Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2962/20.2T8LRS.L1-6
Relator: GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES
Descritores: NEGÓCIO JURÍDICO
SIMULAÇÃO
VONTADE REAL E VONTADE DECLARADA
INTENÇÃO DE ENGANAR TERCEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Não podem os apelantes pretender fazer prova de um facto que seja contrário aos interesses da parte que depõe com base nas contradições deste depoimento, sem que o mesmo esteja coadjuvado com outra prova concreta, pois a prova pela parte de factos desfavoráveis à mesma são o conteúdo necessário à confissão da mesma, inexistindo esta a prova não pode ter por base apenas tais declarações, dado que a contrariedade tem de advir de outra prova.
II. Na simulação – atenta a dualização entre o elemento interno e o elemento externo da declaração negocial – coloca-se o acento tónico no comportamento declarativo, harmonizando o valor da autonomia com o valor da confiança, pelo que a nulidade apenas ocorre quando se verifique igualmente o intuito de enganar terceiros.
III. O mero conluio entre as partes sem o intuito de enganar terceiros deixa de ser simulatonis, mas  igualmente a existência de um  pactum mas sem divergência efectiva entre as partes também descaracteriza tal instituto. Pois terá de existir para se considerar a simulação: a existência de uma conjuração por dois ou mais sujeitos, criadora de uma falsa aparência no comércio jurídico, enquanto reflexo da divergência entre a vontade manifestada e a vontade real, com intuito de enganar terceiros.
IV. Só quando a vontade real difere da exteriorizada é que podemos falar em negócio simulado, e a ausência de pacto simulatório determinaria eventualmente reserva mental, mas ausência de simulação.
(Pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO:
P…, H…, J… e P…intentaram a presente acção declarativa sob a forma comum contra JP… e A…, todos identificados nos autos, pedindo que seja decretada a nulidade do negócio simulado de compra e venda do imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., sito na União das Freguesias de P…, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira sob o n.º … da freguesia de V… e, consequentemente, ordenado o cancelamento do registo de aquisição do referido imóvel a favor do réu JP...e os réus condenados a entregarem-lhes o mesmo imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens, acrescido de uma sanção pecuniária compulsória de € 100,00€ por cada dia de atraso; mais pedem que os réus sejam condenados a restituírem-lhes o valor de € 33.000,00 (trinta e três mil euros) que levantaram da conta bancária do falecido J..., a título de enriquecimento sem causa, acrescido de juros de mora até efectivo e integral pagamento e, ainda, que a ré A... seja condenada a restituir-lhes o valor do veículo com a matrícula …, no montante de € 500,00 (quinhentos euros), a título de enriquecimento sem causa, acrescido de juros de mora até efectivo e integral pagamento; em alternativa, pedem que seja ordenada a redução das liberalidades feitas em vida pelo falecido J... e restituído aos herdeiros legitimários o valor de € 500,00 relativo ao veículo de matrícula ..., o valor de € 33.000,00 relativo a quantias levantadas pelos réus da única conta bancária daquele e o 1.º réu condenado a entregar aos autores a quantia de € 13.552,00 por conta do imóvel supra mencionado, acrescido de juros de mora até efectivo e integral pagamento ou, ainda em alternativa, que seja decretado o direito de os autores verem ser declarada a conversão do negócio de compra e venda do referido imóvel em doação, por não ter sido pago o preço de aquisição do mesmo, configurando assim tal negócio uma doação per si, condenando-se o 1.º réu a pagar aos autores a quantia de € 13.552,00 por conta do referido imóvel e, ainda, que se declare o direito de os autores verem o 1.º réu condenado como possuidor de má-fé do mencionado imóvel e ordenado que o mesmo lhes restitua todos os frutos recebidos por conta do imóvel.
Fundamentam a sua pretensão no facto de terem sucedido como herdeiros ao falecido J... e de o réu JP...não ter procedido ao pagamento do imóvel que lhe foi vendido pelo falecido quando o mesmo se encontrava fragilizado e debilitado física e psiquicamente, tendo sido simulada uma compra e venda do mesmo imóvel para dissimular uma verdadeira doação. Alegam ainda que réus movimentaram a débito valores em dinheiro das contas de que o falecido era titular, de forma intencional e dolosa, com o propósito de dissiparem o seu património e, ainda, de a ré ter alegadamente adquirido o veículo automóvel do falecido nas mesmas circunstâncias de fragilidade e debilidade física e psíquica deste, falsificando a sua assinatura.
Os réus contestaram, impugnando a matéria alegada, concluindo por pedir a improcedência da acção. 
No seguimento dos autos, realizada audiência final veio a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência: Condenou a ré A...a restituir aos autores P…, H…, J… e P… a quantia de € 1.765,00 (mil setecentos e sessenta e cinco euros), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, desde a data de citação desta ré, até efetivo e integral pagamento. Mais absolveu os réus A...e JP...de tudo o mais peticionado.
Inconformados vieram os Autores recorrer, apresentando as seguintes conclusões:
«I. Deverá ser dado como provado que a Co-Ré A… procedeu ao levantamento da quantia de 8.400,00€ com recurso ao ATM, pertença do falecido, pois foi a mesma (como resulta dos factos provados) que sem autorização do falecido procedeu ao levantamento de 1.200,00€, o que permite concluir que a mesma tinha acesso ao código do cartão ATM, tendo sido a mesma – Por Confissão – que entregou o cartão no Banco.
II. O negócio de Compra e Venda celebrado entre o falecido e o Co-Réu JP..., é nulo, por simulação absoluta, porquanto, verifica-se que exista: Acordo Das declarações do Co-Réu JP... resulta que havia um acordo entre o mesmo e o falecido. O Co-Réu Varão também não tinha dinheiro. Mas refere que –depois – quando lhe fosse pedido o dinheiro, iria pedir emprestado e pagaria. Contudo, não trabalhava à época. Para conforto do falecido, o Co-Réu aceitou dar o Usufruto do imóvel.
Divergência
Das declarações do Co-Réu JP..., concatenadas com os demais elementos documentais dos autos, e com recurso às regras de experiência comum, resulta claro que existe divergência entre a vontade real entre o falecido e o Co-Réu JP... e a vontade declarada. A vontade real entre os Outorgantes foi, sem exigência de pagamento de qualquer preço, poder contornar o cálculo da legítima, cedendo o falecido a Totalidade do seu Único Bem Imóvel ao Co-Réu JP....
Enganar Terceiros
Desta forma, os Outorgantes, tiveram o intuito de enganar Terceiros, a saber: C. O filho – P…, pré-falecido em 19.11.1993 [artigos 2 a 4 do petitório inicial], e por Direito de Representação [art.2039º do Cód.Civil] a aqui Autora P…; D. O filho – J…, falecido no decurso da acção, e por Direito de Representação [art.2039º do Cód.Civil] os Habilitados e aqui Autores H…, J… e P….
Com efeito, o falecido e o Co-Réu JP…, com a simulação absoluta do negócio da compra e venda, pretenderam contornar a regra do cálculo da legítima – arts.2156º e 2159º do Cód.Civil, inviabilizando o recebimento pelos Herdeiros de J... de qualquer valor relativo ao imóvel, após o falecimento deste.
Não se tratou de uma simulação relativa.
O negócio operado entre os Outorgantes foi retirar da esfera jurídica do falecido a propriedade do único imóvel que este detinha, inviabilizando que o mesmo, após o seu falecimento integrasse o acervo hereditário do de cujus, e dessa forma, poder aquele em vida dispor da totalidade do seu bem, contornando o disposto nos arts.2156º e 2159º do Cód.Civil. Estamos assim, perante uma simulação absoluta. Esta torna o negócio nulo (art. 240º, nº 2, do Cód.Civil.).
III. Pelo exposto, pois, e conforme mais dos autos ex max. ex. supl., deve a Apelação ser procedente e, consequentemente, ser revogada a sentença a quo, e consequentemente ser [1] declarada a nulidade do negócio simulado de compra e venda do imóvel, melhor descrito nos autos e consequentemente ordenar-se o Cancelamento do Registo de aquisição do Imóvel a favor do aqui Co-Réu JP...[2] Condenar-se o Co-Réu a proceder à entrega do Imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens, acrescido de uma sanção pecuniária compulsória de 100,00€ por cada dia de atraso [3] Condenar-se a Co-Ré A...a Restituir o valor de €8.400,00 que levantou da conta bancária do falecido, a título de enriquecimento sem causa, por se terem locupletado indevidamente, acrescido de juros de mora até efectivo e integral pagamento.».
Os recorridos contra alegaram, concluindo que:
« a) Esteve bem o tribunal a quo, ao decidir pela absolvição da Recorrida A..., no que concerne a imputar-lhe o levantamento indevido de quantias monetárias da conta de J..., nos meses antes da sua morte.
b) Os Recorrentes não lograram provar que a Recorrida A… se apoderou do cartão bancário de J… e que, na posse do mesmo e sem o consentimento do titular, tenha efectuado levantamentos em ATM, no total de €8 400,00 (oito mil e quatrocentos euros)
bem como que, indevidamente se tivesse locupletado com estas quantias, integrando-as
no seu património pessoal à custa de um empobrecimento do património do falecido.
c) Tão pouco existe nos autos prova produzida no sentido de que este cartão tenha deixado
de estar na posse de J... no momento dos levantamentos e que não tenha sido o próprio a efectuá-los e a utilizar estas quantias em seu proveito pessoal.
d) Assim, de acordo com a douta sentença ora sob recurso, cumpriria, como sucedeu, ao
tribunal a quo lançar mão da regra do artigo 414.º, do CPC, sobre o princípio a observar
em casos de dúvida na instrução do processo: “A dúvida sobre a realidade de um facto e
sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.”,
o que, obvia e justamente levou à absolvição da Recorrida do contra si peticionado.
II. Do Recorrido JP… e do Negócio Simulado
e) No que a este Recorrido concerne, mais uma vez não lograram os Recorrentes apresentar prova suficiente da existência de um vicio de vontade na formação do negócio de compra e venda entre o mesmo e J....
f) De nenhum dos depoimentos das testemunhas com conhecimento directo dos factos, tão pouco do depoimento de parte do Recorrido JP... ou da prova documental
produzida nestes autos, resultou matéria probatória para suster que este e J... tivessem efectuado um acordo prévio no intuito de sonegar o imóvel à herança do mesmo.
g) Tão pouco lograram os Recorrentes apresentar prova nestes autos de que, no acto da celebração do negócio de compra e venda, J... e o Recorrido JP... tivessem declarado pretender celebrar um negócio de compra e venda, quando, na realidade, a sua pretensão seria a de celebrar um qualquer outro negócio.
h) Mais, nenhum dos depoimentos das testemunhas com conhecimento directo dos factos
corroborou a ideia de que J... pretendia retirar o imóvel objecto da compra e venda
do seu acervo patrimonial, de forma que os seus herdeiros não pudessem herdá-lo após a sua morte.
i) Resulta claro que, dos elementos constantes do processo, não existe matéria de facto suficiente para preencher os requisitos exigidos para a verificação da simulação negocial,
de acordo com as exigências do art. 240º do CC, ao contrário do que os Recorrentes pretendem dar a entender.
j) A prova da verificação dos requisitos supramencionados coube aos Recorrentes, não tendo os mesmos logrado fazê-la e, ainda que pretendam conseguir a mesma através da confissão do Recorrido, do depoimento do mesmo não resulta qualquer matéria para tanto.
k) Esteve bem o tribunal a quo, ao decidir, como decidiu, em absolver o mesmo do pedido
de nulidade do negócio, fundado na teoria de que o mesmo padece de um vicio de vontade na sua formação.
Termos em que deve o presente recurso ser considerado totalmente improcedente e a douta sentença ora em recurso manter-se na integra conforme proferida pelo tribunal a quo.».
O recurso foi admitido quer na 1ª instância, quer nesta, pelo que, colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber, no caso concreto,
1º Se é de considerar a alteração da matéria de facto nos termos pretendidos pelos recorrentes;
2º Se perante os factos considerados quer na alteração nos termos pretendidos, quer já perante os factos já considerados é de considerar a existência de um negócio simulado, com simulação absoluta com a consequente nulidade do contrato de compra e venda com as legais consequências, bem como a prova do locupletamento pela ré de valores do falecido, condenando assim os réus nos termos peticionados.                                                        *
II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos:
1. J... faleceu em 02.05.2018. 
2. J... teve dois filhos: P… e J…. 
3. P… faleceu em 19.11.1993, sucedendo-lhe, como herdeiras, M… (esposa) e P… (filha).
4. J… faleceu em 14.05.2020, sucedendo-lhe como herdeiros os filhos H…, J… e P…. 
5. J... não deixou qualquer testamento. 
6. J... viveu sempre sozinho desde que se divorciou, em 1993. 
7. Manteve uma relação de proximidade com as netas P… e P…, sobretudo com a primeira, e respectivas mães, até finais do ano de 2017, quer através de telefonemas, quer através de visitas às respectivas casas.
8. Manteve uma relação muito próxima com a irmã, L…, a quem telefonava e que visitava regularmente. 
9. Em data que não foi possível apurar com rigor, mas que se situa, pelo menos, em finais de 2017, a ré A... começou a trabalhar na casa de J..., tratando-lhe da limpeza da mesma e da roupa duas a três vezes por semana, e acompanhando-o a consultas médicas.
10. Em finais de dezembro o falecido queixou-se às netas e respectivas mães, que o visitaram na sua residência, que a ré A... lhe tinha remexido os papeis e por isso não conseguia encontrar umas cartas que lhes queria mostrar. 
11. Em data que não foi possível precisar, mas que se situa em inícios de 2018, o falecido queixou-se à irmã L...que os seus papéis estavam remexidos e fora do lugar e que numa dada altura não encontrava o cartão de multibanco, que depois encontrou.
12. No início do ano de 2018 J... deixou de visitar as noras e netas, e de estabelecer contactos telefónicos regulares com as mesmas.
13. Em data que não foi possível apurar, mas que se situa em finais de março ou inícios de abril de 1018, a irmã L…, acompanhada da sua filha V…, visitou J... na sua residência, tendo notado que o mesmo se mostrava preocupado, ansioso e agitado. 
14. J... foi assistido no Hospital de Vila Franca de Xira no dia 09.04.2018 por causa de uma dor na zona torácica direita que sentia há cinco dias, que aumentava quando se movimentava, tendo sido medicamentado e sujeito a prescrição de exames complementares. 
15. Em data que não foi possível apurar, mas que se situa em meados de abril de 2018, a nora de J..., M…, recebeu um telefonema deste às 4.05 horas, não tendo sido proferida uma única palavra, o que se repetiu no dia seguinte, por volta das 16 horas da tarde.
16. M… e MV…, mãe da neta P…, dirigiram-se à residência de J... para se certificarem se o mesmo se encontrava em bom estado de saúde, tendo ambas verificado que o mesmo se mostrava agitado e preocupado.
17. Posteriormente, em data que não foi possível apurar, mas que se situa antes de 24.04.2018, a irmã J..., L…, telefonou-lhe por volta das 21 horas e, questionando-o sobre se já se preparava para dormir, aquele respondeu-lhe que estava dentro do carro, a preparar-se para ir tomar o pequeno-almoço, mas que ainda estava muito escuro. 
18. No dia 24.04.2018 J... foi levado pelos Bombeiros ao Serviço de Urgência do Hospital de Vila Franca de Xira com dificuldades respiratórias, tosse seca e toracalgia anterior bilateral há dois dias, que se agravava com a tosse, tendo ali ficado internado até ao dia do seu falecimento, ocorrido em 02.05.2018. 
19. J... foi diagnosticado com «pneumonia devido a microorganismo não especificado» em 28.04.2018. 
20. A pessoa de referência que o Hospital de Vila Franca de Xira tinha associada a J... era a ré A..., a quem foi comunicado o seu óbito.
 21. No dia do falecimento de J... a sua irmã, L..., recebeu uma chamada telefónica da ré A..., que não conhecia, que a informou do óbito, que o funeral seria no dia seguinte, nas traseiras de um prédio onde se celebrava as assembleias de Jeová, e que tinha ordens por parte do falecido para não comunicar o óbito a mais nenhum familiar. 
22. L...não acatou a informação prestada e contactou toda a família, informando-a do óbito de J... e de tudo relacionado com o funeral. 
23. O funeral ocorreu de forma conturbada porquanto, pela primeira vez, os familiares do falecido tiveram contacto directo com os réus e, designadamente, porque...
24. … A sobrinha do falecido J..., M…, solicitou à ré A... as chaves do imóvel onde aquele residia, tendo sido informada por esta, antes de abandonar o local, que o mesmo já tinha sido vendido.
25. J... foi proprietário de um imóvel urbano, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., sito na União das Freguesias de P…, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira sob o n. … da freguesia de V…, que foi a sua última residência; de um veículo automóvel de marca Renault, modelo BClio, com a matrícula ..., e era ainda detentor de uma conta bancária, no Banco BPI. 
26. No dia 05.03.2018, junto do Cartório Notarial de M…, foi outorgada escritura de compra e venda da nua propriedade do Imóvel mencionado em 25., pelo preço de «trinta mil euros», onde figurou como comprador o réu JP...e como vendedor o falecido J..., que manteve, para si, o «direito de usufruto vitalício» do mesmo imóvel. 
27. Consta da mesma escritura de compra e venda «que o pagamento do referido preço, no montante de trinta mil euros, foi efectuado, pelo ora segundo outorgante, mediante a entrega, nesta data, de um cheque da “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, datado de hoje, passado à ordem de J..., com o número três seis zero nove três cinco três três oito cinco». 
28. Consta ainda da referida escritura que J... tinha, à data, 81 anos de idade. 
29. O réu JP...tinha, à data, a idade de 21 anos.
30. O réu JP...não era possuidor, à data da escritura descrita em 26. e 27., da quantia de trinta mil euros. 
31. O cheque bancário descrito em 27. não foi depositado na conta bancária de J..., descrita em 25. 
32. Os autores tomaram conhecimento formal da adjudicação do referido Imóvel em 22.06.2018 quando, após terem participado o óbito de J… para efeitos de Imposto de Selo por transmissões gratuitas, foram notificados de despacho do Serviço de Finanças de Vila Franca de Xira 2, em resposta ao requerimento apresentado pelo réu JP…, através do qual o mesmo requereu a rectificação da participação para efeitos de Imposto de Selo apresentado pelo Cabeça de Casal, reclamando que lhe tinha sido adjudicado o mesmo Imóvel, sendo ele o único proprietário. 
33. Entre 02.03.2018 e 03.05.2018 foram feitos quarenta e dois levantamentos da conta bancária descrita em 25., de € 200,00 cada um(…)34. Os levantamentos descritos em 33., ocorridos entre os dias 28.04.2018 e 03.05.2018, inclusive, no valor total de € 1.200,00, foram efectuados pela ré, usando o cartão de multibanco de J..., sem conhecimento ou autorização deste, com o intuito de fazer seu este dinheiro. 
35. No dia 02.05.2018 a ré A... ainda utilizou o mesmo cartão para fazer um pagamento de € 500,00 a uma agência funerária. 
36. No mesmo dia efectuou uma compra electrónica a favor da Notária Sra. Dra. M…, no montante de € 65,00. 
37. Foram ainda levantados da mesma conta bancária os seguintes valores, da seguinte forma: (…)38. O veículo automóvel com a matrícula ..., descrito em 25., foi adquirido por J... a F…. 
39. Desde a data da sua aquisição o referido veículo sempre foi o meio de transporte de J... no seu dia-a-dia. 
40. No dia 08.05.2018 a ré A... registou o referido veículo em seu nome na Conservatória do Registo Automóvel. 
41. Consta do “Requerimento de Registo Automóvel” apresentado pela ré A... para efectuar o registo descrito em 37., entre o mais, que o mesmo respeita a «declaração para registo de propriedade (contrato verbal de compra e venda» e que «o contraente indicado como sujeito passivo (vendedor) declara que em 23.04.2018 efectivamente celebrou nessa qualidade o contrato nele especificado e por isso confirma-o sem quaisquer restrições». 
42. A assinatura que consta do mencionado “Requerimento de Registo Automóvel”, após os dizeres “sujeito passivo (vendedor…)”, não foi aposta pelo punho de J.... 
43.  O representante do “sujeito activo (comprador), ré A..., no registo descrito em 40. foi a Notária Sra. Dra. M…. 
44. O falecido J... sempre afirmou junto dos seus familiares que, após a sua morte, desejava que o imóvel descrito em 25. fosse propriedade da neta P…. 
45. No último ano de vida o falecido J... manteve uma relação muito próxima e de amizade com os réus. 
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Foram considerados factos não provados os seguintes:
a. a matéria alegada no artigo 16.º da p. i., para além do que consta provado sob o ponto 11; 
b. que a irmã do falecido J... tenha estranhado, aquando do telefonema descrito em 17. dos factos dados como provados, o seu discurso, achando que o mesmo estava muito confuso, falava muito em Jeová, apresentava falhas de memória graves e falava muito em património [algo que nunca o tinha feito antes], denotando que o mesmo já se encontrava em estado psíquico muito débil – não tendo noção das horas – apresentando alguns sinais de senilidade (artigo 22.º da p. i.); 
c. a matéria alegada nos artigos 24.º e 25.º da p. i., para além do que consta provado sob o ponto 16; 
d. que nos últimos meses de vida J... já apresentava fragilidade física considerável e dificuldade em movimentos motores precisos tais como escrever, vestir-se e alimentar-se (artigos 26.º a 28.º da p. i.); 
e. que, antes de 24.04.2018, J... se encontrava, ao nível neurológico, em estado confuso e agitado, com discurso desorganizado e delirante (artigo 30.º da p. i.); 
f. a matéria alegada nos artigos 35.º e 36.º da p. i., para além do que consta provado sob os pontos n.ºs 23 e 24;
g. que o falecido J... se encontrava, nos últimos meses de vida, numa situação muito débil, não só fisicamente, mas, também, psiquicamente, sendo facilmente convencido e influenciado à prática de actos por si não desejados (artigo 52.º (1) da p. i.);
h. que o imóvel descrito sob o ponto 25. dos factos dados como provados tenha sido arrendado pelos réus (artigo 52.ºA da p. i.);
i. que o réu JP… tenha efectuado os levantamentos descritos em 33. dos pontos de facto dados como provados ou que a ré A... tenha efectuado os levantamentos descritos em 33. dos pontos de facto dados como provados para além dos mencionados em 34. dos mesmos pontos de facto dados como provados (parte do artigo 65.º da p. i.);
j. que J... tenha tido a intenção de doar ao réu JP...o imóvel descrito em 25. dos pontos de facto dados como provados para evitar que o mesmo fosse tomado em consideração no cálculo da herança por sua morte, com o intuito de prejudicar os seus herdeiros (artigo 85.º da p. i.); 
k. que J... sempre tenha afirmado perante os réus e terceiros que a sua intenção era vender o imóvel descrito em 25. dos pontos de facto dados como provados (artigo 10.º da contestação);
l. que em fevereiro de 2018 J... tenha manifestado a intenção de vender o imóvel descrito em 25. dos pontos de facto dados como provados, alegando poder necessitar de dinheiro para a velhice, e tenha proposto a venda ao réu JP..., na condição de permanecer a habitar o mesmo até que a sua saúde física o permitisse, e este tivesse aceitado o negócio nos termos propostos (artigos 51.º a 53.º da contestação); 
m. que o réu JP...tivesse solicitado um empréstimo a familiares e que, no dia da escritura, pagou o preço da compra e venda através do cheque mencionado nos factos provados sob o n.º 27 (artigos 44.º, 54.º e 55.º da contestação);
n. que o réu JP...tenha tido a intenção de pagar o preço da compra e venda e tenha sido alheio ao facto de J... não ter procedido ao depósito do cheque de pagamento do preço da mesma, ou que este lhe tenha dito que não pretendia receber o preço do negócio (artigos 56.º e 57.º da contestação);
o. que as quantias levantadas pela ré entre 28.04.2018 e 03.05.2018 se tenham destinado a pagamento de despesas e demais custos com o funeral e exéquias fúnebres de J... (artigo 65.º da contestação) e 
p. que em abril de 2018 J... tenha manifestado a intenção de vender o veículo automóvel com a matrícula ... à ré A..., pelo preço de € 500,00;
(q.) que a venda se tenha concretizado em 23.04.2018 e o preço tenha sido pago e que tenham combinado que o veículo seria entregue à ré em inícios de maio de 2018, e que a ré só tenha conseguido proceder ao registo após o falecimento daquele (artigos 68.º a 72.º da contestação).
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Da impugnação da decisão de matéria de facto:
No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialeticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»
Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.
 Assim, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida(…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).
Quando seja impugnada a matéria de facto estabelece o art. 640.º do C.P.C.:«(…), deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E nos termos do nº 2 no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
Refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Ed., Almedina, 2017, pp. 158-159: «A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações: a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b)); b)   Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a));c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve identificar os pontos de facto que considera incorretamente julgados, não podendo limitar-se a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham para cada um desses pontos de facto fosse julgado provado ou não provado. A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do C.P.C.( Cfr. Acs. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes) e Proc. n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt. ).
O ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, consagrado no art. 640.º do C.P.C., impõe, sob pena de rejeição, a identificação, com precisão, nas conclusões da alegação do recurso, os pontos de facto que são objeto de impugnação. Acresce que o mesmo preceito exige ao recorrente a concretização dos pontos de facto a alterar, assim como dos meios de prova que permite pôr em causa o sentido da decisão da 1ª instância e justificam a alteração da mesma e, ainda, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados. Não obstante, este conjunto de exigências reporta-se especificamente à fundamentação do recurso, não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art. 640.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C. Versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, importa que nas conclusões se proceda à indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e que se pretende ver modificados (Cfr. Ac. do STJ de 03.12.2015, , in www.dgsi.pt. ).
Abrantes Geraldes ( in ob. Cit.), salienta que o S.T.J. «tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm que reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objetividade e de certeza, com os concretos de facto sobre que incide a impugnação.»( Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 771; cfr. ainda os Acs. do S.T.J. citados pelos Autores).
Assim, se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderão ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C. É, assim, dentro destes limites objetivos que o art. 662.º do C.P.C. atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração.
Feito este enquadramento, haverá que aferir quais os pontos concretos que devam ser apreciados por este tribunal.
Nas suas alegações depois da transcrição das declarações da co-ré, sublinhando as mesmas na parte que entenderam ser relevantes, acabaram por aludir que a alteração almejada se reporta à alínea i) dos factos não provados. Mencionam ainda as declarações das netas do falecido (AA.) e da sua irmã, dizendo apenas que “resulta demonstrado que o malogrado era pessoa ponderada de pouco gastos, muito poupado e reservado na sua forma de agir”.
No mais, fazem referência ao que resulta da actuação e comportamento da co-ré e apenas fazem alusão às declarações do co-réu, mas sem convocar quais os factos cuja alteração pretendem alcançar com o presente recurso, mormente o constante da alínea j) dos factos não provados.
Com efeito, com base nestas declarações e do que resulta dos autos, analisam o que consideram essencial no intuito simulatório invocado como fundamento da nulidade do negócio de venda do imóvel em causa nos autos, subdividido em: Acordo ( alegando o acordo entre o de cujus e o co-réu, com base nas declarações deste ); Divergência ( dizendo que “das declarações do próprio concatenado com os demais elementos documentais dos autos, com recurso às regras de experiência comum, resulta claro que existe divergência entre a vontade real entre o falecido e o Co-Réu JP... e a vontade declarada. A vontade real entre os Outorgantes é, sem exigência de pagamento de qualquer preço, poder contornar o cálculo da legítima, cedendo o falecido a Totalidade do seu Único Bem Imóvel ao Co-Réu); e Enganar Terceiros (alegando que pretenderam contornar a regra do cálculo da legítima).
Tal alegação não espelha qualquer alteração em concreto em termos factuais, pelo que apenas pode ser considerada na subsunção dos factos considerados na sentença recorrida ao direito, pelo que será apreciado infra.
Quanto à alínea i) dos factos não provados reza que: « o réu JP...tenha efectuado os levantamentos descritos em 33. dos pontos de facto dados como provados ou que a ré A... tenha efectuado os levantamentos descritos em 33. dos pontos de facto dados como provados para além dos mencionados em 34. dos mesmos pontos de facto dados como provados (parte do artigo 65.º da p. i.)».
Convocam as apelantes a alteração de tal facto para provado, mas sem que se especifique que o “provado” se reportará à primeira proposição de tal excerto factual ou à segunda, pois a primeira reportar-se-á à actuação do co-réu, enquanto que a segunda é relativa à alegada actuação da co-ré, única que é referenciada nesta intenção de alteração.
 Porém, importa desde já aludir que a alteração apenas do conteúdo da alínea i) pode ser irrelevante para a decisão. Ora, tem sido entendido que se os factos cujo julgamento é impugnado não forem susceptíveis de influenciar decisivamente a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação pela Relação da decisão proferida pela 1.ª instância ( neste sentido, entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de março de 2019, proc. n.º 8765/16.1T8LSB.L1.S2 – in www.dgsi.pt; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de fevereiro de 2020, proc. n.º 4821/16.4T8LSB.L1.S2 -:“I - O princípio de que o juiz deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes, analisando todos os pedidos formulados, está sujeito a uma restrição, e a restrição reporta-se às matérias e aos pedidos que forem juridicamente irrelevantes. II - Estando em causa factos irrelevantes, não faz qualquer sentido ponderar sequer a sua inserção na matéria de facto provada.– disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:4821.16.4T8LSB.L1.S2).
Ora, os apelantes apenas pretendem a alteração da alínea i.) nos termos sobreditos, sem, contudo, requerer igualmente a alteração do ponto 34. de forma a que neste facto também fique plasmado que tais levantamentos “foram efectuados pela ré, usando o cartão de multibanco de J..., sem conhecimento ou autorização deste, com o intuito de fazer seu este dinheiro”. Pois não há que olvidar que do ponto 34. Resulta apenas que: “Os levantamentos descritos em 33., ocorridos entre os dias 28.04.2018 e 03.05.2018, inclusive, no valor total de € 1.200,00, foram efectuados pela ré, usando o cartão de multibanco de J..., sem conhecimento ou autorização deste, com o intuito de fazer seu este dinheiro”. Logo, apenas circunscrito ao período temporal indicado e não aos demais.
Acresce que além de não se fazer referência em concreto às passagens das declarações das AA. e da testemunha irmã do falecido de onde resulte a conclusão que emitem no recurso acerca da personalidade do falecido, também as declarações da co-ré não são de molde a confirmar o conteúdo da alínea i. dada como provada.
Como bem alude o Tribunal recorrido acerca as declarações de parte «(…) o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão (caso em que tais declarações devem ser objecto de assentada, por forma a que a confissão passe a beneficiar da força probatória plena consignada no artigo 358.º, n.º 1, do Código Civil). Como explica Luís Filipe Pires de Sousa, a lei processual não esclarece quais são os parâmetros de valoração das declarações de parte, nem qual é a função das mesmas como meio de prova no processo. Não obstante, este meio de prova não deve ser desconsiderado pelo simples facto de estar sujeito à livre apreciação do Tribunal (posto que também a prova testemunhal, a prova pericial e a prova por inspecção o estão, «sem que se questione que o juiz possa considerar um facto provado só com base numa dessas provas singulares, no limite, só com base num depoimento»), desde que, ponderando-o de acordo com as regras de experiência e bom senso, o Tribunal conclua pela credibilidade do mesmo – cf. o disposto nos artigos 389.º, 391.º e 396.º do Código Civil.».
Quanto à apreciação em concreto, importa reproduzir a fundamentação, na parte relevante: «Contudo, e no caso em apreço, analisadas as declarações de parte da ré A..., e como infra também se explanará a propósito da fundamentação de alguns factos dados como provados e não provados, o Tribunal optou por só dar relevância às mesmas na parte em que fossem consistentes com outros meios de prova, por ter ficado com muitas dúvidas relativamente ao que a mesma afirmou em audiência final. (…)
 - sob o ponto n.º 33, o teor do documento n.º 10 junto com a p. i.; - sob o ponto n.º 34, o acordo entre as partes; a ré também confessou estes levantamentos, não obstante alegar que o dinheiro foi para pagar despesas e custos com o funeral e exéquias funerárias (cf. também o teor dos artigos 64.º e 65.º da contestação), matéria que foi dada como não provada; porque estes levantamentos foram efectuados numa altura de evidente incapacidade de J... e se desconhece o que a ré A... fez com o dinheiro (sendo certo que não disse a verdade nesta parte, posto que as referidas quantias não serviram para pagamentos das despesas com o funeral, como infra se fundamentará), o Tribunal convenceu-se de que a mesma fez suas as quantias em causa, sem conhecimento ou autorização do falecido J....
 No que concerne aos factos não provados, os mesmos resultam de, no entender deste Tribunal, não ter sido feita prova suficiente do alegado, ou de a prova produzida ter sido insuficiente para convencer o Tribunal, ou até contrária ao alegado. (…) sob os pontos d., e. e g., o documento n.º 5 junto com a p. i. não demonstra o alegado, bem pelo contrário: do mesmo resulta evidente que, quando J... deu entrada no Hospital, o mesmo se mostrava «calmo, orientado e colaborante» (cf. fls. 38 verso do processo de papel), tendo sido durante o internamento que o seu estado evoluiu, agravando-se até à sua morte. Por outro lado, a testemunha JC…, médica de clinica geral de J..., afirmou que o observou numa última consulta em 05.04.2018 e que o mesmo não revelava qualquer patologia do foro psicológico ou neurológico. Em face destes elementos clínicos objectivos, o Tribunal não se convenceu com a alegação dos autores nesta parte; (…)
- sob o ponto i., nenhuma prova foi produzida a este respeito no que respeita ao réu JP...; no que concerne à ré A..., o Tribunal ficou com dúvidas sobre se não teria sido a mesma a fazer os referidos levantamentos, tendo em conta que existe um padrão de comportamento similar ao que ela confessou (e relativo ao período de tempo entre 28.04.2018 e 03.05.2018); contudo, a verdade é que este padrão de comportamento, só por si, não foi suficiente para o Tribunal se convencer do alegado, porquanto, por um lado, desconhece-se se o falecido J... tinha conhecimento ou dado autorização para estes levantamentos e, por outro, para além da referência da testemunha L...(de que o falecido J... lhe disse que tinha estado, pontualmente, em inícios de Janeiro de 2018, sem encontrar o seu cartão de multibanco), nenhum outro facto a este respeito resultou da prova produzida. Ora, seria expectável que, se a ré tivesse consigo o cartão de multibanco do falecido J... num período de três meses, este reparasse que não tinha, ou não encontrava o cartão de multibanco. Assim, atento o supra explanado, na dúvida, o Tribunal não se convenceu sobre o alegado. É que a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita (cf. o disposto no artigo 414.º do Código de Processo Civil)».
Somos em concordar na íntegra com o explanado na decisão recorrida, pois não podem os apelantes pretender fazer prova de um facto que seja contrário aos interesses da parte que depõe com base nas contradições deste, sem que o mesmo esteja coadjuvado com outra prova concreta. Pois a prova pela parte de factos desfavoráveis à mesma são o conteúdo necessário à confissão da mesma, o que não ocorre nos autos, nem resulta das partes do depoimento destacadas no corpo das alegações.
Por tudo o exposto, é de manter inalterados os factos tal como foram considerados pela sentença recorrida, a qual não nos merece qualquer reparo na apreciação critica que foi feita de toda a prova produzida, improcedendo, nesta parte, o recurso.
*
III. O Direito:
No âmbito recursório insurgem-se os recorrentes quanto à absolvição dos recorridos no tocante ao valor considerado em termos condenatórios, sustentando que deverá ser dado como provado que a Co-Ré A...procedeu ao levantamento da quantia de 8.400,00€ com recurso ao ATM, pertença do falecido, pois foi a mesma que sem autorização do falecido procedeu ao levantamento de 1.200,00€, o que permite concluir que a mesma tinha acesso ao código do cartão ATM.
Tal conclusão apenas poderia resultar procedente caso os recorrentes tivessem ganho de causa quanto à almejada alteração factual nos termos sobreditos, pelo que improcedente que é a mesma, haverá que considerar a confirmação do decidido na sentença recorrida, improcedendo desde logo o recurso nesta parte.
Donde, haverá que apreciar se pode ser considerado o negócio de Compra e Venda celebrado entre o falecido e o Co-Réu JP..., nulo, por simulação absoluta, porquanto, por se verificarem os pressupostos da mesma, que os recorrentes elencam da seguinte forma: Acordo Das declarações do Co-Réu JP... resulta que havia um acordo entre o mesmo e o falecido - O Co-Réu Varão também não tinha dinheiro; Divergência - das declarações do Co-Réu JP..., concatenadas com os demais elementos documentais dos autos, e com recurso às regras de experiência comum, resulta claro que existe divergência entre a vontade real entre o falecido e o Co-Réu JP... e a vontade declarada. A vontade real entre os Outorgantes foi, sem exigência de pagamento de qualquer preço, poder contornar o cálculo da legítima, cedendo o falecido a Totalidade do seu Único Bem Imóvel ao Co-Réu JP...; Enganar Terceiros - Desta forma, os Outorgantes, tiveram o intuito de enganar Terceiros, ou seja os herdeiros, contornado a regra do cálculo da legítima.
Mais concluem que não se tratou de uma simulação relativa, pois o negócio visou retirar da esfera jurídica do falecido a propriedade do único imóvel que este detinha, inviabilizando que o mesmo, após o seu falecimento integrasse o acervo hereditário do de cujus, e dessa forma, poder aquele em vida dispor da totalidade do seu bem, contornando o disposto nos arts.2156º e 2159º do Cód.Civil. Concluindo pela verificação de uma simulação absoluta, o que torna o negócio nulo (art. 240º, nº 2, do Cód.Civil.).
Pedem, assim, na sua III. conclusão que na procedência da apelação deva ser revogada a sentença a quo, e consequentemente ser [1] declarada a nulidade do negócio simulado de compra e venda do imóvel, melhor descrito nos autos e consequentemente ordenar-se o Cancelamento do Registo de aquisição do Imóvel a favor do aqui Co-Réu JP...[2] Condenar-se o Co-Réu a proceder à entrega do Imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens, acrescido de uma sanção pecuniária compulsória de 100,00€ por cada dia de atraso [3].
Apreciando.
Efectivamente o negócio jurídico é um dos temas centrais do direito privado, mormente do direito civil. Definido comumente como o facto jurídico voluntário ou ato jurídico cujo núcleo essencial é integrado por, pelo menos, uma declaração de vontade tendente à produção de determinados efeitos práticos que se pretende que sejam juridicamente vinculantes, a categoria encontra nas declarações de vontade (uma ou várias no mesmo sentido, no caso dos negócios jurídicos unilaterais; pelo menos duas de sentido oposto mas convergente, no caso dos contratos) um dos seus elementos essenciais. Tais declarações, por sua vez, são integradas por dois elementos: um elemento externo (traduzido na declaração propriamente dita) e um elemento interno (que consiste na vontade por aquela exteriorizada) ( cf. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 414 e ss. e Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, 378. 2 C. A. ).
Normalmente os elementos internos e externos coincidem, pode, porém, haver casos em que, em vez da desejável sintonia, ocorre um dissídio entre a vontade e a declaração.
Tem sido comumente aceite que para que um negócio se possa considerar simulado, e como tal nulo, nos termos do artigo 240.º, n.º 2, do Código Civil, é necessário que se verifiquem determinados requisitos. A saber: que haja uma divergência entre a vontade e a declaração; que essa divergência seja intencional; que tenha como intenção enganar (e já não prejudicar, sendo, portanto, admissíveis formas de simulação inocente) terceiros; e que a falta de concordância entre o que se declara e o que se quer resulte de um acordo (pactum simulationis) entre o declarante e o declaratário (ver por todos A. Barreto Menezes Cordeiro, in “Da simulação no direito civil”, Coimbra, Almedina, 2014).
Também tem sido entendido que para apresentar conceito capaz de compreender a simulação admite-se, à partida, a conexão da problemática a um exercício irregular da autonomia privada. Nesse sentido, «tal como a mentira e a falsidade no campo social, a simulação seria a não conformidade, quase que como fenômeno indesejado – e, talvez, inevitável – do mau uso dos meios colocados à disposição dos particulares para a regulação de seus interesses. Se o estabelecimento de regras de conduta é o caminho por qual trilham os indivíduos para a satisfação de suas necessidades e conveniências, a simulação é o atalho deturpado por qual sempre vagam os que não admitem ou não querem os rumos socialmente propostos. Para tanto, lançam mão de ajustes públicos que não valem, ao menos não em sua inteireza, porque antecipadamente contrariados por outros, internos.» (André Barbosa Guanaes in “Os efeitos da simulação” pág. 55 – FDUL Mestrado científico em ciências jurídicas).
Ferreira de Almeida ainda que entenda que a doutrina e a jurisprudência convirjam na caracterização dos três requisitos aludidos, quanto ao primeiro – a divergência intencional entre a vontade e a declaração – refere que este «é preconceituoso, porque impelido pela necessidade de se referir à vontade, e por isso irrealista, no sentido de que não reproduz correctamente a realidade que pretende descrever» ( in “Contratos” V, Invalidade , pág. 103 ). Prosseguindo que «o que efectivamente se observa na simulação, e a caracteriza, é a divergência, a incompatibilidade e a contradição entre declarações negociais, uma ostensiva ou externa (“para inglês ver”) e outra oculta ou interna, que as partes guardam para si». Quanto à simulação absoluta ou relativa refere o mesmo autor que «a declaração oculta pode ter um de dois conteúdos: ou diz apenas que o contrato ostensivo não vale (simulação absoluta) ou indica quais são os elementos da declaração externa que são substituídos pela declaração interna ( simulação relativa). Em qualquer caso, o contrato referido na declaração ostensiva é nulo.» ( in ob. e loc. cit. ).
Na análise de tal instituto importa ainda ter presente o que determina a cominação de nulidade, tal como se encontra prevista no nº 2 do artº 240º do CC, pois esta análise também nos permite aferir dos requisitos necessários, por forma a permitir analisar o caso concreto.
Com efeito, no estudo levado a cabo por Mafalda Miranda Barbosa (in RJLB, Ano 4 (2018), nº 6 pág. 2397 e ss., sob o tema “Falta e vícios da vontade: uma viagem pela jurisprudência, em especial o Ac. do STJ de 3/12/2015- proc. nº 2936/07.9TBBCL.G1.S1), entende que tal sanção do ordenamento jurídico é estabelecida para a falta (intencional) de vontade negocial, pelo que se compreende no quadro de formação do negócio jurídico, pelo que ela é predisposta para salvaguarda dos interesses dos terceiros que são enganados com o negócio fictício. Mas a propósito deste alude que «a intenção de enganar não tem de vir acompanhada da intenção de prejudicar para se poder falar de simulação. A simulação pode ser, portanto, inocente ou fraudulenta, não relevando a distinção, exceto no que toca à legitimidade dos herdeiros legitimários para arguirem a nulidade do negócio simulado, em vida do simulador. Sobre o ponto, cf. artigo 242.º, n.º 2, do Código Civil.)».
Na verdade, nos termos do artigo 236.º do Código Civil, consagra-se a doutrina da impressão do declaratário, pelo que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, atribuiria àquele comportamento declarativo. Porém, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, ela valerá de acordo com a vontade real do declarante se o declaratário a conhecer.
Donde no caso da simulação, havendo um conluio entre declarante e declaratário, que determina que ambos conheçam a vontade real do outro, percebe-se por que razão não poderá considerar-se válido o contrato de acordo com o sentido correspondente à impressão do destinatário, daí a importância do referido terceiro elemento.
A este propósito, Pedro Pais de Vasconcelos aduz que, “sem a intenção de enganar terceiros, a simulação poderia encontrar solução em tema de interpretação do negócio jurídico. A divergência bilateral e consensual entre a vontade e a declaração é uma questão que encontra solução jurídica no artigo 236.º, n.º 2, do Código Civil, (…): se ambas as partes declararam algo diferente do que verdadeiramente queriam e se estão de acordo quanto ao conteúdo negocial verdadeiramente querido, o negócio vale de acordo com a sua vontade real. (…) Assim, (…) na simulação absoluta concluir-se-ia (…) que nenhum negócio existia”( in “Teoria Geral do Direito Civil” pág. 521. O Autor sustenta, além disso, que a mesma ideia explicaria a possível validade do negócio dissimulado. Na verdade, se as partes estivessem de acordo quanto ao conteúdo do negócio, conhecendo a vontade real de ambas, seria de acordo com esta que o negócio valeria. Portanto, valeria de acordo com a vontade de celebrar um negócio de tipo ou conteúdo diferente. Nos termos do artigo 241.º, n.º 1, do Código Civil, o negócio dissimulado poderá ser válido ou inválido consoante o tratamento que lhe seria dispensado se não tivesse ficado encoberto.)
Donde, a disciplina que o legislador dispensa à simulação só se compreenderia, portanto, à luz do intuito de enganar terceiros, dado que nos remete para a terceira das razões anunciadas. Núcleo essencial desta explicitação é, no entanto, a ideia de que, porque cada um dos contraentes conhece a vontade real do outro, não há uma confiança digna de tutela que urja ser tutelada. Como refere Mafalda Miranda Barbosa ( in ob. Cit. Pág. 2397) «O desvio em relação ao tendencial objetivismo com que nos orientamos a propósito da interpretação negocial, encerrado no brocardo falsa demonstrativo non nocet, não só é perfeitamente consentâneo com a nulidade do negócio simulado como se justifica pela falta de necessidade de proteção da confiança da contraparte. Eis a razão por que, ao nível da reserva mental – na qual, intencionalmente, a declaração também não corresponde à vontade real, agora com o fito de enganar o declaratário –, o negócio só seja nulo quando a reserva seja conhecida da contraparte. Isto permite-nos extrair uma conclusão de não pequena importância no nosso percurso dialógico. Na verdade, se o ordenamento jurídico parece – atenta a dualização entre o elemento interno e o elemento externo da declaração negocial – colocar o acento tónico no comportamento declarativo, harmonizando o valor da autonomia com o valor da confiança, então a desvinculação contratual só deverá ser permitida quando não obnubile, por completo, o segundo.».
Com efeito, Mota Pinto ( in ob. e loc. cit.) , a este propósito, oferece-nos um elenco de doutrinas aptas a resolver o problema do dissídio entre a vontade e a declaração: doutrina da vontade, nos termos da qual o negócio seria inválido sempre que a declaração não coincidisse com a declaração; doutrina da culpa in contrahendo, segundo a qual o negócio seria inválido quando se verificasse a divergência, exigindo-se, contudo, que o declarante indemnizasse o declaratário sempre que houvesse dolo ou culpa da parte daquele e se verificasse a boa-fé deste; doutrina da responsabilidade, de acordo com a qual o negócio seria válido nas hipóteses de dolo ou culpa da parte do declarante e de boa-fé do declaratário.
 Assim sendo, a nulidade do negócio simulado só se justifica sem que seja ponderada a posição da contraparte, porque esta, participando no pacto simulatório, não titula nenhuma posição de confiança digna de tutela.
Logo, ainda que não se fale em negócio jurídico quanto ao pacto simulatório ( no sentido de classificar o mesmo como contrato (modificativo), visto ser um acordo com efeitos jurídicos, surge Carlos Ferreira de Almeida, in b. cit. pág. 105, mas remetendo para o vol I de “Contratos” nos seus nºs 3 a 7, pois afirma que a inexistência de obrigatoriedade não exclui a natureza contratual, apenas o efeito obrigacional), manifestamente este pode determinar que se negue todo e qualquer efeito jurídico a um determinado negócio público, pelo que nesta simulação dita absoluta opõem-se dois elementos distintos: o negócio simulado, válido aparentemente, e o ajuste simulatório. De outra banda, a simulação de que se valer para a ocultação de um negócio por outro, comumente denominada de relativa, seguirá aquele mesmo procedimento, iniciado pelo ajuste simulatório, embora aqui mais complexo, para a formalização de negócio aparente, sob o qual se posicionará outro, interno, este sim a gerar efeitos que efetivamente se querem. Nessa hipótese, serão três os elementos remanescentes, quais sejam, o negócio simulado, o dissimulado e, entre eles, a regular de que forma se equalizam os efeitos de um e de outro, o pactum.
A autonomia, porém, não serve para qualificar o ajuste simulatório como negócio jurídico propriamente dito. Embora se coloque ao lado de um negócio simulado e, eventualmente, de outro dissimulado, o conluio é mero acto preparatório, jurídico e não vinculativo, na expressão de Menezes Cordeiro (Citado por Barreto Menezes Cordeiro in ob. Cit. Pág. 67 a 69). Pois porque a sua efetividade, embora ilícita, fica sempre a depender da celebração do negócio aparente, sem o que se esvazia.
A propósito dos elementos exigidos para que se possa falar em simulação, Barreto Menezes Cordeiro refere que o mero conluio entre as partes sem o intuito de enganar terceiros deixa de ser simulatonis, e que dizer se existir o pactum mas sem divergência efectiva entre as partes? O mesmo autor responde que não, existindo neste caso apenas um acordo para prejudicar terceiros ( in ob. Cit. Pág. 67). Na noção do acordo simulatório a ter em conta conclui o mesmo autor que o mesmo deve ser definido «como uma conjuração conchavada por dois ou mais sujeitos, criadora de uma falsa aparência no comércio jurídico, enquanto reflexo da divergência entre a vontade manifestada e a vontade real, com intuito de enganar terceiros».
No âmbito da acção os AA. vinham pedir a declaração da nulidade do negócio simulado de compra e venda do imóvel em causa nos autos e, consequentemente, ordenado o cancelamento do registo de aquisição do referido imóvel a favor do réu JP...e os réus condenados a entregarem-lhes o mesmo imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens, acrescido de uma sanção pecuniária compulsória de € 100,00€ por cada dia de atraso. Donde consubstanciaram um pedido de simulação absoluta.
Em alternativa, pediam que fosse decretado o direito de os autores verem ser declarada a conversão do negócio de compra e venda do referido imóvel em doação, por não ter sido pago o preço de aquisição do mesmo, configurando assim tal negócio uma doação per si, consubstanciando então a simulação dita relativa.
No âmbito do recurso limitam-se a peticionar os efeitos da simulação absoluta, ou seja, a declaração da nulidade da compra e venda, deixando cair a questão apreciada quanto à eventual simulação relativa e o pedido alternativo correspondente.
Vejamos, então, o que resulta dos factos sob apreciação.
Como bem se fundamenta na decisão: «Resulta da factualidade apurada sob os pontos n.ºs 26., 27., 30. e 31. que, no dia 05.03.2018, junto do Cartório Notarial de M…, foi outorgada escritura de compra e venda da nua propriedade do Imóvel mencionado em 25. dos pontos de facto dados como provados, pelo preço de «trinta mil euros», onde figurou como comprador o réu JP...e como vendedor o falecido J..., que manteve, para si, o «direito de usufruto vitalício» do mesmo imóvel; como resulta da referida escritura, «o pagamento do referido preço, no montante de trinta mil euros, foi efectuado, pelo ora segundo outorgante, mediante a entrega, nesta data, de um cheque da “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, datado de hoje, passado à ordem de J..., com o número três seis zero nove três cinco três três oito cinco»; contudo, o réu JP...não era possuidor, à data desta escritura da quantia de trinta mil euros e o cheque bancário nela mencionado não foi depositado na conta bancária de J.... Também resulta do ponto m. dos factos não provados que o réu JP...não pagou o preço da compra e venda em causa. Ou seja, os autores lograram demonstrar que o preço de trinta mil euros, apesar de declarado ter sido recebido, não foi efectivamente pago ao falecido J....
Sucede que, como já se referiu, este facto, só por si, não permite concluir pela verificação de um negócio simulado, posto que é necessário o preenchimento dos demais requisitos. Com efeito, não ficou demonstrada nem a existência de uma divergência intencional entre a vontade declarada e a vontade real, um acordo simulatório entre declarante e declaratário (pactum simulationis), nem a intenção de enganar terceiros (animus decipindi), designadamente, os herdeiros de J... – cf. ponto de facto dado como não provado sob j.».
Aliás, a ausência de pagamento do preço, ainda que da escritura, documento autêntico, conste o mesmo, resulta provada por confissão do réu, mas tal como bem se alude na bem fundamentada sentença não determina a nulidade do negócio pois «tendo havido transferência da titularidade do imóvel para o réu JP..., que é o seu único proprietário, o negócio jurídico em causa «contém os requisitos essenciais de substância e de forma do contrato de doação, consagrado no artigo 940.º do Código Civil» (…) Os autores alegam, e demonstraram, que não ocorreu o pagamento declarado na escritura. Contudo, saber se o preço foi pago é uma questão que se prende, apenas, com o cumprimento ou com o incumprimento do contrato, não tendo qualquer repercussão na ponderação da validade ou regularidade do negócio. De facto, o contrato de compra e venda descrito nos pontos de facto dados como provados sob os n.ºs 26. e 27. contém todos os elementos típicos do contrato, plasmados no artigo 874.º do Código Civil, a saber: a declaração de venda e de compra, a identificação do objecto transacionado, e a estipulação do preço.  E foi celebrado na forma correcta, por escritura pública – cf. artigo 875.º do Código Civil.  E a eventual divergência entre o que foi declarado na escritura (in casu, a declaração do vendedor de que recebeu o preço) e a realidade dos factos não afecta o documento em si mesmo.  Com efeito, a transferência da propriedade dá-se por mero efeito do contrato, não dependendo do pagamento do preço, posto que estamos perante um contrato real quoad effectum (desde que observada a forma legal, como foi).  Em suma, a falta de pagamento do preço convencionado entre J... e o réu JP..., conforme escritura pública descrita sob os pontos de facto dados como provados sob os n.ºs 26. e 27., não configura qualquer nulidade do negócio.  Apenas uma situação de incumprimento, que justificaria uma acção de cumprimento, que os autores não instauraram, sendo certo que também não formularam nos presentes autos tal pedido, não podendo o Tribunal condenar em objecto diverso do que se pede – cf. artigo 609.º, n.º 1, do Código Civil.».
Logo, resulta apenas provada a celebração de um contrato de compra e venda, entre o réu e o falecido, cuja particularidade ocorre com a ausência (confessada) de pagamento do preço, pois, ainda que tal venda prejudique os herdeiros do de cujus, não resulta da factualidade demonstrada que tenha sido essa a intenção das partes. Aliás na questão relacionada desde logo com o primeiro dos requisitos, que constitui o cerne quando se fala em vício da vontade, importaria indagar pela intenção das partes, evento do foro interno é certo mas passível de alegação e prova através de indícios ou presunções ( cf. Luís Filipe de Sousa in “Prova por presunção no direito civil”, pág. 225). Pois só quando a vontade real difere da exteriorizada é que podemos falar em negócio simulado, e a ausência de pacto simulatório determinaria eventualmente reserva mental mas ausência de simulação. Que intenção teve o falecido ao celebrar tal negócio? Quis ou não celebrar o mesmo, ou outro de conteúdo diferente? O intuito enganatório existiu por forma a prejudicar os seus legítimos herdeiros? Desconhece-se a resposta a todas estas questões, existindo apenas a compra e venda, a ausência de pagamento do preço e ainda a circunstância e tal imóvel ter deixado de pertencer ao acervo hereditário do falecido, sendo este o prejuízo que advém para os AA. herdeiros (próprios ou em representação ) do mesmo.
Daqui resulta que os factos a considerar não são de molde a preencher os requisitos do vício da vontade imputável aos contraentes, ou qualquer outro que nos permita concluir pela invalidade do negócio. 
Improcede deste modo, a apelação, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
*
IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos autores e, consequentemente mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelos apelantes.
Registe e notifique.

Lisboa, 23 de Junho de 2022
Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas
Vera Antunes