Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
221/22.5T9RGR.L1-9
Relator: PAULA CRISTINA BIZARRO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CRIME DE PERSEGUIÇÃO
ANOMALIA PSÍQUICA
QUESTÕES NOVAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I. O recurso da matéria de facto não se destina à realização de um segundo julgamento no tribunal de recurso, mas tão só à correcção de eventuais erros pontuais e circunscritos da matéria de facto fixada em primeira instância, quando existam provas que imponham decisão diferente.
II. As provas indicadas pelo recorrente quanto aos pontos da matéria de facto impugnados terão necessariamente de impor decisão diferente da proferida, não bastando que sugiram ou permitam diversa convicção.
III. Em caso de divergência ou oposição entre depoimentos ou declarações, a decisão do tribunal de atribuir credibilidade a uns em detrimento de outros, de acordo com a sua livre convicção e com base na imediação e oralidade, só merecerá ser censurada se se mostrar oposta às regras da experiência ou da lógica.
IV. Constituem elementos típicos objectivos do tipo de crime de perseguição previsto no art. 154º-A, n.º 1, do Código Penal:
- a acção consubstanciadora de assédio ou perseguição, praticada pelo agente ou por intermédio de terceiro;
- que essa acção seja reiterada;
- que essa acção seja adequada a causar medo ou inquietação no visado ou de o prejudicar a sua liberdade de determinação.
V. A reiteração da conduta exigida ao preenchimento do tipo, pressupõe uma prática mais ou menos frequente, repetida mais do que uma vez. O que seja a reiteração necessária ao preenchimento do tipo dependerá da avaliação das circunstâncias do caso, da natureza e do contexto em que as acções são levadas a cabo. A reiteração a que alude o tipo legal em causa não exige uma conduta repetida diariamente. A frequência da repetição da conduta conduzirá ao preenchimento do tipo legal de perseguição quando atinja um nível tal que se deva reputar como idónea e adequada a causar na vítima o sentimento de inquietude ou de medo, ou a prejudicar a sua liberdade de movimentos.
VI. Os comportamentos que o recorrente adoptou são na sua essência e de facto aparentemente corriqueiros. Porém, é precisamente a repetição dos comportamentos, a imposição persistente da sua presença contra a vontade da ofendida que os tornam, não meramente corriqueiros, mas sim comportamentos que induzem, pela sua frequência e persistência, sofrimento na vítima.
VII. A existência de anomalia psíquica impeditiva de, no momento da prática do facto ilícito, o agente avaliar a sua ilicitude e de se determinar em função dessa mesma avaliação, constitui matéria de facto. Ou seja, para que seja possível aferir da existência de uma situação de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída, importa que seja apurado em primeira instância que o agente padece de uma anomalia psíquica e que essa anomalia o impediu de ajuizar a ilicitude do facto e de conduzir a sua conduta de acordo com essa prévia avaliação.
VIII. Encontra-se vedado ao tribunal de recurso conhecer de questões novas não apreciadas na decisão recorrida, sendo certo que os recursos se destinam exclusivamente ao reexame das questões já decididas pelo tribunal a quo. O tribunal de recurso conhece de questões já conhecidas pelo tribunal recorrido e não de questões que antes não tenham sido submetidas à sua apreciação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes da 9ª secção criminal deste Tribunal da Relação

I. RELATÓRIO
Inconformado com a sentença datada de 12-02-2024, depositada nessa mesma data, nestes autos de processo comum com intervenção de tribunal singular, com o n.º 221/22.5T9RGR, veio o arguido
AA, filho de BB e de CC, natural da freguesia da ..., concelho do ..., nascido a .../.../1966, casado, ..., residente na ...,
interpor recurso de tal decisão, na qual foi condenado nos seguintes termos (transcrição):
Condeno o arguido AA, da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de Perseguição, p. e p. pelos arts. 13.°, 14.° n.º 1, 26.° 1ª parte, 154.°-A n.° 1, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros).
(fim de transcrição)
*
As razões da sua discordância encontram-se expressas nas conclusões da motivação do recurso, apresentadas na sequência de despacho de convite ao seu aperfeiçoamento, que em seguida se transcrevem:
1- Salvo o devido respeito, que é muito, pelo Tribunal "a quo", errou notoriamente na apreciação da prova e não interpretou como devia as normas juridicas constantes dos arts. 14°, 26° e 154°, al. a), n° 1, todos do C.P..
2- Quanto à incorreta interpretação dos fatos considerados como provados e atendendo à prova produzida em sede da audiência de julgamento, imponha-se uma decisão diversa da proferida. Senão vejamos,
3- Os fatos constantes da acusação ocorreram na Vila do ..., ... concelho ... ilha de ..., sendo um meio pequeno onde toda a gente se conhece e se cruza, realidade ignorada pelo Tribunal "a quo".
4- Esta realidade adensasse e desperta mais curiosidade quando existem pessoas de fora a residirem temporariamente na Vila, como o caso dos professores, que é a situação da ofendida, a que acresce mais ainda quando se tornam vizinhos, dai a origem do ditado popular "mais vale um mau ano do que um mau vizinho".
5- Dada a motivação da decisão de fato no parágrafo 5º, quando alude ao conhecimento do arguido relativo às "muitas informações que detinha sobre a mesma"; o Tribunal "a quo" não teve em conta o supra alegado e que resulta do conhecimento e do senso comum.
6- Da prova produzida em sede de julgamento, salvo melhor opinião, não resulta os fatos dados como provados em 4º, veja-se o depoimento do arguido, que foi valorado pelo Tribunal "a quo" e da ofendida DD ([00:20:29] a [00:23:21]), que refere apenas as datas constantes da acusação;
7- Do depoimento do arguido ([00:00:07] a [00:18:44]) resulta o modo corriqueiro, os termos e o porquê da conduta do arguido, que deveria ter tido outro entendimento por parte do Tribunal "a quo", nomeadamente, ter considerado tal conduta corriqueira doseada com a personalidade e o estado psiquico do mesmo ("[00:18:20]) e que o Tribunal "a quo" não valorou como devia.
8- Estando o arguido num estado depressivo, a ser assistido por um psiquiatra e a ter necessidade de tomar medicamentos, conforme resulta das suas declarações ([00:06:20] a [00:06:45]), era elementar perceber o estado de imputabilidade do mesmo, tendo o arguido uma incapacidade de 68%;
9- Das declarações do recorrente supra referidas, resulta e são demonstrativas do "conflito interior" e do estado psiquico do arguido e que o mesmo não figurava a sua ação como a prática de um ilicito criminal, e que o Tribunal "a quo" não valorou como devia e que se impõe.
10- Tendo o arguido por diversas vezes se dirigido à ofendida, quer batendo à porta da sua residência, sem que a mesma abrisse, quer se dirigindo por duas vezes junto da mesma quando esta se encontrava no interior da sua viatura, o mesmo sempre respeitou a vontade da ofendida, abandonando o local, sem forçar, sem ser insistente e obstinado, sem a obrigar a manter um diálogo e / ou a estar com ele, e que o Tribunal "a quo" não valorou como devia.
11- Do depoimento da ofendida ("00:03:42] a [00:04:10] resulta de modo inequívoco que o arguido não atuou de forma insistente, persecutória para com a ofendida, pois quando a mesma referia que não queria falar com ele, o mesmo anuia, respeitava e ia embora.
12- Por outro lado, a ofendida reconhece que quando passava pelo arguido, desejava um bom dia ("[00:08:22] [00:09:56]).
13- Conforme se demonstra pelas declarações da ofendida, esta cumprimentava o arguido, que com este comportamento despertava no arguido a possibilidade de uma amizade, situação esta que não foi valorada pelo Tribunal "a quo" e que devia.
14- O Tribunal "a quo" não valorou como devia, a idade do arguido, o meio pequeno onde os fatos se passaram, a situação de vizinhança, as abordagens não padronizadas como assédio permanente, de não vigilância, não intimidatórias, não insistentes, pois o mesmo quando era confrontado pela ofendida respeitava de imediato a vontade desta e abandonava o local.
15- Salvo melhor entendimento, a situação vertida nos autos deveria ter sido considerada como corriqueira, como uma tentativa que faz lembrar os antigos tempos, em que para namorar era preciso aparecer nos cantos das ruas e esperar até ao abrir das portas e das janelas, de modo a tentar estabelecer contatos com uma jovem que pretendia namorar.
16- Errou o Tribunal "a quo" na interpretação da Lei, nomeadamente em relação requisitos do tipo legal do crime de perseguição.
17- O arguido jamais atuou por forma a perseguir ou assediar a ofendida. Teve sim uma conduta de tentar apresentar-se por um lado e por outro de explicar-se de não ter sido ele a escrever no carro da ofendida.
18- Caso não fosse esse o comportamento a ofendida jamais passaria por este e o cumprimentava com um bom dia, conforme resulta das suas declarações, situação esta não devidamente valorada pelo Tribunal "a quo".
19- Da exigência da prática reiterada, conforme resulta das declarações da ofendida e do arguido, os fatos não se repetiam de modo reiterado, diário, conforme dado como provado pelo Tribunal "a quo" mas sim somente nas datas constantes da acusação.
20- O arguido nunca teve a intenção de importunar, de assediar e de ser intimidatório para com a ofendida.
21- Do dolo, de tudo o que foi explanado supra não vislumbramos que o arguido tenha agido com o dolo necessário à prática do crime de perseguição, pois o mesmo jamais pretendeu ou configurou sequer a hipótese de perseguir e assediar a ofendida.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exa. doutamente suprirão deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência ser revogada a pena aplicada ao arguido por outra, que absolva o mesmo, assim decidindo, V. Exas. farão a V. Acostumada, Serena e Objectiva
Justiça!
(fim de transcrição)
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O Ministério Público não respondeu ao recurso interposto pelo arguido.
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Neste Tribunal da Relação, pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer nos seguintes termos (transcrição parcial):
(…)
A. O âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem pode e deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410.°, n.° 2, do Código Processo Penal.
B. Quanto a estes referidos vícios - a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e/ou o erro notório na apreciação da prova -, tal como vem sendo jurisprudência uniforme dos tribunais superiores, apenas são atendíveis se resultarem ostensivamente do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum, e sejam percetíveis por uma pessoa média, o que significa, além do mais, inadmissibilidade de apelo a elementos exteriores à mesma decisão.
Ora, do texto da decisão verifico que não se evidenciam tais vícios, que a mesma se mostra suficiente e devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, e sem contradição insanável. Ademais, interpretou corretamente a prova produzida em audiência e fundamentou de forma adequada os concretos motivos de apreciação da mesma.
C. No que aos fundamentos do recurso respeita, visa o recorrente impugnar a decisão proferida sobre a matéria de factos.
Para tanto alude às circunstâncias do local onde os factos ocorreram - como, por exemplo, … concelho … da ilha de ..., sendo um meio pequeno onde toda a gente se conhece e se cruza - e ao depoimento da ofendida e às declarações do arguido.
Cabe assinalar que o tribunal a quo esclarece, de forma cabal, a valoração que fez, quer das declarações do arguido, quer do depoimento da ofendida.
Na motivação da decisão de facto, o tribunal a quo pormenoriza o modo de valoração das declarações do arguido:
O arguido prestou declarações anuindo na realização das abordagens à ofendida, negando apenas o controlo das rotinas daquela. Referiu e deu a entender que pretendeu, inicialmente convidar a ofendida a sair consigo e após, depois de ter conhecimento que a mesma o “acusava" de ter realizado escritos no seu automóvel, a procurava com o intuito de comprovar a sua inocência de tal circunstância. Sucede que, o próprio arguido, ao enunciar todas as abordagens que fez à arguida, enunciou o conhecimento de muitas informações que detinha sobre a mesma (nomeadamente, profissão, onde trabalhava, com quem residia e, até, a nova morada da residência para a qual a ofendida se mudou e com quem ali residia, e onde voltou a procurar a mesma), demonstrando assim, de modo cristalino, alguma “obsessão" pela ofendida e a insistência e persistência com que tentava encetar contactos com a mesma, pese embora, confessadamente, aquela lhe recusasse de modo d aro, qualquer avanço ou contacto consigo.
Outrossim quanto ao depoimento da ofendida:
Por seu turno, de modo absolutamente pormenorizado, contextualizado e imbuído por assinalável elemento emocional, o testemunho prestado pela ofendida, foi este considerado inequivocamente credível e sincero, sendo assim fortemente valorado pelo Tribunal.
Mais, o tribunal a quo elabora sobre a concordância do depoimento desta em conjugação com a demais prova produzida em audiência:
Sem prejuízo das considerações expostas quanto à credibilidade do testemunho da ofendida, o mesmo foi, como se viu, fortemente amparado pelas informações que o próprio arguido prestou e pelos demais depoimentos colhidos em audiência.
O recorrente nada adianta que possa, fundadamente, abalar a convicção formada pelo tribunal e a qual se mostra cabalmente exposta na referida motivação.
Pelo que deve, nesta parte, improceder o recurso do arguido.
D. Suscita ainda o recorrente que o tribunal a quo errou na interpretação da lei, nomeadamente em relação aos requisitos do tipo legal do crime de perseguição.
Não vislumbramos na sentença tal erro.
Como se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 09 de julho de 2019:
- O crime de perseguição ou “stalking” pode definir-se como uma forma de violência relacional e pode caracterizar-se por uma série de comportamentos padronizados que consistem num assédio permanente, nomeadamente através de tentativas de comunicação com a vítima, vigilância, perseguição, etc.
- Embora estes comportamentos possam ser aparentemente corriqueiros se não forem percebidos no seu contexto do “stalking”, as condutas que integram o seu tipo objectivo podem ser bastante intimidatórios pela persistência e intensidade com que são praticadas, causando um enorme desconforto na vítima e atentando claramente à reserva da vida privada.
- Este novo tipo de crime, agora previsto no art. 154º-A, nº.1 C.P. tem como seus elementos constitutivos objectivos, a acção do agente, consubstanciada na perseguição ou assédio da vítima, por qualquer meio, directo ou indirecto; a adequação da acção a provocar naquela medo ou inquietação ou a prejudicar a sua Uberdade de determinação; e a reiteração da acção,
- Comete o ilícito do art.º 154º-A, nº 1 do Código Penal, com dolo directo o arguido que, de forma reiterada, contacta telefonicamente a ofendida, a horas diversas, perturbando quer o seu desempenho profissional, quer o seu descanso.
O recorrente tenta desvalorizar a conduta do arguido, tentando enquadrá-la num contexto de atos de socialização, mas sem qualquer razão.
A imposição da presença do arguido e as suas tentativas de contacto recorrentes, tal como resulta dos factos provados, são demonstrativos do acerto da decisão do tribunal.
Pelo que, também nesta parte, deve o recurso improceder.
Por conseguinte, sou de parecer que ao recurso interposto pelo arguido AA deve ser negado provimento, julgando-o improcedente e confirmando-se a douta decisão impugnada.
(fim de transcrição)
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que: a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo que apenas as questões aí resumidas deverão ser apreciadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios previstos no n.º 2 do art. 410º do mesmo Código.
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir são as seguintes:
- se se verifica o erro notório na apreciação da prova/erro de julgamento invocado;
- se ocorreu erro de direito em relação requisitos do tipo legal de crime de perseguição.
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2. DA SENTENÇA RECORRIDA
2.1. Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos (transcrição):
Da prova produzida e com interesse para a boa decisão da causa resultou provado que:
1- A ofendida DD e o arguido residem ambos na Vila do ....
2- A ofendida no período que decorreu entre novembro de 2021 e Janeiro de 2022, residiu na ....
3- Nesse período, o arguido residiu na ....
4- Desde, pelo menos, o dia 5 de novembro de 2021, o arguido, diariamente, colocou-se à porta de sua casa, controlando as rotinas da ofendida.
5- Igualmente desde essa data, o arguido dirigiu-se à ofendida, a qual abordou, pedindo-lhe para falar e passear com ele.
6- Com efeito, no dia 5 de novembro de 2021, de manhã, quando a encontrou na ..., colocou-se à frente do veículo que aquela conduzia, aproximou-se do vidro e após interpelação da ofendida do que estava a fazer, disse-lhe: “Eu queria falar-lhe de mim”.
7- Ainda nesse dia, depois do almoço, o arguido bateu à porta da residência da ofendida, sita naquela data na ..., e disse-lhe: “Quero falar-lhe sobre mim e quero que venha passear comigo e pode ser a pé”.
8- No dia 7 de novembro de 2021, após o almoço, o arguido foi bater novamente à porta da ofendida, que não abriu por medo do arguido.
9- No dia 12 de novembro de 2021, o arguido colocou-se à frente do veículo conduzido pela ofendida, com o objetivo de a importunar bem como de conseguir a sua atenção.
10- Nos dias 6, 8, 13 e 15 de maio de 2022, o arguido abordou a ofendida, junto da sua nova residência sita na ..., numa tentativa de a interpelar e falar com ela.
11- Com estes comportamentos frequentes do arguido, a ofendida fica amedrontada e com medo de andar na rua.
12- Como consequência direta e necessária das condutas do arguido, a ofendida passou a sentir-se constrangida na sua liberdade de determinação, na vida privada, na sua paz e sossego.
13- O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de constranger a ofendida na sua liberdade de determinação, na vida privada, na sua paz e sossego.
14- O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
15- O arguido encontra-se reformado.
16- Aufere, a título de pensão de invalidez, o montante mensal de 456,00 euros.
17- Reside sozinho.
18- Tem o 6.º ano de escolaridade.
19- Reside em habitação própria.
20- Está viúvo há cerca de 03 anos.
21- Sofre de epilepsia e de depressão.
22- Não tem antecedentes criminais registados.
(fim de transcrição)
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2.2. Na sentença recorrida, a decisão sobre a matéria de facto foi motivada nos seguintes termos (transcrição):
A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, salvo quando a lei dispuser diferentemente.
A livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova: a prova livre tem pressupostos valorativos de obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Quando está em causa a questão da apreciação da prova não pode deixar de se dar a devida relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador.
Na verdade, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns dos presentes, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.
O arguido prestou declarações anuindo na realização das abordagens à ofendida, negando apenas o controlo das rotinas daquela. Referiu e deu a entender que pretendeu, inicialmente convidar a ofendida a sair consigo e após, depois de ter conhecimento que a mesma o “acusava” de ter realizado escritos no seu automóvel, a procurava com o intuito de comprovar a sua inocência de tal circunstância. Sucede que, o próprio arguido, ao enunciar todas as abordagens que fez à arguida, enunciou o conhecimento de muitas informações que detinha sobre a mesma (nomeadamente, profissão, onde trabalhava, com quem residia e, até, a nova morada da residência para a qual a ofendida se mudou e com quem ali residia, e onde voltou a procurar a mesma), demonstrando assim, de modo cristalino, alguma “obsessão” pela ofendida e a insistência e persistência com que tentava encetar contactos com a mesma, pese embora, confessadamente, aquela lhe recusasse de modo claro, qualquer avanço ou contacto consigo.
Por seu turno, de modo absolutamente pormenorizado, contextualizado e imbuído por assinalável elemento emocional, o testemunho prestado pela ofendida, foi este considerado inequivocamente credível e sincero, sendo assim fortemente valorado pelo Tribunal.
Sem prejuízo das considerações expostas quanto à credibilidade do testemunho da ofendida, o mesmo foi, como se viu, fortemente amparado pelas informações que o próprio arguido prestou e pelos demais depoimentos colhidos em audiência.
Efetivamente, EE e FF, nada tendo presenciado, sempre observaram a ofendida abalada e perturbada quando esta lhes relatou o que a acusação relata.
Por seu turno, com maior relevância, o agente da PSP GG, presenciou uma situação, já posterior ao relatado na acusação, em que a ofendida pediu auxilio à PSP, porquanto pretendia sair da viatura, aparcada junto à sua residência, enquanto o arguido encontrava-se nas proximidades da viatura, acabando por abandonar o local, após a chegada do OPC.
Foi, pois, pela conjugação dos elementos expostos que se convenceu o Tribunal, de modo inequívoco, pela versão da ofendida, e assim se deram como provados os factos elencados em 1 a 10.
Os factos provados a 11 e 13, surgem, não apenas das declarações da ofendia e do arguido, mas ainda, das básicas regras da experiência comum e são extraídos da matéria objetiva já dada como provada.
A factualidade assente em 14 a 21, resultou das informações prestadas pelo arguido, aqui congruentes com a realidade social e económica do país e região.
Teve ainda o Tribunal em consideração o CRC referente ao mesmo, para comprovar o ponto 22.
(fim de transcrição)
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2.3. Na sentença recorrida, o enquadramento jurídico-penal dos factos foi motivado nos seguintes termos (transcrição):
O arguido encontra-se acusado da prática de:
- um crime de Perseguição, p. e p. pelos arts. 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte, 154.º-A n.º 1 todos do CP.
Em conformidade com o disposto no art.º 154.º-A n.º1 do C. Penal, comete este crime: «Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação…»
Assim, o crime de perseguição é um crime de perigo concreto, não sendo necessária a efetiva lesão do bem jurídico, mas a adequação da conduta a provocar aquela lesão (sendo idónea a prejudicar a liberdade de determinação da vítima ou a provocar-lhe medo).
Acresce que é um crime de mera atividade e de execução livre, pois a conduta punida pode ser levada a cabo por qualquer meio, direta ou indiretamente, embora seja necessária a reiteração da conduta, uma vez que a respetiva ratio reside na proteção da liberdade de autodeterminação individual, sem prejuízo de reflexamente tutelar outros bens jurídicos como a salvaguarda da privacidade/intimidade.
Muitas dessas condutas podem não ferir qualquer bem jurídico. No entanto, pela persistência com que são praticadas, podem tornar-se intimidatórias e perturbadoras, causando desconforto na vítima e atentando contra a reserva da vida privada e liberdade de determinação pessoal desta.
Na exposição de motivos do projeto de lei nº 647/XII que deu origem ao corpo do art.º 154º A do Código Penal, definiu-se a perseguição, ou “stalking”, como “um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo”.
Referiu a Relação de Lisboa (Ac. 09.07.2019) que “A perseguição consiste na vitimação de alguém que é alvo, por parte de outrem, o assediante, de um interesse e atenção continuados e indesejados, como vigilância, ou perseguição, os quais são suscetíveis de gerar ansiedade e medo na pessoa-alvo.”
“O stalking pode definir-se como uma forma de violência relacional. Segundo a maioria da legislação norte-americana, o crime consiste num padrão intencional de perseguição repetida ou indesejada que uma “pessoa razoável” consideraria ameaçadora ou indutora de medo. Já a legislação australiana define o stalking como “perseguir uma pessoa, permanecer no exterior da sua residência ou em locais por ela frequentados, entrar ou interferir na sua propriedade, oferecer-lhe material ofensivo, mantê-la sob vigilância, ou agir de um modo que se poderia esperar com razoabilidade que fosse suscetível de criar stress ou medo na vítima.” Cfr. Nuno Lima da Luz, a fls.6, da sua tese de dissertação de mestrado (disponível in http://repositorio.ucp.pt)
Pode-se caracterizar também por uma série de comportamentos padronizados que consistem num assédio permanente, nomeadamente através de tentativas de comunicação com a vítima, vigilância, perseguição, etc.
Há que ponderar e atentar que os comportamentos encetados possam ser aparentemente corriqueiros se não forem percebidos no seu contexto do “stalking”, as condutas que integram o seu tipo objetivo podem ser bastante intimidatórias pela persistência e intensidade com que são praticadas, causando um enorme desconforto na vítima e atentando claramente à reserva da vida privada.
De acordo com a jurisprudência uniforme, verbi gratia o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de março de 2015 (in www.dgsi.pt), a propósito de “stalking”, ainda que antes da criminalização autónoma da conduta, que o mesmo caracteriza-se como “uma perseguição prolongada no tempo, insistente e obsessiva, causadora de angústia e temor, com frequência motivada pela recusa em aceitar o fim de um relacionamento”.
Assim, este novo tipo de crime, agora previsto no art. 154º-A nº 1 já supratranscrito, tem como seus elementos constitutivos objetivos, a ação do agente, consubstanciada na perseguição ou assédio da vítima, por qualquer meio, direto ou indireto; a adequação da ação a provocar naquela medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação; e a reiteração da ação. E elementos subjetivos, o dolo, em qualquer das modalidades referidas no art. 14º do C.P., constituído pelo conhecimento dos elementos objetivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los.
Portanto, “comete este tipo de crime o arguido que, não tendo assumido o termo do relacionamento amoroso com a ofendida, passa a persegui-la no seu automóvel, toca à campainha da residência daquela a qualquer hora do dia ou da noite, envia-lhe mensagens através do telemóvel e coloca no veículo da ofendida um localizador GPS para controlar os seus movimentos e segui-la para os mais diversos locais, atuando de forma a perturbar o equilíbrio emocional da ofendida e amedrontá-la” (neste sentido Ac. Relação do Porto, de 22.09.2021, igualmente disponível em www.dgsi.pt).
Ora, analisada a factualidade provada, observamos que foi o que sucedeu no caso presente.
Observamos um intenso rácio de reiteração e uma ação que arguido prolongou, assim insistindo na sua ação num curto lapso de tempo entre cada episódio, nitidamente obsessiva por não aceitar um simples não por parte da arguida. Não subsistem dúvidas quanto à intensidade da ação intentada e à adequação em provocar medo na ofendida.
Concluindo, deverá o arguido ser condenado pela prática deste crime.
(fim de transcrição)
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III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
3.1. Da rejeição parcial do recurso interposto quanto ao erro de julgamento invocado
Dispõe o art. 412º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Penal que:
Motivação do recurso e conclusões
1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (…)
É sabido que a impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição do vício previsto no art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, norma que prevê o reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo Código.
No primeiro caso, a divergência consubstancia a invocação de um vício da decisão, sendo este recurso considerado como sendo ainda recurso da matéria de direito; no segundo caso, o recorrente vale-se de provas produzidas em audiência, que deverá especificar.
Assim, nos termos do n.º 3 do citado art. 412º, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo o recorrente terá de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da proferida na decisão recorrida e/ou as que deviam ser renovadas.
Por outro lado, por força do disposto no n.º 4 do mesmo dispositivo legal, essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Na hipótese de ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08/03/2012 (Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 3/2012 publicado no D.R. n.º 77/2012, Série I, de 2012-04-18), visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas.
O incumprimento das formalidades exigidas no citado art. 412º/ 3 e 4, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto pela via ampla.
Ora, analisada a motivação e as conclusões apresentadas pelo recorrente, verifica-se que o mesmo alega na motivação que:
- Os fatos constantes da acusação ocorreram na Vila do ..., ... concelho …
 de ..., sendo um meio pequeno onde toda a gente se conhece e se cruza.
- Esta realidade adensasse e desperta mais curiosidade quando existem pessoas de fora a residirem temporariamente na Vila, como o caso dos senhores professores e médicos. Acresce mais ainda quando se tornam vizinhos, dai a origem do ditado popular "mais vale um mau ano do que um mau vizinho".
- Esta situação não foi tida em conta pelo Tribunal "a quo" (...)
- Não resulta da prova produzida em sede de julgamento os fatos dados como provados em 4º.
Depois de transcrever um excerto do depoimento da ofendida e as declarações prestadas pelo arguido, estas na íntegra, alega o recorrente em síntese que:
- Do depoimento do arguido supra resulta o modo corriqueiro, os termos e o porquê da conduta do arguido, que deveria ter sido tal conduta corriqueira doseada com a personalidade e o estado psiquico do mesmo
- Estando o arguido num estado depressivo, a ser assistido por um psiquiatra e a ter necessidade de tomar medicamentos, era basilar perceber o estado de imputabilidade do mesmo, tendo o arguido uma incapacidade de 68%;
- Essas declarações são demonstrativas do "conflito interior" e do estado psiquico do arguido e que o mesmo não figurava a sua ação como a prática de um ilicito criminal.
- Apesar do arguido por diversas vezes se ter dirigido à ofendida, quer batendo à porta da sua residência, sem que a mesma abrisse, quer se dirigindo por duas vezes junto da mesma quando esta se encontrava no interior da sua viatura, o mesmo sempre respeitou a vontade da ofendida, abandonando o local, sem forçar, sem ser insistente e obstinado, sem a obrigar a manter um diálogo e / ou a estar com ele.
- O arguido jamais atuou de forma insistente, persecutória para com a ofendida, pois quando a mesma referia que não queria falar com ele, o mesmo anuia e ia embora.
- A ofendida reconhece que quando passava pelo arguido, desejava um bom dia
- Conforme se demonstra pelas declarações da ofendida, esta cumprimentava o arguido. Com este comportamento a ofendida despertava no arguido a possibilidade de uma amizade, situação esta que não foi valorada pelo Tribunal "a quo" e que devia.
- O Tribunal "a quo" não valorou como devia, a idade do arguido, o meio pequeno onde os fatos se passaram, a situação de vizinhança, as abordagens não padronizadas como assédio permanente, de não vigilância, não intimidatórias, não insistentes, pois o mesmo quando era confrontado pela ofendida respeitava de imediato a vontade desta e abandonava o local.
- A situação vertida nos autos deveria ter sido considerada como corriqueira, como uma tentativa que faz lembrar os antigos tempos, em que para namorar era preciso aparecer nos cantos das ruas e esperar até ao abrir das portas e das janelas, de modo a tentar estabelecer contatos com uma jovem que pretendia namorar
- O arguido jamais atuou por forma a perseguir ou assediar a ofendida. Teve sim uma conduta de tentar apresentar-se por um lado e por outro de explicar- se de não ter sido ele a escrever no carro da ofendida.
- O arguido quando chegava à fala com a ofendida e quando esta dizia para ele ir embora o mesmo respeitava-a e ia embora, numa atitude manifestamente de não importunar, não assediar a ofendida.
- O arguido quando batia à porta da moradia da moradia da ofendida e esta não abria, esta situação apenas acontecia uma vez, o que é demonstrativo novamente de uma intenção de não importunar, de não assediar, de não ser intimidatório para com a ofendida.
- De tudo o que foi explanado supra não vislumbramos que o arguido tenha agido com o dolo necessário à prática do crime de perseguição, pois o mesmo jamais pretendeu ou configurou sequer a hipótese de perseguir e assediar a ofendida.
Contudo, percorrida a motivação de recurso, o recorrente em parte alguma impugna de forma especificada um qualquer ponto da matéria de facto julgada provada, com excepção do seu ponto 4.
Da mesma forma e como consequência, em momento algum da sua motivação explicita o recorrente qual o sentido que deveria a decisão de facto assumir, por contraponto àquela julgada provada, por forma a esclarecer o erro de julgamento invocado.
O recorrente alude a uma incorreta interpretação dos fatos considerados como provados, sem que esclareça qual a interpretação que deveria ter sido conferida.
Ora, como se explicita no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-10-2021, proferido no Processo n.º 619/19.6PDAMD.L1-3 (Relator: Cristina Almeida e Sousa): o recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual alternativa à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e quais os motivos exactos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado. Assim, quanto à especificação dos concretos pontos de facto, a mesma «só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e se considera incorrectamente julgado» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 7 ao art. 412º., pág. 1144).
No mesmo sentido, pronuncia-se Sérgio Gonçalves Poças (in Processo Penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto na Revista JULGAR - N.º 10 - 2010, pág. 31): Em primeiro lugar e tendo em atenção o que fica exposto, o recorrente no corpo motivador e depois nas conclusões (...) deve especificar, isto é, identificar devidamente, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados. Como todos estaremos de acordo, esta questão é nuclear. Como o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas, como vimos, apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo. De facto, não podem ficar dúvidas sobre quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados. Assim nesta especificação — as palavras valem — serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão. Por exemplo, quando se alega que «o tribunal apreciou erradamente a prova, que as testemunhas nada disseram de relevante sobre os factos, que o tribunal deu como provados os factos sem prova», tudo isto pode ser verdade, mas o recorrente, se ficar por este discurso, de modo nenhum, está a dar cumprimento, como está onerado, ao disposto na al. a) do n.º 3 do artigo 412.º
No caso em apreço, com excepção do ponto de facto provado exarado sob o ponto 4 da matéria de facto provada na sentença recorrida, o recorrente absteve-se de enunciar de forma individualizada os factos que no seu entender foram incorrectamente julgados, assim incumprindo de forma ostensiva os ónus estabelecidos no citado normativo.
Tão pouco especifica o recorrente as concretas provas que imporiam outra decisão de facto que, de igual forma, como se referiu, não esclarece qual deveria ter sido.
Por outro lado, como igualmente se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-04-2021, no Processo: 522/18.7PBELV.E1 (Relator: Paulo Ferreira da Cunha): A indicação da totalidade do depoimento das testemunhas ou uma sua súmula proposta pelo recorrente não cumpre as exigências processuais contidas no artigo 412, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal. O ónus que recai sobre o recorrente é de uma impugnação especificada, impugnatória de factos concretos, fazendo em cada ponto referência aos meios de prova que considere relevantes. Não pode ater-se a indicar todo o depoimento, pois tal redunda em apelo a nova apreciação de facto de todo o depoimento, e até de todos os outros depoimentos.
No caso em apreço, o recorrente transcreve a totalidade das suas declarações, assim como vários excertos do depoimento da ofendida, concluindo existir uma incorrecta valoração da prova produzida em audiência de julgamento.
Parece, assim, pretender o recorrente que este tribunal de recurso proceda a um novo e segundo julgamento, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados, sem que especifique quais os concretos trechos dessas declarações que imporiam decisão necessariamente diversa, decisão essa que, de igual modo, não aponta qual deveria ser.
No entanto, como decorre do exposto, o recurso da matéria de facto não se destina à realização de um segundo julgamento no tribunal de recurso, mas tão só à correcção de eventuais erros pontuais e circunscritos da matéria de facto fixada em primeira instância, quando existam provas que imponham decisão diferente.
Com efeito, relativamente à reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, como é jurisprudência firmada, que esta não se destina à realização de um segundo julgamento, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse, destinando-se antes a obviar a eventuais erros ou incorreções da mesma, na forma como apreciou a prova, quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida (in Ac. da Relação de Guimarães de 4-06-2018, proferido no processo n.º 121/15.5GAVFL.G1).
Consequentemente, em face do exposto, face ao constatado incumprimento dos ónus legalmente estatuídos para o efeito e acima explicitados, encontra-se este tribunal impedido de apreciar o erro de julgamento invocado, com excepção do ponto 4. da matéria de facto provada.
Em conformidade, com excepção da parte em que se reporta ao ponto 4. dos factos provados consignados na sentença recorrida, que infra se apreciará, decide-se rejeitar o recurso interposto no que respeita ao erro de julgamento invocado.
*
3.2. Do erro notório na apreciação da prova/erro de julgamento
Na motivação de recurso, refere o recorrente que: Salvo o devido respeito, que é muito, pelo Tribunal "a quo", errou notoriamente na apreciação da prova e não interpretou como devia as normas jurídicas constantes dos arts. 14°, 26° e 154°, al. a), nº1, todos do C.P..
Por outro lado, como atrás se referiu e resulta da motivação de recurso, reporta-se o recorrente à incorrecta valoração da prova por parte do tribunal a quo.
Assim, o recorrente reporta-se simultaneamente ao vício previsto no art. 410º/2-c) do Código de Processo Penal e ao erro de julgamento a que se refere o art. 412º/3 e 4 do mesmo Código.
Preceitua aquele art. 410º que:
1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.
Os vícios previstos no art. 410º/2, do Código Penal, enquanto vícios da decisão, mostram-se directamente conexionados com os requisitos da sentença previstos no art. 374º/2 do mesmo Código, designadamente com a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, e a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal (v. Ac. STJ de 9-02-2012, proferido no processo nº 233/08.1PBGDM.P3.S1).
Como resulta expressamente de tal preceito legal, os vícios da matéria de facto fixada na sentença, a que se refere o citado art. 410º/2, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos externos à sentença, ainda que constem do processo.
No que respeita ao erro notório na apreciação da prova, este ocorre quando se julgam provados factos que, face às regras da experiência comum, às regras da lógica, e à normalidade da vida, não se poderiam ter verificado em face dos concretos meios probatórios produzidos ou, ao invés, quando se julgam não provados factos que, face aos meios probatórios e àquelas regras da experiência, necessariamente teriam de ser tidos como verdadeiros.
Trata-se de um vício atinente ao raciocínio na apreciação das provas, exigindo-se, como referido, que tal vício seja evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, ou seja, que se trate de um erro evidente: as provas enunciadas na decisão apontam para um sentido e a decisão conclui de forma manifestamente contrária.
Existe erro notório na apreciação da prova quando ocorre “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou (…). Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis” (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, no citado “Recursos em Processo Penal, pág. 77).
Porém, no caso concreto, o recorrente não enuncia qualquer fundamento concreto para fundamentar o vício decisório em questão.
Por outro lado, atendendo ao alegado na motivação de recurso atrás já parcialmente transcrito, parece-nos ser uma evidência que o recorrente menciona um erro notório na apreciação da prova quando apenas efectivamente se pretende reportar a uma alegada incorrecta valoração da prova, sendo esta subsumível a um erro de julgamento da matéria de facto e não àquele vício decisório.
O que se constata é que o recorrente simplesmente discorda do sentido da decisão recorrida relativamente à matéria de facto provada, face aos meios de prova produzidos mencionados na motivação de recurso.
Por outro lado, o texto da decisão recorrida não evidencia de forma notória, facilmente perceptível ao cidadão comum, que ocorreu um erro ostensivo na valoração da prova, ou seja, que os meios de prova produzidos apontam necessariamente em sentido contrário àquele que foi a decisão.
Com efeito, será necessário o recurso a elementos externos à decisão recorrida, ou seja, à análise do conteúdo dos depoimentos e declarações prestados, para se aferir se existe erro ou não, o que desde logo afasta a verificação do vício decisório invocado, o qual, como se referiu, tem de ser ostensivo face ao próprio texto da decisão.
Em conformidade, improcede o recurso no que respeita ao erro notório na apreciação da prova do art. 410º/2 do Código de Processo Penal.
*
Resta apreciar o erro de julgamento invocado.
Como atrás explicitado, nos termos do n.º 3 do art. 412º do Código de Processo Penal, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, invocando erro de julgamento, o recorrente deverá individualizar de forma especificada os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da proferida, sendo que a omissão de cumprimento de tais ónus processuais inviabiliza a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso.
Conforme resulta da motivação de recurso e da sua conclusão 6ª, apenas quanto ao facto provado sob o ponto 4., o recorrente cumpriu aqueles ónus, limitando-se no mais a expressar a sua discordância quanto à fundamentação de facto exarada na sentença recorrida, pelo que, por imposição daquele normativo legal, a apreciação do erro de julgamento por parte deste tribunal ad quem se restringe ao facto assim particularizado pelo recorrente e que é o seguinte:
4. Desde, pelo menos, o dia 5 de novembro de 2021, o arguido, diariamente, colocou-se à porta de sua casa, controlando as rotinas da ofendida.
Há erro de julgamento quando o tribunal julgue como provado determinado facto que, face às provas produzidas, deveria ter sido julgado como não provado, ou quando, inversamente, se julgue como não provado um certo facto, o qual, de harmonia com os meios probatórios produzidos, deveria ser julgado como provado.
Em sede de reapreciação da matéria de facto, ao tribunal de recurso importará apreciar se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, de manifesto erro na apreciação da prova. O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade. (...) Por outro lado, reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão (Ac. da Relação de Coimbra de 12-09-2012, proferido no processo n.º 245/09.8 GBACB.C1).
No mesmo sentido, pronunciou-se o Ac. da Relação de Évora de 16-12-2021, proferido no processo n.º 60/20.8GBETZ.E1: A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem (cf. al. b) do n.º 3 do referenciado artigo 412º). É que a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tem de respeitar o princípio da livre apreciação da prova do julgador, estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal e a sua relação com os princípios da imediação e a oralidade (…).
Também no Ac. do STJ de 19-05-2010, proferido no processo n.º 696/05.7TAVCD.S1, se decidiu que: O uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.
Ou seja, as provas indicadas pelo recorrente quanto aos pontos da matéria de facto impugnados terão necessariamente de impor decisão diferente da proferida, não bastando que sugiram ou permitam diversa convicção, na medida em que, como se salienta no Ac. do STJ por último citado: A utilização do verbo impor, com o sentido de «obrigar a», não é anódina. Por aí, se limita, ainda, o recurso em matéria de facto aos casos de valoração de provas proibidas ou de valoração das provas admissíveis em patente desconformidade com as regras impostas para a sua valoração.
Saliente-se, por último, que em caso de divergência ou oposição entre depoimentos ou declarações, a decisão do tribunal de atribuir credibilidade a uns em detrimento de outros, de acordo com a sua livre convicção e com base na imediação e oralidade, só merecerá ser censurada se se mostrar oposta às regras da experiência ou da lógica (v. o citado Ac. da Relação de Évora de 16-12-2021, proferido no processo n.º 60/20.8GBETZ.E1).
Dispõe o art. 127º do Código de Processo Penal, que: salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
No entanto, livre apreciação da prova não significa apreciação arbitrária dos meios de prova, nem se confunde com a impressão que estes geram no espírito do julgador, pressupondo o respeito pelos critérios da experiência comum e da lógica do homem médio (v. Maia Gonçalves, CPP Anotado, 17ª ed., pág. 354).
Consequentemente, existirá violação do princípio da livre apreciação da prova se, na apreciação da prova e nas ilações extraídas, o julgador não respeitar os princípios em que se consubstancia o direito probatório e as regras da experiência comum, da lógica e de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório (in Ac. Relação de Évora de 13-07-2021, proferido no processo n.º 149/19.9PBSTR.E1).
Como se decidiu no Ac. da mesma Relação de Évora de 6-06-2006, proferido no processo n.º 384/06-1: As provas são apreciadas pelo julgador de acordo com as regras da experiência comum e a sua livre convicção – não uma convicção puramente subjectiva, baseada em imprecisões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas de uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras da lógica, da razão e das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, de tal modo que, sendo uma convicção pessoal, há-de ser sempre uma convicção objectivável e motivável.
Daí a exigência da motivação na sentença quanto ao sentido da decisão sobre a matéria de facto, a qual terá de consubstanciar o percurso lógico- dedutivo e o raciocínio desenvolvido pelo julgador para concluir como concluiu, impondo o dever de fundamentação no sentido de que a sentença há-de conter também os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse num sentido, ou seja, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido (in Ac. do STJ de 23-02-2011, proferido no processo n.º 241/08.2GAMTR.P1.S2).
Consequentemente, perante depoimentos contraditórios, opostos e inconciliáveis, haverá que proceder a uma cuidadosa análise de cada um deles, no sentido de, conjugando-os com outros meios de prova, de harmonia com a lógica, as regras da experiência e aquilo que é a normalidade da vida, aquilatar se algum deles oferece credibilidade, no todo ou em parte, permitindo a formação da convicção positiva quanto à realidade do facto a provar.
Como se elucida no Ac. da Relação de Évora de 21-04-2015 proferido no processo n.º 70/13.1GBNIS.E1: Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre eles num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.
Ora, o procedimento da valoração probatória empreendida pelo tribunal a quo vem descrito na motivação da sentença recorrida de forma minuciosa e criteriosa, nela sendo explicitado o percurso lógico-dedutivo para formar a sua convicção nos termos em que o fez.
Assim, atente-se novamente no seguinte excerto da fundamentação acima transcrita da matéria de facto exarada na sentença recorrida:
(…) O arguido prestou declarações anuindo na realização das abordagens à ofendida, negando apenas o controlo das rotinas daquela. Referiu e deu a entender que pretendeu, inicialmente convidar a ofendida a sair consigo e após, depois de ter conhecimento que a mesma o “acusava” de ter realizado escritos no seu automóvel, a procurava com o intuito de comprovar a sua inocência de tal circunstância. Sucede que, o próprio arguido, ao enunciar todas as abordagens que fez à arguida, enunciou o conhecimento de muitas informações que detinha sobre a mesma (nomeadamente, profissão, onde trabalhava, com quem residia e, até, a nova morada da residência para a qual a ofendida se mudou e com quem ali residia, e onde voltou a procurar a mesma), demonstrando assim, de modo cristalino, alguma “obsessão” pela ofendida e a insistência e persistência com que tentava encetar contactos com a mesma, pese embora, confessadamente, aquela lhe recusasse de modo claro, qualquer avanço ou contacto consigo.
Por seu turno, de modo absolutamente pormenorizado, contextualizado e imbuído por assinalável elemento emocional, o testemunho prestado pela ofendida, foi este considerado inequivocamente credível e sincero, sendo assim fortemente valorado pelo Tribunal.
Sem prejuízo das considerações expostas quanto à credibilidade do testemunho da ofendida, o mesmo foi, como se viu, fortemente amparado pelas informações que o próprio arguido prestou e pelos demais depoimentos colhidos em audiência.
Efetivamente, EE e FF, nada tendo presenciado, sempre observaram a ofendida abalada e perturbada quando esta lhes relatou o que a acusação relata.
Por seu turno, com maior relevância, o agente da PSP GG, presenciou uma situação, já posterior ao relatado na acusação, em que a ofendida pediu auxilio à PSP, porquanto pretendia sair da viatura, aparcada junto à sua residência, enquanto o arguido encontrava-se nas proximidades da viatura, acabando por abandonar o local, após a chegada do OPC.
Foi, pois, pela conjugação dos elementos expostos que se convenceu o Tribunal, de modo inequívoco, pela versão da ofendida, e assim se deram como provados os factos elencados em 1 a 10.
Da análise de tal fundamentação, é manifesto que o tribunal a quo explicitou de forma minuciosa e crítica, os motivos pelos quais conferiu credibilidade ao depoimento da ofendida, em argumentação totalmente lógica e racional, de harmonia com as regras da experiência comum, justificando plena e adequadamente tais motivos e a formação da sua convicção no sentido exposto na descrição da factualidade provada na sentença.
No entanto, tendo-se procedido à audição integral da prova produzida em audiência, desde já se adianta assistir razão ao recorrente quanto ao erro de julgamento que invocou no que concerne ao ponto 4. da matéria de facto provada.
Afirma o recorrente na sua motivação de recurso que: Conforme resultam das declarações da ofendida e do arguido, os fatos não se repetiam de modo reiterado, diário, conforme dado como provado pelo Tribunal "a quo" mas sim somente nas datas constantes da acusação. (destacado nosso)
Por outro lado, alega igualmente o recorrente na sua motivação de recurso que: Não resulta da prova produzida em sede de julgamento os fatos dados como provados em 4º, veja-se o depoimento do arguido, que foi valorado pelo Tribunal "a quo" e da ofendida DD, que refere apenas as datas constantes da acusação. (destacado nosso)
Assim, a impugnação do recorrente circunscreve-se ao advérbio diariamente contido naquele ponto 4. dos factos provados.
Quanto a esse facto, questionado expressamente sobre ele na audiência de julgamento, respondeu o arguido, sensivelmente ao minuto 16:40 das suas declarações: “Não, nem pensar nisso. Foi umas quatro vezes e nunca foi encostadas.
A ofendida, por seu turno, afirmou que o arguido foi à sua casa “várias vezes” (ao minuto 3:00 do seu depoimento), confirmou os dois episódios do dia 5 de Novembro e outro contacto posterior “dois ou três dias a seguir” (a partir do minuto 8:50, sensivelmente).
Mais afirmou a ofendida que houve uma vez em que o arguido “bateu à porta e eu não abri a porta” (sensivelmente ao minuto 17:50 do seu depoimento).
Questionada sobre se era habitual ou frequente ver o aqui arguido à porta de sua casa, respondeu a ofendida “vi-o algumas vezes” (sensivelmente ao minuto 23:20 do seu depoimento).
Assim, o ponto 4. da matéria de facto provada, na parte em que se reporta à frequência diária do arguido à porta da casa da ofendida, não encontra sustentação na prova produzida, sendo por ela contrariada, impondo assim a sua alteração em conformidade.
Na verdade, a prova apenas permite concluir que tal sucedeu por algumas vezes, conforme de forma cristalina resulta desde logo do depoimento da própria ofendida.
Em conformidade, o ponto 4. da matéria de facto provada passará a ter a seguinte redacção:
4. Desde, pelo menos, o dia 5 de novembro de 2021, o arguido por algumas vezes colocou-se à porta de sua casa, controlando as rotinas da ofendida.
Por outro lado, passará a integrar os factos não provados o seguinte:
Que foi diariamente que ocorreu o descrito sob o ponto 4..
Procede, assim, quanto ao ponto 4. o recurso quanto ao erro de julgamento invocado pelo recorrente.
A matéria de facto provada e não provada passa, em consequência, a ser a seguinte (assinalando-se a negrito a alteração efectivada):
FACTOS PROVADOS:
1- A ofendida DD e o arguido residem ambos na Vila do....
2- A ofendida no período que decorreu entre novembro de 2021 e Janeiro de 2022, residiu na ....
3- Nesse período, o arguido residiu na ....
4- Desde, pelo menos, o dia 5 de novembro de 2021, o arguido colocou-se por algumas vezes à porta de sua casa, controlando as rotinas da ofendida.
5- Igualmente desde essa data, o arguido dirigiu-se à ofendida, a qual abordou, pedindo-lhe para falar e passear com ele.
6- Com efeito, no dia 5 de novembro de 2021, de manhã, quando a encontrou na ..., colocou-se à frente do veículo que aquela conduzia, aproximou-se do vidro e após interpelação da ofendida do que estava a fazer, disse-lhe: “Eu queria falar-lhe de mim”.
7- Ainda nesse dia, depois do almoço, o arguido bateu à porta da residência da ofendida, sita naquela data na ..., e disse-lhe: “Quero falar-lhe sobre mim e quero que venha passear comigo e pode ser a pé”.
8- No dia 7 de novembro de 2021, após o almoço, o arguido foi bater novamente à porta da ofendida, que não abriu por medo do arguido.
9- No dia 12 de novembro de 2021, o arguido colocou-se à frente do veículo conduzido pela ofendida, com o objetivo de a importunar bem como de conseguir a sua atenção.
10- Nos dias 6, 8, 13 e 15 de maio de 2022, o arguido abordou a ofendida, junto da sua nova residência sita na ..., numa tentativa de a interpelar e falar com ela.
11- Com estes comportamentos frequentes do arguido, a ofendida fica amedrontada e com medo de andar na rua.
12- Como consequência direta e necessária das condutas do arguido, a ofendida passou a sentir-se constrangida na sua liberdade de determinação, na vida privada, na sua paz e sossego.
13- O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de constranger a ofendida na sua liberdade de determinação, na vida privada, na sua paz e sossego.
14- O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
15- O arguido encontra-se reformado.
16- Aufere, a título de pensão de invalidez, o montante mensal de 456,00 euros.
17- Reside sozinho.
18- Tem o 6.º ano de escolaridade.
19- Reside em habitação própria.
20- Está viúvo há cerca de 03 anos.
21- Sofre de epilepsia e de depressão.
22- Não tem antecedentes criminais registados.
FACTOS NÃO PROVADOS:
Que foi diariamente que ocorreu o descrito sob o ponto 4..
Procede, assim, parcialmente o recurso quanto ao invocado erro de julgamento.
*
3.3. Se ocorreu erro de direito em relação requisitos do tipo legal de crime de perseguição
Pretende o arguido ser absolvido da prática do crime de perseguição pelo qual foi condenado.
Argumenta na sua motivação, em síntese, que:
- A situação vertida nos autos deveria ter sido considerada como corriqueira, como uma tentativa que faz lembrar os antigos tempos, em que para namorar era preciso aparecer nos cantos das ruas e esperar até ao abrir das portas e das janelas, de modo a tentar estabelecer contatos com uma jovem que pretendia namorar.
- Errou o Tribunal na interpretação da lei, nomeadamente em relação requisitos do tipo legal do crime de perseguição
- O arguido jamais atuou por forma a perseguir ou assediar a ofendida. Teve sim uma conduta de tentar apresentar-se por um lado e por outro de explicar- se de não ter sido ele a escrever no carro da ofendida.
- Os fatos não se repetiam de modo reiterado, diário, conforme dado como provado pelo Tribunal "a quo" mas sim somente nas datas constantes da acusação.
- O arguido quando chegava à fala com a ofendida e quando esta dizia para ele ir embora o mesmo respeitava-a e ia embora, numa atitude manifestamente de não importunar, não assediar a ofendida.
- O arguido quando batia à porta da moradia da moradia da ofendida e esta não abria, esta situação apenas acontecia uma vez, o que é demonstrativo novamente de uma intenção de não importunar, de não assediar, de não ser intimidatório para com a ofendida.
- De tudo o que foi explanado supra não vislumbramos que o arguido tenha agido com o dolo necessário à prática do crime de perseguição, pois o mesmo jamais pretendeu ou configurou sequer a hipótese de perseguir e assediar a ofendida.
Porém, desde já se adianta que se nos afigura não assistir razão ao recorrente.
Com efeito, a alteração da matéria de facto nos termos atrás decididos não importa qualquer alteração ao enquadramento jurídico-penal dos factos a que se procedeu na sentença recorrida, na medida em que a factualidade provada integra os elementos objectivos e subjectivos típicos do crime pelo qual o recorrente foi condenado em primeira instância.
Dispõe o art. 154º-A, n.º 1, do Código Penal, para o que aqui releva, que:
1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - A tentativa é punível.
(…)
Da análise de tal normativo resulta que constituem elementos típicos objectivos de tal tipo de crime:
- a acção consubstanciadora de assédio ou perseguição, praticada pelo agente ou por intermédio de terceiro;
- que essa acção seja reiterada;
- que essa acção seja adequada a causar medo ou inquietação no visado ou de o prejudicar a sua liberdade de determinação.
Trata-se de um crime de execução livre, porquanto poderá ser perpetrado por qualquer meio.
À sua consumação é desnecessária a produção de um dano efectivo no visado, ou seja, não se exige que o ofendido sinta medo, inquietude ou prejudicado na sua liberdade.
A reiteração da conduta exigida ao preenchimento do tipo, pressupõe uma prática mais ou menos frequente, repetida mais do que uma vez.
O que seja a reiteração necessária ao preenchimento do tipo dependerá da avaliação das circunstâncias do caso, da natureza e do contexto em que as acções são levadas a cabo.
No entanto, contrariamente ao que parece ser entendimento do recorrente, a reiteração a que alude o tipo legal em causa, não exige uma conduta repetida diariamente.
A frequência da repetição da conduta conduzirá ao preenchimento do tipo legal de perseguição quando atinja um nível tal que se deva reputar como idónea e adequada a causar na vítima o sentimento de inquietude ou de medo, ou a prejudicar a sua liberdade de movimentos.
Como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-11-2019, proferido no Processo n.º 17/16.3GBRMZ.E1 (Relator: João Amaro): A “perseguição” (ou “stalking”) é um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo. Tais comportamentos podem consistir em ações rotineiras e aparentemente inofensivas (como, por exemplo, oferecer presentes constantemente, telefonar insistentemente), ou mesmo em ações inequivocamente intimidatórias (como, por exemplo, seguir a vítima constantemente - a pé ou em veículo automóvel -, enviar repetidas mensagens de telemóvel com conteúdo persecutório e/ou “ameaçador”, enviar correspondência escrita de idêntico conteúdo, etc.). Pela sua persistência e contexto de ocorrência, este padrão de conduta pode assumir tal frequência e severidade que afete não só o “bem-estar” das vítimas, como, mais do que isso, lhes cause medo ou inquietação ou as prejudique na sua liberdade de determinação.
No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01-04-2020, proferido no Processo n.º1031/18.0PIPRT.P1 consignou-se que: Stalking é uma forma de violência interpessoal alicerçada num padrão de comportamento desdobrado em múltiplas condutas de diferentes espécies ou concretizado em vários atos da mesma natureza, mas que têm de comum entre si, corresponderem a uma campanha de assédio, de vigilância, de tentativas de contacto e comunicação, de invasão da privacidade, de monitorização da vida e de indução, na vítima, de sentimentos de medo, de perigo eminente, de revolta, de impotência e ansiedade, adotado de forma reiterada e mais ou menos persistente.
No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-09-2021, proferido no Processo n.º1025/18.5PBMAI.P1 (Relatora: Eduarda Lobo), explicita-se que: Na exposição de motivos do projeto de lei nº 647/XII que deu origem ao corpo do art.º 154º A do Código Penal, definiu-se a perseguição, ou “stalking”, como “um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo”.
Como se refere no Ac. Rel. Lisboa de 09.07.2019[22] «A perseguição consiste na vitimação de alguém que é alvo, por parte de outrem, o assediante, de um interesse e atenção continuados e indesejados, como vigilância, ou perseguição, os quais são susceptíveis de gerar ansiedade e medo na pessoa-alvo.”
“O stalking pode definir-se como uma forma de violência relacional. Segundo a maioria da legislação norte-americana, o crime consiste num padrão intencional de perseguição repetida ou indesejada que uma “pessoa razoável” consideraria ameaçadora ou indutora de medo. Já a legislação australiana define o stalking como “perseguir uma pessoa, permanecer no exterior da sua residência ou em locais por ela frequentados, entrar ou interferir na sua propriedade, oferecer-lhe material ofensivo, mantê-la sob vigilância, ou agir de um modo que se poderia esperar com razoabilidade que fosse susceptível de criar stress ou medo na vítima.” Cfr. Nuno Lima da Luz, a fls.6, da sua tese de dissertação de mestrado (disponível in http://repositorio.ucp.pt)
Pode-se caracterizar também por uma série de comportamentos padronizados que consistem num assédio permanente, nomeadamente através de tentativas de comunicação com a vítima, vigilância, perseguição, etc.
Embora estes comportamentos possam ser aparentemente corriqueiros se não forem percebidos no seu contexto do “stalking”, as condutas que integram o seu tipo objectivo podem ser bastante intimidatórios pela persistência e intensidade com que são praticadas, causando um enorme desconforto na vítima e atentando claramente à reserva da vida privada.
Conclui o recorrente, na conclusão 15ª extraída da motivação, que: Salvo melhor entendimento, a situação vertida nos autos deveria ter sido considerada como corriqueira, como uma tentativa que faz lembrar os antigos tempos, em que para namorar era preciso aparecer nos cantos das ruas e esperar até ao abrir das portas e das janelas, de modo a tentar estabelecer contatos com uma jovem que pretendia namorar.
Os comportamentos que o recorrente adoptou são na sua essência e de facto aparentemente corriqueiros, tal como se menciona no aresto por último citado.
Porém, é precisamente a repetição dos comportamentos, a imposição persistente da sua presença contra a vontade da ofendida que os tornam, não meramente corriqueiros, mas sim comportamentos que induzem, pela sua frequência e persistência, sofrimento na vítima.
Se atentarmos na factualidade provada, a mesma preenche os elementos típicos, quer de índole objectiva, quer de índole subjectiva, do tipo legal de crime de perseguição.
Recordem-se os factos provados pertinentes:
4- Desde, pelo menos, o dia 5 de novembro de 2021, o arguido colocou-se por algumas vezes à porta de sua casa, controlando as rotinas da ofendida.
5- Igualmente desde essa data, o arguido dirigiu-se à ofendida, a qual abordou, pedindo-lhe para falar e passear com ele.
6- Com efeito, no dia 5 de novembro de 2021, de manhã, quando a encontrou na ..., colocou-se à frente do veículo que aquela conduzia, aproximou-se do vidro e após interpelação da ofendida do que estava a fazer, disse-lhe: “Eu queria falar-lhe de mim”.
7- Ainda nesse dia, depois do almoço, o arguido bateu à porta da residência da ofendida, sita naquela data na ..., e disse-lhe: “Quero falar-lhe sobre mim e quero que venha passear comigo e pode ser a pé”.
8- No dia 7 de novembro de 2021, após o almoço, o arguido foi bater novamente à porta da ofendida, que não abriu por medo do arguido.
9- No dia 12 de novembro de 2021, o arguido colocou-se à frente do veículo conduzido pela ofendida, com o objetivo de a importunar bem como de conseguir a sua atenção.
10- Nos dias 6, 8, 13 e 15 de maio de 2022, o arguido abordou a ofendida, junto da sua nova residência sita na ..., numa tentativa de a interpelar e falar com ela.
11- Com estes comportamentos frequentes do arguido, a ofendida fica amedrontada e com medo de andar na rua.
12- Como consequência direta e necessária das condutas do arguido, a ofendida passou a sentir-se constrangida na sua liberdade de determinação, na vida privada, na sua paz e sossego.
13- O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de constranger a ofendida na sua liberdade de determinação, na vida privada, na sua paz e sossego.
14- O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
As condutas do arguido, pela sua persistência e frequência, não só eram idóneas a provocar medo e inquietação na visada, como efectivamente causaram, pois que se encontra provado que com os comportamentos frequentes do arguido, a ofendida fica amedrontada e com medo de andar na rua, bem como que, como consequência direta e necessária das condutas do arguido, a ofendida passou a sentir-se constrangida na sua liberdade de determinação, na vida privada, na sua paz e sossego.
Tanto basta para que se considerem preenchidos os elementos objectivos típicos do crime em questão.
Por outro lado, da factualidade provada resulta igualmente inequívoco que o arguido assim agiu de forma dolosa.
*
Invoca ainda o recorrente nas suas conclusões, repetindo o alegado anteriormente na respectiva motivação:
7- Do depoimento do arguido ([00:00:07] a [00:18:44]) resulta o modo corriqueiro, os termos e o porquê da conduta do arguido, que deveria ter tido outro entendimento por parte do Tribunal "a quo", nomeadamente, ter considerado tal conduta corriqueira doseada com a personalidade e o estado psíquico do mesmo ("[00:18:20]) e que o Tribunal "a quo" não valorou como devia;
8- Estando o arguido num estado depressivo, a ser assistido por um psiquiatra e a ter necessidade de tomar medicamentos, conforme resulta das suas declarações ([00:06:20] a [00:06:45]), era elementar perceber o estado de imputabilidade do mesmo, tendo o arguido uma incapacidade de 68%;
9- Das declarações do recorrente supra referidas, resulta e são demonstrativas do "conflito interior" e do estado psíquico do arguido e que o mesmo não figurava a sua ação como a prática de um ilícito criminal, e que o Tribunal "a quo" não valorou como devia e que se impõe.
O recorrente vem questionar, assim, a sua imputabilidade.
Preceitua o art. 20º do Código Penal que:
Inimputabilidade em razão de anomalia psíquica
1 - É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
2 - Pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.
3 - A comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior.
4 - A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto.
Contudo, a existência de anomalia psíquica impeditiva de, no momento da prática do facto ilícito, o agente avaliar a sua ilicitude e de se determinar em função dessa mesma avaliação, constitui matéria de facto.
Ou seja, para que seja possível aferir da existência de uma situação de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída, importa que seja apurado em primeira instância que o agente padece de uma anomalia psíquica e que essa anomalia o impediu de ajuizar a ilicitude do facto e de conduzir a sua conduta de acordo com essa prévia avaliação.
No caso concreto, o recurso foi rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto decidida em primeira instância, com excepção do que consta do seu ponto 4. nos termos atrás apreciados.
Assim, a matéria de facto provada encontra-se definitivamente fixada nos termos já decididos.
Por outro lado, a questão da eventual inimputabilidade do arguido não foi objecto de apreciação ou decisão em primeira instância.
Ora, encontra-se vedado ao tribunal de recurso conhecer de questões novas não apreciadas na decisão recorrida, sendo certo que os recursos se destinam exclusivamente ao reexame das questões já decididas pelo tribunal a quo.
Assim, como se elucida no Acórdão do S.T.J. de 4-05-2023, proferido no processo n.º 96/20.9PHOER.L1.S1: Considerando a estrutura processual penal, a natureza e objetivo dos recursos, é entendimento unânime que os mesmos consubstanciam verdadeiros “remédios jurídicos”, no sentido em que o seu único objetivo é apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso. Como tal, não se destinam os recursos a conhecer questões novas, i. e., que não tenham sido anteriormente apreciadas pelo tribunal recorrido.
Deste modo, o tribunal de recurso conhece de questões já conhecidas pelo tribunal recorrido e não de questões que antes não tenham sido submetidas à sua apreciação: o tribunal de recurso apenas reaprecia o concretamente já decidido, não profere decisões novas.
Ora, no caso concreto, verifica-se que a questão da eventual inimputabilidade do arguido não foi apreciada pelo tribunal a quo, nem em momento processual algum tal questão foi suscitada: o arguido não apresentou contestação nos autos e da acta da audiência de julgamento realizada em 23-01-2024 nada a esse propósito se encontra consignado (cfr. acta com a ref.ª citius 56558408)
Deste modo, não tendo tal questão sido objecto da decisão sob recurso, vedado está a este tribunal de recurso dela conhecer, mostrando-se consequentemente prejudicada a sua apreciação.
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Em conformidade com todo o exposto, improcede o recurso quanto à pretendida absolvição do arguido pela prática do crime de perseguição, pelo que, não tendo sido colocadas outras questões a este tribunal de recurso, improcede integralmente o presente recurso.
*
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª secção criminal do Tribunal desta Relação em conceder parcial provimento ao recurso, e consequência:
1. Alteram a matéria de facto provada nos termos acima decididos;
2. Confirmam no mais a sentença recorrida.
Sem custas, atento o vencimento parcial (art. 513º/1 do Código de Processo Penal).
Notifique.

Lisboa, 11 de Julho de 2024
(anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original)
Elaborado e integralmente revisto pela Relatora (art.º 94.º n.º2 do C. P. Penal)
Assinado digitalmente pela Relatora e pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos
Paula Cristina Bizarro
Jorge Rosas de Castro
Nuno Matos