Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
752/21.4T8LSB-B.L1-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: MEIO DE PROVA
PROVA TESTEMUNHAL
ADMISSÃO
ÓNUS DE APRESENTAÇÃO EM TRIBUNAL
ADMISSÃO DE APELAÇÃO AUTÓNOMA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO ADMISSÃO
Sumário: 1–A admissibilidade de apelação autónoma relativamente à admissão ou rejeição de algum meio de prova, prevista no artigo 644º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil não se estende a todas as vicissitudes que possam surgir quanto à produção de prova, mas apenas às decisões que efectivamente rejeitem ou admitam meios de prova
2–Não se encontra abrangida por tal previsão normativa a decisão que, na sequência da admissão de uma testemunha a depor, faz recair sobre a parte o ónus da respectiva apresentação em juízo, não havendo lugar à sua notificação por parte do Tribunal, em aplicação do disposto no artigo 598º, n.º 2 do Código de Processo Civil.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I–RELATÓRIO


A [–SOCIEDADE …., S. A.], com sede ao Edifício da Capitania – P... N..., L____ intentou contra B ,com sede ao Edifício ..., ... andar …, área comercial da ... ... das ..., L____, a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, pedindo o reconhecimento e a declaração de cessação do contrato denominado de “cedência temporária de direito exclusivo de utilização de espaço comercial na Marina ... ... das ...”, por motivo da oposição à respectiva renovação comunicada à ré e, em consequência, esta ser condenada: a entregar-lhe, livres e devolutas, as lojas e áreas de terraço indicadas; ao pagamento de uma indemnização pela ocupação e não restituição daquelas lojas e áreas, até à sua restituição, ou, subsidiariamente, ao pagamento de uma indemnização por privação das mesmas lojas e áreas, até à data da respectiva restituição; e, ainda, em ambos os casos, dos juros moratórios vencidos peticionados e dos vincendos.

A ré contestou a acção deduzindo diversas excepções (ilegitimidade da autora; incompetência material do Tribunal e preterição de litisconsórcio necessário activo) e impugnou a acção, concluindo pela sua improcedência, tendo ainda suscitado a intervenção provocada acessória da Câmara Municipal de Lisboa, Direcção Geral do Tesouro e do Ministério Público.

No seu requerimento probatório, a ré solicitou a notificação da autora para juntar aos autos documentos em seu poder e a notificação de terceiros para prestarem diversos esclarecimentos e indicou a seguinte prova testemunhal (cf. Ref. Elect. 29153886 dos autos principais):
1ª–Baltasar ……, administrador, a notificar em C... ..., nº ..., M_____- E_____;
2ª–José ………., engenheiro, a notificar em Rua D. ... ..., nº...- -.... – ... - L____;
3ª–André …………., administrador, a notificar em Rua ... ..., nº ..., 4º ... - ....-... - L____;
4ª–Presidente da CML, …………, a notificar em Praça ... ...- ....-... - L____;
5ª–Presidente da Junta de Freguesia do Parque das Nações, Mário …………, a notificar em A... ...., nº...- B - ....-... - L____;
6ª–José ………., antigo presidente da junta de freguesia do Parque das Nações, a notificar em A... ..., ,º...- B - ....-... - L____;
7ª–Fernando Jorge ………….., revisor oficial de contas, a notificar na sede da A sita em Edifício ... ... do ... ... - ....–...- -L____;
8ª –Ricardo ………., agente imobiliário, a apresentar;
9ª –Sérgio ……….., diretor de restauração, a apresentar;
10º–Luís …………., agente imobiliário, a apresentar.”
A autora pronunciou-se sobre as excepções deduzidas em articulado próprio.

Em 29 de Junho de 2022, realizou-se audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador em que se julgaram improcedentes as excepções invocadas e os incidentes de intervenção provocada deduzidos, tendo sido fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova (cf. Ref. Elect. 417130509 dos autos principais).

No decurso da audiência prévia, a propósito dos requerimentos probatórios, a ré solicitou o seguinte:
“Dada a palavra ao Il. Mandatário da Ré por este foi requerida a substituição da 4ª testemunha, Fernando …………., pelo atual presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Dr. Carlos …………..; mais requereu a junção dos documentos protestados juntar na Contestação, não o fazendo via Citius dada a sua dimensão.”

Tendo então sido proferido o seguinte despacho:
“Defere-se a substituição da 4ª testemunha do requerimento probatório da Ré.
No decurso da discussão sobre os requerimentos probatórios oferecidos aos autos, foi informado pela Autora que a 1ª testemunha arrolada pela Ré na Contestação não é administrador da Autora desde, pelo menos, 2008.
Quando confrontada a Ré com este circunstancialismo, a mesma declarou manter esta testemunha como arrolada, apesar de não ter qualquer indicação sobre se a mesma tem ou não, conhecimento directo dos factos.
A testemunha em questão, de nacionalidade espanhola, tem domicílio em Madrid, Espanha e não há notícia de que tenha algum tipo de ligação com a Autora ou com os factos, pelo menos, a partir de 2008.
Considerando este circunstancialismo, bem como o facto fundamental de que o Contrato em discussão nesta acção data de 2012, o Tribunal não vê qualquer motivo razoável para admitir esta testemunha, que teria de ser ouvida em videoconferência para Espanha e com auxilio de intérprete; trata-se, segundo cremos, de uma diligência probatória manifestamente desnecessária, quer à tarefa probatória da Ré, quer ao apuramento da verdade material dos factos, revelando-se ao invés, prejudicial ao célere andamento dos autos.
Termos em que se não admite a inquirição da testemunha arrolada em 1º lugar do requerimento probatório da Ré, sem prejuízo de essa inquirição se vir a revelar necessária, designadamente nos termos e para os efeitos do art.º 411º do CPC.
Não se admite como testemunha, por poder depor como parte, a pessoa arrolada em 3º lugar pela Ré.
Nos autos os róis da PI e da Contestação, considerando já o supra determinado, sendo as 3 últimas testemunhas arroladas pela Ré a apresentar e as restantes a notificar. […]”
Em 6 de Dezembro de 2022 foi expedida notificação com certificação Citius dessa data, para convocação da testemunha Dr. Carlos ………….., para comparecer em Tribunal, na qualidade de testemunha, no dia 2 de Fevereiro de 2023, data agendada para a realização da audiência de julgamento (cf. Ref. Elect. 421251556 dos autos principais).
Em 23 de Janeiro de 2023, o Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Dr. Carlos ……….., comunicou aos autos que na data e hora designadas se encontrava impedido de comparecer em Tribunal por força de outros compromissos de agenda, solicitando que fosse considerada justificada e relevada a sua falta, sugerindo ainda que, sendo autora na acção a concessionária da Marina do Parque das Nações e de modo a permitir um melhor esclarecimento das questões, que fosse convocada para prestar depoimento a Directora do Departamento de Administração do Património da Câmara Municipal de Lisboa, Senhora Dr.ª Isabel …………, com domicílio profissional no ..... ....., n.º ..., - ..., Bloco ...-....-... - L____ (cf. Ref. Elect. 34815895 dos autos principais).

Por requerimento de 24 de Janeiro de 2023, a ré informou nos autos que, perante a comunicação efectuada pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, nada tinha a opor a que este fosse substituído pela pessoa ali indicada, solicitando a notificação desta para prestar o seu testemunho (cf. Ref. Elect. 34838668 dos autos principais).

Em 26 de Janeiro de 2023, foi proferido o seguinte despacho(cf. Ref. Elect. 422541453 dos autos principais):
IRequerimentos a ref.ª 34716494 [44385513] e a ref.ª 34838668 [44502356]:
Dispõe o artigo 598.º, n.º 2 do Código de Processo Civil: “O rol de testemunhas pode ser aditado ou alterado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final (...).”.
Sendo assim, admite-se as presentes alterações ao rol de testemunhas, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 598.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Notifique a parte contrária para, querendo, usar de igual faculdade, no prazo de cinco dias (artigo 598.º, n.º 2, in fine, do Código de Processo Civil).
*
Notifique o Ilustre Mandatário da Ré que incumbe à parte a apresentação das testemunhas indicadas em consequência das alterações (artigo 598.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).”

Notificada deste despacho, em 27 de Janeiro de 2023, a ré dirigiu aos autos o seguinte requerimento (cf. Ref. Elect. 34884090 dos autos principais):
B no processo à margem identificado, notificada do Douto Despacho com a Refª citius (422670484), vem do mesmo reclamar porquanto a Testemunha referida em Refª Citius (34838668) deve ser notificada pelo douto Tribunal e não ser apresentada pela R. dado que não se trata de substituição indicada pela R, mas tão só de aceitação funcional por parte da R, do motivo apresentado pela Testemunha arrolada, aceitando a R a indicação fornecida por este para que seja ouvida em sua substituição, quem funcionalmente pode dar melhor contributo para a descoberta da verdade material, não lhe sendo aplicável o disposto no artigo 598º nº 3 do CPC.
Pelo que requer a notificação da mesma para Testemunhar em audiência de julgamento pelo Douto Tribunal.”

Em 30 de Janeiro de 2023, a ré deduziu o presente recurso, que qualificou de apelação autónoma de despacho interlocutório, com efeito devolutivo, a subir em separado, convocando o estatuído no art.º 644º, n.º 2, alíneas d) e h) do Código de Processo Civil[1] (cf. Ref. Elect. 34905686).

Entretanto, também a 30 de Janeiro de 2023, foi proferido o seguinte despacho (cf. Ref. Elect. 422701601 dos autos principais):
“Requerimento de ref.ª 34884090 [44543082]:
Veio a Ré “reclamar” do despacho que indica que a testemunha indicada por força da alteração tem de ser notificada e não a apresentar porquanto “dado que não se trata de substituição indicada pela R, mas tão só de aceitação funcional por parte da R, do motivo apresentado pela Testemunha arrolada, aceitando a R a indicação fornecida por este para que seja ouvida em sua substituição, quem funcionalmente pode dar melhor contributo para a descoberta da verdade material, não lhe sendo aplicável o disposto no artigo 598º nº 3 do CPC.”.
Ora, em primeiro lugar dos despachos não se reclama, mas recorre-se.
Em segundo lugar, as situações em pode ocorrer substituição de testemunhas estão expressamente previstas na lei e a situação indicada não se enquadra em nenhuma das indicadas no n.º 3 do artigo 508.º do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, mantém-se na íntegra o teor do despacho.
Notifique.”

Não foram apresentadas contra-alegações.

Em 8 de Março de 2023, a senhora juíza a quo admitiu o recurso nos seguintes termos (cf. Ref. Elect. 423791742):
I Recurso interposto (ref.ª 34905686 [44562431]):
Nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 629.º, n.º 1; 631.º, n.º 1; 638.º, n.º 1; 644.º, n.º 2, alínea d); 645.º, n.º 2 e 647.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil, admite-se o presente recurso, por ser tempestivo e legal, sendo este de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Notifique.
* * *
II–Remessa dos autos:
Nos termos do n.º 2 do artigo 646.º do Código de Processo Civil, o traslado compreenderá, de entre as peças dos autos principais, as peças indicadas no requerimento de recurso, considerando-se as restantes peças dispensáveis.
Oportunamente, subam os presentes autos ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, com as habituais cautelas.”

Por se afigurar que a decisão recorrida não admite recurso autónomo, por não caber na previsão de qualquer uma das alíneas do n.º 2 do art. 644.º do CPC, foi proferido despacho, em 21 de Março de 2023, que determinou a notificação da apelante para se pronunciar sobre tal questão, nos termos e para os efeitos do art. 655.º, n.º 2 do CPC (cf. Ref. Elect. 19820447).

Notificada a recorrente, esta veio pronunciar-se, por requerimento de 30 de Março de 2023, em que reitera que o presente recurso diz respeito à admissibilidade de meios probatórios, porque a substituição da testemunha não foi indicada pela ré, mas apenas aceite por esta, não sendo aplicável o disposto no art.º 598º, n.º 3 do CPC, para além de sustentar que o recurso deve subir neste momento, pois que a sua retenção ou não conhecimento conduzira a que, com o prosseguimento do processo, o seu conhecimento se tornasse absolutamente inútil. Requereu ainda que, caso se entenda que não é de conhecer o presente recurso, seja tal questão apreciada por acórdão (cf. Ref. Elect. 628361).

Em 20 de Abril de 2023 foi proferido despacho de adequação processual, a ordenar, desde já, a ida dos autos aos vistos e à conferência (cf. Ref. Elect. 19919997).
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II–ÂMBITO DA DECISÃO
Está apenas em causa saber se o recurso apresentado em 30 de Janeiro de 2023 é admissível neste momento.
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III–OS FACTOS
A factualidade relevante para a decisão é a que consta do relatório supra.
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IV–O DIREITO

Da admissibilidade do recurso

Dispõe o art. 644º, n.º 1 do CPC:
Cabe recurso de apelação:
a)-Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente;
b)-Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.

O tribunal recorrido admitiu o recurso indicando o normativo legal do art. 644º, n.º 2, d) do CPC como sendo aquele em que se baseou para o considerar admissível.
Como é de meridiana clareza, a decisão impugnada – a decisão proferida em 26 de Janeiro de 2023, que determinou que a testemunha indicada no requerimento da ré de 24 de Janeiro de 2023, deveria ser por esta apresentada em juízo – não pôs termo à causa[2], nem diz respeito a qualquer procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente.
Ainda que esta previsão não se cinja aos incidentes processados por apenso, podendo abranger outros incidentes tramitados no âmbito da própria acção, desde que dotados de autonomia, como sucede com a intervenção de terceiros ou a verificação do valor da causa, importa que se trate de incidente que dê lugar a trâmites específicos, que não se confundem com os da acção, pelo que se afigura evidente que a determinação sobre o ónus da parte em apresentar em juízo a testemunha inovatoriamente introduzida no seu rol não assume cariz de incidente autónomo para esse efeito – cf. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Atualizada, pág. 243-244.
Assim, a decisão recorrida não é passível de integração em qualquer das alíneas da norma ora transcrita.
No entanto, algumas decisões não finais, ou seja, interlocutórias, são susceptíveis de recurso de apelação imediato e autónomo, em excepção à previsão do n.º 3 do art.º 644º do CPC, sendo que lei as enuncia, de modo típico e discriminado, no n.º 2 deste normativo legal – cf. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 2018, pág. 300.

Com efeito, estatui o art.º 644º, n.ºs 2, 3 e 4 do CPC o seguinte:

2 Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância:
a)- Da decisão que aprecie o impedimento do juiz;
b)- Da decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal;
c)- Da decisão que decrete a suspensão da instância;
d)- Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova;
e)- Da decisão que condene em multa ou comine outra sanção processual;
f)- Da decisão que ordene o cancelamento de qualquer registo;
g)- De decisão proferida depois da decisão final;
h)- Das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil;
i)- Nos demais casos especialmente previstos na lei.
3 As restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1.
4Se não houver recurso da decisão final, as decisões interlocutórias que tenham interesse para o apelante independentemente daquela decisão podem ser impugnadas num recurso único, a interpor após o trânsito da referida decisão.”

A lei elenca, assim, uma série de decisões intercalares que admitem recurso imediato, relegando a impugnação das demais para momento ulterior, juntamente com o recurso da decisão final (cf. n.º 3) ou, se este não existir e a impugnação tiver interesse autónomo para a parte, em recurso único a interpor depois do trânsito em julgado daquela decisão (n.º 4).

O recorrente, de entre as diversas alíneas do n.º 2 do art. 644º do CPC que admitem apelações autónomas tendo por objecto decisões diversas das enunciadas no seu n.º 1, louvou-se nas identificadas alíneas d) e h), nas quais se prevêem apelações autónomas das decisões de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova ou cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil.

O despacho de admissão ou rejeição de meios de prova é, assim, impugnável por via de apelação autónoma, o que significa que o recurso sobe imediatamente e não com o recurso que venha a ser interposto da decisão final, como sucede com os recursos das decisões não incluídas nos números 1 e 2 do referido preceito legal – cf. art. 644º, n.º 3 do CPC.

Esta solução legal justifica-se, atenta a importância da prova para a decisão da matéria de facto e expressa a necessidade de atenuar os riscos da ulterior anulação do processado, máxime da decisão final cf. José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, 3ª edição, pág. 121; cf. António Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 253; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19-11-2015, processo n.º 569/10.1TBVRS-A.E1[3].

E é assim porque a impugnação destas decisões com a impugnação da decisão final não implicaria uma inutilidade absoluta do recurso, mas uma inutilidade relativa (a inutilização parcial do processado), o que as exclui da previsão da alínea h) do n.º 2 do referido art.º 644º do CPC, que permite a apelação autónoma das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil.

Os artigos 341º a 396º do Código Civil versam sobre a prova aludindo designadamente à confissão, à prova documental, à prova pericial, à prova por inspecção e à prova testemunhal, sendo estes os meios que têm por função a demonstração da realidade dos factos e, como tal, os meios, instrumentos ou fontes de prova que a lei prevê, enquanto actividade destinada à formação da convicção do julgador sobre a realidade dos factos objecto de controvérsia.

Dado que a prova tem por objecto a demonstração da realidade dos factos (art.º 341º do Código Civil e art. 410º do CPC), distingue-se entre meios de prova e objecto da prova.

Na situação sub judice, a decisão recorrida não procedeu à admissão ou rejeição de qualquer articulado, pelo que cumpre determinar se admitiu ou rejeitou algum meio de prova.

António Abrantes Geraldes refere que a previsão da alínea d) do n.º 2 do art.º 644º do CPC abrange os casos em que o juiz admite ou não o depoimento de parte ou a prova por declarações de parte; admite ou rejeita um rol de testemunhas, autoriza ou não o seu aditamento ou substituição, defere ou indefere a realização de uma perícia ou inspecção judicial, admite ou desconsidera determinados documentos ou defere ou indefere a requisição de documentos ou a obtenção de informações em poder da outra parte ou de terceiros – cf. op. cit., pág. 253; com idêntica enumeração de situações abrangidas pela mencionada norma, cf. José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 121.

Como explica Rui Pinto, o despacho de admissão ou rejeição de algum meio de prova é o despacho em que se julga da sua admissão para o processo e não, por exemplo, aquele que lhe fixa o respectivo objecto (daí que o despacho que fixa o objecto da prova pericial não equivale a despacho que admite ou rejeite a perícia)cf. op. cit., pág. 301.

Não integram também a qualificação de despacho de admissão ou rejeição de meio de prova, para efeitos da previsão da alínea d) do n.º 2 do art.º 644º do CPC, entre outros, aquele que defere a prestação do depoimento de parte por escrito[4]; aqueles que se pronunciam sobre incidentes suscitados no âmbito da produção da prova testemunhal, como a acareação ou a contradita, posto que em nenhuma deles se trata de admitir ou de rejeitar meios de prova, mas de controlar o valor probatório[5]; o despacho que fixa o objecto da prova pericial – cf. António Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 253, notas 419 a 422.

Assim, aquilo que vem sendo considerado pela jurisprudência é que a admissibilidade de apelação autónoma não se estende a todas as vicissitudes que possam surgir quanto à produção de prova, mas apenas às decisões que efectivamente rejeitem ou admitam meios de prova – cf. acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 6-05-2021, processo n.º 10981/19.5T8LSB.L1-6; e do Tribunal da Relação do Porto de 4-11-2019, processo n.º 701/17.4T8MAI.P1, sendo que neste se entendeu que a segunda perícia não é um meio de prova no sentido da previsão do preceito que admite a recorribilidade imediata e autónoma, cuja razão de ser não se estende a todas as vicissitudes da prova, onde se inclui a segunda perícia ou a contradita, por exemplo.

No caso em apreço, o conteúdo da decisão que vem impugnada não é a rejeição ou admissão de um meio de prova, mas a decisão que, na sequência da admissão para depor da testemunha Isabel …….., em substituição da testemunha Carlos ……., determinou que incumbia à parte, a ré ora recorrente, a sua apresentação em juízo, não havendo lugar à sua notificação por parte do Tribunal (cf. parte final do despacho impugnado proferido em 26 de Janeiro de 2023).

Note-se, aliás, que é precisamente a alteração desse segmento da decisão que a ré visa alcançar com a dedução do presente recurso, onde pugna para que seja determinado que a referida testemunha, cuja admissão a depor foi deferida e não se mostra impugnada, seja notificada pelo Tribunal.

Consequentemente, o entendimento do Tribunal recorrido de que a alteração introduzida pela ré no rol de testemunhas, na sequência da comunicação de impossibilidade de comparência por parte do Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, integrava a previsão do art.º 598º, n.º 2 do CPC e, como tal, determinava que a testemunha fosse apresentada pela parte (cf. n.º 3 do referido normativo legal), não envolve rejeição de qualquer meio de prova, que seja enquadrável na norma vertida no art. 644º, n.º 2, d) do CPC.

Mas a recorrente invoca também o estatuído na alínea h) do n.º 2 do art. 644º do CPC para pugnar pela recorribilidade imediata da decisão por a respectiva impugnação com o recurso da decisão final ser absolutamente inútil.

Através dessa norma, o legislador concede às partes a possibilidade de interposição de recursos intercalares em situações em que a sujeição à regra geral de interposição de um único recurso a final teria por consequência a absoluta inutilidade de uma eventual decisão favorável obtida em sede de impugnação de decisão intercalar a deduzir no recurso a interpor da decisão final.
Como resulta do aludido normativo legal, a inutilidade do recurso a final que legitima a sua interposição intercalar imediata tem de ser absoluta.

Logo, para efeitos de admissibilidade imediata do recurso, não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final. Mais do que isso, é necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento da decisão interlocutória acabaria por nenhuma interferência assumir no resultado da acção determinado pela decisão final – cf. António Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 257.

Assim, a inutilidade ocorrerá quando produza um resultado irreversível quanto ao recurso, retirando-lhe toda a eficácia dentro do processo, não bastando, por isso, uma inutilização de actos processuais para justificar a subida imediata do recurso, ou seja, um recurso torna-se absolutamente inútil nos casos em que, a ser provido, o recorrente já não pode aproveitar-se da decisão, produzindo a retenção um resultado irreversivelmente oposto ao efeito que se quis alcançar – cf. neste sentido, acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-09-2016, processo n.º 26/11.9TBMDA-A.C1, com ampla referência doutrinária e jurisprudencial; e do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-04-2016, processo n.º 1239/13.4TBPTL-B.G1.

De notar também que a restrição legal à subida imediata dos recursos aos casos de riscos de absoluta inutilidade do recurso a subir diferidamente não ofende o princípio constitucional da igualdade, expressando tal regime uma opção legislativa, baseada na tutela da celeridade processual, que não se pode configurar como injustificada, irrazoável ou arbitrária, tal como já decidiu o Tribunal Constitucional, a propósito do regime de subida dos agravos - cf. acórdão de 16/3/93, acórdão n.ºs 474/94, 964/96, 1205/96 e 104/98 referidos no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-09-2016, processo n.º 26/11.9TBMDA-A.C já mencionado.

In casu, o prosseguimento do processo principal até à decisão final, sem que entretanto se decida definitivamente sobre o ónus da parte de apresentação da testemunha ou sobre se esta deve ser notificada pelo Tribunal, não determinará para qualquer das partes o risco de ser confrontada com uma decisão que permanecerá irreversível, mesmo no caso de procedência da impugnação que a ré venha a deduzir contra o ónus que o Tribunal fez recair sobre si no recurso a interpor da decisão final.

Mas procedendo tal impugnação, o efeito será o da anulação do despacho que indeferiu a solicitada notificação da testemunha e de todos os termos processuais subsequentes que dele dependam, incluindo a sentença final.

Resta, pois, concluir que a pretensão recursória da ré não encontra acolhimento em nenhuma das situações tipificadas no art. 644º, n.º 2 do CPC, pelo que não admite recurso autónomo, ocorrendo, como tal, uma circunstância obstativa do conhecimento do mérito do recurso (cf. art. 652º, n.º 1, b) do CPC).
*

DECISÃO
Por todo o exposto, não sendo a decisão recorrida passível de recurso autónomo, não se admite a presente apelação.
Custas pela apelante, fixando-se a respectiva taxa de justiça em 2 UCs.
Notifique, devolvendo-se oportunamente os autos à primeira instância.
*


Lisboa, 2 de Maio de 2023[6]



Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Alexandra Castro Rocha


[1]Adiante designado pela sigla CPC.
[2]Na alínea a) do n.º 1 do art. 644º do CPC incluem-se as decisões que se traduzem na extinção da instância prevista no art. 277º, como é o caso do despacho de indeferimento liminar, de absolvição da instância ou de qualquer forma de extinção da instância – cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado – Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 776.
[3]Acessível na Base de dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[4]Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-01-2021, processo n.º 3387/17.2T8BRG.G1.S1, onde se entendeu, nessa situação, que a decisão impugnada não era uma decisão de rejeição de um meio de prova, pois que o depoimento de parte já tinha sido admitido; o que estava em causa era o modo como deveria ser prestado.
[5]Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8-05-2018, processo n.º 3166/15.1T8VIS-B.C1.
[6]Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.