Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA CARLOS DUARTE DO VALE CALHEIROS | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO PAULIANA REQUISITOS DOAÇÃO DATA DA CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO DATA DO VENCIMENTO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Sumário: | (da responsabilidade da Relatora) I - A matéria constante das alíneas a), b) – parte final e c) da decisão de facto, no segmento relativo aos factos não provados, que consubstancia conceitos de direito e/ou juízos conclusivos, tem de se considerar como não escrita, não podendo integrar a fundamentação de facto dessa decisão. II - Confunde o tribunal a quo a constituição do crédito com o seu vencimento, olvidando que apenas a primeira releva para efeitos do instituto de impugnação pauliana. III - À data da outorga do contrato de doação impugnado nestes autos o crédito da Recorrente já se encontrava constituído, e correspondia ao capital mutuado que ainda faltava pagar, embora ainda não estivesse vencido. IV - Para o efeito de apurar a verificação do requisito da impossibilidade de satisfação do crédito do impugnante, ou do agravamento dessa impossibilidade, apenas releva a situação patrimonial dos 1º e 2º Réus e não a dos demais devedores. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa: I – RELATÓRIO Banco Santander Totta, S.A., identificada nos autos, intentou a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra J., M., A., e R., também identificados nos autos, pedindo: a) a declaração de ineficácia do acto de doação celebrado pelos Primeiro e Segundo Réus a favor dos Terceiro e Quarto Réus em relação à Autora; b) a condenação dos Terceiro e Quarto Réus a reconhecer o direito da Autora de executar tais bens nos seus patrimónios até ao limite do seu crédito. Para tanto alegou, em síntese, ser detentora de um crédito sobre os réus J. e M., e que da doação que estes fizeram do imóvel de que eram proprietários aos demais Réus decorre a impossibilidade de obter a satisfação integral desse crédito. Os Réus contestaram, por impugnação, sustentando não se mostrarem preenchidos os requisitos de que depende o deferimento da impugnação pauliana. Foi proferida sentença julgando a acção improcedente e absolvendo os Réus do pedido. Inconformada com a decisão a Autora veio interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões, que se transcrevem: a) No dia 07-09-2007, a Autora Banco Santander Totta S.A, e ora recorrente no exercício da sua actividade, celebrou com os réus JP… e C… dois contratos de mútuo com hipoteca: a. Contrato n.º 0030.00496074280, mediante o qual aquele emprestou a estes a quantia de €167.000,00, pelo prazo de 420 meses, para aquisição de habitação própria permanente; b. Contrato n.º 0040.00495711070, mediante o qual aquele emprestou a estes a quantia de €60.000,00, destinado a fazer face a compromissos financeiros. b) Os Primeiro e Segundo Réus, J… e M…, pais do mutuário JP…, constituíram-se fiadores e principais pagadores de todas as obrigações emergentes dos ditos contratos, com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia. c) Em 14-10-2016, os Primeiro e Segundo Réus doaram aos Terceiros e Quarto Réus, a propriedade do imóvel sito na Quinta …, lote …, Rua …, n.º …, na freguesia da …, correspondente à fração “B”, descrito sob o n.º … na Conservatória do Registo Predial da …, inscrito na matriz predial sob o artigo …, com o valor patrimonial de €58.890,19, correspondendo o direito de doação ao valor de €44.167,64, encontrando-se registado quanto àquele imóvel um usufruto a favor dos Primeiros e Segundo Réus. d) Os Terceiros e Quarto Réus são filhos de JP… e C… e netos dos Primeiros e Segundo Réus. e) A 26-02-2016 o ora Autor e recorrente remeteu aos Primeiro e Segundo Réus duas cartas registadas com AR, para o pagamento voluntário do valor total de €236.814,14, recebidas por estes a 03-03-2016. f) Corre termos processo executivo sob o n.º 2515/16.0T8ALM, junto do J2 do Juízo de Execução de Almada, no qual é exequente o ora Autor Banco Santander Totta, S.A. e executados JP… e os Primeiro e Segundo Réus, sendo o valor da execução de €237.365,36 (duzentos e trinta e sete mil, trezentos e sessenta e cinco euros e trinta e seis cêntimos), acrescido dos juros de mora devidos, contabilizados desde a data de vencimento da livrança até efectivo e integral pagamento, bem como o respectivo imposto de selo, o qual teve na sua origem a falta de pagamento por parte de JP… e C… das prestações estipuladas nos acordos mencionados no ponto a). g) No âmbito do processo executivo identificado em 13., em 14-12-2017 foi penhorado um Prédio sito em P… ou F… , Lote …, Rua …, n.º …, na freguesia da …, conselho do Seixal, descrito sob o n.º …, na Conservatória do Registo Predial da … e inscrito na matriz predial sob o artigo … da referida freguesia, no valor de €151.365,66 (cento e cinquenta e um mil euros trezentos e sessenta e cinco euros e sessenta e seis cêntimos). h) No âmbito do processo executivo identificado em 13., em 17-04-2019, o imóvel identificado no ponto anterior foi adjudicado, pelo valor de €139.321,22 (cento e trinta e nove mil trezentos e vinte e um euros e vinte e dois cêntimos), tendo o ora Autor recebido €132.821,79 por conta dessa venda. i) Com a doação do imóvel identificado no ponto c) os Primeiros e Segundo Réus, tiveram como objectivo impedir o ora Autor de ver o seu crédito ressarcido, impossibilitando-o de recuperar a quantia exequenda peticionada no processo de execução. j) Tal acto implicou a impossibilidade de o Autor obter a satisfação total ou integral do seu crédito. k) Aquando da doação, os Primeiro e Segundo Réus tinham pleno conhecimento de que se encontravam em dívida para com o Autor e fizeram-no com o claro intuito de dissipar o seu património e, dessa forma, impedir a penhora do imóvel e consequente venda no processo executivo. l) Os restantes bens apurados em nome dos Primeiro e Segundos, era claramente insuficientes para liquidar a dívida exequenda,, impossibilitando-o de recuperar a quantia exequenda peticionada no processo de execução m) Já no Processo n.º 1413/19.0T8VRL, referente à insolvência singular do mutuário JP…. Não se verifica a litispendência por falta de preenchimento dos requisitos. n) O Banco Santander adjudicou o imóvel hipotecado ao mesmo (sobre o Prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …/… e inscrito na respectiva matriz com o artigo ….º) pelo valor de €40.076,35. o) O imóvel adjudicado pelo Banco Santander no referido processo de Insolvência de JP…, é referente a outra operação bancária, e nenhuma que tenha sido executada no processo executivo n.º 2515/16.0T8ALM. p) Não existindo litispendência entre estes processos, porque não existe repetição da causa. q) Por último no processo n.º 8/13.9TBMAC, referente à insolvência de C…, foi proferido despacho de encerramento por insuficiência da massa, e nenhuma quantia foi ressarcida pelo Banco. r) Face ao exposto, pretende o Autor Banco Santander Totta e ora recorrente que seja declarada a ineficácia do acto de doação celebrado pelos Primeiro e Segundo Réus a favor dos Terceiros e Quarto Réus em relação ao Autor, nos termos e para os efeitos do artigo 610.º do Código Civil. s) Essa transmissão teve por objectivo impossibilitar o Autor de obter o pagamento do seu crédito. t) Alicerça tal entendimento o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 18-02-2003 (processo n.º 10687/2002-7) e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proc. n.º 07B3586. u) Os Réus J… e M… não beneficiam de excussão prévia e são tão principais pagadores quanto os mutuários (ambos insolventes). v) O imóvel alienado de forma intencional e dolosa permitiria à Autora recuperar, ainda que parcialmente o seu crédito. Nestes termos e nos mais de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve a douta sentença ser revogada e os Réus serem condenado no pedido, com as legais consequências, assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA! Os Recorridos apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso interposto. Na sequência de convite do tribunal para completar as conclusões do recurso a Recorrente veio completar as conclusões nos seguintes termos: w) Ora da leitura da sentença do Tribunal de primeira instância, existe uma clara interpretação errada do artigo 610.º do Código Civil. x) De acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 436/16.5T8LRA.C1.S2 “a procedência da impugnação pauliana exige que do acto que dela é objecto possa resultar a impossibilidade de o credor obter, de facto, a satisfação integral do seu crédito ou, pelo menos, o agravamento dessa impossibilidade. Está em causa o prejuízo causado pelo acto (impugnado) à garantia patrimonial. “O acto, começa o artigo 610° por dizer, há-de envolver diminuição da garantia patrimonial do crédito. Diminuição de garantia que pode traduzir-se tanto numa perda ou decréscimo do activo (v.g. a doação de um imóvel), como num aumento do passivo (por exemplo, assunção da dívida de outrem, afiançamento de débito alheio), visto por qualquer essas vias pode diminuir o conjunto de valores penhoráveis que, nos termos do artigo 610º do Código Civil, respondem pelo cumprimento da obrigação” y) O que é claramente evidente na situação em apreço. z) Mais se dirá, e conforme consta no Acórdão do Supremos Tribunal de Justiça, “é pacificamente aceite pela jurisprudência que, de acordo com o preceituado no art.º 611º do CCivil, basta ao credor fazer prova do montante do seu crédito, impendendo sobre o devedor o ónus de demonstrar que o seu património é composto por bens suficientes para garantir essa satisfação, o que se justifica pela maior facilidade que aquele tem em efectuar essa prova. Assim, provado pelo impugnante o montante do crédito, presume-se a impossibilidade da respectiva satisfação ou o seu agravamento, por via do acto impugnado. Caberia, assim, aos devedores (Recorrentes) enquanto interessados na manutenção do acto impugnado, e não ao A., na qualidade de credor, realizar a prova desse requisito negativo de que aqueles devedores seriam titulares de outros bens penhoráveis, de igual ou maior valor, para além do bem imóvel que foi alienado. Facto que não lograram demonstrar.” aa) Ora a sentença recorrida, vai em sentido completamente oposto ao Acórdão do STJ supra mencionado, na medida que foi devidamente demonstrado pelo Recorrente a prova do montante do seu crédito, e que com a doação dolosa realizada pelos Recorridos existiu um agravamento na impossibilidade da respectiva satisfação do crédito que detinha. bb) Por outro lado, em momento algum os Recorrentes provaram de forma credível que seriam titulares de outros bens penhoráveis, de igual ou maior valor, para além do bem imóvel que foi alienado. cc) Ainda de acordo com o acórdão do STJ n.º 436/16.5T8LRA.C1.S2 de 23/05/2019 em apreço: “não é necessário que o credor proceda à excussão do património do devedor, para que se verifique a impossibilidade por parte deste em assegurar a satisfação do crédito, sendo suficiente o mero perigo concreto dessa frustração. Esta impossibilidade, conforme resulta da regra especial sobre repartição do ónus de prova, contida no art.º 611°, do C.Civil, afere-se através duma avaliação da situação patrimonial do devedor após a prática do acto a impugnar. Assim, a verificação do prejuízo não depende de saber se o credor impugnante virá, a final, a obter ou não a satisfação do seu crédito, mas sim de um dado objectivo, que, efectivamente, se verificou no caso sub judice. “A alienação do imóvel representou uma diminuição do património do devedor, provocando um dano actual à expectativa jurídica do credor de que esse património pudesse garantir a satisfação do seu crédito”. Como refere João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2ª ed., p. 175, “Nascendo com a constituição do crédito essa expectativa jurídica, é ela que é lesada quando o devedor pratica um acto que diminui decisivamente o património-garante, tornando-o ineficaz para desempenhar a sua função de garantia. É esta lesão efectiva que a impugnação pauliana procura neutralizar, não sendo um meio de intervenção judicial cautelar.” dd) Deste modo, o acto impugnado fez diminuir de forma decisiva o património-garante, causando um dano real e actual à expectativa do credor em ver assegurada a satisfação integral do seu crédito. ee) No mesmo sentido, corrobora também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1691/21.4T8VIS.C1.S1 de 10/12/2023. ff ) “A impugnação pauliana (art.º 610º do Código Civil) pode ter lugar não apenas quando o património do devedor não constitua acervo com capacidade ou valor de mercado suficiente para pagar uma determinada dívida, mas também quando, apesar de esse acervo ter essa suficiência, não tem o mesmo valor capaz de garantir o pagamento de todas as dívidas conhecidas por cujo pagamento o devedor é responsável. gg) A verificação desta insuficiência, aferida à data do momento da prática do acto impugnado (por ser nesse momento que pode suceder a violação da garantia patrimonial do credor), significa que a garantia patrimonial de qualquer crédito comum se revela corrompida, tendo os respectivos credores deixado de ter a segurança da satisfação integral dos seus direitos, ou sofrendo o agravamento dessa impossibilidade (art.º 610º al. b) do Código Civil). hh) O requisito da al. b) do art.º 610º do CC, de que resulte do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade, abrange “não apenas os casos em que o acto implique uma situação de insolvência, mas também aqueles em que o acto produza ou agrave a impossibilidade prática do credor obter a satisfação do seu crédito. ii) Incumbindo ao devedor, nos termos do art.º 611º do CC, interessado na manutenção do acto impugnado, a prova de que o seu património possuía, na data da celebração do acto impugnado, outros bens penhoráveis de igual ou maior valor que o montante da sua dívida para com o impugnante, daquele normativo resultando um desvio aos princípios gerais do ónus da prova ínsitos nos arts. 342.º e ss. do CC, bastando ao credor provar o montante, a impossibilidade da respectiva satisfação ou o seu agravamento” jj) Face ao exposto, e de forma inequívoca, apesar de todos os argumentos completamente infundados dos Recorrentes, mostra-se totalmente preenchidos o requisito da al. b) do art.º 610º do CCivil, pelo que deverá a referida decisão do Tribunal de primeira instância ser revertida, nomeadamente quanto ao pedido de declaração de ineficácia do acto de doação celebrado pelos 1.º e 2.º Recorridos a favor dos 3.º e 4.º Recorridos quanto ao bem imóvel sito na Quinta …, lote …, Rua …, n.º …, na freguesia da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º .... Nestes termos e nos mais de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve a douta sentença ser revogada e os Recorridos serem condenado no pedido do Recorrente quanto à declaração de ineficácia do acto de doação ao bem imóvel sito na Quinta …, lote …, Rua …, n.º …, na freguesia da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º ….assim se fazendo a tão costumada Justiça. Os Recorridos não se pronunciaram. Colhidos os vistos legais cumpre decidir. II – OBJECTO DO RECURSO O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões formuladas pelo Recorrente na motivação do recurso em apreciação, estando vedado a este Tribunal conhecer de questões aí não contempladas, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se impõe (artigos 635º, nº 2, 639º, nº1 e nº 2, 663º, nº2 e 608º, nº 2, do C.P.C.) Deste modo, as questões que cumpre apreciar são as seguintes: - exclusão de juízos conclusivos e de direito inseridos na decisão de facto; - apreciar se no caso em análise se verificam os requisitos da impugnação pauliana relativamente ao acto de doação dos Primeiro e Segundo Réus a favor dos Terceiros e Quarto Réus da propriedade do imóvel sito na Quinta …, lote …, Rua …, n.º …, na freguesia da ..., correspondente à fracção “B”, descrito sob o n.º … na Conservatória do Registo Predial da .... III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A) O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos: 1. O Autor Banco Santander Totta, S.A. é uma instituição de crédito cujo objecto social é constituído pelo exercício da actividade bancária. 2. No dia 07-09-2007, o Autor, no exercício da sua actividade, celebrou com JP... e C… um acordo, com subscrição de documento escrito intitulado “contrato n.º 0030.00496074280 (com hipoteca e fiança)”, pelo prazo de 420 meses, mediante o qual aquele entregou a estes, a título de empréstimo, a quantia de €167.000,00 (cento e sessenta e sete mil euros), valor destinado a “aquisição de habitação própria permanente”. 3. Da cláusula sexta do acordo consta, além do mais, que: “A “IC” confere ao “Mutuário” o direito de beneficiar de um período de carência de 60 (sessenta) meses a contar da data da celebração do presente contrato” (…) “Findo o período de carência pelo decurso do seu prazo, o capital mutuado e em dívida será pago em prestações mensais, constantes e sucessivas, de capital e juros, vencendo-se a primeira na mesma data do vencimento da primeira prestação de juros que se vencer após o termo do período de carência”. 4. Da cláusula nona do acordo consta que: “Para garantia de todas as responsabilidades assumidas nos termos do presente contrato, designadamente amortização do capital mutuado, pagamento de juros, encargos contratuais ou prémios de seguro que “IC” venha a pagar em substituição do “Mutuário”, este constitui hipoteca sobre o(s) seguinte(s) imóvel(is): Prédio descrito sob o n.º …, da freguesia de ..., na Conservatória do Registo Predial da ..., inscrito na matriz predial sob o artigo …. A referida hipoteca encontra-se já inscrita provisoriamente a favor da “IC” pela inscrição C-AP 25/20070816.” 5. Os 1.º e 2.º Réus, J… e M…, pais de JP..., figuram no aludido acordo como fiadores, com renúncia ao benefício de excussão prévia e principais pagadores (cf. cláusula décima nona do acordo). 6. No dia 07-09-2007, o Autor, no exercício da sua actividade, celebrou com JP… e C… um acordo, com subscrição de documento escrito intitulado “contrato n.º 0040.00495711070, (com hipoteca e fiança)”, pelo prazo de 420 meses, mediante o qual aquele entregou a estes, a título de empréstimo, a quantia de €60.000,00 (sessenta mil euros), valor destinado a “fazer face a compromissos financeiros”. 7. Da cláusula sexta do acordo consta, além do mais, que: “A “IC” confere ao “Mutuário” o direito de beneficiar de um período de carência de 60 (sessenta) meses a contar da data da celebração do presente contrato” (…) “Findo o período de carência pelo decurso do seu prazo, o capital mutuado e em dívida será pago em prestações mensais, constantes e sucessivas, de capital e juros, vencendo-se a primeira na mesma data do vencimento da primeira prestação de juros que se vencer após o termo do período de carência”. 8. Da cláusula nona do acordo consta que: “Para garantia de todas as responsabilidades assumidas nos termos do presente contrato, designadamente amortização do capital mutuado, pagamento de juros, encargos contratuais ou prémios de seguro que “IC” venha a pagar em substituição do “Mutuário”, este constitui hipoteca sobre o(s) seguinte(s) imóvel(is): Prédio descrito sob o n.º …., da freguesia de ..., na Conservatória do Registo Predial da ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ….. A referida hipoteca encontra-se já inscrita provisoriamente a favor da “IC” pela inscrição C-AP 26/20070816.” 9. Os 1.º e 2.º Réus, J… e M…, pais de JP..., figuram no aludido acordo como fiadores, com renúncia ao benefício de excussão prévia e principais pagadores (cf. cláusula décima nona do acordo). 10. Em 14-10-2016, os 1.º e 2.º Réus doaram aos 3.º e 4.º Réus, a propriedade do imóvel sito na Quinta ..., lote ..., Rua …, n.º …, na freguesia da ..., correspondente à fração “B”, descrito sob o n.º …. na Conservatória do Registo Predial da ..., inscrito na matriz predial sob o artigo …, com o valor patrimonial de €58.890,19, correspondendo o direito de doação ao valor de €44.167,64, encontrando-se registado quanto àquele imóvel um usufruto a favor dos 1.º e 2.º Réus. 11. Os 3.º e 4.º Réus são filhos de JP… e C… e netos dos 1.º e 2.º Réus. 12. Em 26-02-2016 o ora Autor remeteu aos ora 1.º e 2.º Réus duas cartas registadas com AR, para o pagamento voluntário do valor total de € 236.814,14, recebidas por estes a 03-03-2016, nos seguintes termos: “Assunto: contrato de empréstimo n.º 000303100798096, datado de 07 de setembro de 2007 (…) deverão V. Exas, proceder no prazo de dez dias a contar da recepção ou da devolução desta comunicação à regularização das responsabilidades vencidas decorrentes do mencionado contrato, que nesta data ascendem a EUROS 174 469,38 (cento e setenta e quatro mil quatrocentos e sessenta e nove euros e trinta e oito cêntimos), correspondendo: EUROS 167.000,00, capital em dívida; EUROS 163,66, a juros compensatórios; EUROS 7.305,72, a juros de mora; EUROS 0,00, a imposto de selo” “Assunto: contrato de empréstimo n.º 000303100822096, datado de 07 de setembro de 2007 (…) deverão V. Exas, proceder no prazo de dez dias a contar da receção ou da devolução desta comunicação à regularização das responsabilidades vencidas decorrentes do mencionado contrato, que nesta data ascendem a EUROS 62.344,76 (sessenta e dois mil trezentos e quarenta e quatro euros e setenta e sete cêntimos), correspondendo: EUROS 60.000,00, capital em dívida; EUROS 58,80, a juros compensatórios; EUROS 2.209,14, a juros de mora; EUROS 76,82, a imposto de selo” 13. Corre termos processo executivo sob o n.º 2515/16.0T8ALM, junto do J2 do Juízo de Execução de Almada, no qual é exequente o ora Autor Banco Santander Totta, S.A. e executados JP… e os 1.º e 2.º Réus, sendo o valor da execução de €237.365,36 (duzentos e trinta e sete mil, trezentos e sessenta e cinco euros e trinta e seis cêntimos), acrescido dos juros de mora devidos, contabilizados desde a data de vencimento da livrança até efectivo e integral pagamento, bem como o respectivo imposto de selo, o qual teve na sua origem a falta de pagamento por parte de JP... e C… das prestações estipuladas nos acordos mencionados nos pontos 2. a 9., “que se venceram após 02-04-2015 (no “contrato n.º 0030.00496074280”) e 02-06-2015 (no “contrato n.º 0040.00495711070”), determinando assim o vencimento das demais, de acordo com o disposto nos arts. 781.º e 817.º do Código Civil.” (cf. processo executivo). 14. No âmbito do processo executivo identificado em 13., em 14-12-2017 foi penhorado um Prédio sito em P… ou F… da ..., Lote …, Rua …, n.º …, na freguesia da ..., conselho do Seixal, descrito sob o n.º …., na Conservatória do Registo Predial da ... e inscrito na matriz predial sob o artigo … da referida freguesia, no valor de €151.365,66 (cento e cinquenta e um mil euros trezentos e sessenta e cinco euros e sessenta e seis cêntimos). 15. No âmbito do processo executivo identificado em 13., em 17-04-2019, o imóvel identificado no ponto anterior foi adjudicado, pelo valor de €139.321,22 (cento e trinta e nove mil trezentos e vinte e um euros e vinte e dois cêntimos), tendo o ora Autor recebido €132.821,79 por conta dessa venda. 16. No âmbito do processo executivo identificado em 13., em 04-06-2019 foi penhorado 1/3 da pensão do ora 1.º Réu e 1/3 da pensão da ora 2.ª Ré. 17. No dia 24-07-2023 encontrava-se penhorado, a título de pensões o valor de € 2.301,32 (dois mil trezentos e um euros e trinta e dois cêntimos). 18. No âmbito do processo executivo identificado em 13., em 10-07-2019 foram penhorados os seguintes depósitos bancários junto da Caixa Geral de Depósitos, S.A., os quais perfazem o montante total de €7.492,01: a) depósito à ordem, no valor de €2.197,96; b) depósito a prazo, no valor de €2.500,00; c) depósito à ordem, no valor de €147,03; d) depósito a prazo, no valor de €2.500,00; e) depósito à ordem, no valor de €147,02. 19. Os 1.º e 2.º Réus foram citados no processo executivo identificado em 13. em 05-01-2018. 20. Pela apresentação 967 de 2011/06/20, foi inscrita a favor de JP… a aquisição, por compra, da propriedade do Prédio Urbano sito em ..., na freguesia e concelho de …, descrito na Conservatória Registo Predial de … sob o n.º … e inscrito na matriz sob o artigo … da união das freguesias de …, P… e A…. 21. Pela apresentação 999 de 2017/12/14, foi registada no prédio identificado em 20. uma penhora no âmbito do processo de execução n.º 6469/16.4T8SNT, cancelada pela apresentação 1344 de 2020/07/24. 22. Pela apresentação 563 de 2018/08/30, foi registada no prédio identificado em 20. uma penhora no âmbito do processo de execução n.º 1258/16.9T8ENT, cancelada pela apresentação 1344 de 2020/07/24. 23. Pela apresentação 1344 de 2020/07/24 foi inscrita a favor de Banco Santander Totta, S.A., a aquisição, por compra em processo de insolvência, da propriedade do prédio identificado em 20, sendo o valor de venda €40.076, 35. 24. Encontra-se registado a favor do 1.º Réu a propriedade de um veículo automóvel da marca Fiat, matrícula ..-..-UU, desde 18-01-2012, e de um veículo automóvel da marca Opel, matrícula ..-..-EC, desde 01-04-1997. 25. O veículo automóvel acima identificado, de marca Fiat, com um valor não concretamente apurado, mas com um valor de mercado de, aproximadamente, cerca de €2.000,00 (dois mil euros). 26. O veículo automóvel acima identificado, de marca Opel, com um valor não concretamente apurado, mas um valor de mercado de, aproximadamente, cerca de €500,00 (quinhentos euros). 27. No processo n.º 1413/19.0T8VRL, junto do Juízo do Comércio de Vila Real, foi JP… declarado insolvente, por sentença transitada em julgado em 29-08-2019. 28. O ora Autor Banco Santander Totta, S.A. é credor no processo de insolvência identificado em 27., tendo-lhe sido reconhecido um crédito no valor de €187.583,46, encontrando-se os autos a aguardar a exoneração do passivo restante. 29. No processo n.º 8/14.9TBMAC, junto do Juízo do Comércio de Santarém, foi C… foi declarada insolvente, sentença transitada em julgado em 18-02-2014. 30. No processo de insolvência identificado em 29. foi proferido despacho de encerramento por insuficiência da massa insolvente. B) O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos: a) Com a doação do imóvel identificado no ponto 10. os 1.º e 2.º Réus dissiparam todo o seu património conhecido. b) Com a doação do imóvel identificado no ponto 10. pelos 1.º e 2.º Réus aos 3.º e 4.º Réus, em 14-10-2016, estes tiveram como objectivo impedir o ora Autor de ver o seu crédito ressarcido, impossibilitando-o de recuperar a quantia exequenda peticionada no processo de execução. c) Tal acto implicou a impossibilidade de o Autor obter a satisfação total ou integral do seu crédito. d) Aquando da doação, os 1.º e 2.º Réus tinham pleno conhecimento de que se encontravam em dívida para com o Autor e fizeram-no com o claro intuito de dissipar o seu património e, dessa forma, impedir a penhora do imóvel e consequente venda no processo executivo. IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Exclusão de juízos conclusivos e de direito inseridos na decisão de facto Apesar da Recorrente não ter impugnado a decisão de facto a mesma veio colocar em crise as conclusões e a valoração jurídica que o tribunal a quo indevidamente inseriu nas alíneas a), b) – parte final e c) da decisão de facto, no segmento relativo aos factos não provados. Ora a fundamentação de facto da sentença deve conter apenas matéria de facto, conforme decorre do disposto no nº 4 do artigo 607º do C.P.C.. A referência na norma do nº 4 do artigo 607º do C.P.C. a “factos” não deixa dúvidas sobre o entendimento aí consagrado, ou seja. que “o objecto da sua pronúncia aqui prevista limita-se, tão só e apenas, a factos, dela estando necessariamente excluída matéria conclusiva ou de direito”. (Acórdão da Relação de Guimarães de 18.1.2024, rel. Maria João Matos, disponível em www.dgsi.pt ) Com efeito “ apesar de não existir no actual CPC, de 2013, uma disposição idêntica ao art.º 646.º, n.º 4, do anterior CPC, de 1961 (onde se afirmava que se tinham como «não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito» [14]), entende-se hoje, tal como então, que há que distinguir na decisão de facto entre facto, direito e conclusão: pretende-se que a decisão de facto contenha apenas o facto simples, assertivamente afirmado e demonstrado; e dela sejam excluídos, quer meras realidades hipotéticas, quer conceitos de direito (salvo os que transitaram para a linguagem corrente, por assimilação pelo cidadão comum, uma vez que correspondem a um facto concreto, e desde que não constituem eles próprios o thema decidendu), quer conclusões, que mais não são do que a lógica ilação de premissas [15]. Logo, quando na fundamentação de facto de uma decisão judicial se contenham, como pretensos factos, realidades hipotéticas, conceitos de direito e/ou conclusões, deverão os mesmos ter-se por não escritos (isto é, necessariamente como inexistentes, enquanto factos)”. (Acórdão da Relação de Guimarães de 18.1.2024, rel. Maria João Matos, disponível em www.dgsi.pt; no mesmo sentido ver Acórdão da Relação de Évora de 28.6.2018, rel. Florbela Moreira Lança e jurisprudência aí citada, e Acórdão da Relação do Porto de 13.7.2022, rel. Fátima Andrade, também disponíveis em www.dgsi.pt ) Deste modo, “sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, o mesmo deve ser eliminado. Impõe-se, deste modo, uma apreciação da matéria de facto fixada sob esta perspectiva, não se podendo incluir na mesma a valoração jurídica de factos, mas apenas as circunstâncias de vida subjacentes a essas valorações que as possam vir a sustentar, na apreciação jurídica que sobre as mesmas venha a ser realizada, integrando, já estas, matéria de direito”. (Acórdão da Relação de Évora de 28.6.2018, rel. Florbela Moreira Lança, disponível em www.dgsi.pt ) Assim sucede com a matéria constante das alíneas a), b) – parte final e c) da decisão da facto, no segmento relativo aos factos não provados, que consubstancia conceitos de direito e/ou juízos conclusivos, a qual por conseguinte tem de se considerar como não escrita, não podendo integrar a fundamentação de facto dessa decisão. Importa não olvidar que “ a supressão de expressões de cariz jurídico-conclusivo, não tem a virtualidade de afastar a valoração dos concretos factos que constem da matéria de facto provada de afastar a valoração dos concretos factos que constem da matéria de facto provada, pois é com base em factos concretos que pode sustentar-se o juízo e não a partir de expressões conclusivas que representam conceitos/conclusões que não podem ser objecto de prova”. (Acórdão da Relação de Évora de 28.6.2018, rel. Florbela Moreira Lança, disponível em www.dgsi.pt ) Termos em que se julgam não escritas as seguintes alíneas da Fundamentação de Facto, segmento dos Factos Não Provados: a) Com a doação do imóvel identificado no ponto 10. os 1.º e 2.º Réus dissiparam todo o seu património conhecido. b) (…) impossibilitando-o de recuperar a quantia exequenda peticionada no processo de execução. c) Tal acto implicou a impossibilidade de o Autor obter a satisfação total ou integral do seu crédito. Apreciar se no caso em análise se verificam os requisitos da impugnação pauliana relativamente ao acto de doação dos Primeiro e Segundo Réus a favor dos Terceiros e Quarto Réus da propriedade do imóvel sito na Quinta …, lote …, Rua …, n.º …, na freguesia da ..., correspondente à fração “B”, descrito sob o n.º … na Conservatória do Registo Predial da .... Insurge-se a Recorrente contra a decisão do tribunal a quo de considerar que não se mostram preenchidos os requisitos previstos nas alíneas a) e b) do C. Civil, e de por conseguinte fazer improceder o pedido formulado. A Recorrente reclama nestes autos que seja declarada a ineficácia relativamente a si do negócio jurídico de doação realizado pelos réus J… e M… a favor dos réus A… e R…. Faz assim apelo ao instituto da impugnação pauliana, o qual configura “um meio de conservação da garantia geral do cumprimento de obrigações, com ela se tutelando o interesse dos credores contra o desvio do património pelo devedor que implique obstáculo absoluto à satisfação dos seus créditos ou o seu agravamento “. (Acórdão do STJ de 20.3.2012, rel. Martins de Sousa, disponível em www.dgsi.pt) Dispõe o artigo 610º do C.C. que os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as seguintes circunstâncias: a) o crédito for anterior ao acto ou, sendo posterior, tiver sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor, b) resulte do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade. Determina ainda o artigo 612º, nº 1 do C.C., que o acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé, procedendo quanto a acto gratuito ainda que ambos ajam de boa fé. Por seu lado determina o artigo 616º , nº 1 e nº 4 , do C.C., que julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei, sendo que os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido. Deste modo “ a respectiva acção não é de anulação ou real, tendo antes natureza pessoal ou obrigacional; destina-se a acção a conferir ao credor a possibilidade de obter, contra terceiro que procedeu de má fé ou se locupletou - ainda que de boa fé, se o acto for gratuito - a eliminação do prejuízo resultante do acto impugnado”, (Acórdão da R.P., de 21.02.1991, in C.J., Tomo I, p. 251). Constituem assim requisitos de procedência do instituto de impugnação pauliana: a) a existência de determinado crédito; b) que esse crédito seja anterior ao acto a impugnar ou, sendo posterior, que o acto tenha sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; c) que resulte do acto a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade da satisfação integral do crédito; d) e que o acto seja de natureza gratuito, ou sendo oneroso, a má fé do devedor e do terceiro, entendida esta como a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor. Não se limita no entanto o legislador à estatuição destes requisitos, procedendo igualmente no artigo 611º, do C.C. à repartição do ónus de prova respectivo “ em desvio ao regime geral sobre a sua distribuição “, fazendo recair sobre o credor a prova do montante do crédito, e ao devedor ou ao terceiro da existência na esfera patrimonial do obrigado de bens penhoráveis de valor igual ou superior.” (Acórdão do STJ de 20.3.2012, rel. Martins de Sousa, disponível em www.dgsi.pt) Deste modo “provada pelo impugnante aquela existência e quantidade do direito de crédito, se presume a impossibilidade da sua realização ou o seu agravamento”. (Acórdão do STJ de 8.10.2009, rel. Serra Baptista, disponível em www.dgsi.pt) Refira-se que a data a atender para esse efeito é a da realização do acto impugnado e, por conseguinte, se nessa data o devedor possuía bens de valor igual ou superior ao crédito a impugnação improcede. (Acórdão do STJ de 19.12.1972, in B.M.J. nº 22, pág. 386) Pelo contrário, “se o credor provar o montante das dívidas e não for feita pelo devedor ou por terceiro a prova da existência de bens penhoráveis no património do devedor a impugnação pauliana será naturalmente procedente” verificados os demais requisitos. (Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume II, 6ª ed., pág.308) Começa a decisão recorrida por sustentar que o crédito da Recorrente é posterior ao negócio jurídico objecto da impugnação pauliana, e,considerando que a impugnante não demonstrou que a doação foi realizada dolosamente com o propósito de impedir a futura satisfação do direito do futuro credor, afasta o preenchimento do requisito previsto na alínea a) do artigo 610º do C.P.C.. Confunde, no entanto, o tribunal a quo a constituição do crédito com o seu vencimento, olvidando que apenas a primeira releva para efeitos do instituto de impugnação pauliana. Conforme decidido pelo Acórdão da Relação de Lisboa de 28.2.2019, o “ critério a atender para a fixação da data de nascimento do crédito, para o efeito de se verificar a anterioridade do crédito relativamente ao acto que se pretende impugnar, varia em consonância com a sua origem e natureza. Assim, por exemplo, o crédito resultante de contrato nasce quando a declaração de aceitação é do conhecimento ou é cognoscível pela contraparte (art.º 224º, n.º 1, 1ª aparte, do CC) e o crédito de indemnização por responsabilidade civil nasce quando se verifica o evento determinante da obrigação de indemnizar (artigos 483º e 562º do CC).Não aludindo o art.º 610º, n.º 1, do Código Civil, ao vencimento como requisito da impugnação, limitando-se a exigir ser o crédito anterior ao acto, não será necessário que o crédito já se encontre vencido para que o credor possa reagir contra os actos (de diminuição de garantia patrimonial) anteriores ao vencimento, contanto que a constituição do crédito seja anterior ao acto”. (rel. Manuel Rodrigues, disponível em www.dgsi.pt; no mesmo sentido Acórdãos da Relação de Coimbra de 28.6.2016, rel. Arlindo Oliveira e da Relação de Guimarães de 29.6.2023 rel. Ana Cristina Duarte, disponíveis em www.dgsi.pt ) Ora à data da outorga do contrato de doação impugnado nestes autos o crédito da Recorrente já se encontrava constituído, e correspondia ao capital mutuado que ainda faltava pagar, embora ainda não estivesse vencido. Com efeito o crédito da Recorrente constituiu-se relativamente aos 1º e 2º Réus, fiadores dos mutuários, com a outorga pelos mesmos dos contratos de fiança a que aludem os factos 1º a 9º da fundamentação de facto da decisão recorrida. Na verdade, a fiança pela qual o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor, “tem natureza contratual e o seu estabelecimento depende de um encontro de vontades entre o fiador e credor, podendo a declaração de vontade deste último ser tácita.” (Acórdão da Relação de Lisboa de 15.5.2007, rel. Rui Vouga, disponível em www.dgsi.pt ) Deste modo sendo o crédito da Recorrente anterior à doação objecto da impugnação pauliana mostra-se preenchido o requisito preconizado pela alínea a) do artigo 610º do C. Civil. Afastou igualmente o tribunal a quo o preenchimento da alínea b) do artigo 610º do C. Civil por entender não ter ficado demonstrado que a doação do imóvel tivesse impedido a satisfação do crédito da Recorrente, com fundamento que na data em que foi realizada a doação quer os fiadores, quer os mutuários, detinham outros bens susceptíveis de garantir o valor mutuado à Recorrente. A impossibilidade a que alude a alínea b) do artigo 610º do C. Civil.” afere-se através de uma avaliação da situação patrimonial do devedor após a prática do acto a impugnar. É o peso comparativo das dívidas e do valor dos bens conhecidos do devedor que indicará se desse acto resultou a mencionada impossibilidade”. (Impugnação Pauliana, Cura Mariano, pág. 168) Por outro lado, “deste património apenas se atenderá ao valor dos bens penhoráveis, conforme resultado do disposto no art.º 611º, do C.C., uma vez só estes garantem a satisfação do crédito “. (Impugnação Pauliana, Cura Mariano, 2004,págs. 169 e 170) Decorre dos factos julgados provados que os bens que os 1º e 2º Réus detinham à data da outorga do contrato de doação eram: - o imóvel objecto da doação; - dois veículos automóveis, respectivamente no valor de 2.000,00 euros e 500,00 euros; - as pensões de reforma dos mesmos. Resulta assim evidente que os referidos Réus não detinham outros bens que pudessem assegurar a satisfação do crédito da Recorrente. Efectivamente para o efeito de apurar a verificação do requisito da impossibilidade de satisfação do crédito do impugnante, ou do agravamento dessa impossibilidade, apenas releva a situação patrimonial dos 1º e 2º Réus e não a dos demais devedores. Na verdade , “ no caso de existirem devedores solidários somente importa a situação do património no qual se integrava o bem sobre o qual recaiu o acto impugnado “ já que “ é característica da solidariedade a existência de várias garantias patrimoniais autónomas “, e por isso o credor pode atacar “ com a impugnação pauliana os actos praticados sobre qualquer um dos patrimónios-garantes que ponham em risco a sua possibilidade de obter a satisfação do seu crédito pelos bens desse património, independentemente da situação dos restantes “. (Impugnação Pauliana, Cura Mariano, 2004,pág. 170 e 171; no mesmo sentido ver Acórdãos do S.T.J. de 9.10.2006, rel. Faria Antunes, e da Relação de Coimbra de 20.11.2012, rel. Jorge Arcanjo, disponíveis em www.dgsi.pt ) Conforme escreveu Cura Mariano,“o mesmo sucede nos casos das obrigações garantidas por fiança ou aval, podendo o credor exigir que quer o património do devedor, quer o património do fiador ou do avalista, mantenham individualmente a sua capacidade de satisfazerem o respectivo crédito, mesmo que o fiador goze do benefício da excussão. Assim, a solvabilidade do património do fiador ou do avalista não impedirá a impugnação de acto do devedor que impeça a satisfação integral do crédito pelo seu património, tal como a solvabilidade do devedor também não impede a impugnação de acto do fiador ou do avalista que coloque o seu património em situação de não garantir a satisfação do crédito “. (Impugnação Pauliana, 2004, pág. 172) Mesmo que por força do disposto no artigo 752º do C.P.C. caso se executasse o mutuário a penhora tivesse de iniciar-se pelo imóvel por este dado de hipoteca a verdade é que o valor de tal imóvel na data da realização do acto impugnado tão pouco era suficiente para assegura a satisfação do crédito da Recorrente. Deste modo mostra-se igualmente preenchido o requisito previsto na alínea b) do artigo 640º C. Civil. Mostra-se plenamente aplicável o decidido pelo Acórdão da Relação de Évora de 27.5.2021 no sentido de que “está em causa um acto gratuito (doação), pelo que a figura da impugnação pauliana pressupõe, tão só, a verificação da existência de um determinado crédito, que esse crédito seja anterior ao acto a impugnar (ou sendo posterior que o acto tenha siso realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor) e que resulte do acto a impossibilidade ou agravamento da satisfação integral do crédito”. (rel Rui Machado e Moura, disponível em www.dgsi.pt) Impõe-se assim a procedência do recurso, com a consequente a declaração de ineficácia do acto de doação celebrado pelos Primeiro e Segundo Réus a favor dos Terceiro e Quarto Réus em relação à Autora até ao limite do seu crédito, estando o pedido de condenação dos Terceiro e Quarto Réus a reconhecer o direito da Autora de executar tais bens nos seus patrimónios até ao limite do seu crédito ínsito neste pedido. V – DECISÃO Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto e, em consequência revogam a sentença recorrida, declarando a ineficácia do acto de doação dos Primeiro e Segundo Réus a favor dos Terceiros e Quarto Réus da propriedade do imóvel sito na Quinta …, lote …, Rua …, n.º …, na freguesia da ..., correspondente à fracção “B”, descrito sob o n.º … na Conservatória do Registo Predial da ..., em relação à Autora até ao limite do seu crédito, e condenando os Terceiro e Quarto Réus a reconhecer o direito da Autora de executar tal bem até ao limite do seu crédito. Custas da acção e da apelação pelos Recorridos. (artigo 527º, do C.P.C.) L.,10/10/2024 Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros Carla Mendes Amélia Puna Loupo |