Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
674/21.9PFAMD.L1-5
Relator: ESTER PACHECO DOS SANTOS
Descritores: FURTO
REPARAÇÃO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: 1- O pagamento realizado pela arguida, com a reparação do dano patrimonial equivalente ao valor económico das peças subtraídas, traduz a reparação integral do prejuízo causado, assumindo por isso efetiva relevância nos termos e para os efeitos do art.º 206.º, n.º 2 do Código Penal.
2- No caso do art.º 206.º, n.º 2 do Código Penal, verificados que se mostrem os respetivos pressupostos objetivos, a intervenção do instituto da atenuação especial é obrigatória e automática, passando a moldura penal aplicável a ser encontrada segundo as regras da atenuação especial.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo comum singular n.º 674/21.9PFAMD do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal da Amadora– Juiz 1, foi proferida sentença a 06.03.2024, que, para o que importa, condenou a arguida AA, melhor identificada nos autos, “pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal na pena de 7 (sete) meses de prisão, substituída, nos termos previstos pelo artigo 43º, nº 1, 2 e 4 b) do Código Penal, na redacção entretanto conferida pela Lei n.º 94/2017, de 23/08, aplicável por força do disposto no artigo 2º, nº 4 daquele diploma, e pelos artigos 1º b), 2º, nº 1 e 4º da Lei nº 33/2010, de 2 de Setembro, na redacção conferida pela mesma Lei n.º 94/2017, de 23/08, por execução em regime de permanência na habitação, pelo período de 7 (sete) meses”.
2. Recurso Arguida
Inconformada com aquela decisão, veio a arguida interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
A. O presente recurso, a versar sobre reapreciação da matéria de facto e Direito, na vertente penal não pretende colocar em causa o exercício das mui nobres funções nas quais se mostram investidos os Ilustres julgadores, mas tão-somente exercer o direito de “manifestação de posição contrária”, traduzido no direito de recorrer [art.º 61º n.º 1 i) CPP e n.º 1 do art.º 32º da CRP], entendendo a recorrente que a visão global de conjunto dos factos imporia decisão diversa, com adição de um ponto de facto à matéria dada por provada e atenuação da pena fixada;
B. A douta decisão, não obstante a sua aparente bondade, acaba por não tomar em avaliação a totalidade do circunstancialismo, em prejuízo da recorrente pois, aquando do oferecimento de contestação, não deixou de fazer constar que iria tentar pagar a quantia reclamada em sede de pedido cível, o que fez, tendo-se o Tribunal a quo limitado a dar conta de homologação de transação, a fls, 1 in fine, mas sem levar tal circunstancialismo a coenvolver o pagamento efectuado pela arguida à matéria de facto provada, com demissão ajuizativa que a prejudica;
C. Tal pagamento será importante não só para efeitos de juízo de prognose, gravidade e consequências da ilicitude bem como conduta posterior aos factos, estando comprovado nos autos mediante requerimento com referência 46836350 de 18-X-2023, revelando-se não só objecto do processo como relevante para efeitos de boa decisão da causa e aplicação da pena, pelo que foi comunicado aos autos directamente pela própria arguida em tal peça processual;
D. Tal circunstancialismo globalmente considerado e a ser dado por provado atenuará a culpa bem como as exigências de prevenção, nos termos e para efeitos do art.º 71 n.ºs 1 e 2 a), e) e f) CP, pelo que deverá ser aditado à matéria de facto dada por provada um ponto de facto com o seguinte teor: a arguida efectuou o pagamento à ofendida da quantia de € 75,95, o que fez em 17 de Outubro de 2023, e portanto antes da audiência de discussão e julgamento;
E. Mostra-se a recorrente condenada em 07 meses de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação, sujeita a vigilância electrónica, tendo tal pena sido fixada sem atender ao facto de a arguida, antes da audiência de discussão e julgamento, ter indemnizado a ofendida, efectuando o pagamento da quantia peticionada em sede de pedido de indemnização cível e por força de tal pagamento veio a mesma a desistir do mesmo (requerimento com referência 46872059 de 20-X-2023), tendo também sido homologada tal transacção;
F. A conduta posterior ao crime, a valorar nos termos do art.º 71º n.º 2 e) CP, foi de ressarcimento dos prejuízos e cabal reparação do ilícito e a sua postura de confissão integral e sem reservas não deixa de permitir concluir pelo arrependimento pelo que, devidamente sopesado tal pagamento e reparação de ilicitude, julgam-se atenuadas as exigências de prevenção, afigurando-se a pena aplicada como indevida, excessiva/majorada;
G. A fls. 12 o Tribunal a quo apenas valorou o facto de a arguida ter confessado os factos, nada tendo dito sobre a reparação/pagamento (motivou a precedente secção recursória!), pelo que sendo facto não despiciendo e deveras importante para a boa decisão da causa, não deixará de ter peso relevante para efeitos de atenuação das exigências de prevenção e valoração da culpa da arguida, defendendo-se a atenuação da pena para quatro meses pois sempre tal pagamento seria factor de atenuação especial da pena nos termos e para efeitos do art.º 72 n.º 1 e 2 c) CP, não deixando o teor do seu relatório social, dado por provado no ponto 2.1.14, de abonar a posição da arguida e aconselhar tal peticionada atenuação da pena;
H. Normas jurídicas violadas: maxime arts. 71º n.ºs 1 e 2 a), e) e f) e 72º n.ºs 1 e 2 c) CP; arts. 1º, 2º, 13º n.º 1, 18º n.ºs 1 e 2, 27º n.º 1, 110º n.º 1, 202º n.ºs 1, 2 e 3, 204º e 205º CRP; art.º 412º n.º 1 CPC; Princípios violados e erroneamente aplicados: maxime da segurança jurídica, da protecção da confiança, da transparência decisória, da materialidade, da imparcialidade, da boa-fé, da culpa, da legalidade, da universalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da adequação e da proibição o excesso bem como das exigências de prevenção.
3. Resposta do Ministério Público
A Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância apresentou resposta ao recurso interposto pela arguida, no sentido de que a decisão condenatória não merece censura, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
1. Veio a arguida recorrer da Douta Sentença que a condenou pela prática, de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão, substituída, nos termos previstos pelo artigo 43.º, n.ºs 1, 2 e 4, alínea b) do Código Penal, na redacção entretanto conferida pela Lei n.º 94/2017, de 23/08, aplicável por força do disposto no artigo 2º, nº 4 daquele diploma, e pelos artigos 1º b), 2º, nº 1 e 4º da Lei nº 33/2010, de 2 de Setembro, na redacção conferida pela mesma Lei n.º 94/2017, de 23/08, por execução em regime de permanência na habitação, pelo período de 7 (sete) meses.
2. Questiona a arguida, ora recorrente, o facto de o Tribunal “a quo” ter dado como provados os factos que deu e a valoração que deu às declarações da arguida, nomeadamente, deveria ter sido levada em linha de conta, nos factos dados como provados, o facto da arguida ter pago a quantia em causa à ofendida, antes da audiência de discussão e julgamento, sendo certo que, foi levada em linha de conta a confissão livre, integral e sem reservas que aquela fez dos factos em causa.
3. Salvo melhor opinião, e sempre com muito respeito, não assiste de todo razão à arguida, ora Recorrente, nesta matéria pois, o Tribunal a quo analisou criteriosamente toda a prova produzida, mormente, a confissão dos factos efectuada pela arguida.
4. A conclusão a que o Tribunal a quo chegou não poderia ser outra que não fosse a condenação nos termos, fundamentos e extensão em que o foi.
5. A nosso ver, não merecem qualquer reparo os factos dados como provados e não provados, tendo estes sido correctamente julgados e tendo a prova produzida sido bastante.
6. O Tribunal a quo valorou correctamente a prova produzida, fundamentando a formação da sua convicção e os motivos que levaram a considerar os factos provados e os factos não provados, verificando-se uma correcta e irrepreensível aplicação dos critérios legais estabelecidos no artigo 127º, do Código de Processo Penal;
7. Veio a arguida, ora Recorrente recorrer também da Douta Sentença condenatória, por discordar da medida da pena que lhe foi aplicada, requerendo a aplicação de uma pena de 4 meses de prisão em regime de OPH, em vez dos 7 meses de prisão em regime OPH em que aquela foi condenada.
8. Por força do artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal, a determinação da medida da pena deverá ter em atenção a culpa do agente e as exigências de prevenção, sendo certo que toda a pena tem como suporte axiológico uma culpa concreta, o que envolve uma proporcionalidade entre a pena e a culpa, exarando-se que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal.
9. À luz destes princípios, entendemos que a Douta Sentença recorrida doseou equilibradamente a pena aplicada ao Arguido, cumprindo desde logo não esquecer que a mesma já tem averbadas no seu Certificado de Registo Criminal, entre outras, inúmeras condenações por crime da mesma natureza.
10. A conjugação dos elementos que resultaram provados na audiência, permitiram que o Tribunal “a quo” formasse a sua convicção e desse como provados e não provados factos que se pretendem atacar, mas que, em nosso entender, nenhum reparo merecem.
11. Os factos ocorreram da forma como foi considerada pelo Tribunal “a quo”.
12. Da prova produzida em julgamento, não vemos possibilidade de explicar os factos de forma diferente daquela que está consagrada na Douta Sentença ora recorrida.
13. Posto isto, e porque nenhum reparo nos merece a Douta Sentença recorrida, dúvidas não temos de que o Tribunal “a quo” andou bem ao condenar a arguida nos moldes em que o fez.
14. A sentença condenatória está em conformidade com a prova produzida em julgamento, não padece de vícios e fez uma correcta subsunção jurídica dos factos em apreciação, razão pela qual pugnamos pela sua manutenção.
4. Parecer
Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando a resposta do Ministério Público junto da 1ª instância, no sentido de que o recurso não merece provimento.
5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP), foi apresentada resposta pelo arguido, reiterando, no essencial, aquilo que deixou dito nas suas alegações e conclusões.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art.º 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art.º 410.º n.º 2 CPP.
No caso concreto, conforme as conclusões da respetiva motivação, cumpre apreciar as seguintes questões:
• Da atenuação especial da pena em razão da circunstância de a arguida ter efetuado o pagamento à ofendida da quantia de €75,95, antes da audiência de discussão e julgamento;
• Da pena concreta aplicada à arguida, considerada “indevida, excessiva/majorada”, em razão da não aplicação dos critérios da atenuação especial.
2. Da sentença recorrida
2.1. Consta do relatório da sentença o seguinte (transcrição):
“A queixosa, BB, SA deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida pedindo a condenação desta no pagamento de uma indemnização, no montante de € 75,95 referente a danos patrimoniais acrescidos de juros de mora, até efectivo e integral pagamento.”
(…)
“Por despacho de 25.10.2023, foi homologada a transacção das partes quanto ao pedido cível.”
2.2. O tribunal a quo deu como provada a seguinte factualidade:
Factos provados
1. No dia 15 de Agosto de 2021, pelas 17h30, a arguida AA e outro indivíduo do sexo feminino cuja identidade permanece desconhecida, após delinearem um plano entre si, deslocaram-se ao estabelecimento comercial denominado “...”, sito no Centro Comercial ..., na Avenida ..., em ..., com a intenção de se apoderar de alguns objectos, sem efectuar o respectivo pagamento.
2. Aí chegadas, a arguida AA e outro indivíduo do sexo feminino retiraram das prateleiras do referido estabelecimento comercial os seguintes objectos:
- duas t-shirts no valor unitário de 9,99€;
- uma camisa no valor de 15,99€;
- umas bermudas no valor de 19,99€;
- um par de calças no valor de 19,99.
3. Perfazendo tais objectos o valor global de 75,95€.
4. Após, de forma não concretamente apurada, a arguida AA e o outro indivíduo do sexo feminino retiraram as etiquetas e alarmes das referidas peças de vestuário, colocando-as de seguida num saco de que previamente se muniram.
5. De seguida, a arguida AA e o outro indivíduo do sexo feminino dirigiram-se para a saída do referido estabelecimento, passando nas caixas registadoras sem efectuar pagamento dos referidos objectos e fazendo-os seus.
6. Nessa mesma ocasião, já à saída do referido estabelecimento comercial, a arguida AA e o outro indivíduo do sexo feminino foram abordados pelo vigilante do referido estabelecimento que as interpelou, tendo sido recuperados os objectos acima descritos.
7. Aquando da abordagem a arguida AA trazia ainda consigo uma mala de cor bege e vermelho forrada em papel de alumínio por forma a evitar a activação dos alarmes das peças de roupa que se propuseram furtar.
8. Ao actuar da forma acima descrita, mediante um plano entre si previamente delineado e em comunhão de esforços, a arguida AA e outro individuo do sexo feminino cuja identidade não foi possível apurar, agiram com o propósito concretizado de retirar e levar consigo, os objectos supra discriminados, com o intuito de os fazerem seus, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam, e que actuavam contra a vontade do dono dos mesmos, o que quiseram e conseguiram.
9. A arguida AA agiu em comunhão de esforços de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
10. A arguida é solteira, tem dois filhos e mora sozinha.
11. Aufere cerca de €760 por mês.
12. Mora em casa própria pagando €540 de empréstimo.
13. Tem o 7º ano de escolaridade.
14. Conforme resulta do relatório social elaborado à arguida “O processo de socialização de AA é caracterizado pela ausência de figuras de referência protetoras, que parecem ter dificultado um desenvolvimento equilibrado e harmonioso. A arguida tem dois filhos, sendo que o mais velho reside com o progenitor e a mais nova com a avó paterna, pelo que reside sozinha. Revela intermitência e inconsistência ao nível laboral, apresentando dificuldades em alcançar e manter uma situação laboral estável, denotando fragilidades a este nível e consequentemente ao nível da autonomia financeira. Ao nível da sua saúde, a arguida revelou dificuldades de adesão ao acompanhamento médico, o que se pode ter refletido na sua instabilidade pessoal, emocional e comportamental. Atualmente, aparenta estar motivada para manter esse acompanhamento especializado, tendo para tal comparecido na consulta de psiquiatria. Não obstante, os vários processos judiciais pelos quais foi condenada, alguns dos quais pela mesma tipologia criminal do presente processo e a atual situação jurídico-penal privativa da liberdade, parece ter despoletado alguma preocupação na arguida sendo que no seu discurso denota sentido crítico face aos seus comportamentos do desvalor das suas condutas criminais, manifestando o desejo de se afastar de pares pró-criminais e ajustar o seu modo de vida. Pelo que, em caso de condenação, aparenta ter condições para cumprir uma medida na comunidade, devendo manter o acompanhamento nos fatores de risco e fragilidades acima mencionados, que contemple a obrigatoriedade do acompanhamento no âmbito da saúde mental.”
15. A arguida tem antecedentes criminais tendo já sido condenada em:
- um crime de injuria;
- seis crimes de furto;
- um crime de introdução em lugar vedado ao publico;
- três crimes de condução de veiculo sem habilitação legal;
- dois crimes de ofensas à integridade física simples;
- três crimes de violência depois da subtracção.
***
3. Apreciando
Entende a arguida que a visão global de conjunto dos factos imporia decisão diversa, com adição de um ponto de facto à matéria dada por provada - “A arguida efetuou o pagamento à ofendida da quantia de € 75,95, o que fez em 17 de Outubro de 2023, e portanto antes da audiência de discussão e julgamento” - e consequente atenuação da pena fixada.
A recorrente não coloca em causa os factos pelos quais se mostra condenada, que aliás confessou integralmente e sem reservas, “pelo que a discordância não é com a matéria de facto dada por provada mas sim com aquela que não foi conhecida”.
Em suma, o recurso aponta à decisão recorrida a “demissão ajuizativa” de não ter dado qualquer relevância ao pagamento realizado pela arguida da quantia de €75,95, comprovado nos autos, conforme apresentação de 18.10.2023.
Vejamos.
Aquando do oferecimento de contestação não deixou a arguida de fazer constar que iria tentar pagar a quantia reclamada em sede de pedido cível (“Estando presentemente a desempenhar actividade laboral irá procurar ressarcir a lesada, efectuando o pagamento voluntário do montante peticionado em sede de pedido de indemnização cível, já tendo obtido o respectivo IBAN para o efeito” – cf. art.º 6.º da contestação).
O que de facto fez a 17.10.2023 (cf. ref. citius 24259723, ap. de 18.10.2023), limitando-se todavia o tribunal a quo a dar conta de homologação de transação, mas sem levar tal circunstancialismo à matéria de facto provada, ao contrário daquilo a estava obrigado, de acordo com a disciplina do art.º 206.º, n.º 2 do Código Penal.
Verdadeiramente, a decisão recorrida, em desacordo com a disposição legal citada (“Quando a coisa ou o animal furtados ou ilegitimamente apropriados forem restituídos, ou tiver lugar a reparação integral do prejuízo causado, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada”), ignorou em absoluto a relevância desse pagamento, dele não retirando quaisquer consequências, que necessariamente se impunham.
É que o pagamento realizado pela arguida, com a reparação do dano patrimonial equivalente ao valor económico das peças subtraídas (“Perfazendo tais objectos o valor global de 75,95€”- cf. facto provado em 3), traduz a reparação integral do prejuízo causado, tendo sido realizado antes do início da audiência de julgamento (07.12.2023), assumindo por isso mesmo efetiva relevância.
É, pois, procedente, nessa parte, a correspondente impugnação, e que por isso implica, nos termos do art.º 431.º, al. a) do CPP, a sua modificabilidade por este tribunal de recurso.
Modificar-se-á, pois, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto nos termos apontados pela defesa, fazendo constar da factualidade provada o seguinte ponto:
“A arguida efetuou o pagamento à ofendida da quantia de € 75,95, o que fez em 17 de outubro de 2023, e portanto antes da audiência de discussão e julgamento.”
Aqui chegados, continua a assistir razão à recorrente.
Com efeito, passando a moldura penal aplicável a ser encontrada segundo as regras da atenuação especial, mal andou o tribunal recorrido ao ignorar o instituto em questão, deixando por desencadear, de forma obrigatória e automática, a necessária consequência jurídica, ou seja, os termos da atenuação a que se refere o art.º 73.º do Código Penal (no sentido de que no caso do art.º 206.º, n.º 2, a intervenção do instituto da atenuação especial é obrigatória e, hoc sensu, automática, verificados que estejam os pressupostos objetivos naquele número contidos, cf. Figueiredo Dias e Susana Aires de Sousa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Gestlegal, 2ª edição, julho 2022, pág. 141).
A arguida beneficiará pois dos termos da atenuação especial prevista no art.º 73.º do Código Penal, sendo que por força dessa atenuação, o crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal pelo qual surge condenada passa a ter a seguinte moldura abstrata: pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias (diferentemente da moldura penal inicialmente considerada pelo tribunal a quo, equivalente a prisão até 3 anos ou multa até 360 dias).
Afastada que se mostra, de forma válida e não contestada, a opção por pena de multa, valem os considerandos realizados pelo tribunal recorrido para a determinação da medida concreta da pena, a saber, “o modo de execução dos factos – o facto de a arguida ter retirado vários artigos sem o consentimento e contra a vontade do seu legítimo dono; a gravidade das suas consequências – ou seja a queixosa ficou sem as mesmas durante um certo período de tempo; o grau de violação dos deveres impostos à arguida, que se considera elevado, uma vez que o respeito pela propriedade dos outros emerge como um dos valores básicos que tecem e sustentam os valores da nossa civilização; a intensidade do dolo, na sua forma directa; o facto de a arguida possuir vastos antecedentes criminais de idêntica natureza; a circunstância de a arguida ter confessado os factos; nas elevadas necessidades de prevenção geral que determinam a imposição de medidas que tenham em vista dissuadir a prática deste tipo de infracções que, pela sua gravidade, põem em perigo o direito de propriedade e a detenção das coisas que podem ser subtraídas”.
Contudo, considerando agora a moldura penal abstrata em destaque – prisão até 2 anos, bem como as efetivas exigências de prevenção geral e especial, temos por adequada, nos termos pugnados pela defesa, a pena de 4 (quatro) meses de prisão.
No mais, e porque “a pena especialmente atenuada que tiver sido em concreto fixada é passível de substituição, nos termos gerais” (cf. n.º 2 do art.º 73.º citado), nada há a alterar ao modo de execução definido pelo tribunal recorrido, ou seja, a pena agora reduzida será executada em regime de permanência na habitação, mantendo-se a esse propósito tudo o demais decidido pelo tribunal a quo.
*
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto pela arguida AA, e decidem:
1 - Modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto, fazendo constar da factualidade provada o seguinte ponto:
“A arguida efetuou o pagamento à ofendida da quantia de € 75,95, o que fez em 17 de outubro de 2023, e portanto antes da audiência de discussão e julgamento.”
2 - Revogar a decisão no que se refere à pena aplicada à arguida, condenando- -a, em substituição, na pena de 4 (quatro) meses de prisão a executar em regime de permanência na habitação.
3 - No mais, manter a sentença recorrida.
Sem custas (art.º 513.º, n.º 1 do CPP).
Notifique.
*
Lisboa, 22 de outubro de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
Alda Tomé Casimiro
Manuel José Ramos da Fonseca