Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1203/21.0T8FNC.L2-8
Relator: CARLA CRISTINA FIGEIRA MATOS
Descritores: ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
INEXISTÊNCIA DE CRÉDITO
FACTOS CONSTITUTIVOS DO DIREITO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Na ação de simples apreciação negativa que vise a declaração de inexistência de um direito que o réu considera deter, cabe ao réu a prova dos factos constitutivos do direito a que se arroga relativamente ao autor (art.º 343 nº1 do C.C).
II.  Por sua vez, caberá ao autor a prova dos factos impeditivos ou extintivos do direito invocado pelo réu, de acordo com a regra geral contida no art.º 342 nº2 do CC.
III. Assim sendo, caberá ao réu, na contestação, alegar os factos constitutivos do direito em causa na ação, e caberá, ao autor, na réplica, alegar os factos impeditivos ou extintivos desse direito. Consequentemente, caberá ao réu provar os factos constitutivos (do direito) que alegou e ao autor provar os factos impeditivos/extintivos (do direito) que alegou.
IV. O pagamento é um facto extintivo de uma obrigação pecuniária.
V. Assim, em sede de ação de simples apreciação negativa para declaração de inexistência de um crédito, incumbe ao autor a alegação e prova do pagamento enquanto facto extintivo do crédito cujos factos constitutivos tenham sido invocados na contestação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa:

I-Relatório:
A Autora MORNING INTERACTIVE - UNIPESSOAL LDA. veio intentar a presente ação declarativa que qualifica como simples apreciação negativa, sob a forma de processo comum, contra a Ré: - SCÉNIC TOURS - AGÊNCIA DE VIAGENS E TURISMO S.A., NIPC …, com sede na Rua …, n.º …, Loja …, FUNCHAL.
Peticionando que fosse declarada a inexistência de qualquer direito de crédito da Ré sobre a Autora.
Alegou para tal, em síntese que a Ré intentou um requerimento injuntivo, no valor de 18.673,00€, tendo introduzido uma morada convencionada que não corresponde à morada da sede da Autora.
Alegou, no mais, que devido a essa morada convencionada o requerimento foi remetido para essa morada, não tendo a Autora tido possibilidade de se opor a esse requerimento injuntivo, ao qual foi conferido força executória pelo BNA.
Acrescentou que essa dívida não existe e nunca existiu e que caso não tivesse sido adulterada a morada, de forma propositada, por parte da Ré, teria deduzido oposição à injunção.
Acrescentou, ainda, que tentou deduzir oposição à injunção quando tomou conhecimento do requerimento injuntivo, mas a mesma foi rejeitada por extemporânea.
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Devidamente citada, veio a Ré apresentar contestação, alegando, em síntese, que a Ré não é devedora de qualquer quantia no valor de 20.022,10 euros, mas sim credora dessa quantia, conforme sentença proferia junto do processo 1867/20.1YIPRT.
Concluiu pela improcedência da ação.

Por despacho proferido em 14 de Dezembro de 2023 (cfr. referência citius nº 54587779), foram as partes questionadas sobre prescindiam da realização da audiência prévia.
A Autora veio referir que prescindia dessa diligência (cfr. requerimento datado de 20 de Dezembro de 2023) e a Ré, devidamente notificada, nada disse.
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Por despacho proferido em 17 de Janeiro foi proferido despacho com o seguinte conteúdo:
“Entende o Tribunal que estão reunidos todos os elementos necessários a que seja proferida decisão final, sendo intenção proferir saneador sentença sem realização da audiência de discussão e julgamento e sem audição de testemunhas.
A fim de garantir o contraditório, para evitar decisões surpresas atendendo ao conteúdo do despacho que antecede, pronunciem-se as partes sobre essa possibilidade no prazo de 10 (dez) dias.
Após, conclua de imediato”.
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As partes nada vieram dizer ou requerer.
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Foi proferido saneador sentença, cujo teor se dá integralmente por reproduzido, com o seguinte dispositivo:
“Por tudo o exposto, julgo a presente ação procedente e, consequentemente, declaro a inexistência de qualquer direito de crédito da Ré SCÉNIC TOURS - AGÊNCIA DE VIAGENS E TURISMO S.A. sobre a Autora INTERACTIVE - UNIPESSOAL LDA.
Custas pela Ré – cfr. artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Valor da causa: 18.673,00€ - cfr. artigo 297.º do Código de Processo Civil.
Registe e notifique. “
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Inconformada, a Ré interpos recurso de apelação, apresentando alegações com as seguintes conclusões:
“A) A recorrida/Autora deu entrada de uma ação declarativa de simples apreciação negativa, com o objectivo de colmatar a falta de contestação ao processo de injunção 1867/20.1YIPRT, e na petição inicial, a recorrida/Autora alega que resulta da conta corrente que é devedora à recorrente/Ré do montante de 5.341,75 euros, conforme consta no artigo 5.º da pi: Da qual resulta - DA CONTA CORRENTE - que a Autora é devedora da quantia de 5.341,75.
B) O Tribunal a quo preferiu sentença e refere que a recorrente/Ré se limita a referir que não é devedora mas sim credora, (Da análise da contestação, verifica-se que a Ré se limita a referir que “não é devedora de qualquer quantia no valor de 20.022,10 euros, mas sim credora dessa quantia, conforme sentença proferia junto do processo 1867/20.1YIPRT”) o que não é verdade, pelo facto que a Recorrente/Ré juntou com a contestação o doc. 1, a Sentença proferida no processo de injunção, processo 1867/20.1YIPRT, e requereu que se considerasse integralmente reproduzido os factos alegados na referida injunção, como seja:
(…) a requerente prestou serviços de excursões, transferes, serviços de excursões, transfere e volta à cidade, referente às faturas número: FA 107 000 FA 119 000 FA 117 000 FA 152 000 FA 153 000 FA 154 000 FA 155 000 FA 156 000 FA 157 000 FA 158 000 FA 159 000 FA 160 000 FA 161 000 FA 162 000 FA 176 000 FA 177 000 FA 178 000 FA 181 000 FA 188 000 FA 196 000 FA 207 000 FA 209 000 FA 214 000 FA 213 000 FA 222 000 FA 224 000 FA 226 000 FA 228 000 FA 234 000 FA 243 000 FA 244 000 FA 248 000 FA 253 000 FA 261 000 FA 282 000 FA 283 000 FA 305 000 FA 306 000 FA 307 000 FA 309, conforme faturas, que se considera integramente reproduzido.
7.º
Com datas de vencimento, respetivamente: 04/06/2019 08/06/2019 08/06/2019 30/06/2019 30/06/2019 30/06/2019 30/06/2019 30/06/2019 30/06/2019 30/06/2019 30/06/2019 30/06/2019 30/06/2019 30/06/2019 01/07/2019 03/07/2019 04/07/2019 07/07/2019 10/07/2019 21/07/2019 28/07/2019 30/07/2019 01/08/2019 01/08/2019 08/08/2019 14/08/2019 20/08/2019 24/08/2019 29/08/2019 19/09/2019 19/09/2019 19/09/2019 30/09/2019 03/10/2019 30/10/2019 30/10/2019 22/11/2019 24/11/2019 27/11/2019 30/11/2019.
8.º
E nos valores, respetivamente, de: 2 726,50 euros; 350,00 euros; 160,00 euros; 655,0040,00 euros; 550,00 euros; 350,00euros; 560,00 euros; 530,00 euros;200,00 euros; euros; 200,00 euros; 160,00 euros; 315,00 euros; 230,00 euros;665,00 euros; 350,00; 475,00 euros; 2 115,00 euros; 200,00 euros; 200,00euros; 350,00 euros; 350,00 euros; euros; 750,00 euros; 135,00 euros; 305,00euros; 40,00 euros; 305,00 euros 655,00 230,00 euros; 120,00 euros; 305,00euros; 185,00 euros; 200,00 euros; 350,00 euros; 1euros; 160,00 euros; 810,00 euros ; 360,00 euros, no valor total de 18673,00 euros.
C) O Tribunal a quo devia ter considerado integralmente reproduzido os factos alegados na Sentença/Requerimento de injunção, alegados em sede do processo de injunção, que foi junto com a contestação (doc. 1, junto com a contestação), e que se requereu que se considera-se integralmente reproduzido os factos alegados na referida Sentença/requerimento de injunção, para todos os efeitos legais, e salvo melhor opinião, o Tribunal violou o número 4 do artigo 607.º do CPC
D) O Tribunal a quo devia ter proferida sentença considerando integralmente reproduzido os factos alegados em sede de sentença/requerimento de injunção, processo 1867/20.1YIPRT.
D) A sentença é omissa em relação à confissão da recorrida/Autora, que em sede de petição inicial alegou ser devedora da quantia de 5.341,75 euros, ou seja: na petição inicial, a recorrida/Autora alega que resulta da conta corrente que é devedora à recorrente/Ré do montante de 5.341,75 euros, conforme consta no artigo 5.º da pi: Da qual resulta - DA CONTA CORRENTE - que a Autora é devedora da quantia de 5.341,75.
E) Mais, a sentença, é omissa, em relação ao documento número 3, junto com a contestação, no qual a recorrida/Autora, alega, no artigo 26º da referida peça processsual/oposição à injunção, que é devedora da quantia de 14.965,50 euros, dizendo que: as únicas facturas em dívida, se for excluída a compensação, o valor em dívida é 14.965,50 euros: (26. As únicas facturas em dívida, se excluirmos a compensação de créditos infra referida, são no valor global de 14.965,50).
F) Mais, que efectuando a compensação o valor em dívida seria de 5.341,75 euros, O que quer dizer que a recorrida/Autora, em sede de oposição à injunção (ver doc. 3 junto com a contestação) alega que é devedora da quantia de 14.965,50 euros.
G) O Tribunal a quo violou o artigo 46º, 607º do 615 do CPC, e 356.º e seguinte do Código Civil, e salvo melhor opinião, devia ter dado como provado que a recorrida/Autora confessou que é devedora à recorrente/Ré, da quantia de 14.965,50 euros, e que com a compensação de créditos é devedora da quantia de 5.341,75.
Do Abuso de Direito
H) A ação declarativa de simples apreciação negativa é uma acção pela qual se procura “… obter unicamente a declaração da … inexistência de um direito ou de um facto” (artigo 4º, nº 2, al. a), do CPC) - destina-se, desde logo, a definir uma situação jurídica tornada incerta - o demandante pretende reagir contra uma situação de incerteza que o impede de auferir todas as vantagens normalmente proporcionadas pela relação jurídica material que lhe causa um dano patrimonial ou moral apreciável.
I) Sucede que não é isso que acontece ao longo da petição inicial, no qual a recorrida/ Autora, alega a existência do crédito a favor da Recorrente, concretamente que é devedora da quantia de 5.341,75 euros, ou seja: na petição inicial, a recorrida/Autora alega que resulta da conta corrente (após compensação de créditos) que é devedora à recorrente/Ré do montante de 5.341,75 euros, conforme consta no artigo 5.º da pi: Da qual resulta - DA CONTA CORRENTE - que a Autora é devedora da quantia de 5.341,75 euros.
J) Acresce a tudo isto que estamos perante um crédito, prestação de serviços prestados pela Recorrente à Recorrida, a favor da Recorrente, no qual compete à Recorrente prestar os serviços (serviços que foram reconhecidos pela recorrida/ Autora na petição inicial) facturar os valores, notificar à recorrida dos valores em dívida, para que esta pague os valores em dívida, e compete à recorrida provar que efectuou o pagamento, juntando aos autos os pagamentos.
K) A recorrida com a ação de simples apreciação, pretendeu a inversão do ónus, ou seja, que a Recorrente/Ré prove que recebeu o dinheiro da recorrida. E como se faz essa prova!?.
L) Salvo melhor opinião, estamos perante uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante.
M) A Sentença e deficiente, incompleta, errada e não convincente, de facto e de direito.
DA NULIDADE DE SENTENÇA - Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
N) Aqui chegado, salvo melhor opinião, estamos perante a nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, pelo facto de estamos perante um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la.
DA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
O) A Sentença, salvo melhor opinião, padece de falta de fundamentação, nos termos do nº 3 do art.º 613º/3.
Quanto à falta de convite ao aperfeiçoamento da contestação.
P) O Tribunal a quo refere que não compete ao Tribunal convidar a Ré a aperfeiçoar a sua contestação.
Q) Ora, salvo melhor opinião, esteve mal o Tribunal a quo nesta ponto, pelo facto que na actual configuração, a lei processual é pautada pelo objectivo de evitar, tanto quanto possível, que aspectos meramente técnicos ou formais possam impedir ou condicionar a apreciação do mérito da causa e a justa composição do litígio, e caso de deficiências formais ou substanciais do articulado de contestação, o Tribunal «a quo» deve convidar a parte a aperfeiçoar a petição inicial.
R) Quer isto dizer que devia o Tribunal a quo notificar a Requerente, para, querendo, aperfeiçoar a contestação, ao não o ter feito, o Tribunal a quo violou o artigo 590.º do CPC
Termos em que, sempre com o Douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao Recurso, revogando-se a Douta Decisão recorrida, e proferida decisão, com as legais consequências, como é de LEI e de JUSTIÇA.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Objeto do recurso:
Considerando o teor das conclusões do recurso apresentado, as questões a apreciar são as seguintes:
A- Aferir se o saneador sentença enferma das nulidades que lhe são imputadas;
B- Aferir da eventual falta de convite ao aperfeiçoamento da contestação;
C- Aferir de eventual erro de julgamento por falta de consideração de factos admitidos por confissão reduzida a escrito ou provados por documentos;
D- Aferir da eventual existência de abuso do direito por parte da Autora.
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III - Fundamentação de Facto:
Os factos a considerar são aqueles referidos em sede de Relatório, bem como o teor integral do saneador sentença proferido, aqui dado por reproduzido.
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IV - Fundamentação de Direito:
Das nulidades imputadas ao saneador sentença:      
A recorrente considera que o saneador sentença proferido pelo tribunal a quo padece de nulidade por a decisão ser contraria à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la, invocando ainda a sua falta de fundamentação (cf. conclusões N e O das alegações de recurso).
Cumpre apreciar.
Nos termos do disposto no art.º 615 nº 1 al c) do CPC é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Está especificamente em causa a alegada oposição entre a decisão e os seus fundamentos.
Conforme referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, obra citada, pág 793 e 794, anot. 11, “a nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos de direito e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o Juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe solução jurídica diferente”.
In casu, não se verifica contradição entre a fundamentação de direito que consta no saneador sentença, onde se considera que a Ré não alegou nenhum facto constitutivo do seu direito e que tal alegação lhe competia nos termos previstos no art.º 343 nº2 do CC, e a decisão, a procedência da ação de simples apreciação negativa, sendo esta última, para o tribunal a quo, a decorrência lógica da primeira (cf. último parágrafo da fundamentação de direito). Não se verifica, pois, a nulidade em causa.
Passemos a apreciar a invocada falta de fundamentação do saneador sentença.
Conforme decorre da al. b) do nº 1 do art.º 615º do CPC, é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Como tem sido comummente entendido pela jurisprudência, só a absoluta falta de fundamentação (e não a fundamentação alegadamente insuficiente) origina a nulidade da sentença. Tal absoluta falta de fundamentação pode-se reportar à especificação dos fundamentos de facto ou aos de direito.
Ora, analisado o saneador sentença verifica-se uma absoluta falta de especificação dos fundamentos de facto. Efetivamente, não existe qualquer elenco dos factos dados como provados.
Nos termos do art.º 607 nº 4 do CPC, na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
A prolação de saneador sentença não dispensa a enunciação de factos provados, mas tão só dos não provados.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do TRC de 16.09.2014 proferido no Proc.1655/10.3TBVNO.C1, cujo sumário se passa a reproduzir:
“I - Nas decisões que conheçam do mérito da causa, proferidas em sede de despacho saneador, uma vez que ainda não houve lugar a um juízo sobre a demonstração da veracidade dos factos alegados que se encontram controvertidos, por não ter havido oportunidade de produzir prova sobre eles, não é possível indicar-se os factos que não se provaram.
II - A possibilidade de proferir uma decisão de mérito nessa fase baseia-se na circunstância da matéria de facto relevante para a decisão da causa já se encontrar definida ao findar a fase de apresentação de articulados, pelo que, nesses casos, para que a fundamentação de facto esteja completa, é suficiente indicar-se os factos que integram essa matéria.
III - Na altura do despacho saneador os factos que podem ser considerados na decisão de mérito, além dos factos notórios e daqueles que o juiz tem conhecimento em virtude das suas funções, são aqueles que resultam de confissão judicial, de acordo expresso ou tácito das partes nos articulados, do funcionamento de presunção legal inilidível, ou de documento com força probatória bastante.
IV – A demonstração desses factos não resulta do exercício da livre apreciação da prova pelo julgador, mas sim do funcionamento de disposições legais que constituem um justificado resíduo do sistema da prova legal, pelo que nesta fase não tem lugar uma análise crítica das provas produzidas, nem a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, uma vez que a prova não resulta da formação de uma convicção, mas da aplicação de disposições legais, podendo apenas ser útil para a verificação da correcção da sua aplicação ao caso a indicação donde resultou a prova da matéria de facto que fundamentou a decisão de mérito.”
Ora, da leitura dos articulados resulta que a Ré, no art.º 1º da contestação, aceita serem verdadeiros os factos vertidos nos artigos 1 e 2 da p.i., o que desde logo implica que aqueles tenham que ser dados como provados. Acresce a confissão plasmada no art.º 8º relativamente ao valor de €3.341,25 que a requerente admite estar em divida.  E ainda a factualidade alegada relativamente à propositura do procedimento de injunção, apresentação de oposição à injunção e respetiva recusa, cujos documentos foram juntos ao processo pelas partes.
Como se disse, o saneador sentença não contém o elenco de factos provados, sendo que, conforme também se referiu, existem factos para integrar esse elenco.
Está, pois, inequivocamente verificada a nulidade da sentença com base no disposto na al. b) do nº1 do CPC, por falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto da decisão
Procede a invocação da nulidade, cabendo, no entanto, a este Tribunal da Relação apreciar o demais objeto da apelação (art.º 665 nº1 do CPC).
Da eventual falta de convite ao aperfeiçoamento da contestação:
Considera a recorrente que devia o Tribunal a quo notificar a Requerente, para, querendo, aperfeiçoar a contestação, e ao não o ter feito, violou o artigo 590.º do CPC.
Analisada a decisão recorrida, verifica-se que o tribunal a quo  entendeu que a Ré não alegou nenhum facto constitutivo do seu direito, alegando, apenas ser credora da Autora, não invocando, nos presentes autos, qualquer contrato celebrado entre as partes, preços ou valores acordados e não pagamento por parte da Autora, entendendo, assim o tribunal a quo estarem em falta factos essenciais e por isso não lhe competir convidar a Ré a apresentar a sua contestação.
Vejamos.
Na contestação a Ré alega no art.º 3º da contestação que “A Ré não é devedora da quantia peticionada no valor de 20.022,10 euros, mas sim credora dessa quantia, conforme sentença proferia junto do processo 1867/20.1YIPRT, vide doc. 1, que se considera integralmente reproduzido.”
Tal documento, que consta dos autos, é um requerimento de injunção com formula executória (e não uma sentença como por lapso manifesto se refere no art.º 3º da contestação).
Ou seja, a Ré invocou um crédito de €20.022,10 euros sobre a autora, o qual se encontra plasmado num documento que constitui título executivo e que junta, dando-o por reproduzido.
Característica do título executivo é a sua suficiência, pois existindo título considera-se que o direito existe nos termos constantes do título, sem prejuízo da alegação e prova de alguma desconformidade.
O título executivo incorpora o direito de crédito, é como que o seu invólucro.
Logo, a Ré invoca um crédito de determinado valor que está plasmado num título executivo, nos exatos termos que do mesmo constam, dando-o por reproduzido.
Entendemos assim que não existe uma completa omissão de alegação do crédito, existindo antes uma alegação conclusiva do mesmo (cf art.º 3º da contestação), que assenta na invocação de um título executivo onde se encontra plasmado o crédito, sem que, todavia, a R densifique a data, tipo, e valor dos serviços prestados que terão dado origem ao crédito no montante de €20.022,10 euros plasmado no título executivo, bem como as eventuais parcelas de tal crédito.
Como tal, entendemos que deveria ter sido proferido despacho de aperfeiçoamento relativamente à alegação conclusiva constante do art.º 3º da contestação, de forma a propiciar a respetiva densificação/concretização, conforme acima se referiu, ao abrigo do disposto no art.º 590º nº4 do CPC, o que se irá, a final, determinar.
Do eventual erro de julgamento por falta de consideração de factos admitidos por confissão reduzida a escrito ou provados por documentos:
Tal como referido supra, ocorre in casu falta de especificação dos fundamentos de facto da decisão recorrida geradora de nulidade dessa decisão, situação que prejudica o alegado erro de julgamento por falta de consideração de determinados factos dados como provados.
Assim, a apreciação desta questão mostra-se prejudicada.
Da eventual existência de abuso do direito por parte da Autora
Considera a recorrente que a ação declarativa de simples apreciação negativa é uma ação, a definir uma situação jurídica tornada incerta, o que não sucede no caso dos autos, onde a autora alega a existência de um crédito a favor da recorrente, concretamente que é devedora da quantia de 5.341,75 euros.
Acrescenta que perante um crédito de prestação de serviços prestados pela Recorrente à Recorrida, crédito a favor da Recorrente, no qual compete à Recorrente prestar os serviços (serviços que foram reconhecidos pela recorrida/Autora na petição inicial) faturar os valores, notificar à recorrida dos valores em dívida, para que esta pague os valores em dívida, e compete à recorrida provar que efetuou o pagamento, juntando aos autos os pagamentos. E conclui que a a recorrida com a ação de simples apreciação, pretendeu a inversão do ónus, ou seja, que a Recorrente/Ré prove que recebeu o dinheiro da recorrida.
A questão não foi suscitada perante o Tribunal a quo, mas apenas em sede de alegações de recurso, e como tal, constitui questão nova.
O recurso é um meio de impugnação de uma decisão judicial, pelo que apenas pode incidir sobre as questões apreciadas nessa decisão, e não sobre questões novas, sem prejuízo do conhecimento daquelas que sejam de conhecimento oficioso.
Escreve a propósito Abrantes Geraldes in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. Atualizada, Almedina, pág. 140, que: “Na verdade os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis.”
O abuso de direito integra questão de conhecimento oficioso, pelo que deve ser objeto de apreciação e decisão, mesmo quando não seja invocado (cf Ac do STJ de 11-12-2012 proferido no Proc. 116/07.2TBMCN.P1.S1). E sendo invocado apenas em 2ª instância, deve ser apreciado mesmo que a decisão recorrida não tenha analisado tal questão.
Analisemos.
Dispõe o art.º 334º do CC que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Para que ocorra abuso do direito é, pois, necessário que o exercício do direito para além dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico seja manifesto. Ou seja, terá que se evidenciar, de forma clara e patente, que o titular do direito o exerce de forma ostensivamente ofensiva dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito.
Não nos parece ser o caso.
O recurso pela Autora à ação declarativa de condenação para declaração de inexistência de qualquer crédito para com a R, quando admite dever determinado valor à R  não constitui, em nosso entendimento, qualquer forma de abuso do direito, designadamente do direito de ação, tratando-se antes de questão referente ao mérito da causa (existência ou inexistência, total ou parcial,  do crédito que a Ré se arroga). Efetivamente, decorre da p.i. que a Ré se arroga um direito de crédito sobre a autora no montante de €18.673,00, admitindo a autora apenas uma divida de €3.341,25. Há, deste modo uma situação de incerteza quanto à existência do crédito no montante invocado pela Ré que justificará o recurso à ação de simples apreciação negativa. A admissão de uma divida de €3.341,25, repete-se, apenas releva em sede de conhecimento do mérito da ação.
Defende ainda a recorrente, para justificar o abuso de direito que imputa à recorrida, que, com a ação de simples apreciação, pretendeu a recorrida inversão do ónus de prova do pagamento, ou seja, pretendendo que a Recorrente/Ré prove que recebeu o dinheiro da recorrida.
Também aqui não assiste razão à recorrente.
Dispõe o art.º 342º do CC que:
“1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.”
O art.º 343 do CC, com a epigrafe “Ónus da prova em casos especiais”, prevê no seu nº 1 que: “Nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga.”
Da conjugação destes artigos resulta que na ação de simples apreciação negativa que vise a declaração de inexistência de um direito que o réu considera deter, cabe ao réu a prova dos factos constitutivos do direito a que se arroga relativamente ao autor (art.º 343 nº1 do C.C).
Por sua vez, caberá ao autor a prova dos factos impeditivos ou extintivos do direito invocado pelo réu, de acordo com a regra geral contida no art.º 342 nº 2 do CC.
Daí que em sede de direito adjetivo, o art.º 584 nº 2 do CPC estabeleça que: “Nas ações de simples apreciação negativa, a réplica serve para o autor impugnar os factos constitutivos que o réu tenha alegado e para alegar os factos impeditivos ou extintivos do direito invocado pelo réu.”
Assim sendo, caberá ao réu, na contestação, alegar os factos constitutivos do direito em causa na ação, e caberá, ao autor, na réplica, alegar os factos impeditivos ou extintivos desse direito. Consequentemente, caberá ao réu provar os factos constitutivos (do direito) que alegou e ao autor provar os factos impeditivos/extintivos (do direito) que alegou.
O pagamento é um facto extintivo de uma obrigação pecuniária.
Assim, em sede de ação de simples apreciação negativa para declaração de inexistência de um crédito, incumbe ao autor a alegação e prova do pagamento enquanto facto extintivo do crédito cujos factos constitutivos tenham sido invocados na contestação.
Não colhe, pois, a tese da recorrente.
E, como tal, não se verificam os pressupostos do invocado abuso de direito.
Não obstante, conforme resulta do acima exposto, o recurso procede, cabendo revogar a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que, ao  abrigo do art.º 590 nº4 do CPC, convide a Ré a densificar a alegação conclusiva contida no art.º 3º da contestação,  concretizando a data, tipo, e valor dos serviços prestados que terão dado origem ao crédito no montante de €20.022,10 euros plasmado no título executivo (requerimento de injunção com formula executória) e as eventuais parcelas de tal crédito.
 As custas da apelação são a cargo da Recorrente/Ré, que dela retirou proveito, sem dedução de qualquer oposição (contra-alegações) pela autora Réus (art.º 527.º, n.º 1 do CPC).
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V- DECISÃO:
Pelo exposto acordam os Juízes desta 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente a apelação, e em consequência, revogam o saneador sentença recorrido, e convidam  a Ré a densificar a alegação conclusiva contida no art.º 3º da contestação,  concretizando a data, tipo, e valor dos serviços prestados que terão dado origem ao crédito no montante de 20.022,10 euros plasmado no título executivo (requerimento de injunção com formula executória) e as eventuais parcelas de tal crédito.
Custas da apelação pela Ré/recorrente – art.º 527 nº 1 do CPC.
Notifique.

Lisboa, 26.09.2024                           
Carla Matos
Teresa Sandiães
Cristina Lourenço