Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
140/22.5PTOER.L1-5
Relator: ALDA TOMÉ CASIMIRO
Descritores: INSTRUÇÃO
INDÍCIOS SUFICIENTES
JUIZO DE PROGNOSE
CONDENAÇÃO
DESPACHO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I. Em sede de instrução, os indícios serão suficientes sempre que, por via deles, o Juiz de instrução chegue a um juízo de prognose em que a condenação do arguido é mais provável do que a absolvição, caso em que deve proferir despacho de pronúncia.
II. Se alguém está a auxiliar uma manobra de marcha atrás, esse alguém tem que ser necessariamente visível para quem está a fazer a manobra. Mas se o auxiliar está atrás, e de lado, de modo a ser visível para o condutor (como dita a prudência), se deixa de ser visível, um condutor sagaz e prudente tem que necessariamente parar e só retomar a marcha quando visualizar de novo o auxiliar.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório
No âmbito da Instrução com o nº 140/22.5PTOER que corre termos no Juiz 1 do Juízo de Instrução Criminal de Cascais, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, e na sequência de despacho de não pronúncia proferido pela Meritíssima Juiz de Instrução, vem a assistente AA interpor recurso com vista a que seja alterada a decisão instrutória para decisão de pronunciar o arguido pela prática de crime de homicídio negligente.
Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:
1. O Recorrido encontrava-se a fazer uma manobra de marcha atrás, quando o rodado traseiro esquerdo da viatura embateu no corpo do BB.
2. Essa manobra de marcha atrás era auxiliada pelo BB, pai da Assistente que ia dando indicações ao arguido, “visualizadas por este com recurso aos espelhos retrovisores” sublinhado e negrito nosso - ponto 7 da matéria de facto provada.
3. Ora, a conduta do Recorrido violou os artigos 35º, nº 1 e 3º, nº 2, do CE.
4. A manobra de marcha-atrás, só se pode efetuar depois de se verificar que não há perigo para peões ou outras viaturas.
5. É assim, uma manobra perigosa.
6. Conforme se pode ler no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 03/08/2009, “Embora a circulação rodoviária não consubstancie uma actividade proibida, a mesma oferece uma razoável probabilidade de lesão dos bens jurídicos, designadamente, a vida humana, e é por isso que constitui uma actividade tida como perigosa, afigurando-se o veículo automóvel – especialmente no contexto histórico-social hodierno – como uma "arma" potencialmente letal. (....) XIX - Indiscutivelmente, as normas legais que regulam o trânsito podem constituir um importante ponto de partida para aferir da existência, no caso concreto, de um dever objectivo de cuidado.”
7. Ora, o Recorrido fez a manobra de marcha atrás sem verificar que a fazia em segurança e, como causa dessa sua desatenção, a sua viatura embateu no corpo do colega.
8. O BB saiu do ângulo de visão do arguido, ora Recorrido.
9. Ora, o Recorrido deveria de imediato ter imobilizado a viatura, quando o BB se virou e ficou fora do seu ângulo de visão pelos espelhos retrovisores.
10. Se o arguido deixou de ver o colega, não podia em segurança realizar a manobra de marcha atrás.
11. Se o arguido tivesse imobilizado a viatura, o embate não ocorria.
12. E, a manobra em questão foi realizada em velocidade excessiva, atendendo ao desfecho trágico da mesma.
13. Se tivesse sido feita devagar não produzia o resultado que se verificou.
14. Deve assim ser punível a sua conduta a título de negligência.
15. Em sentido, semelhante, veja-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.04.2009, proferido no processo nº 12/16.2MBMTS.P1, transcrito no ponto 20 deste recurso o qual se dá por integralmente reproduzido.
16. Ao ter continuado a manobra, o Recorrido colocou em causa a segurança do seu Colega e violou os arts. 35º, nº 1 e 3º, nº 2, ambos do CE.
17. Devia assim ser dada como indiciariamente apurada toda a matéria de facto, concluindo-se pela pronúncia do arguido pela prática do crime de homicídio negligente, p.p. no artigo 137º, nº 1 do CP.
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou, manifestando-se no sentido da improcedência do recurso, para o que apresentou as seguintes conclusões:
1. A apreciação da prova que o tribunal a quo efetuou em face do princípio da livre apreciação da prova é lógica e está devidamente suportada em face da prova indiciária produzida, e que não é contrária às regras da experiência comum, não se vislumbrando qualquer erro nessa mesma apreciação.
2. A matéria de facto considerada como indiciariamente apurada e a indiciariamente não apurada na decisão recorrida não ofende as regras da experiência comum, antes se apresenta como possível, quer em função da prova produzida, quer à luz das regras da lógica.
3. No nosso ordenamento jurídico vigora, como se sabe, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, de acordo com o qual, na apreciação da prova e partindo das regras de experiência, o tribunal é livre de formar a sua convicção.
4. Como analisou a Mm.ª Juiz de Instrução pela linha de raciocínio que adotou pelos elementos de prova não é possível concluir pela suficiência de indícios no sentido de que o arguido poderia ter evitado a produção do acidente, pelo que o despacho de não pronúncia se afigura lógico e coerente e nessa medida se considera ser de manter.
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O arguido CC também contra-alegou, manifestando-se no sentido da improcedência do recurso, para o que apresentou as seguintes conclusões:
a) A douta sentença recorrida, que com a devida vénia aqui se dá por reproduzida, faz uma correcta apreciação e fundamentação, quer da matéria de facto quer da matéria de direito, não merecendo qualquer tipo de censura;
b) O sinistro em causa deveu-se exclusivamente a culpa da vítima que se colocou nas traseiras da viatura que conduzia o arguido, assim violando as normas do Código da Estrada p.p. nos arts. 99º e 101º;
c) Ao arguido não era expectável prever o comportamento contravencional da vítima que violou o princípio da confiança, para mais trabalhando na área da recolha de resíduos sólidos e fazendo parte da equipa do arguido há já algum tempo e, por isso, sendo-lhe devido um acrescido dever de conhecimento quanto às regras de segurança;
d) Assim, não houve qualquer erro de direito na decisão ora recorrida, que se baseou correctamente na prova carreada aos autos, apreciando correctamente de direito, devendo manter-se a decisão de não pronúncia do arguido.
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Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela manutenção do despacho recorrido, acompanhando a posição expressa pelo Ministério Público junto da 1ª instância e aderindo à argumentação oferecida, que subscreveu e deu por inteiramente reproduzida.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação
A decisão instrutória proferida nos autos tem o seguinte teor:
(…)
Iniciaram-se os presentes autos com a participação elaborada pela Polícia de Segurança Pública informando a ocorrência de um acidente de viação no dia 30.12.22, cerca das 08h40m, na rua ..., mais concretamente, o atropelamento pelo automóvel pesado de recolha de lixo conduzido pelo arguido do assistente operacional que auxiliava na manobra de marcha atrás, a qual não podia ser realizada sem auxílio, dadas as dimensões do veículo e da rua, do qual resultou a morte deste último.
No inquérito foi produzida prova, designadamente foi produzido um relatório de inspecção judiciária, ouvida testemunha, junto relatório de autópsia do INML. No final do inquérito, o MP acusou o arguido CC, da prática, em autoria material e na forma consumada (artigo 26.º do CP), de um crime de homicídio por negligência, p.p. pelo artigo 137.º, n.º 1, 15.º, b) e 69.º, n.º 1, a), ambos do Código Penal.
O arguido requereu a abertura de instrução, discordando da interpretação feia pelo MP da prova produzida. Termina pedindo a não pronúncia pela prática de um crime de homicídio negligente, p.p. no artigo 137º do CP.
Na instrução, foi produzida prova por declarações de duas testemunhas.
*** Não se vislumbrando qualquer outro acto instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, efectuou-se o debate instrutório (…)
*** De acordo com o disposto no art. 286º/l do Cód. Proc. Penal, a instrução tem como finalidade a comprovação judicial da dedução de acusação ou do arquivamento do inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento. Tem-se em vista, nesta fase processual, a formulação de um juízo seguro sobre a suficiência dos indícios recolhidos relativos à verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (artº 308º/1 do Cód. de Processo Penal), ou seja, de se ter verificado um crime imputável ao arguido. Assim, concluindo-se pela suficiência dos indícios recolhidos haverá que proferir despacho de pronúncia, caso contrário, o despacho será de não pronúncia.
Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade do arguido ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.
Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como vimos, na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação. Ao exigir-se a possibilidade razoável de condenação e não uma possibilidade remota, visa-se, por um lado, não sujeitar o arguido a vexames e incómodos inúteis e, por outro lado, não sobrecarregar a máquina judiciária com tramitações inúteis” cfr. Tolda Pinto, “A Tramitação Processual Penal”, 2ª. ed., pág. 701. Daí que no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deva estar presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, designadamente as salvaguardadas no art.º 30.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós mereceram consagração constitucional art.º 20.º da D.U.D.H. e art.º 27.º da C.R. P. [Ac. da Relação do Porto de 20 de Outubro de 1993, C.J. Ano XVIII, Tomo IV, pág. 261]. Consequentemente, o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido [Germano Marques da Silva em Direito P.Penal.
A regra “in dubio pro reo”, enquanto manifestação do princípio da presunção da inocência – princípio estruturante do processo penal -, tem como momento mais relevante a apreciação da prova em julgamento, mas também se manifesta no momento do encerramento do inquérito, quando o Ministério Público, valorando as provas recolhidas, tem de tomar posição, arquivando-o ou formulando acusação. E, evidentemente, também se coloca ao juiz de instrução, após o debate instrutório, devendo, portanto, lavrar despacho de não pronúncia, imposto pela regra “in dubio pro reo”, no caso de se encontrar perante uma situação de dúvida inultrapassável quanto às provas produzidas. Tendo em conta que, também a prova indiciária deve ser sujeita a uma análise racional e objectiva, de acordo com as regras da experiência, da lógica, da razão e dos conhecimentos científicos e técnicos necessários ao caso.
Cumpre aqui esclarecer que, no caso e na apreciação deste Tribunal, não cuidamos de eventual responsabilidade civilística, mas tão-só de factualidade com a necessária dignidade penal.
*** Apreciando os factos em análise e a prova recolhida no inquérito e na instrução:
Factos indiciariamente apurados:
1. CC é motorista de pesados (camião), fazendo a recolha do ..., no Município de ....
2. No dia 30 de dezembro de 2022, pelas 08H40, CC, encontrava-se no exercício das suas funções – conduzindo o camião de … com a matrícula AB-..-UN - na Rua ..., em ..., acompanhado do seu colega de profissão BB.
3. Nesta data/hora, o tempo encontrava-se seco, a visibilidade no local era boa, não existia encadeamento e a via apresentava-se em bom estado de circulação.
4. A Rua ... configura-se como uma reta, comporta duas vias de trânsito, uma em cada sentido, separadas através da marca M2 (linha descontínua), ladeada por parqueamento e passeios em calçada de ambos os lados.
5. Na data/hora referida em 1, a Rua ... apresentava veículos estacionados na longo da via (em segunda fila), em ambos os lados da via, o que dificultava o fluir do trânsito, impedindo a circulação em simultâneo, nas duas vias de trânsito existentes, de dois veículos na referida artéria.
6. Por este motivo, e a fim de alcançar o ponto de recolha de… situado na Rua ..., CC circulava, no sentido sul/norte, efetuando a manobra de marcha atrás, sendo auxiliado pelo seu colega BB, que lhe ia dando indicações para o efeito.
7. Para o efeito, BB colocou-se apeado na parte traseira do veículo pesado de mercadorias – camião de recolha do … – conduzido por CC, posicionado de frente para a viatura referida, enquanto ia dando indicações, visualizadas por este com recurso aos espelhos retrovisores.
8. Entretanto, surgiu, na mesma via, mas no sentido contrário ao veículo pesado conduzido por CC, a viatura conduzida por DD.
9. Nessa altura, BB virou-se, colocando-se de costas para o camião de recolha de … conduzido por CC, a fim de dar indicações a DD para seguir por outra via.
10. O veículo pesado embateu com o rodado traseiro esquerdo da viatura no corpo de BB, passando por cima deste.
11. Como consequência direta e necessária do embate BB sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, abdómino-pélvicas e dos membros inferiores.
12. Tais lesões constituíram causa necessária e adequada da morte de BB.
Factos não indiciariamente apurados:
13. Atenta a circunstância de CC se encontrar desatento, não conseguiu parar atempadamente a sua viatura, nem desviar a trajetória.
13. CC agiu de forma livre e voluntária conduzindo o veículo pesado nas descritas condições, isto é, sem os cuidados a que estava obrigado, omitindo as cautelas aconselháveis pelo dever geral de previdência, que podia e devia ter observado.
14. Com a conduta descrita CC agiu com total inobservância das precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidados impostos pelas regras de condução estradal essenciais para uma circulação rodoviária segura, o que podia e devia ter feito e que era capaz de adotar.
15. CC não previu, como podia e devia, a possibilidade de embate da viatura por si conduzida em BB, provocando-lhe a morte.
16. CC agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Da motivação:
Os factos que se consideram indiciados resultam essencialmente do relatório de inspecção judiciária que dá conta das condições atmosféricas, do estado dos veículos após a colisão, do estado do piso e da configuração do local, tendo sido tais factos objecto de transcrição acusação.
Quanto à dinâmica do acidente, os factos 7º a 10º a versão da acusação é aquela que resulta das declarações da testemunha DD, que foi a única que presenciou o acidente.
No tocante, por fim, aos factos 11º e 12º os mesmos alicerçam-se no relatório de autópsia.
Quanto aos factos que o tribunal considera não estarem indiciados e que basicamente se reportam à negligência do arguido, a convicção do tribunal funda-se, precisamente, nas declarações da testemunha DD. Segundo esta testemunha, apercebeu-se do veículo pesado e do auxiliar a uma distância de cerca de 10/15 metros, sendo que o auxiliar circulava atrás do veículo a pé. Mais refere que: o peão (o falecido) que circulava atrás efetua uma sinalização como que para mudar de via e ultrapassar o camião, devido aos veículos que se encontravam estacionados parcialmente na via e que impediam a passagem simultânea. Refere que ao aperceber-se da sinalização do peão, inicia a manobra de mudança de via e nesse momento apercebe-se de que o peão cai embatido por trás.
Segundo a testemunha EE, ouvido em instrução e terceiro elemento desta equipa de recolha de lixo, já trabalhavam todos juntos há cerca de 2/3 meses e era uma equipa sempre cuidadosa. Disse também que um dos elementos descia sempre para auxiliar a manobra do camião, até porque as câmaras não permitem ver a traseira e por isso a manobra é auxiliada.
A testemunha FF, técnico de segurança da CM de ..., afirmou que este tipo de veículo só tem os espelhos para auxiliar na manobra dado que as câmaras não permitem visualizar a traseira do veículo.
Ora, de acordo com as versões conjugadas das testemunhas, esta era uma equipa de três pessoas que procedia à recolha de ... e uma delas, neste caso o falecido, embora até costumasse ser a testemunha EE, saiu para auxiliar o motorista a fazer a manobra, sabendo, como podia e devia, que a câmara não visualizava a traseira e que por isso mesmo é que o auxílio humano era necessário. O falecido foi para trás do veículo e sabia de antemão que, colocando-se atrás do mesmo, não era visto e o motorista confiava que a infeliz vítima estava ali e para o auxiliar e estava a acompanhar a trajectória do veículo, desviando-se, obviamente, do mesmo. Contudo, o falecido que estava de frente para a traseira do veículo, de modo a auxiliar o condutor DD, a testemunha que passava no local ao volante do seu veículo e não conseguia passar em simultâneo com o camião, colocou-se de costas para o camião e “esqueceu-se” que o mesmo continuava a rodar e que não o via. Isto é, foi o falecido que se distraiu com o surgimento do veículo conduzido pela testemunha e o condutor apenas confiou, como qualquer outro teria confiado, que a vítima ia para trás do camião para o auxiliar, não desviando a atenção da trajectória que estava a percorrer. Se o motorista visse bem para trás não seria preciso um auxiliar para esse efeito e quem vai auxiliar sabe que está atrás de um carro, neste caso, de um pesado, e que não o está a ver. Não vemos, pois, como possa considerar-se que o arguido foi negligente e não tomou as devidas cautelas para evitar o acidente, pois, na verdade, circulava devagar e solicitou ao assistente que o auxiliasse para poder fazer a manobra de marcha-atrás, o que não precisaria se visse bem e a manobra fosse fácil. Cremos que o arguido não podia, razoavelmente, contar que o assistente se distraísse a olhar para outro carro e se colocasse precisamente na rota do camião, que sabia estar em marcha atrás, e de costas para ele. A ter existido distração e negligência foi da vítima e não do condutor.
Estas as razões pelas quais consideramos como não indiciados os factos acima elencados que se reportam à culpa e à violação de regras estradais por parte do arguido. Sendo esta a prova produzida, e sendo os acima descritos os factos indiciados e não indiciados, outra coisa não resta que não seja não pronunciar o arguido pela prática de um crime de homicídio negligente ou por qualquer outro.
Em face do exposto, decide-se não pronunciar o arguido pela prática de um crime de homicídio negligente, p.p. no artigo 137º, n.º 1 do CP, ou por qualquer outro.
(…)
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Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Em questão está a apreciação dos indícios apurados em sede de inquérito e de instrução, em ordem a saber se o arguido deveria ter sido pronunciado pela prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art.º 137º, nº 1 do Cód. Penal.
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A instrução, de acordo com o preceituado no nº 1 do art.º 286º do Cód. Proc. Penal, “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” e a sua direcção compete a um juiz de instrução (nº 1 do art.º 288º do mesmo Cód.). E “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia” (art.º 308º 1 do Cód. que se tem vindo a citar).
Por outro lado, define o nº 2 do art.º 283º do mesmo Cód., que “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
A questão de saber quando é que os indícios são suficientes e, nomeadamente, o que deve ser entendido por “possibilidade razoável” de futura condenação, dividiu a doutrina e a jurisprudência.
Já se defendeu que para que os indícios fossem considerados suficientes bastaria a mera possibilidade de futura condenação em julgamento e também já se defendeu que os indícios só são suficientes se deles resultar uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento, exigindo-se uma “possibilidade particularmente qualificada” ou uma “probabilidade elevada” de condenação.
Todavia, hoje a jurisprudência é unânime em afirmar que a posição mais acertada é uma posição intermédia entre aquelas duas, denominada “teoria da probabilidade dominante”, e que é a que tem mais apoio na letra da lei. De acordo com esta tese, os indícios são suficientes para acusar ou pronunciar alguém sempre que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição. Neste sentido diz Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, I, 1984, p. 133) que “os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição” – cfr. ainda, e por todos, o Acórdão do STJ de 8.10.2008, no Proc. 07P031, onde se refere que “possibilidade razoável” é a que se baseia num juízo de probabilidade, “uma probabilidade mais positiva do que negativa, de que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha”; e o Acórdão do STJ de 16.06.2005, no Proc. 05P1938, que defende que “aquela ‘possibilidade razoável’ de condenação é uma possibilidade mais razoável, mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é (mais) provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
Pelo que os indícios serão suficientes sempre que, por via deles, o Juiz de instrução chegue a um juízo de prognose em que a condenação do arguido é mais provável do que a absolvição, caso em que deve proferir despacho de pronúncia.
Vejamos, então, se há indícios suficientes de o arguido ter cometido um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art.º 137º, nº 1 do Cód. Penal, tal como vinha acusado e como a assistente defende ao interpor o presente recurso.
Nos termos do nº 1 do art.º 137º do Cód. Penal, “quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Para que se possa falar de crime de homicídio é necessário, antes de mais, que se cause a morte de outra pessoa (diferente do agente, portanto) sendo ainda necessário que entre a conduta do agente e o resultado (morte) se estabeleça o indispensável nexo de imputação objectiva (que a conduta do agente seja a causa objectiva da morte da vítima), sendo certo que a conduta do agente tanto pode ser comissiva como omissiva.
Por outro lado, a actuação por negligência, tal como é definida pelo art.º 15º do Cód. Penal, refere-se a “quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz”, representa como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actua sem se conformar com essa realização (alínea a), ou não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto (alínea b). No primeiro caso temos a chamada negligência consciente, em que o agente prevê a realização de um crime mas confia em que ele não tenha lugar, ou mostra-se indiferente a essa produção; e no segundo caso temos a chamada negligência inconsciente, em que o agente não prevê – como podia e devia – aquela realização do crime. Assim, o limite mínimo necessário para que se possa falar de negligência (em contraposição a caso fortuito) é sempre o da previsibilidade do resultado e é previsível não só aquele resultado que o agente prevê realmente como também aquele resultado cuja possível ocorrência não escapa à perspicácia comum do homem médio, tendo também em conta o que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e as capacidades do agente (cfr. Figueiredo Dias, Pressupostos da Punição, p. 71).
Ou seja, na realização do tipo legal de crime negligente o que se censura ao agente é a omissão daqueles deveres de diligência a que, segundo as circunstâncias, os seus conhecimentos e capacidades pessoais, estava obrigado, e que, em consequência dessa omissão, não previu, como podia e devia, ou tendo-a previsto, confiou que ela não teria lugar.
Analisados os autos, temos por fortemente indiciado que:
- No dia 30 de dezembro de 2022, pelas 08H40, o arguido, no exercício das suas funções, conduzia o camião de ....
- O tempo encontrava-se seco, a visibilidade no local era boa, não existia encadeamento e a via apresentava-se em bom estado de circulação.
- Por haver veículos estacionados na longo da via (em segunda fila), o que dificultava o fluir do trânsito, o arguido circulava em manobra de marcha atrás, sendo auxiliado pelo seu colega BB, que lhe ia dando indicações para o efeito.
- Para o efeito, BB colocou-se apeado por trás do camião de recolha do ..., posicionado de frente para a viatura referida, enquanto ia dando indicações visualizadas pelo arguido com recurso aos espelhos retrovisores.
- Entretanto surgiu, na mesma via, mas no sentido contrário ao veículo pesado, uma viatura (conduzida por DD) e BB virou-se, colocando-se de costas para o camião de recolha de … para dar instruções a esta viatura.
- O veículo pesado embateu com o rodado traseiro esquerdo da viatura no corpo de BB, passando por cima deste e causando-lhe lesões que constituíram causa necessária e adequada da morte de BB.
A questão que se coloca é a de saber se o arguido conduzia o veículo pesado sem os cuidados a que estava obrigado, omitindo as cautelas aconselháveis pelo dever geral de previdência, que podia e devia ter observado e, por se encontrar desatento, não conseguiu parar atempadamente a viatura, nem desviar a trajetória, acabando por embater com a viatura por si conduzida em BB.
A única testemunha ocular do acidente é DD, o qual, ouvido em inquérito, relatou que no dia dos factos circulava na mesma via, mas em sentido contrário ao do veículo pesado, que circulava em marcha atrás e em velocidade reduzida. Referiu ter-se apercebido do veículo pesado e do auxiliar a uma distância de cerca de 10/15 metros, sendo que o auxiliar circulava atrás do veículo a pé. Referiu que o peão (o falecido) que circulava atrás efetua uma sinalização como que para mudar de via e ultrapassar o camião, devido aos veículos que se encontravam estacionados parcialmente na via e que impediam a passagem simultânea. Referiu que ao aperceber-se da sinalização do peão, inicia a manobra de mudança de via e nesse momento apercebe-se de que o peão cai embatido por trás, imediatamente apita como forma de aviso, mas o camião continuou a sua marcha.
A testemunha EE, terceiro elemento desta equipa de recolha de lixo, mas que estava mais adiantado quando se deu o embate, referiu que sempre que era necessário efectuar a manobra de marcha atrás, um dos elementos descia para auxiliar a manobra do camião, pois para fazer essa manobra o motorista só dispõe dos espelhos laterais, na medida em que a cuba não permite a visualização por espelho retrovisor. A testemunha FF, técnico de segurança da CM de ..., confirmou que este tipo de veículo só tem os espelhos laterais para auxiliar a manobra de marcha atrás.
A marcha-atrás representa um perigo acrescido na circulação rodoviária, de tal forma que a lei só a permite como manobra auxiliar ou de recurso, devendo efectuar-se lentamente, no menor trajecto possível e apenas em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito (cfr. o disposto nos arts. 35º 1 e 46º 1 do Cód. da Estrada).
Afirma o despacho recorrido que:
«O falecido foi para trás do veículo e sabia de antemão que, colocando-se atrás do mesmo, não era visto e o motorista confiava que a infeliz vítima estava ali e para o auxiliar e estava a acompanhar a trajectória do veículo, desviando-se, obviamente, do mesmo. Contudo, o falecido que estava de frente para a traseira do veículo, de modo a auxiliar o condutor DD, a testemunha que passava no local ao volante do seu veículo e não conseguia passar em simultâneo com o camião, colocou-se de costas para o camião e “esqueceu-se” que o mesmo continuava a rodar e que não o via. Isto é, foi o falecido que se distraiu com o surgimento do veículo conduzido pela testemunha e o condutor apenas confiou, como qualquer outro teria confiado, que a vítima ia para trás do camião para o auxiliar, não desviando a atenção da trajectória que estava a percorrer. Se o motorista visse bem para trás não seria preciso um auxiliar para esse efeito e quem vai auxiliar sabe que está atrás de um carro, neste caso, de um pesado, e que não o está a ver.»
Porém, admitindo que pontualmente o motorista não veja o auxiliar da manobra, tal não pode ser o habitual, como parece defender o despacho recorrido. Se alguém está a auxiliar a manobra, esse alguém tem que ser necessariamente visível para quem está a fazer a manobra. Ou o auxiliar limita-se a mandar parar os outros veículos que possam circular na via e nunca está visível para o condutor do camião? Não cremos. Mas se o auxiliar está atrás, e de lado, de modo a ser visível para o condutor (como dita a prudência), se deixa de ser visível, um condutor sagaz e prudente tem que necessariamente parar e só retomar a marcha quando visualizar de novo o auxiliar.
Indiciariamente, o arguido efectuava a manobra de marcha atrás sem visualizar o auxiliar que sabia circular apeado atrás da sua viatura (e, mesmo quando a testemunha DD apitou como forma de aviso, o camião continuou a sua marcha) e, ao fazê-lo, omitiu o dever geral de cuidado que impende sobre qualquer condutor – e que o arguido estava obrigado a cumprir e de que era capaz.
E mesmo aceitando-se que a vítima possa ter tido uma contribuição causal para a produção do resultado, tal não paralisa, necessariamente, a imputação da verificação do acidente também ao arguido/recorrido.
Vistos os autos – inquérito e instrução – urge concluir que foram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena (concluindo ser mais provável a condenação que a absolvição), devendo o mesmo ser pronunciado nos termos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público.
* * *
Decisão
Pelo exposto acordam em conceder provimento ao recurso e ordenam a substituição do despacho recorrido por outro que pronuncie o arguido nos termos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público.
Sem custas.

Lisboa, 22.10.2024
(processado e revisto pela relatora)
Alda Tomé Casimiro
Rui Poças
Rui Coelho