Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3007/22.3T8LRS-B.L1-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
AUDIÇÃO DA CRIANÇA
PRETERIÇÃO
VIOLAÇÃO DE DIREITO MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I) Antes de tomar decisão, provisória ou final, a respeito de uma criança, o tribunal ou a ouve, ou indica porque é desaconselhável proceder a essa audição.
II) A obrigatoriedade da audição da criança depende de a decisão lhe dizer respeito e de ter capacidade de compreensão do que nela está em causa.
III) O princípio da audição assenta no direito de a criança ter voz no processo, emitir a sua opinião, não assenta numa eventual necessidade probatória a satisfizer pela tomada de declarações à criança.
IV) A omissão de audição, sem despacho que a justifique, constitui violação de direito material, com repercussão na decisão proferida que, por isso, é nula.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I) RELATÓRIO
A… veio requerer fosse regulado o exercício das responsabilidades parentais relativas a sua filha de menor idade M.., nascido em 1 de Dezembro de 2014, contra o pai da criança, B...
Alegou que o Requerido e a Requerente viveram em união de facto desde 2013 até 2020, deixando o requerido de habitar com a Requerente e a filha de ambos, passando a viver em casa dos pais, em ...
A Requerente e o Requerido acordaram em que a filha fosse confiada à guarda da mãe e que passasse semanas alternadas com a mãe e com o pai, de sexta a sexta, com interrupção a meio da semana para pernoita em casa do progenitor com quem não estivesse essa semana.
Como a criança sempre tenha beneficiado do apoio da avó materna e frequenta a escola na localidade onde a avó reside, esta vai buscá-la à escola às 17 horas, quando as actividades escolares terminam, trá-la para sua casa, dá-lhe o lanche e aguarda a chegada do pai ou da mãe para a virem buscar, sendo que o pai conclui as suas actividades profissionais pelas 18:30 horas.
O pai pretende alterar o regime estipulado, fazendo cessar a quebra da semana para pernoita em casa do outro progenitor e, na semana em que a filha está consigo, pretende que a avó materna não a vá buscar à escola, aí aguardando a criança pela chegada do pai ou, em alternativa, deverá o avô paterno deslocar-se de …a, para ir buscar a menor à escola.
Designado dia para conferência os pais foram ouvidos e, não tendo chegado a acordo, foi estabelecido regime provisório de regulação das responsabilidades parentais como segue:
1. A criança fica a residir com a mãe e com o pai, em semana alternada, com mudança à sexta-feira ao final das atividades escolares, incumbindo ao progenitor com quem se encontre a residir em cada momento, o exercício das responsabilidades parentais relativa aos atos da vida corrente dos filhos;
2. Na semana em que a criança estiver a residir com determinado progenitor, caberá ao mesma ir busca-la e levá-la à escola, podendo incumbir tal tarefa a outra pessoa da sua confiança;
3. Na semana em que a menor estiver a residir com um dos progenitores pode contactar telefonicamente ou por outro meio de comunicação à distância com o outro progenitor, sempre que o entenda, sem prejuízo dos horários de descanso e das atividades escolares;
4. As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida da menor (designadamente, a mudança do país de residência, a escolha do estabelecimento de ensino, a realização de intervenções cirúrgicas, deslocações ao estrangeiro e escolha das atividades extra curriculares) são exercidas de comum acordo por ambos os progenitores, salvo caso de urgência manifesta, em que qualquer um dos progenitores poderá agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.
5. A criança passará com a mãe o dia da mãe e o dia de aniversário desta, e com o pai o dia do pai e o dia de aniversário deste, sendo que esta regra prevalece sobre a regime referente à repartição das férias e à repartição dos períodos de residência;
6. A criança, no dia do seu aniversário, tomará com o pai uma refeição e com a mãe outra, sem prejuízo das respetivas atividades escolares e horas de descanso, sendo que no próximo aniversário almoça com a mãe e janta com o pai, alternando a refeição com um e com outro de ano para ano. Esta regra prevalece sobre a regime referente à repartição das férias e à repartição dos períodos de residência;
7. Nas férias escolares do Natal, a criança passará com um dos progenitores, do primeiro dia de férias até dia 25 de dezembro, entre as 10:30 e as 11:00 horas, passando com o outro progenitor, desde essa data e hora até ao último dia de férias. Este ano, passará o primeiro período com a mãe, alternando nos anos seguintes.
8. Nas férias escolares da Páscoa, a criança passará a primeira semana com a mãe e a segunda com o pai, alternando os períodos com um e com outro dos progenitores, nos anos seguintes;
9. Nos meses de julho e agosto, a criança passará as primeiras quinzenas com o pai e as segundas com a mãe, sem alternância, mas sem prejuízo de acordo dos progenitores em contrário;
10. O regime repartição de férias prevalece sobre o regime de residência;
11. Cada um dos progenitores suporta os custos com alimentação, vestuário, calçado e consumos domésticos (água, gás e eletricidade) e outras despesas correntes da criança, realizadas quando se encontra com cada deles, não havendo lugar a pensão de alimentos.
12. Os progenitores suportarão, em parte iguais, as despesas de saúde (consultas, medicamentos e tratamentos), na parte não comparticipada por terceiras entidades, e extraordinárias escolares (fardamento, visitas de estudo, livros e material escolar) desde que devidamente documentadas (com fatura emitida em nome da menor, com o seu NIF e descriminação do serviço ou bem contratado ou adquirido), a liquidar no prazo de 30 dias a contar o envio dos comprovativos da realização de despesa, pelo progenitor que a realizar ao outro progenitor;
Desta decisão foi interposto o presente recurso pela Requerente que, alegando, concluiu:
a) A Requerente pediu a Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais, alegando a existência de um acordo de facto que estava a ser cumprido mas sobre o qual o requerido manifestava descontentamento, sendo que face às ansiedades da menor e atento o seu superior interesse, deveria tal regime ser homologado.
b) Ouvindo apenas os progenitores, sem ouvir a menor, sem proceder a inquérito social e sem ouvir o depoimento de outros familiares, decidiu o Tribunal a quo estabelecer regime provisório com a cominação de poder ser definitivo, que altera o regime de facto até então cumprido, estabelecendo regras incompatíveis com a ponderação do superior interesse da menor.
c) De uma só penada a Decisão proferida não concede a existência de uma interrupção semanal de pernoita com o outro progenitor com quem a menor não se encontra e sobretudo, semana sim semana não, não permite o contacto, senão à distancia e telefonicamente, da menor com a família materna.
d) A decisão proferida fundada no princípio de igualdade entre progenitores, olvidou de ter em conta o universo afectivo, emocional e geográfico onde a menor se encontra e, por consequência violou os princípios orientadores nesta matéria, nomeadamente o superior interesse da menor, decorrente do disposto, especialmente nos Artigos 4º, 38º, 40º do R.G.T.C.
e) Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo negou à menor o direito ao Exercício da Justiça.
Nestes termos e nos melhores de Direito, confiando sempre no mui Douto Suprimento de Vexas, deverá ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, revogar-se a douta decisão recorrida, ordenando-se a audição da menor, o depoimento das testemunhas, a realização de inquérito social, aferindo-se da justeza do regime de regulação das responsabilidades parentais, exercido de facto até agora.
ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA
O Requerido contra-alegou defendendo o bem fundado da decisão, concluindo as suas alegações como segue:
Este regime provisório deve ser mantido e até mesmo ser convertido em definitivo depois de decorridas todas as fases processuais em vigor, porque:
a) Permitirá à M, e em especial à mãe, perceber que ambos os pais devem ter uma participação ativa na vida da mesma de igual forma;
b) Possibilitará que a menina possa confiar nos dois progenitores e não só na progenitora mãe;
c) Que o pai tem um papel tão preponderante na sua vida tal como a mãe;
d) Que a proteção da Me dos seus interesses é tão prioritário para ele como para a mãe;
e) Que na sua vida deve fazer parte o pai, a mãe, os avós paternos, os avós maternos, assim como outros familiares de ambos os lados e não só os do lado da mãe;
f) Que a menina não se isole, por uma ou duas horas, cada vez que vem de casa da mãe, podendo desde logo manter uma relação muito normal, adequada e até revigorante com o pai e os avós paternos.
Deve, assim, confirmar-se in totum o regime provisório fixado, com o que se fará sã, serena e objetiva Justiça
O Ministério Público contra-alegou defendendo que o recurso não era admissível por a decisão não o admitir, nos termos do artigo 28.º, n.º 5, do RGPTC.
O recurso não foi admitido nos termos da pronúncia do Ministério Público, decisão que, reclamada nos termos do artigo 643.º, do CPC, foi revogada nesta Relação, sendo o recurso admitido para subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo, requisitando-se a formação e remessa do apenso respectivo a esta Relação.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II) OBJECTO DO RECURSO.
Tendo em atenção as conclusões da Recorrente, cumpre apreciar e decidir das seguintes questões:
1. Da omissão de audição da criança e suas consequências.
2. Do mérito da decisão de regulação das responsabilidades parentais na parte em que altera o regime estabelecido por acordo dos pais quanto a pernoita a meio da semana e quanto a recolha da criança na escola.
III) FUNDAMENTAÇÃO
1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O despacho recorrido não discriminou os factos indiciariamente assentes que suportam a decisão, resultando do seu teor, nomeadamente da argumentação quanto à situação de vida da M.., que considerou indiciariamente assentes os seguintes factos, do que a Recorrente e o Recorrido não dissentiram:
1) A Requerente e o Requerido acordaram, quando se separaram, em que a filha passasse uma semana com cada um deles, com interrupção a meio da semana para pernoita na casa do progenitor com quem não residia nessa semana.
2) A M.. frequenta a escola em …, localidade onde reside a avó materna, que a vai buscar à escola, trá-la para sua casa, dá-lhe o lanche e aguarda a chegada do pai ou da mãe para a virem buscar, sendo que o pai conclui as suas actividades profissionais pelas 18:30 horas.
3) O pai e os avós paternos da M.. residem em ...
Nos termos do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, julga-se assente o seguinte facto com base na cópia de certidão de nascimento junta com a petição:
4)M nasceu em 1 de Dezembro de 2014 filha da requerente e do requerido.
2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. Da omissão de audição da criança
1.1. A decisão provisória foi proferida nos termos do artigo 38.º, corpo, da Lei 141/2015, de 8 de Setembro (Regime Geral do Processo Tutelar Cível – doravante, RGPTC), nos termos do qual, se ambos os pais estiverem presentes ou representados na conferência, mas não chegarem a acordo que seja homologado, o juiz decide provisoriamente sobre o pedido em função dos elementos já obtidos.
Nenhum despacho foi proferido nos autos quanto à des/necessidade ou in/conveniência de audição da M...
Defende a Recorrente que a decisão devia ter sido precedida de audição da criança e que essa omissão, visto o teor da decisão, que altera o regime que a criança até agora tem vivido, viola o disposto nos artigos 4.º, 38.º e 40.º, do RGPTC (diploma a que pertencem todas as normas que sem outra indicação forem mencionadas).
O Ministério Público e o Recorrido não se pronunciaram sobre a questão.
 1.2. Nos termos do artigo 4.º, alínea c), os processos tutelares cíveis regulados no RGPTC regem-se pelos princípios orientadores de intervenção estabelecidos na lei de proteção de crianças e jovens em perigo e ainda pelos seguintes: (…) c) Audição e participação da criança - a criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica ao tribunal, sendo garantido, salvo recusa fundamentada do juiz, o acompanhamento por adulto da sua escolha sempre que nisso manifeste interesse.
Por seu turno, o artigo 5.º, n.º 1, estatui que a criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse, enquanto o n.º 6 da mesma norma estabelece que sempre que o interesse da criança o justificar, o tribunal, a requerimento ou oficiosamente, pode proceder à audição da criança, em qualquer fase do processo, a fim de que o seu depoimento possa ser considerado como meio probatório nos atos processuais posteriores, incluindo o julgamento.
Com relevo para a questão suscitada, cumpre também considerar o artigo 35.º, que rege sobre a conferência inicial dos procedimentos de regulação das responsabilidades parentais, cujo n.º 3 dispõe que a criança com idade superior a 12 anos ou com idade inferior, com capacidade para compreender os assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é ouvida pelo tribunal, nos termos previstos na alínea c) do artigo 4.º e no artigo 5.º, salvo se a defesa do seu superior interesse o desaconselhar.
Destas normas de direito nacional decorre que, antes de proferir decisão relativa à vida de uma criança, esta seja ouvida pelo tribunal desde que tenha idade superior a 12 anos ou com idade inferior, com capacidade para compreender os assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade.
Esta vinculação do tribunal decorre do princípio estabelecido no citado artigo 4.º, alínea c), e determina a obrigatoriedade da audição da criança com mais de 12 anos ou com capacidade de compreensão do que se discute, ou a justificação do motivo que torna essa audição desaconselhável por contrária ao interesse da criança.
Apesar da referência da norma à idade superior a 12 anos, a obrigatoriedade de audição continua a verificar-se quanto a crianças com idade inferior desde que o assunto a tratar pode ser compreendido pela criança vista a sua específica maturidade. É o que resulta do princípio que o artigo 4.º estabelece sem qualquer indicação de idade e da própria letra do artigo 5.º, n.º 2.
O princípio em causa assenta no direito da criança a ter voz no processo, a emitir a sua opinião sobre os assuntos que lhe digam respeito e a propósito dos quais tenha maturidade para a emitir, não assenta numa eventual necessidade de prova que apenas se satisfizesse com a tomada de declarações à criança. Aliás, os n.º 1 e 6 do artigo 5.º claramente estabelecem a distinção entre a tomada de declarações à criança como elemento probatório, meio de prova, e a audição da criança enquanto sujeito do processo com direito a exprimir-se quanto às decisões que a visem e à organização da sua vida e cujo contexto e dimensão possa compreender com a idade e maturidade que tem[1].
1.3. Estas normas inserem-se num sistema jurídico mais vasto.
A Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, assinada em Nova Iorque a 26 de Janeiro de 1990 (Resolução da Assembleia da República 20/90, de 12 de Setembro e Decreto do Presidente da República 49/90, de 12 de setembro), estabelece no seu artigo 12.º:
1 - Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade.
2 - Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja directamente, seja através de representante ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional.
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia[2] dispõe sobre a matéria no artigo 24.º, epigrafado direitos das crianças:
1. As crianças têm direito à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar. Podem exprimir livremente a sua opinião, que será tomada em consideração nos assuntos que lhes digam respeito, em função da sua idade e maturidade.
A Convenção Europeia sobre o exercício dos Direitos da Criança de 25 de Janeiro de 1996 (Resolução da Assembleia da República 7/2014, de 13 de Dezembro de 2013, e Decreto do Presidente da República 3/2014, de 27 de Janeiro) no artigo 3.º, alínea b) dispõe:
À criança que à luz do direito interno se considere ter discernimento suficiente deverão ser concedidos, nos processos perante uma autoridade judicial que lhe digam respeito, os seguintes direitos, cujo exercício ela pode solicitar: (…) b) Ser consultada e exprimir a sua opinião.
Também o artigo 6.º, alínea b), §3 do mesmo diploma refere:
Nos processos que digam respeito a uma criança, a autoridade judicial antes de tomar uma decisão deverá: (…) b) Caso à luz do direito interno se considere que a criança tem discernimento suficiente: (…) - Permitir que a criança exprima a sua opinião.
O Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro (Decisões em Matéria Matrimonial e Responsabilidade Parental – Bruxelas IIBis) enuncia a relevância da audição da criança em sede de execução de decisões entre Estados-Membros, do que é exemplo o artigo 41.º, n.º 2, alínea c), devendo essa menção ser feita nas certidões a remeter.
Como refere Salazar Casanova[3], o princípio da audição da criança tem sido constantemente afirmado ao longo de sucessivas declarações e instrumentos de direito internacional e comunitários que precederam o presente Regulamento. Embora referindo-se o Autor a um momento anterior do direito interno, afirma desde logo os princípios que hoje se encontram acolhidos na nossa legislação e aponta a prática congruente como a única adequada, mesmo, repita-se, num regime muito anterior ao actual.
Pronunciando-se quanto ao momento em que a audição deve ocorrer estabelece a ligação directa com aquele em que alguma decisão deva ser proferida quanto à criança, colocando até a questão de essa decisão poder ser de mera homologação do acordo dos pais. Para concluir: a regra hoje não é a da ausência da criança que o tribunal, no seu elevado critério, pode excepcionar, admitindo a presença da criança; a regra é precisamente a oposta: a da presença da criança que se impõe a não ser que em razão da sua idade ou falta de discernimento se justifique a sua não comparência e audição[4].
Igual conclusão retira Clara Sottomayor[5] do artigo 1901.º, n.º 3, do CC, indicando que a norma prevê a audição prévia obrigatória das crianças, aderindo a uma conceção democrática e participativa das responsabilidade parentais e ao estatuto da criança como sujeito de direitos, dotada de capacidade natural para exprimir os seus afetos e sentimentos.
Em suma, independentemente da necessidade probatória que pode ou não determinar a tomada de declarações à criança, constitui princípio fundamental o respeito pelo seu direito a emitir opinião quanto aos assuntos que lhe respeitem na medida da compreensão deles que lhe seja em concreto possível.
Este princípio protege o direito a emitir opinião, não determina qualquer específico valor probatório às suas declarações nem qualquer específica vinculação a seguir essa opinião.
1.4. Aproxima-se, no que à criança diz respeito, do princípio do contraditório essencial a um processo equitativo e justo, na dimensão de expressão livre da posição da parte quanto a questões que lhe respeitem. Na verdade, o princípio do contraditório inscreve-se na imposição de que as decisões judiciais sejam o corolário de um processo justo e equitativo – artigos 20.º , da CRP, 6.º da DUDH, e 3.º, n.º 3 , do CPC - e exprime-se em duas vertentes: a da igualdade das partes na apresentação de argumentos a respeito dos pontos determinantes para a decisão a proferir e a da possibilidade de as partes «influenciarem» a decisão judicial argumentando quanto ao sentido que a mesma deve ter.
O Tribunal Constitucional tem consistentemente assinalado estas duas vertentes. Por todos veja-se o Acórdão 19/2010 de 13 de Janeiro de 2010 (Rel. Carlos Cadilha), no qual se delimita o que deva entender-se por princípio do contraditório na dimensão do direito a participar no processo influenciando a decisão (tanto no texto do acórdão como no do voto de vencido do primeiro relator (Cons. Vítor Gomes).
Os artigos 4.º e 5.º citados inscrevem-se na mesma preocupação de que o processo seja justo e equitativo e que a todos aqueles que possam ser afectados pela decisão seja concedida a possibilidade de emitirem a sua opinião sobre o assunto, concretizando-a quanto às crianças e indicando a especificidade a que deve atender-se (a sua idade e maturidade).
1.5. Diga-se, ainda, que nenhuma restrição deste princípio se verifica por a decisão a tomar ser provisória (provisoriedade que é, aliás, a característica das decisões em sede tutelar como resulta desde logo do artigo 28.º, mas também da natureza de jurisdição voluntária – artigos 12.º, do RGPTC, e 988.º, n.º 1, do CPC).
Não se verifica restrição, por um lado, porque as normas não a indicam, por outro, porque o valor que pretendem salvaguardar tanto urge numa decisão provisória como numa decisão final.
Em conclusão, antes de tomar decisão, provisória ou final, a respeito de uma criança, o tribunal ou a ouve, ou indica porque é desaconselhável proceder a essa audição, como o prevê o artigo 4.º, n.º 2.
1.6. A obrigatoriedade de audição da criança verifica-se quando:
a) A matéria a decidir respeita à criança;
b) A criança tem maturidade para compreender a matéria em causa;
c) A audição não é prejudicial ao interesse da criança.
O primeiro requisito verifica-se quando se trata de regular as responsabilidades parentais em favor de uma criança, o que é necessariamente um assunto que lhe respeita, embora ainda devam ter-se em conta as diversas dimensões da decisão. Assim, por exemplo, se se trata apenas de saber qual a medida de participação de cada um dos pais nas despesas da criança, a matéria a decidir não pode entender-se genericamente como respeitando à criança em termos de convocar o seu direito a ter voz no processo, sem prejuízo de assim acontecer em circunstâncias específicas.
O segundo requisito implica uma avaliação da maturidade da criança em relação com a matéria em causa, sendo certo que são muito diversas as matérias decididas em sede de regulação das responsabilidades parentais, desde as que respeitam à guarda e residência, até as que respeitam às despesas necessárias à criança e à capacidade dos pais as suportarem, até a questões de saúde ou de educação. A criança pode ter maturidade quanto a algumas delas e não a ter relativamente a outras.
Os instrumentos da União Europeia, aliás, ressalvam para o direito interno a apreciação da maturidade e capacidade de compreensão da criança, centrando a possibilidade de dispensa de audição.
O último requisito implica uma apreciação concreta das circunstâncias da criança, em sentido amplo, para avaliar se a audição é prejudicial ao seu interesse.
 1.6. Apreciando o caso dos autos à luz daqueles indicados requisitos.
A decisão provisória foi impugnada na parte em que alterou a situação de facto que vigorava anteriormente quanto a duas concretas questões: a alternância de pernoita uma vez por semana e o acompanhamento da M após as actividades escolares.
Aquelas duas questões colocam-se nos autos com os seguintes contornos: desde a separação dos pais que na semana em que está com o pai a M.. pernoita a meio da semana em casa da mãe e vice-versa; a avó materna vai buscar a M.. à escola cerca das 17:00 quando terminam as actividades escolares e a criança espera em casa da avó pelo pai ou pela mãe, consoante com quem esteja nessa semana.
A mãe da M.. entende que este sistema é essencial ao bem-estar da criança por uma semana sem ver um dos pais ser demasiado tempo na idade da M.. e por o convívio com a avó ser um apoio emocional da criança a quem esse apoio sempre foi proporcionado, não sendo igualmente apto a satisfazer o equilíbrio da M.. a espera na escola até o pai a vir buscar ou a ida para casa dos avós paternos quando o avô a viesse buscar.
O pai entende que a alternância na pernoita e a permanência em casa da avó materna em cada final de tarde não são necessidades da M.., mas de a mãe controlar a vida da criança e de pretender que ela se relacione preferencialmente com a família materna.
 A M.. tem 7 anos de idade, completa os 8 anos no próximo dia 1 de Dezembro. Sem outros dados, e outros não existem no processo, não é de excluir que uma criança de 7 anos, idade do chamado ingresso na idade da razão, tenha capacidade para se pronunciar a respeito desta questão, com as cautelas de que a audição se deve revestir e que o artigo 5.º, n.º 2, 3, 4 e 5, indica.
Nenhum dado existe que permita concluir, sem outra apreciação, que essa audição seja prejudicial ao interesse da criança.
Aliás, a inexistir maturidade ou prejuízo, essa questão haveria de ter sido decidida pelo Tribunal (tanto mais quanto a audição da criança foi pedida pela mãe - REFª: 42204270), por nada permitir excepcionar a obrigatoriedade de audição ou de decisão que a exclua.
Em suma, conclui-se que no caso dos autos a decisão não foi precedida de audição obrigatória ou de decisão de exclusão dessa audição e que tal constitui exigência legal antes da prolação de decisão quanto aos aspectos da vida da menor que foram colocados em questão neste recurso.
1.7. Importa analisar as consequências da preterição desta audição sem despacho justificativo da exclusão.
Literalmente, a situação pode enquadrar-se no regime das nulidades processuais enquanto omissão de um acto que a lei prescreve – artigo 195.º, n.º 1, do CPC[6]. Assim, o acórdão desta Relação e Secção de 14 de Abril de 2005, proferido no processo 1634/2005-6 (Manuel Gonçalves).
Enquadramento possível é o de considerar a omissão de audição como integrando vício da previsão do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, determinando a anulação da decisão para ampliação da sua base fáctica. Assim, o acórdão desta Relação de 9 de Novembro de 2021, proferido no processo 1117/14.0TMLSB-F.L1-7 (Luís Filipe Pires de Sousa), e o da Relação do Porto de 8 de Outubro de 2020, proferido no processo 2970/19.0T8PRT-C.P1 (Filipe Caroço).
Numa terceira posição, a jurisprudência vem tratando amiudadamente a omissão de que nos ocupamos como de direito material, com consequência de invalidade da decisão, excluindo o seu tratamento no âmbito das nulidades processuais, fazendo repercutir o vício directamente na decisão enquanto invalidade desta.
Encontramos enunciada esta posição no acórdão do STJ de 14 de Dezembro de 2016, proferido no processo 268/12.0TBMGL.C1.S1 (Maria dos Prazeres Beleza) e no desta Relação e Secção de 14 de Julho de 2020, proferido no processo 24889/19.0T8LSB-A.L1-6 (Nuno Ribeiro).
Refere o aresto do STJ:
Não é adequado aplicar o regime das nulidades processuais à falta de audição. Entende-se antes que essa falta afecta a validade das decisões finais dos correspondentes processos, por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva e, por isso mesmo, processual.
1.8. Seguimos esta última posição.    
Como dissemos, a omissão em causa não é a omissão de um acto enquanto trâmite processual previsto pela lei, mas o desrespeito por um princípio enformador do direito das crianças, com repercussão processual, mas natureza substantiva, enquanto direito a ser ouvido, a ser-lhe proporcionada a liberdade de expressão de um verdadeiro sujeito de direitos e direito a fazer ouvir a sua voz no que lhe respeita, segundo a sua maturidade e capacidade de compreensão. O que afasta o enquadramento enquanto nulidade processual.
Por outro lado, embora sejam configuráveis situações de possível enquadramento no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, quando a audição da criança sirva os propósitos do artigo 5.º, n.º 6, do RGPTC, não é menos certo que o direito da criança a ser ouvida, a dimensão fundamental do princípio, mantém-se íntegro mesmo quando considerações de necessidade probatória não intervenham.
No caso dos autos, aliás, não se coloca uma questão de falência probatória a demandar nova produção de prova, mas a violação do direito da criança a ser ouvida, o que sempre excluiria o enquadramento na previsão da norma do artigo 662.º, do CPC.
1.9. Trata-se assim da prolação de uma decisão com omissão de um acto que a lei estabelece como essencial seja previamente respeitado.
Em casos similares a posição que vem sendo repetidamente defendida por Miguel Teixeira de Sousa, nas suas diversas pronúncias sobre a questão, é a que o post de 8 de Setembro de 2020 condensa:
a) O acórdão segue a orientação que sempre se defendeu neste Blog: o proferimento de uma decisão que devia ter sido antecedida de um acto que foi indevidamente omitido implica a nulidade da decisão proferida por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC). Sobre o problema, cf. Jurisprudência 2019 (242)).
Uma sentença só pode constituir uma nulidade processual nos termos do art. 195.º CPC se o que estiver em causa não for a sentença como acto, mas antes a sentença como trâmite. Se, a seguir à fase dos articulados, o juiz proferir, em processamento normal, a sentença final, este proferimento constitui uma nulidade processual, porque a sentença é proferida num momento que não é o estabelecido pela lei.
Sempre que o que esteja em causa seja o conteúdo da sentença (e em que, portanto, a sentença tenha de ser vista como acto), o que pode haver é uma nulidade da sentença, nunca uma nulidade processual.
b) Diferente da situação analisada no acórdão - o tribunal omite um acto essencial e, ainda assim, profere uma decisão - é aquela em que existe uma decisão do tribunal que dispensa esse acto. Neste caso, trata-se de uma decisão contra legem que é impugnável nos termos gerais (mas com a limitação imposta pelo art. 630.º, n.º 2, CPC).
 Em conclusão:
- a não audição da criança antes da prolação da decisão que lhe respeita tem de ser apreciada e decidida em despacho judicial, impugnável nos termos gerais.
- a omissão de audição, sem despacho que a justifique, constitui, com repercussão na decisão proferida por a tornar nula em razão de decidir de matéria sobre a qual lhe estava vedada pronúncia sem aquela audição, vício da previsão do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
1.9. Embora a Recorrente tenha qualificado diferentemente as consequências da não audição, não está vedado à Relação diferente enquadramento jurídico, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC.
Do que se conclui que a decisão recorrida deve ser anulada para audição da M...

IV) DECISÃO
Pelo exposto, ACORDAM em anular a decisão provisória de regulação das responsabilidades parentais, determinando a audição da criança antes da prolação de nova decisão.
Custas pelo Recorrido – artigo 527.º, n.º 2, do CPC.
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Lisboa, 10-11-2022
Ana de Azeredo Coelho
Eduardo Petersen Silva
Manuel Rodrigues
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[1] Sobre a distinção o acórdão do STJ de 29 de Abril de 2021, proferido no processo 4661/16.0T8VIS-R.C1.S1, e o desta Relação e Secção de 6 de Junho de 2019, proferido no processo 3573/14.7T8FNC-C.L1-6 (Gabriela de Fátima Marques).
[2] Consultada em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:12016P/TXT&from=FR.
[3] In O Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho e o princípio da audição da criança, SCIENTIA IVRIDICA, TOMO LV N.° 306 — ABR1L/JUNHO 2006, p. 208.
[4] Op. cit., p. 219.
[5] In Código Civil Anotado, livro IV, Almedina, 2022, 2.ª edição, p. 905.
[6] Assim, acórdão desta Relação e Secção de 14 de Abril de 2005, proferido no processo 1634/2005-6 (Manuel Gonçalves)