos elementos constantes dos autos, o entendimento seguido merece reparo por ser visível que o Sinistrado padece de uma IPATH.

A incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH) é definida por Carlos Alegre, na obra “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais - Regime Jurídico Anotado”, 2.ª Edição, pag.96, do seguinte modo: “trata-se de uma incapacidade de 100% para a execução do trabalho habitual do sinistrado, no desempenho de uma específica função, actividade ou profissão, mas que deixa uma capacidade residual para o exercício de outra actividade laboral compatível, permitindo-lhe alguma capacidade de ganho, todavia, uma capacidade de ganho, em princípio diminuta”.

E como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.2.2018, in www.dgsi.pt “(…) V - A Incapacidade Permanente Absoluta Para o Trabalho Habitual (IPATH) pressupõe que atentas as limitações funcionais que resultaram do acidente de trabalho, o sinistrado não possa continuar a cumprir as tarefas que habitualmente desenvolvia, integradas no conteúdo funcional da respetiva profissão, com as exigências inerentes à mesma.”

Regressando ao caso importa referir, em primeiro lugar, que, independentemente de ser, ou não, “expressivo”, a verdade é que houve agravamento da situação do Sinistrado com a consequente fixação de uma pensão.

Em segundo lugar, salienta-se que se é certo que o IMTT pode não renovar a carta de condução por se mostrarem medicamente comprovadas limitações impeditivas da sua atribuição, não é menos certo que é ao Tribunal que compete decidir, de acordo com os elementos constantes dos autos e dentro do enquadramento jurídico da LAT, se o Sinistrado, em consequência do acidente sofrido no dia 5 de Julho de 2014, é portador de uma IPATH.

Por outro lado, os autos não permitem afirmar que o Sinistrado não renovou a carta de condução porque não quis ou que a sua carta não foi renovada em virtude das sequelas provenientes do acidente. O que resulta dos autos é que o Sinistrado declarou no exame médico de revisão e na Junta Médica que deixou de exercer a sua profissão habitual e que trabalha nas limpezas, com as condicionantes que referiu. De qualquer modo, não são estas premissas que sustentam a existência ou não de uma IPATH.

E o que nos dizem os autos sobre a situação do Sinistrado?
Do exame médico de 17.06.2020, quanto às queixas actuais consta:
“Dor constante no tornozelo direito, pé, e dedos, nos dedos tipo pontada, e que agravam com os esforços e com clima húmido. Diminuição da sensibilidade do tornozelo e pé (tipo “madeira”). Actualmente encontra-se medicado diariamente com pregabalina e em SOS com ibuprofeno e metamizol.
Não mais desempenhou a actividade profissional de motorista de veículos pesados desde o acidente em apreço.”

E ao exame objectivo revela:
“O examinando apresenta marcha com claudicação, sem auxiliares.
Membro inferior direito: cicatriz cirúrgica sobre o maléolo externo e cicatriz irregular na face medial do tornozelo. Dor à palpação do tornozelo e pé, com referência a diminuição da sensibilidade ao toque em relação à esquerda. Mobilidade activa do tornozelo e pé: extensão até 30º (à esquerda até 40º); flexão abolida (à esquerda até 20º); inversão até 10º (à esquerda até 20º); eversão até 10º (à esquerda até 30º). Atrofia dos músculos da perna, com maior perímetro de 30,5 cm à direita e 33 cm à esquerda.
Aumento do volume do tornozelo, com perímetro de 23 cm à direita e 21 cm à esquerda.”
E concluiu que “não se tendo apurado existência de alteração do quadro sequelar desde então, (4) não obstante o Parecer Técnico de fls. 287 e ss., não se admite a existência de IPATH.

A Junta Médica de 23.04.2021, quanto à situação actual, refere:”Dor na perna direita, com diminuição da sensibilidade e parestesias. Medicado com metamizol e pregabalina em SOS.”
E do exame objectivo consta: “Acentuada limitação da mobilidade no tornozelo direito, sobreponível à descrita no exame médico singular de fls. 302 e seguintes.
Atrofia da coxa de 1,5 cm e da perna de 2,5 cm.”

Posteriormente, a Junta Médica (maioria) esclareceu que os exames objetivos realizados no exame médico de revisão de 17.06.2020 e na Junta Médica de 23.04.2021 revelaram-se ligeiramente diferentes dos anteriores pelo que a IPP foi reajustada, considerando que não houve um agravamento funcional relevante. Mas também consideraram que as circunstâncias descritas no parecer do IEFP e a circunstância de não ter renovado a carta de condução, configuram um agravamento da repercussão das sequelas a nível da situação profissional do Sinistrado, concluindo que não pode exercer as funções de motorista de pesados de mercadorias.

Ora, quanto à circunstância de o Sinistrado não ter renovado a carta, reafirma-se aqui o que acima ficou dito, pelo que tal argumento não contribui para fundamentar a existência de uma IPATH.

Por outro lado, considerando as exigências das tarefas do posto de trabalho do Sinistrado, obviamente que a utilização do pé direito é essencial para o desempenho da sua profissão de motorista de pesados de mercadorias; com o pé direito, o Sinistrado acelera e trava constantemente nos percursos que realiza no dia-a-dia de trabalho. Por isso, o desempenho diligente e seguro das tarefas do Sinistrado exige que não haja obstáculos à execução dessas tarefas, sob pena de a sua actuação potenciar um perigo rodoviário.

E entendemos que a existência de dor constante na perna, no pé e tornozelo direitos com diminuição da sensibilidade e parestesias (sensação de formigueiro ou dormência) no pé, a existência de acentuada limitação da mobilidade no tornozelo direito e de atrofia da coxa de 1,5 cm e da perna de 2,5 cm constituem entraves ao exercício, em segurança, da condução de um veículo pesado de mercadorias, donde, não pode o Sinistrado executar o núcleo essencial da sua categoria profissional- motorista de pesados de mercadorias.

Por conseguinte, entendemos que ao Sinistrado deve ser atribuída uma IPATH, pelo que a al.a) dos factos não provados deve transitar para os factos provados, o que se determina, procedendo a impugnação da matéria de facto.

Assim, uma vez que resultou provado que o Sinistrado está afectado de uma IPATH com IPP de 21,383232%, considerando o disposto nos artigos, 19.º n.º 3, 23.º al.b), 47.º n.º 1 al.c) 48.º n.ºs 1 e 3 al.b) da LAT é-lhe devida uma pensão anual e vitalícia no montante de €8.377,60, desde 23.10.2019, calculada do modo seguinte:
€15.435,00 x 70% = €10.804,50
€15.435,00 x 50%= €7.717,50
€10.804,50 – €7.717,50 =€3.087,00
€3.087,00 x 21,383232% = €660,10
€7.717,50 + €660,10 = €8.377,60

A responsabilidade da Ré Seguradora e da Ré Empregadora é repartida nos seguintes termos:
Seguradora: €8.377,60 x 68% = €5.696,77
Empregadora: €8.377,60 x 32% =€2.680,83

Porém, como se escreve no sumário do Acórdão deste Tribunal e Secção de 25.09.2019, in www.dgsi.pt, e que consagra entendimento jurisprudencial pacífico, I- Tendo sido atribuída ao sinistrado uma pensão obrigatoriamente remível, e fixando-se uma pensão superior no quadro de um incidente de revisão, deverá fixar-se uma nova pensão a cujo valor anual se deduzirá o valor anual da pensão anteriormente remida.”

Consequentemente, aos valores da pensão agora fixada deve ser deduzido o valor da pensão anteriormente remida, ou seja, €2.301,20.
Nesta sequência, é devida ao Sinistrado uma pensão anual e vitalícia no valor de €6.076,40, sendo a Ré Seguradora responsável pelo valor de €4.131,95 (68%) e a Ré Empregadora pelo valor de €1.944,45 (32%).
Acresce que, nos termos da al.d) do n.º 1 do artigo 47.º da LAT, as prestações em dinheiro previstas na alínea b) do artigo 23.º compreendem o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente.

De acordo com o n.º 2 do artigo 48.º da mesma Lei, “A indemnização em capital e a pensão por incapacidade permanente e o subsídio de elevada incapacidade permanente são prestações destinadas a compensar o sinistrado pela perda ou redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho.”
Por seu turno, dispõe o n.º 1 do artigo 67.º da LAT que “O subsídio por situações de elevada incapacidade permanente destina-se a compensar o sinistrado, com incapacidade permanente absoluta ou incapacidade permanente parcial igual ou superior a 70 %, pela perda ou elevada redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho.”
E o n.º 3 do mesmo artigo estipula que “A incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual confere ao beneficiário direito a um subsídio fixado entre 70 % e 100 % de 12 vezes o valor de 1,1 IAS, tendo em conta a capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível.”
Por fim, refere o n.º 5 do mesmo preceito legal que “O valor IAS previsto nos números anteriores corresponde ao que estiver em vigor à data do acidente. “
Assim, no caso, o valor IAS a considerar será de €419,22 (Lei n.º 83-C/2013 de 31.12).

Consequentemente é devido ao Sinistrado o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente no valor de € 4.228,56 obtido da seguinte forma:
€ 419,22 x 1,1 = € 461,14)
€ 461,14 x 12 = € 5.533.68
€ 5.533.68 x 70% = € 3.873,58
€ 5.533.68 - € 3.873,58 = € 1.660,10
€ 1.660,10 x 21,383232% = €354,98
€ 3.873,58 + € 354,98 = € 4.228,56

Em suma, procede o recurso com a consequente alteração do despacho recorrido recorrida nos moldes referidos.

Decisão

Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal e Secção em:
1-Julgar procedente a impugnação da matéria de facto nos termos supra mencionados
2-Julgar o recurso procedente e alterar o despacho recorrido nos seguintes termos:
a)-Declarar que o Sinistrado, AAA, está afetado de uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH) com incapacidade permanente parcial (IPP) de 21,383232% desde 23.10.2019;
b)-Condenar a Ré BBB a pagar ao Sinistrado uma pensão anual e vitalícia no montante de €4.131.95 correspondente a 68% da pensão anual e vitalícia de €6.076,40, a que acrescem os juros de mora à taxa legal sobre cada uma das prestações, devidos desde 24.10.2019 até integral pagamento;
c)-Condenar a Ré BBB, a pagar ao Sinistrado o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente, no valor de €4.228,56, acrescido dos juros de mora à taxa legal, vencidos desde 24.10.2019 e dos vincendos até integral pagamento; e
d)-Condenar a Ré CCC, a pagar ao Sinistrado uma pensão anual e vitalícia no valor de €1.944,45 correspondente a 32% da pensão anual e vitalícia de €6.076,40, a que acrescem os juros de mora vencidos sobre cada uma das prestações até integral pagamento.
Custas pela Ré BBB e pela Ré CCC na proporção das respectivas responsabilidades.



Lisboa, 7 de julho de 2022



Maria Celina de Jesus de Nóbrega
Paula de Jesus Jorge dos Santos
Albertina Pereira



Decisão Texto Integral: