Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
258/22.4T8FNC.L1-2
Relator: INÊS MOURA
Descritores: RECONHECIMENTO DE UNIÃO DE FACTO
TRIBUNAL COMPETENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do C.P.C.)

Se o pedido e a causa de pedir apresentados na petição inicial pelos AA. vai no sentido do reconhecimento judicial da sua situação de união de facto com vista à obtenção da nacionalidade, é o tribunal cível e não o de família e menores que é competente para preparar e decidir a ação, nos termos da norma especial do art.º 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade que afasta a norma geral do art.º 122.º n.º 1 al. g) da LOSJ.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I.Relatório


Vêm D… e J…, intentar a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, pedindo o reconhecimento judicial da sua situação de união de facto, de acordo com a Lei 7/2001 de 11 de maio, nos termos do art.º 3.º n.º 3 da Lei 37/81 e do art.º 14.º n.º 2 e 4 do Decreto Lei 237-A/2006 Regulamento da Nacionalidade Portuguesa.

Alegam, em síntese, para fundamentar o seu pedido que vivem em condições análogas às dos cônjuges desde 2018 pretendendo ver reconhecida judicialmente a sua situação de união de facto, com vista à aquisição da nacionalidade portuguesa pelo 2º A.

Citado o Ministério Publico, este veio apresentar contestação.

Começa por invocar a litispendência, alegando que corre no Juízo Local Cível do Funchal o processo n.º 3623/21… onde os aqui AA. peticionam o reconhecimento da existência de união de facto entre eles, para efeitos da Lei n.º 7/2001 de 11 de maio, na versão da Lei n.º 71/2018 de 31 de dezembro - Proteção das Uniões de Facto, e da Lei n.º 37/81 de 3 de outubro, na versão da Lei n.º 2/2020 de 10 de novembro - Lei da Nacionalidade, visando, com isso, o A. J…, designadamente, obter a nacionalidade portuguesa, processo no qual foi proferida sentença a 13 de Janeiro de 2022, a qual ainda não transitou em julgado, que declarou aquele juízo materialmente incompetente, por considerar que a competência pertence aos Juízos de Família e Menores da Comarca do Funchal. Invoca também a incompetência material do Juízo de Família e Menores para apreciar e decidir a presente ação e impugna os factos alegados pelos AA. concluindo pela improcedência da ação.

Foi proferida decisão que julgou procedente a exceção dilatória da incompetência do tribunal de família e menores em razão da matéria para apreciar e julgar a presente ação, considerando serem competentes para o efeito os juízos cíveis.

É com esta decisão que os AA. não se conformam e dela vem interpor recurso, pedindo a sua revogação e substituição por outra que considere o Juízo de Família e Menores do Funchal competente para apreciar a presente ação ou, “caso assim não se entenda, o que só por mero dever de ofício se admite, requer-se a V.Exas a aplicação do regime de conflitos conforme previsto no nº 3 do art.º 101.º do CPC. Apresenta, para o efeito, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
29º–O reconhecimento judicial da União de Facto está, de facto, incluído na competência interna dos Tribunais de Comarca;
30º–Como é consabido, o critério da Competência em razão da matéria tem de ser tido em conta para determinar não só que os tribunais de Comarca são os competentes na presente acção como para determinar qual o Juízo Competente nos termos do artº 81º da LOSJ;
31º–Ora como visto anteriormente, dispõe o nº 1 do artº 122º da Lei 62/2013 que “compete aos juízos de família e menores preparar e julgar processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum”;
32º–O que nos leva a concluir que o legislador, ao determinar a competência material dos Juizos de Família e Menores para o conhecimento e apreciação de acções relativas a Uniões de facto e ao reconhecimento judicial das mesmas, e sendo a união de facto uma relação familiar que está ligada de forma clara ao estado civil das pessoas, mal andou a Mma Juiz do tribunal o quo quando tomou a decisão que deu origem ao presente Recurso:
33º–E isto porque a união de facto está incluída no âmbito objectivo de “estado civil das pessoas e da família” do artº 122º nº 1 da LOSJ pelo que não poderá nunca ser considerada uma matéria de competência do Juízo Local Cível do Funchal do Tribunal Judicial da Comarca do Funchal
34ª–Pelo que deve tal despacho ser revogado, considerando-se o Juízo de Família e Menores do Funchal do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira competente para apreciar a acção de reconhecimento de União de Facto proposta pelos ora recorrentes;
35º–Caso assim não s entenda, o que só por mero dever de ofício se admite, requer-se a V.Exas a aplicação do regime de conflitos conforme previsto no nº 3 do Artº 101º do CPC.

O Ministério Público não veio responder ao recurso.

II.–Questões a decidir

É apenas uma a questão a decidir, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos Recorrentes nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC - salvo questões de conhecimento oficioso - art.º 608.º n.º 2 in fine:
- da (in)competência do tribunal em razão da matéria;

III.Fundamentos de Facto

Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são os que resultam do relatório elaborado.

IV.–Razões de Direito

- da (in)competência do tribunal em razão da matéria
Insurgem-se os Recorrentes contra a decisão proferida que concluiu pela incompetência em razão da matéria do Juízo de Família e Menores para a tramitação e decisão da presente ação de reconhecimento judicial da existência de união de facto entre os AA., com vista, designadamente, à obtenção da nacionalidade portuguesa pelo 2º A.
A sentença recorrida na sua fundamentação vem praticamente decalcada do Acórdão do STJ de 17/06/2021 que cita, proferido no proc. 286/20.4T8VCD.P1.S1 disponível in www.dgsi.pt que concluiu no sentido da competência dos juízos cíveis para as ações que visam o reconhecimento da situação de união de facto entre duas pessoas, para efeitos de obtenção da nacionalidade, em razão da norma especial que constitui o art.º 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade.
É pacífico que para se aferir da competência do tribunal em razão da matéria há que ter em conta o pedido e a causa de pedir em que aquele se funda, atendendo à relação material controvertida tal como ela é apresentada pelo autor e ao pedido que dela decorre- vd. neste sentido, Manuel de Andrade, in. Noções Elementares de Processo Civil, pág. 91.
Como nos diz o Acórdão do STJ de 12 de fevereiro de 2009 no proc. 09A0078 in www.dgsi.pt : “A atribuição da competência em razão da matéria será daquele tribunal que estiver melhor vocacionado para apreciar a questão colocada pelo autor, projectando um critério de eficiência que só poderá ser aferido em função do pedido deduzido e da causa de pedir, donde, portanto, a necessidade de verificar se existe norma que atribua a competência a um tribunal especial e, não havendo, caberá ela, subsidiária e residualmente, aos designados “tribunais comuns”
Como é sabido, os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual, conforme previsão do art.º 40.º da Lei 62/2013 de 26 de agosto - Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ)- e art.º 64.º do CPC ao disporem que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Este princípio é aliás, desde logo, expresso no art.º 211.º n.º 1 da CRP que dispõe:Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

O art.º 65.º do CPC remete para as leis de organização judiciária a determinação das causas que são da competência dos tribunais e secções dotados de competência especializada.

A Lei 62/2013 de 26 de agosto – LOSJ - vem na subsecção IV nos art.º 122.º a 124.º regular sobre a competência dos juízos de família e menores.

No art.º 122.º é fixada a competência destes juízos quanto a matérias relacionadas com o estado civil das pessoas e família, sendo contempladas no n.º 1 deste artigo diversas ações que compete a estes juízos preparar e julgar, destacando-se, no que para o caso interessa, a previsão da sua al. b) os processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum e da al. g) outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

Na situação em presença, uma vez que os AA. expressamente referem que com o reconhecimento judicial da sua situação de união de facto visam a obtenção da nacionalidade portuguesa por parte do 2º A., não pode deixar de ter-se em conta o que dispõe o art.º 3.º da Lei 37/81 de 3 de outubro – Lei da Nacionalidade, na redação que lhe foi dada pela Lei Orgânica 2/2006 de 17 de abril - artigo que rege sobre a aquisição da nacionalidade em caso de casamento ou união de facto e que prevê, no seu n.º 3: “O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.”

A Lei da Nacionalidade – Lei 37/81 de 3 de outubro veio a ser alterada pela mencionada Lei Orgânica 2/2006, com a introdução de um n.º 3 no seu art.º 3.º, com uma previsão que passa a permitir que um estrangeiro que há mais de três anos viva em união de facto com um português, possa adquirir a nacionalidade portuguesa, desde que essa situação de união de facto seja reconhecida em ação própria que deve ser interposta no tribunal cível.

É certo que a Lei 62/2013 de 26 de agosto – LOSJ - veio alterar a competência para julgar as ações de reconhecimento da união de facto que até aí cabia aos tribunais cíveis, passando a atribuí-la aos Juízos de Família e Menores, ao estabelecer no art.º 122.º n.º 1 al. g) que estes têm competência para preparar e julgar as ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

Constata-se ainda que as alterações legislativas da Lei da Nacionalidade, mesmo após a vigência da Lei 62/2013, não implicaram qualquer modificação do art.º 3.º n.º 3 daquela lei, norma especial que se manteve inalterada e que assim deve prevalecer.

Não tendo sido revogada ou alterada a norma especial do art.º 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade, são os tribunais cíveis os competentes para preparar e decidir a ação de reconhecimento da união de facto, desde que com ela o A. tenha em vista, como é o caso, a aquisição da nacionalidade portuguesa, por via da situação da união de facto.

Como se refere no já mencionado Acórdão do STJ de 17 de junho de 2021:(…) mantendo-se na Lei da Nacionalidade a atribuição de competência específica, constante do artigo 3.º, n.º 3 – o estrangeiro que à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível – e sendo esta norma, uma norma especial, ela não foi tacitamente revogada pela alteração que ocorreu na distribuição de competências pela lei geral de enquadramento e organização do sistema judiciário. Assim sendo, o disposto no referido artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade mantém-se vigente e aplicável, definindo uma competência específica dos tribunais, em razão da matéria, para o julgamento das ações de reconhecimento das situações de união de facto, com duração superior a três anos, como requisito de aquisição da nacionalidade portuguesa, por declaração, passando a constituir uma exceção às novas regras gerais da distribuição de competências dos tribunais judiciais entretanto aprovadas. Ora, dispondo este preceito, especificamente, que a competência pertence aos tribunais cíveis, não é possível aplicar a regra geral constante do artigo 122.º, n.º 1, g), da LOSJ, e considerar competente os juízos de família e menores, uma vez que o disposto numa norma especial prevalece sobre uma norma geral.”

Verifica-se que os Acórdãos citados pelos Recorrentes, que concluem pela atribuição de competência aos Juízos de Família e Menores para apreciar e decidir as ações de reconhecimento da situação de união de facto, atenta a previsão do art.º 122.º n.º 1 al. g) da LOSJ, por considerar estarem em causa ações que têm na sua origem relações jurídicas familiares, o que não se contesta, não excluem a aplicação do art.º 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade já que nem lhe fazem referência, norma que confere aos tribunais cíveis competência específica para estas ações, quando visam a obtenção de um título que permita a aquisição da nacionalidade por cidadão estrangeiro.

Este entendimento já foi aliás sufragado pela presente relatora, no Acórdão deste TRL de 29 de abril de 2022 no proc. 26016/21.5T8LSB.L1 que assinou como adjunta, onde se refere: “(…) do cotejo da norma decorrente do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), daquela Lei com a norma constante do referido artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 03.10, na redação da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17.04, decorre a natureza especial desta última, o que reclama a sua aplicação em razão do princípio geral de que a norma especial prevalece sobre a norma geral, bem como do disposto no artigo 7.º, n.º 3, do Código Civil que estipula que: «a lei geral não revoga a lei especial, exceto se outra for a intenção inequívoca do legislador». Ora, no caso tal intenção inexiste. Pelo contrário, ao tempo da publicação e entrada em vigor da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17.04, que deu redação ao n.º 3 do artigo 3.º da Lei n.º 73/81, já estavam instalados Tribunais de Família e Menores, conforme disposto no artigo 78.º da Lei n.º 3/99, de 13.01, pelo que se o legislador quisesse deferir àqueles a competência para apreciar e julgar ações como a presente tê-lo estipulado e não deferido ao «tribunal cível» tal competência. Ao estipular que a ação de reconhecimento da união de facto para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa deve ser interposta no «tribunal cível» o legislador pretendeu significar que tal ação deve correr seus termos nos tribunais com competência residual cível, o que corresponde ora aos Juízos Locais Cíveis ou Juízos de Competência Genérica, conforme na Comarca a interpor a ação existam aqueles ou então estes, atento o disposto nos artigos 117.º, n.º 1, alínea a), e 130.º, n.º 1, ambos da referida Lei n.º 62/2013.”.

Uma decisão obtida pelos AA. em ação de reconhecimento de união de facto proferida em ação intentada num Juízo da Família e Menores corria o risco de não vir a cumprir o objetivo por eles pretendido com a mesma, não correspondendo aos seus interesses, por não permitir que com ela o 2º A. viesse a obter a nacionalidade portuguesa como é sua intenção, à luz da exigência do art.º 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade.

Como se referiu e é pacífico, a competência do tribunal tem de ser avaliada à luz dos termos em que os AA. configuram a ação. No caso, o pedido e a causa de pedir apresentados na petição inicial vão no sentido do reconhecimento judicial da sua situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade pelo 2º A., pelo é o tribunal cível e não o de família e menores que é competente para preparar e decidir a ação, nos termos da norma especial do art.º 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade.

Impõe-se assim a confirmação da decisão recorrida, reconhecendo-se que o juízo de família e menores não é o competente para tramitar e decidir a presente ação.

Vêm os Recorrentes a final e para o caso de não proceder o recurso que apresentam, requerer a “aplicação do regime de conflitos conforme previsto no nº 3 do art.º 101.º do CPC.”

O recurso a tal regime de conflitos, no entanto, não se afigura possível, uma vez que não estão em causa duas decisões contraditórias sobre a competência do tribunal proferidas no mesmo processo.

Na verdade, a presente ação corresponde a um processo diferente daquele que os AA. anteriormente vieram a intentar nos juízos cíveis, já que os mesmos não optaram por requerer a sua remessa para o juízo de Família e Menores, como podiam ter feito, nos termos previstos no art.º 99.º n.º 2 do CPC, não se verificando por isso um conflito de competência em razão da matéria de tribunais diferentes para julgarem uma mesma ação.

Tendo em conta o disposto nos art.º 99.º n.º 1 e 100.º do CPC, parece que não restará aos AA. outra solução que não intentarem uma nova ação.

V.–Decisão:
Em face do exposto, julga-se improcedente o presente recurso interposto pelos AA., confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente
Notifique.
*


Lisboa, 7 de julho de 2022


Inês Moura- (relatora)
Laurinda Gemas- (1ª adjunta)
Arlindo Crua- (2º adjunto)

(assinado eletronicamente)