Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1143/22.5PBOER.L1-9
Relator: CARLA CARECHO
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
INDÍCIOS SUFICIENTES
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I. Encontra-se o JIC obrigado, aquando da prolação da Decisão Instrutória, a proceder à análise crítica das provas produzidas no inquérito e na instrução, por força da imposição constitucional decorrente dos artigos 205º, n.º 1 e 32º, n.º 1 da CRP e bem assim do artigo 97º, n.º 5 do CPP. Porém, tal exigência de fundamentação da matéria de facto (considerada (ou não) suficientemente indiciada) não se confunde com a livre convicção da prova feita pelo tribunal a quo sobre os meios de prova juntos aos autos, ao abrigo do artigo 127º do CPP.
II. Indícios suficientes são aqueles que correspondem à persuasão ou à convicção de que, mediante o debate amplo da prova em julgamento, se poderão provar os elementos constitutivos da infracção descritos na acusação deduzida. Os indícios suficientes correspondem assim a um conjunto de factos que, relacionados e conjugados entre si, conduzem à convicção da culpabilidade do arguido e de lhe vir a ser aplicada uma pena.
III. Para o juízo indiciário a fazer dos meios de prova coligidos nos autos, em que em causa está a imputação ao arguido de crime de violência doméstica, há que ter presente o fenómeno em causa, o qual assume diversas formas (violência financeira, física, emocional, psicológica e social), é transversal aos diferentes padrões culturais, religiosos, económicos e profissionais e desenvolve-se através de ciclos cuja intensidade e frequência aumenta com o tempo, sucedendo a um ciclo de violência, um período de reconciliação e afecto, o que torna difícil, não apenas à própria vítima, mas também aos que a rodeiam e convivem com o casal perceber que o que está a acontecer é uma forma de violência.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, as Juízas Desembargadoras da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
No âmbito dos Autos de Instrução n.º 1143/22.5PBOER, que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Cascais, Juiz 1, ao abrigo do artigo 308º, n.º 1 do Código de Processo Penal (doravante CPP) foi proferida Decisão Instrutória de não pronúncia do arguido AA pelos factos descritos na acusação pública que consubstanciariam a prática, por aquele, em autoria e concurso efectivo, de:
- um crime de violência doméstica na pessoa da esposa BB, previsto e punível (p.p.) pelo artigo 152º, n.º 1, al. a), n.º 2, al. a), n.º 4 e n.º 5, do Código Penal (doravante CP),
- três crimes de violência doméstica na pessoa de cada um dos seus três filhos menores CC, DD e EE, p.p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. d), n.º 2, al. a), n.º 4 e n.º 5 do CP,
por se entender que os indícios recolhidos nos autos não são suficientes para se considerar preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de violência doméstica.
Inconformado com tal decisão vieram os assistentes BB, CC, DD e EE, estes três últimos menores representados por aquela primeira, interpor o presente recurso, extraindo da motivação apresentada as seguintes conclusões que aqui se transcrevem:
“I. O presente Recurso tem por objeto a decisão instrutória proferida no dia 1 de fevereiro de 2024, nos termos da qual se decidiu não pronunciar o Arguido pela prática de um total de quatro crimes de violência doméstica, um dos quais contra a sua ex-mulher, previsto e punido nos termos do artigo 152.°, n.° 1 al. a), n.° 2 al. a), n.° 4 e n.° 5 do Código Penal, e de três crimes de violência doméstica contra cada um dos seus três filhos menores, CC, DD, e EE, ilícito previsto e punido nos termos do artigo 152.°, n.° 1 al. d), n.° 2 al. a), n.° 4 e n.° 5 do Código Penal, ou por qualquer outro crime.
II. Perante a existência de indícios mais do que suficientes da prática do referido crime por parte do Arguido, a decisão instrutória, salvo o devido respeito, é manifestamente insubsistente, devendo ser substituída por outra que pronuncie o Arguido pelos crimes em causa, tendo o Ministério Público, igualmente, em sede de instrução, promovido no sentido da pronúncia do Arguido.
III. O conteúdo decisório da Decisão instrutória recorrida foi construído e proferido sem que qualquer credibilidade fosse conferida às declarações da Assistente, referindo que na Acusação Subordinada, apresentada pela Assistente, teria havido um propósito de criar toda uma “aparência” e uma “história” e referindo a existência de um “fantasioso sequestro”, desconsiderando assim toda a prova produzida no processo, procurando ridicularizar a figura da Assistente e descredibilizá-la, tecendo até considerações sobre o seu suposto “poder económico”, tomando como elemento decisório a forma como a Assistente se apresentou em Tribunal, supostamente acompanhada por um segurança, o que nunca deveria ter sido ponderado enquanto fator decisório — e que, em qualquer caso, apenas reforçaria que a Assistente se sente insegura na presença do Arguido — nem como fundamento para desvalorizar as declarações da Assistente.
IV. A decisão do Tribunal a quo não pode, em caso algum, ancorar-se num qualquer juízo ou valoração de aparências, devendo o Tribunal julgar e analisar criticamente comportamentos e factos, através de critérios puramente objetivos e factuais, desconsiderando o facto de alguém se fazer acompanhar seja por quem for.
V. No que concerne ao objeto do processo, o Tribunal a quo desconsiderou, em nosso entender, erradamente, os factos constantes da Acusação Subordinada que não estavam já integrados na Acusação Pública.
VI. A Exma. Senhora Juiz de Instrução Criminal parece extrair a conclusão precipitada de que, com a Acusação Subordinada, veio a Assistente fazer aquilo que não podia fazer, porquanto, de acordo com a tese instrutória, aditou factos que implicavam necessariamente uma alteração substancial de factos, para o qual o instituto do artigo 284.° não se encontra previsto (cfr. Despacho de Instrução, pp. 15 e 16 do pdf).
VII. Sucede que os factos introduzidos pela Assistente na sua Acusação Subordinada nunca visaram proceder a uma alteração substancial de factos — e, por conseguinte, também nunca pretendeu a Assistente que o Tribunal de Instrução Criminal se pronunciasse sobre crimes diversos daqueles que constam da Acusação Pública (ou sequer agravar os limites máximos das sanções aplicáveis).
VIII. Tal resulta, desde logo, do facto da Assistente não ter apresentado Requerimento para Abertura da Instrução, optando por aderir à tese acusatória, embora expondo a sua não concordância total com a mesma, retificando alguns dos factos e aditando outros, sempre tendo em consideração a natureza e limites da acusação subordinada, para efeitos do artigo 284.°, n.° 1, do CPP.
IX. Nos termos do artigo 284.°, n.° 1, do CPP, podem ser aduzidos pela Assistente, como o foram, factos que permitam o aperfeiçoar do enquadramento fático e de aspetos circunstanciais da conduta do agente, meras precisões ou concretizações dos factos imputados, detalhes da cronologia e correções de lapsos temporais dos factos.
X. No entanto, tal não implica (como não implicou) uma alteração do objeto do processo, no sentido de constituírem uma surpresa relevante para a defesa ou de tornarem absolutamente distintos os eventos fenomenológicos que são objeto da acusação, referindo, aliás, o Despacho de que ora se recorre que a Assistente “junt[ou] pormenores” (cfr. Despacho de Instrução, p. 16 do pdf, com destaque nosso).
XI. Neste sentido, e apesar de os factos aditados, em abstrato, poderem ser a base para uma alteração substancial de factos, o seu aditamento não visou uma imputação jurídica nova, e, muito menos, uma imputação jurídico-penal agravadora da situação do Arguido.
XII. Ao longo da Acusação Subordinada, pretendeu-se corroborar que o relacionamento entre a Assistente BB e o Arguido ficou marcado pela violência e abusos a todos os níveis, emocional, psicológico, verbal e físico.
XIII. Em concreto, a referência aos factos constantes nos pontos 55.° e 140.° da Acusação Subordinada, visou o aditamento de situações de agressões verbais e emocionais, respetivamente, que, não implicando o aumento dos limites máximos da sanção aplicável ou a imputação de novos crimes, permitem a compreensão total da extensão das agressões físicas e verbais que preenchem o tipo objetivo de violência doméstica.
XIV. A Exma. Senhora Juiz de Instrução Criminal alude ao episódio da suposta “violação”, como parece querer assim enquadrá-lo, para sobre ele não se pronunciar, quando a Assistente apenas pretendeu revelar mais uma situação específica de maus-tratos, evidenciando que, até em contexto de relações sexuais, o Arguido era agressivo na forma como se dirigia à Assistente, utilizando expressões como “Quando eu te digo que é para ires para a cama, tu vais e abres as pernas”, tendo exatamente a mesma intenção quanto à situação que o Despacho instrutório descreve como o “fantasioso sequestro” (cfr. Despacho de Instrução, p. 16 do pdf).
XV. O que resulta da análise das Acusações Pública e Subordinada é que não houve qualquer alteração de factos relevantes ou substanciais para a imputação penal, visto que a Acusação Particular apenas acrescentou factos que melhor concretizam o contexto em que ocorre a prática dos crimes de violência doméstica imputados ao Arguido, pelo que deverá ser tida em consideração por V. Exas. para a revisão da Decisão recorrida.
XVI. Salientando-se que o Tribunal a quo teria sempre que se pronunciar sobre os factos atinentes aos restantes episódios de ofensas corporais e verbais descritos na Acusação Subordinada, que apenas consubstanciam uma alteração não substancial de factos, o que não fez.
XVII. Deste modo, o que se requer agora a este Venerando Tribunal é que se pronuncie sobre a totalidade da Acusação Subordinada, revogando o Despacho de Instrução na parte em que se recusa a conhecer dos detalhes e pormenores aditados naquela. Uma vez que tais aditamentos não consubstanciam uma alteração substancial de factos, mas apenas, quando muito. uma alteração não substancial de factos. Em conformidade com o âmbito de aplicação do regime previsto no artigo 284.° do CPP.
XVIII. No que respeita à decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto, podem apontar-se diversos erros sistematizáveis da seguinte forma:
a) O Tribunal a quo desconsiderou por completo as declarações da Assistente;
b) O Tribunal a quo desconsiderou a circunstância de outros meios de prova corroborarem aquilo que foi descrito pela Assistente nas suas declarações;
c) O Tribunal a quo, em concreto, quanto à prova testemunhal, realizou um aproveitamento seletivo de partes de depoimentos e desconsiderou outras partes com relevância para os autos, tendo omitido a consideração da prova de factos relevantes;
d) O Tribunal a quo não considerou como indiciados os factos que resultaram não só das declarações da Assistente, como também da prova documental e da demais prova constante dos autos, os quais, em grande maioria, já haviam sido, aliás, considerados em sede de Acusação.
XIX. A Assistente descreveu e relatou, quer no Auto de Denúncia, quer nos vários aditamentos que fez aos presentes autos, os seguintes episódios que descrevem várias situações de comportamentos agressivos do Arguido para com a mesma:
a) Relata que o relacionamento amoroso entre ambos ficou marcado pela violência e abusos a todos os níveis, emocional, psicológico, verbal e físico (cfr. Auto de Denúncia, de 29.06.2022, de fls. 5 dos autos; e Acusação Subordinada, de 06.04.2023).
b) A Assistente retratou expressamente no Auto de Denúncia por si apresentado que sofria, da parte do Arguido, abusos verbais e uma grande pressão psicológica, sobretudo, ao nível do exercício da profissão enquanto ..., a qual deixou de exercer por pressão do Arguido (cfr. Auto de Denúncia, de 29.06.2022, de fls. 5 dos autos; e Acusação Subordinada, de 06.04.2023).
c) Explicou que o Arguido a rebaixava e humilhava, dizendo-lhe que “não tinha estofo para exercer a profissão” de … (cfr. Auto de Denúncia, de 29.06.2022, de fls. 5 dos autos; e Acusação Subordinada, de 06.04.2023).
d) A Assistente explicou ter deixado de trabalhar como ... e passado a ser financeiramente controlada pelo Arguido e dependente do mesmo, o qual só lhe disponibilizava os meios financeiros básicos para sustentar as despesas domésticas (cfr. Auto de Denúncia, de 29.06.2022, de fls. 5 dos autos; e Acusação Subordinada, de 06.04.2023).
e) O facto de o Arguido ter afastado a Assistente do convívio com a sua família de origem e amigos, manipulando-a psicológica e emocionalmente (cfr. Auto de Denúncia, de 29.06.2022, de fls. 5 dos autos; e Acusação Subordinada, de 06.04.2023);
f) Relatou que em 2020, quando o seu pai se encontrava em Portugal sozinho num dos confinamentos da Covid-19, foi impedida pelo Arguido de ir ter com aquele para o apoiar (cfr. Acusação Subordinada, de 06.04.2023);
g) Afirmou que o Arguido várias vezes tentava aceder ao telemóvel da Assistente, quando esta estava deitada na cama, para ver com quem esta falava, perguntando-lhe, muitas vezes, se esta estava a falar com os seus pais; vendo-se a Assistente constrangida a mentir-lhe para evitar conflitos (cfr. Acusação Subordinada, de 06.04.2023);
h) Relatou que foi impedida de ir ao casamento do seu melhor amigo (cfr. Acusação Subordinada, de 06.04.2023);
i) Relatou que, entre o ano de 2018 e 2019, o Arguido começou a humilhar, a depreciar e a gritar com a Assistente BB dizendo que era “uma merda”, “uma estúpida”, que “não és nada”, “só mereces merda”, “tens um micro-cérebro”, e não contava com a opinião desta para nenhum assunto nem tão pouco a deixava saber sobre os seus assuntos, dizendo-lhe que a vida dele era uma “merda” por causa da Assistente BB e que a culpa de tudo era dela, tudo o que se foi arrastando no tempo e agravando até 2022, dizendo-lhe entre 2019 e 2022 também que ela não tinha capacidade para exercer a profissão (cfr. Acusação Subordinada, de 06.04.2023);
j) Expôs um episódio que ocorreu uns dias depois de o seu filho EE ter nascido, no dia ... de ... de 2019, em que o Arguido disse à Assistente que os seus pais vinham passar férias a Portugal e que chegariam no dia 24 de dezembro, impossibilitando-a assim de estar com a sua família, sendo que quando esta questionou sobre a possibilidade de tal viagem ser adiada, o Arguido começou a gritar com a Assistente, dizendo que esta não tinha nada a ver com o assunto, que os pais dele viriam quando ele quisesse (cfr. Acusação Subordinada, de 06.04.2023);
k) Descreveu com pormenor ao longo dos autos a situação de se ter visto obrigada a permanecer em ... por imposição do Arguido, quando ali se encontrava descontente e era tratada de uma forma menor por parte do Arguido, por forma a não ficar sem os seus filhos, visto que o Arguido não permitia o seu regresso a Portugal com os filhos (Acusação Subordinada, de 06.04.2023, em especial artigos 61.° e ss.).
1) Relatou um episódio de 10 de junho de 2022, no qual, na sequência de tentar proteger o seu filho DD da agressão do Arguido, em que este atirou contra DD uma garrafa de iogurte que lhe acertou no lábio causando-lhe uma ferida, o Arguido desferiu um murro na articulação do cotovelo direito da Assistente, causando-lhe hematomas (cfr. Auto de Denúncia, de 29.06.2022, de fls. 5, e fotografia da lesão, delis. 22 dos autos; Acusação Subordinada, de 06.04.2023, artigo 94.°).
m) Relatou um episódio concreto, ocorrido em 3 de julho de 2022, entre o período das 14h00 e das 18h00, em que o Arguido enviou consecutivas mensagens à Assistente, através de múltiplas redes sociais, e telefonou-lhe incessantemente, cerca de 40 vezes, como ficou demonstrado através do documento n.° 10 junto com a acusação subordinada, tendo, dois dias depois, à noite, ido a casa dos Pais da Assistente, sem pré-aviso, fazendo um escândalo na rua e tocando insistentemente à campainha, incomodando e atormentando a Assistente (cfr. Aditamento n.° 1, de 09.07.2022, de fls. 41 dos autos; e Acusação Subordinada, de 06.04.2023).
n) Descreveu um episódio de 5 de julho de 2022, em que o Arguido, sem que nada fizesse prever, se dirigiu à residência onde a Vítima vivia à data, tocando insistentemente à companhia, pelas 21h30, com o intuito de ir buscar as crianças (cfr. Aditamento n.° 1, de 09.07.2022, de fls. 41 dos autos).
o) Descreveu um episódio de 7 de julho de 2022, aproximadamente pelas 20h00/20h30, em que o Arguido se dirigiu novamente à residência, onde tocou por diversas vezes à campainha e buzinou insistentemente a partir da sua viatura, simultaneamente a chamar, em tom de voz elevado, pelo nome dos seus filhos. Nesse dia, quando a mãe e a cuidadora da avó da Assistente se deslocaram à rua, por forma a perceberem o que se passava, viram-se confrontadas com uma postura agressiva por parte do Arguido (cfr. Aditamento n.° 1, de 09.07.2022, de fls. 41 dos autos).
p) Relatou um episódio de 9 de julho de 2022, por volta das 10h30, em que, no ..., a Assistente chegou ao local com as crianças, tendo recebido uma chamada telefónica do Arguido, ordenando “Eles têm que vir aqui onde eu estou. É aqui que eu estou e que estava à espera deles”. De seguida, que a Assistente se deslocou com os seus pais e com as crianças para junto do Arguido, tendo este repetido uma postura autoritária, afirmando o seguinte: “O que é que os teus pais estão aqui a fazer? Eles que desapareçam imediatamente da minha frente”. O Arguido prosseguiu ameaçando a Assistente e os seus pais: “Isto não vai ficar assim, não sabem do que sou capa”. Acrescentando a Assistente que, de seguida, o Arguido intentou levar as crianças forçosamente daquele local, agarrando-lhes nos braços com violência e assustando-as com a sua postura violenta, momento em que os elementos de segurança pessoal intervieram para cessar aquela conduta. Factos que foram presenciados pelos pais da Assistente, FF e GG, bem como pelos seus seguranças pessoais HH e II (cfr. Aditamento n.° 1, de 09.07.2022, de fls. 41 dos autos). Tendo os seus filhos ficado psicologicamente afetados em consequência do mencionado episódio (cfr. Aditamento n.° 3, de 15.07.2022, através do qual a Assistente BB entregou pen com vídeos que demonstram o estado psicológico dos seus filhos).
XX. Mas mais, a Assistente prestou também declarações em sede de inquérito de uma forma pormenorizada e clara, sobre os insultos e maus-tratos físicos a que o Arguido sujeitou os três filhos, de 2018 a 2022, retratando episódios em que aquele foi agressivo, infligiu castigos corporais e dirigiu palavras ofensivas às crianças:
a) Em concreto, no que concerne à sua filha CC, a Assistente retrata episódios em que esta foi repetidamente sujeita a castigos corporais, tendo o Arguido, a título de exemplo, puxado os cabelos à filha e puxado o seu braço com força, magoando-a (cfr. Auto de Denúncia, de 29.06.2022, de fls. 5 dos autos).
b) No ano de 2020, o Arguido empurrou o filho DD com força contra uma mesa provocando-lhe uma lesão na cabeça, quando este tinha apenas 4 anos de idade (cfr. Auto de Denúncia, de 29.06.2022, de fls. 5, e fotograma da lesão da criança, de fls. 21 dos autos; Acusação Subordinada, de 06.04.2023, artigo 86. 0 ).
c) Retrata ainda em relação ao seu filho DD, um episódio de violência de 10 de junho de 2022, no qual o Arguido atirou uma garrafa de iogurte ao filho DD, acertando-lhe no lábio (cfr. Auto de Denúncia, de 29.06.2022, de fls. 5).
d) Em relação ao filho mais novo, EE, a Assistente descreve que até este chegou a ser sujeito a fortes puxões de orelhas (cfr. Auto de Denúncia, de 29.06.2022, de fls. 5), além de ter sido circuncisado à nascença a sangre frio pelo Arguido.
e) A Assistente relatou ainda que o Arguido, por diversas vezes, injuriou e maltratou verbalmente os filhos, proferindo expressões como “és uma merda, um estúpido, um animal” (cfr. Auto de Denúncia, de 29.06.2022, de fls. 5).
XXI. Todos os episódios foram descritos de uma forma pormenorizada, clara e totalmente convincente.
XXII. O Tribunal de Instrução usa como elemento de valoração desfavorável à Assistente o facto de esta não ter promovido a ida das crianças — vítimas, também elas, de violência do pai — ao Tribunal, desconsiderando que foi uma opção do próprio Tribunal não abordar as crianças para efeitos de produção de prova, não tendo diligenciado no sentido de submeter CC, uma das filhas do casal, a perícia médico- legal, inter alia, dos factos alegados na Acusação Subordinada, em especial, no que concerne às consequências na sua saúde mental, por ter passado a experienciar sentimentos de medo, humilhação, ansiedade, desespero e tristeza, ao contrário do que foi requerido pela Assistente na Acusação Subordinada, ao abrigo dos artigos 475.° e 476.° do CPC, aplicáveis ex vi artigo 4.° do CPP.
XXIII. Apesar da descrição pormenorizada de todos os episódios que a Assistente viveu, e dos vários episódios de violência perpetrados pelo Arguido contra os filhos do casal, a Exma. Senhora Juiz de Instrução Criminal. sem qualquer fundamento alicerçado em premissas indestrutíveis, veio optar por não conferir credibilidade àsdeclarações prestadas pela Assistente. com base:
a) Na circunstância de que “não houve uma única amiga, conhecida, colega de profissão que corroborasse as declarações prestadas pela ofendida”; (cfr. Despacho de Instrução) — desconsiderando por absoluto todo o conteúdo das declarações prestadas pela Assistente e pelos seus pais, nas quais explicaram que o Arguido afastou e isolou a Assistente de todos os seus amigos, com os quais, paulatinamente, acabou por perder contacto e até, da família (cfr. Acusação Subordinada, de 06.04.2023);
b) Na asserção de que as declarações prestadas pela Assistente são “perfeitamente contraditórias” com o depoimento da sua mãe, que, de acordo com a tese instrutória, retratou mais episódios de agressão do que a própria filha; e
c) Na circunstância de a Assistente não ter terminado o relacionamento mais cedo, considerando que já havia sido agredida antes e o episódio que ocorreu na ..., em que o Arguido ameaçou a mãe da Assistente com uma faca.
XXIV. O Tribunal a quo descredibiliza a Assistente apenas e exclusivamente com base nestes pontos, que acabam todos por redundar no seguinte: a Assistente deveria, considerando todos os episódios vivenciados, ter tomado uma posição definitiva sobre o fim do relacionamento antes de a situação escalar, partindo das declarações prestadas pela mãe da Assistente para construir suporte de supostas contradições que acabam por fundamentar o afastamento da sua valoração.
XXV. Note-se ainda que é falso, ao contrário da insinuação instrutória, que “ a Assistente não queria sair da relação com o Arguido, porque até arrendou um apartamento em seu nome próprio”, uma vez que que a Assistente apenas registou o contrato de arrendamento em seu nome, pois o Arguido não tinha passaporte ou título de residência válido, que permitisse a celebração do contrato em nome comum ou sequer apenas em nome dele.
XXVI. O surpreendente da decisão de instrução é, pois, a circunstância de se encontrar absolutamente desprovida de rigor quanto à compreensão do quadro de significado social subjacente ao fenómeno de violência doméstica.
XXVII. Não se vislumbra qualquer contradição, entre o facto de terem sido relatadas pela mãe da Assistente, FF, mais situações de agressões, e a agressão física relatada pela Assistente no Auto de Denúncia, uma vez que as declarações da mãe da Assistente não tornam inverídica esta agressão nem tão-pouco — e sobretudo, neste ponto —, as reiteradas ameaças, injúrias e maus-tratos verbais que a Assistente sofria às mãos do Arguido.
XXVIII. Com efeito, não está presente qualquer contrariedade no Auto de Inquirição da mãe da Assistente, visto que, nunca, em momento algum, a Testemunha precisou quantas vezes foi a Assistente agredida fisicamente, apenas constando da referida transcrição — a qual pode conter imprecisões linguísticas e lapsos —, que a sua filha lhe enviou fotogramas resultantes das “agressões físicas perpetradas pelo suspeito” (cfr. Auto de Inquirição de Testemunha FF, defls. 85 dos autos).
XXIX. O Tribunal a quo recusou, assim, credibilidade ao depoimento da Mãe da Assistente, afirmando que a família consentiu com as agressões, o que nunca aconteceu, tendo até os pais da Assistente deixado de pagar a casa onde o então casal vivia, passando apenas a enviar uma mesada à filha, e a Assistente passou meses sem falar com os seus pais, durante o período em que viveu na ....
XXX. No que concerne à Testemunha GG, pai da Assistente, o mesmo foi aconselhado pelo elemento policial que conduziu a inquirição da Testemunha, a JJ — porventura por conveniência ou até algum laxismo — a juntar aos autos as declarações, tendo expressamente indicado que, por essa via, ficava aquele dispensado de prestar declarações de “viva voz” (cfr. Auto de Inquirição da Testemunha GG, de 22.09.2022, de fls. 92 dos autos).
XXXI. Não obstante, o Tribunal de Instrução Criminal concluiu, erradamente, que “o próprio pai da arguida não foi capaz de prestar declarações de viva voz”, confundindo “Assistente” com “Arguida”, não procurando apurar ou sequer pedir a repetição da prova ou a inquirição da referida Testemunha, limitando-se a seguir o caminho fácil, da não valoração do depoimento daquela Testemunha.
XXXII. Parece-nos ainda inadmissível que o Tribunal a quo fundamente o Despacho de que ora se recorre desta forma, mas desconsidere por absoluto as declarações prestadas pelo Arguido em sede de primeiro interrogatório (cfr. Auto de Interrogatório de Arguido, de 19.07.2022, defls. 46 e ss.), as quais foram gravadas através do sistema integrado de gravação digital, e das quais resulta a admissão de comportamentos agressivos.
XXXIII. Em cumprimento ao disposto no artigo 412.°, n.° 3, alínea b), do CPP, indicam-se os seguintes minutos das referidas declarações: i) Gravação digital com a referência 20220719154021 46282642871362, minutos 00:05:17 — 00:05:13,
ii) Gravação digital com a referência 20220719154021_4628264_2871362, minutos 00:08:34 — 00:09:10,
iii) Gravação digital com a referência 20220719154021 4628264 2871362, minutos 00:09:30 — 00:09:57;
iv) Gravação digital com a referência 20220719154021_4628264_2871362 minutos 00:10:05-00:10:24;
v) Gravação digital com a referência 202207191540214628264 2871362 minutos 00:12:40-00:13:06;
vi) Gravação digital com a referência 20220719154021_4628264_2871362 minutos 00:13:30 00:13:40;
vii) Gravação digital com a referência 20220719154021 4628264 2871362 minutos 00:13:42-00:13:47;
viii) Gravação digital com a referência 20220719154021_4628264_2871362 minutos 00:14:0000:14:09.
XXXIV. Resultando ainda claro do interrogatório do Arguido que este, até pela diferença de alturas entre Arguido e Assistente, sabia o efeito que iria produzir na Assistente com o ato que praticou [minutos 00:08:34 — 00:09:10 e 00:09:30 — 00:09:57 da gravação digital com a referência 20220719154021_4628264_2871362].
XXXV. De igual modo, o Arguido reconhece que chegou até a ligar à Assistente, no dia 3 de julho de 2022, mais de 40 (quarenta) vezes entre as 14h00 e as 18h00 [minutos 00:10:05-00:10:24 da gravação digital com a referência 20220719154021 4628264 2871362].
XVI. O Arguido assumiu também que, no dia 9 de julho de 2022, no ..., foi buscar os seus filhos, tendo-se deparado com os pais da Assistente e se dirigido para esta dizendo que “ia com os seus filhos onde quisesse”, pois “não havia nenhuma ordem de ninguém que o pudesse afastar dos seus filhos” e, então, que “pegou nos seus filhos e que os ia levar à força” [minutos 00:12:40-00:13:06 da gravação digital com a referência 20220719154021 4628264 2871362].
XXXVI. Mas, paradoxalmente, nos minutos imediatamente a seguir, referiu que afinal “não fez nada à força”, revelando a contradição existente no seu próprio depoimento [minutos 00:13:30-00:13:40 da gravação digital com a referência 20220719154021 4628264 2871362].
XXXVIII. E curiosamente não considerou o Tribunal a quo pouco credível que, tendo o Arguido os filhos com ele, a Assistente — que, como o próprio Arguido a descreveu tem 1,50 m — e a sua mãe — de idade já avançada —, tenham conseguido sozinhas “ir para cima do Arguido” e retirar-lhe os filhos do colo e de ao pé de si [minutos 00: 1 3 :42-00:13:47 da gravação digital com a referência 20220719154021 4628264 2871362].
XXXIX. E tudo isto embora admitindo que apenas “se acalmou” em virtude da intervenção de duas pessoas que não conseguiu identificar, à data, que o acalmaram, reconhecendo ainda que estava muito nervoso com a situação [minutos 00:14:00 00:14:09 da gravação digital com a referência 20220719154021 4628264 2871362].
XL. O Arguido respondeu de forma lacónica e breve também na fase de Instrução, tendo o Arguido, nas suas declarações prestadas no dia 03.11.2023, quando confrontado com as perguntas da Exma. Juiz de Instrução Criminal sobre os factos que indiciaram a prática dos crimes de violência doméstica, respondido apenas com um singelo “não”, por diversas vezes, conforme a gravação digital com a referência 20231103104407 4741219 2871337, concretamente nos minutos 00:07:20, 00:07:27, 00:07:36, 00:07:39, 00:07:52, 00:08:07, e 00:08:17.
XLII. As declarações do Arguido em sede de Instrução demonstram contrariedade, uma vez que, confrontado com o fotograma que mostra, de forma clara, o cotovelo magoado da Assistente, a fls. 21 e 22 dos autos, o Arguido referiu “Não sei o que é que se vê aí” e “Ela tem uma mancha aqui de alguma coisa mais antiga, já não a vejo há muito tempo” [minutos 00:35:23 e 00:35:36 da gravação digital com a referência 20231103104407 4741219 2871337], quando, anteriormente, nas declarações prestadas no seu primeiro interrogatório, este havia descrito pormenorizadamente a ocasião em que infligiu à Assistente a mazela, ainda que alegando não ter sido intencional [minuto 00:08:22 da gravação digital com a referência 20220719154021 4628264_2871362].
XLIII. Portanto, as declarações do Arguido em sede de debate instrutório, tal como, de resto, o seu Requerimento para Abertura de Instrução, limitam-se a refutar tudo quanto fora dito pela Assistente de uma forma completamente genérica, com várias respostas consistindo num singelo “não”, bem como os elementos probatórios, nomeadamente o auto de denúncia a fls. 12 e 13 e fotogramas aí/s. 21 e 22, não sendo, contudo, suficientemente fortes para que se possa considerar verosímil tal contradição.
XLIII. Portanto, não pode ser conferida credibilidade às declarações do Arguido, considerando, em especial, que o mesmo não fez uma única referência à prova documental (nomeadamente às fotografias juntas por esta donde se retiram as agressões físicas por si perpetradas), nem à extensa conversa que a Assistente manteve com a amiga KK ou sobre o facto de existirem bilhetes comprados de regresso para Portugal no dia 30 de agosto de 2021.
XLIX Aliás, o Arguido juntou até, através do seu Requerimento de Abertura de Instrução, um documento truncado, não reproduzindo a versão integral das mensagens trocadas entre o Arguido e a Assistente, como foi referido no Requerimento da Assistente de 20.07.2023, não se pronunciando relativamente ao documento n.° 18 junto ao referido Requerimento, que veio trazer aos autos a reprodução integral das conversas supra mencionadas — factos que demonstram como o Arguido pretendeu, ele sim, criar uma aparência no processo.
XLV. Com efeito, as próprias Testemunhas do Arguido não merecem qualquer credibilidade, uma vez que estiveram com o casal um número mínimo de vezes, tendo a Testemunha LL identificado que esteve com o ex-casal apenas três vezes, e a Testemunha Nasrim referiu ter ido a casa do ex-casal apenas uma ou duas vezes.
XLVI. Ainda assim, e resultando que claramente não estiveram presentes no momento da prática dos factos, as próprias Testemunhas do Arguido, Nasrim e MM, referiram que a Assistente se queixava das condições em que vivia, tendo MM, que prestou declarações na sessão de Instrução de 03.11.2023, afirmado que a Assistente não estava bem ali, que no último período em ... do casal sentia alguma tensão, que a Assistente queria regressar a Portugal e que não estava feliz em ....
XLVII. Em particular, resulta do depoimento desta Testemunha, prestado em 03.11.2023, conforme ata de instrução com a referência 147255153, constante de gravação digital com a referência 20231103113111_4741219_2871337, face à pergunta da Juiz de Instrução Criminal “Se observava um relacionamento feliz ou triste entre as pessoas desta família?” [minuto 06:38], a Testemunha MM respondeu “Era feliz e no início saíamos muito juntos. Mas, no último período, sentia alguma tensão na relação” [minuto 06:53], concretizando posteriormente “Primeiro, porque ela queria outra casa. Depois, porque ele dizia que ela não estava feliz cá, e queria regressar em Portugal. E porque o AA estava instável, não ter emprego, então, ora diziam que iam ficar cá ora diziam que iam voltar para Portugal, e, por isso, eu sentia essa tensão” [minuto 07:35].
XLVIII. O Tribunal de Instrução Criminal desconsidera ainda os documentos que foram juntos, limitando-se a referir, quanto aos documentos juntos pela Assistente, que “As fotografias que juntou e o vídeo que fez pouco ou nenhum valor têm”, padecendo o Despacho instrutório de um vício quanto à sua incipiente fundamentação.
XLIX. Estes concretos meios de prova devem ser considerados, sendo evidente que os mesmos corroboram totalmente aquilo que foi declarado pela Assistente.
L. No mais, o Tribunal a quo deveria ter valorado igualmente as mensagens trocadas entre a Assistente e a sua amiga KK, nas quais a Assistente relatou os comportamentos abusivos do Arguido, nomeadamente a mensagem enviada pela Assistente a 30.11.2022, onde se lê “Olha foi uma discussão muito muito feia, ele não gritava. Ele berrava KK, Ele berrava. A rua toda deve ter ouvido e não estou a exagerar. Disse-me que eu só quero é viver à custa dos outros... que sou básica, que tenho um micro cérebro. Ofendeu-me, desrespeitou-me, agrediu-me psicologicamente e emocionalmente, chorei como nunca tinha chorado na vida”, (cfr. Doc. n.° 1, junto com a Acusação Subordinada), bem como as mensagens trocadas entre o Arguido e a Assistente, na qual a Assistente referiu, a título de exemplo, “Nunca mais me voltas a faltar ao respeito” e “é por causa disso que me apetece chorar. Porque eu não sei até quando vou ter força emocional para lidar diariamente com isto” (cfr. Doc. n.° 18, junto ao Requerimento da Assistente de 20.07.2023), considerando o valor desta prova documental, e o quanto é elucidativa dos abusos que a Assistente sofreu às mãos do Arguido.
LI. Pelo exposto supra, deveria o Tribunal a urro ter dado por suficientemente indiciados os factos constantes do capítulo “Factos não indiciariamente apurados” do Despacho de não pronúncia, o que desde já se requer a V. Exas, em especial:
a) Desde o ano de 2017 que o arguido alterou o seu comportamento, passando a ser possessivo e controlador da vida da sua esposa BB.
b) BB era ... mas, por imposição e pressão psicológica do arguido, que dizia à esposa que ela não tinha capacidade de exercer essa profissão, o que a entristecia e diminuía a autoestima, em 2019 a ofendida deixou de trabalhar na ... e passou a dedicar-se exclusivamente a cuidar dos filhos menores.
c) Desde que a ofendida deixou de trabalhar como ... em 2019 que o arguido a começou a controlar financeiramente, só dando a BB os meios financeiros básicos para sustentar as despesas domésticas, e nada mais.
d) Desde o início da relação o arguido muitas vezes discute e grita com a esposa, dizendo a BB “ESTÚPIDA, ÉS UMA MERDA, NÃO ÉS NADA” o que a entristece e rebaixa, em discussões dentro de casa em frente às crianças.
e) Em datas não concretamente apuradas e por um número indeterminado de vezes, o arguido puxou os cabelos com força à sua filha CC, outras vezes puxou-a pelo braço com força, magoando a menor repetidamente com estes castigos corporais.
f) Em datas não concretamente apuradas, mas entre 2017 e 2022, e por um número indeterminado de vezes, o arguido infligiu castigos físicos ao filho DD.
g) No ano de 2020, o suspeito empurrou, com força o filho DD, contra uma mesa, provocando-lhe uma lesão na cabeça, tinha o menino 4 ou 5 anos de idade.
h) Em datas não concretamente apuradas, e por um número de vezes indeterminado, o arguido puxou as orelhas com força ao filho EE, com dois anos de idade.
i) No dia 10 de Junho de 2022, estavam a viver em ..., o arguido atirou uma garrafa de iogurte contra o filho DD, tendo causado uma ferida no lábio do menor.
j) Nesse momento, a ofendida interveio em defesa do seu filho DD, tendo o suspeito desferido um murro no braço direito da esposa, BB, causando-lhe hematomas no cotovelo.
k) Dias depois, em 24.06.2022 o arguido, a esposa e os filhos, deixaram ... e regressaram a Portugal, voltando a viver na casa da família sita na ...
l) Dois dias após o seu regresso a Portugal, no dia 27 de junho de 2022, pelas 20h00, na residência comum em ..., o arguido dirigiu-se à ofendida, BB, e proferiu as seguintes expressões: “ÉS UMA PUTA, NÃO ÉS NADA, TU NÃO SABES DO QUE EU SOU CAPAZ”;
m) Nas mesmas circunstâncias o arguido dirigiu-se a cada um dos três filhos menores e disse-lhes, a cada um de cada vez, “ÉS UMA MERDA, ÉS UM ESTÚPIDO, ÉS UM ANIMAL”, ofendendo as três crianças com estes insultos.
n) De seguida, o arguido agarrou nos braços dos três filhos com força, que estavam assustados, não tendo concretizado qualquer ofensa corporal por que terceiros intervieram e impediram que o arguido levasse as crianças à força.
o) Ao praticar os factos supra descritos, agredindo, ameaçando e atormentando a esposa, BB, em atos violentos muitas vezes perpetrados dentro de casa da vítima em frente aos filhos menores, desferindo na ofendida murros, insultando-a com a expressão “ÉS UMA PUTA, ESTÚPIDA, ÉS UMA MERDA”, o arguido agiu com o propósito conseguido de molestar a saúde física e psíquica da sua mulher, mãe dos seus filhos, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu realizar.
p) Ao praticar os factos supra descritos, desferindo castigos corporais nos seus três filhos pequenos, CC, DD e EE, batendo-lhes com empurrões contra os móveis, puxando-lhes os cabelos e as orelhas, provocando-lhes lesões, ao gritar impropérios para com os menores, dizendo a cada um deles “ÉS UMA MERDA, UM ESTÚPIDO, UM ANIMAL”, o arguido agiu com o propósito conseguido de molestar a saúde física e psíquica dos seus filhos pequenos, então com 7, 6 e 2 anos de idade, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu realizar.
q) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
LII. Os factos supra descritos integram os elementos tipificadores do crime de violência doméstica, verificando-se nos mesmos várias das condutas típicas do crime de violência doméstica, no caso a agressão verbal, emocional e física.
LIII. Resultando, assim, evidente do conjunto dos factos invocados e dos meios de prova indicados, contrariamente à tese sufragada pela Decisão instrutória proferida nos autos, indícios suficientes da prática de quatro crimes de violência doméstica por parte do Arguido.
LIV. Pelo que deve a Decisão Instrutória ser revogada e substituída por uma Decisão de Pronúncia, devendo o Arguido ser pronunciado pela prática de (i) um crime de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152.°, n.° 1, alínea a), n.° 2 alínea a), n.° 4 e n.° 5 do CP, contra a Assistente BB e de (ii) três crimes de violência doméstica contra cada um dos seus três filhos menores, CC, DD e EE, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 152.°, n.° 1, alínea d), n.° 2, alínea a), n.° 4 e n.° 5 do CP.”
(fim de transcrição)
*
O recurso foi admitido por despacho proferido em 03.04.2024 (ref.ª Citius n.º 150162753), com subida imediata, nos próprios e com efeito suspensivo.
Ao recurso apresentado, não foi apresentada Resposta.
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Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta teve vista do processo, nada tendo dito.
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No exame preliminar considerou-se que o objecto do recurso interposto deveria ser conhecido em conferência (uma vez que não foi requerida a realização da audiência e não é necessário proceder à renovação da prova nos termos do artigo 430º do Código de Processo Penal).
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Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Este Tribunal da Relação de Lisboa é competente para apreciar a responsabilidade criminal do arguido pela prática dos denunciados crimes de violência doméstica. (1)
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
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II - Apreciação do recurso
Questões a decidir no recurso:
Constitui jurisprudência assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402º, 403º, 412º e 417º, todos do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, n.º 2 do CPP (Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, publicado no DR-I de 28.12.1995), os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito legal) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379º, n.º 2 do CPP).
No recurso em apreciação, tendo em consideração as conclusões extraídas da motivação apresentada, através das quais o recorrente sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume as razões do pedido, cumpre apreciar
- padece o Despacho instrutório de um vício quanto à sua incipiente fundamentação?
- resultam dos autos indícios suficientes da prática pelo arguido dos factos elencados na Decisão Instrutória no capítulo “Factos não indiciariamente apurados”, correspondentes aos descritos na Acusação Pública nos artigos 5. a 17. e 24. a 27., subsumíveis a um crime de violência doméstica na pessoa da esposa BB, previsto e punível (p.p.) pelo artigo 152º, n.º 1, al. a), n.º 2, al. a), n.º 4 e n.º 5, do Código Penal (doravante CP) e a três crimes de violência doméstica na pessoa de cada um dos seus três filhos menores CC, DD e EE, p.p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. d), n.º 2, al. a), n.º 4 e n.º 5 do CP?
É do seguinte teor a Decisão Instrutória proferida:
“(…)
Iniciaram-se os presentes autos com uma participação junto da PSP, por parte da ofendida BB, melhor identificada nos autos, contra o arguido AA, também ele melhor identificado nos autos, na qual se refere que vive com o arguido há 10 anos, casaram há 8 anos e têm 3 filhos com 7, 6 e 2 anos. Mais disse que o arguido há 5 anos alterou o seu comportamento, mostrando um lado mais possessivo e que ao longo desse tempo proibia a vítima e os seus filhos de ter contacto com os avós maternos, que sofria pressão psicológica e que já não exercia a profissão pois o suspeito rebaixava-a e humilhava-a dizendo-lhe que não tinha estofo para exercer a profissão de ..., que o suspeito não ajudava nas lides domésticas, que o arguido lhe disse “és uma merda, não és nada e tu não sabes do que sou capaz e aos filhos “és uma merda, um estúpido e um animal”. Mais acrescentou que em o suspeito puxava os cabelos à filha e manieta-lhe o braço, que atirou o filho DD contra uma mesa e devido ao empurrão a criança bateu com a cabeça numa mesa e que puxa as orelhas ao mais novo. Disse ainda que quando viveram em ... o suspeito atirou uma garrafa de iogurte ao lábio do filho DD e que ela veio em socorro do filho e o arguido lhe deu um murro no cotovelo, o que registou fotograficamente.
No inquérito foi produzida prova testemunhal e documental, por declarações do arguido e da ofendida.
O MP a final proferiu despacho de acusação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica contra a sua esposa BB, ilícito previsto e punido nos termos do artigo 152º, nº 1 al. a), nº 2 al. a), nº4 e nº5 do Código Penal e b) três crimes de violência doméstica contra cada um dos seus três filhos menores, CC, DD, e EE, ilícito previsto e punido nos termos do artigo 152º, nº 1 al. d), nº 2 al. a), nº4 e nº5 do Código Penal.
O arguido requereu a abertura de instrução, alegando, em síntese, que não praticou os factos de que está acusado, nos exactos termos do RAI cujo teor aqui se dá por reproduzido. Termina pedindo que seja proferido despacho de não pronúncia.
Na instrução, foi produzida prova por declarações do arguido, prova testemunhal e prova documental.
***
Não se vislumbrando qualquer outro acto instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, efectuou-se o debate instrutório, nos termos dos arts. 298º, 301º e 302º, todos do Cód. Proc. Penal cumprindo agora, nos termos do artº 308º, do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória.
De acordo com o disposto no art. 286º/l do Cód. Proc. Penal, a instrução tem como finalidade a comprovação judicial da dedução de acusação ou do arquivamento do inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento.
Tem-se em vista, nesta fase processual, a formulação de um juízo seguro sobre a suficiência dos indícios recolhidos relativos à verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (artº 308º/1 do Cód. de Processo Penal), ou seja, de se ter verificado um crime imputável ao arguido.
Assim, concluindo-se pela suficiência dos indícios recolhidos haverá que proferir despacho de pronúncia, caso contrário, o despacho será de não pronúncia.
Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade do arguido ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.
Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como vimos, na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação.
Ao exigir-se a possibilidade razoável de condenação e não uma possibilidade remota, visa- se, por um lado, não sujeitar o arguido a vexames e incómodos inúteis e, por outro lado, não sobrecarregar a máquina judiciária com tramitações inúteis” cfr. Tolda Pinto, “A Tramitação Processual Penal”, 2ª ed., pág. 701.
Daí que no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deva estar presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, designadamente as salvaguardadas no art. 30.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós mereceram consagração constitucional art. 20.º da D.U.D.H. e art. 27.º da C.R. P. [Ac. da Relação do Porto de 20 de Outubro de 1993, C.J. Ano XVIII, Tomo IV, pág. 261]. Consequentemente, o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido [Germano Marques da Silva em Direito P.Penal. pág. 179].
A regra “in dubio pro reo”, enquanto manifestação do princípio da presunção da inocência – princípio estruturante do processo penal -, tem como momento mais relevante a apreciação da prova em julgamento, mas também se manifesta no momento do encerramento do inquérito, quando o Ministério Público, valorando as provas recolhidas, tem de tomar posição, arquivando-o ou formulando acusação. E, evidentemente, também se coloca ao juiz de instrução, após o debate instrutório, devendo, portanto, lavrar despacho de não pronúncia, imposto pela regra “in dubio pro reo”, no caso de se encontrar perante uma situação de dúvida inultrapassável quanto às provas produzidas.
Tendo em conta que, também a prova indiciária deve ser sujeita a uma análise racional e objectiva, de acordo com as regras da experiência, da lógica, da razão e dos conhecimentos científicos e técnicos necessários ao caso. Cumpre aqui esclarecer que, no caso e na apreciação deste Tribunal, não cuidamos de eventual responsabilidade civilística, mas tão-só de factualidade com a necessária dignidade penal.
***
Apreciando os factos em análise e a prova recolhida no inquérito e na instrução:
Factos indiciariamente apurados:
O arguido, AA, e a ofendida, BB, casaram- se em meados de 2014, e viveram juntos durante 8 anos, até 2022.
Quando casaram o arguido e a ofendida foram viver para casa dos pais desta, na ..., depois foram para uma casa própria na ..., em 2018 foram para a sua última residência, na ..., onde viveram até à sua separação em 27-06-2022, data em que a ofendida saiu de casa com os filhos.
Durante esse período de relação matrimonial, o arguido, a esposa e os filhos viveram entre 14-07-2021 e 24-06-2022 em ..., terra natal do arguido, regressando a Portugal, à última casa mencionada no ponto anterior, pouco antes da separação.
Do matrimonio nasceram três filhos, CC em ...-...-2014, actualmente com 8 anos de idade, DD em ...-...-2015, actualmente com 7 anos de idade, e EE em ...-...-2019, actualmente com 3 anos de idade, os quais residiam com os pais até à sua separação.
No dia 3 de Julho de 2022, entre as 14h00 a as 18h00 o arguido realizou 40 chamadas telefónicas para o telemóvel da ofendida BB.
No dia 5 de Julho de 2022, às 21:30, o arguido deslocou-se à actual residência da ofendida, na ..., onde vive com os filhos e os pais, e tocou insistentemente à campainha, incomodando BB.
No dia 7 de Julho de 2022, às 20:30, o arguido deslocou-se novamente à residência da ofendida, tocou insistentemente à campainha, e vendo que não lhe abriam a porta, tocou repetidamente a buzina do carro, enquanto gritava na rua os nomes dos filhos, incomodando e atormentando BB e as crianças.
No dia 9 de julho de 2022, pelas 10h30, no jardim Guerra Junqueiro, em Lisboa, local combinado para a ofendida entregar os filhos ao arguido, este exigiu que BB lhe entregasse os filhos no local onde ele estava.
Nesse dia gerou-se uma discussão tendo o arguido dito à ofendida BBISTO NÃO VAI FICAR ASSIM, NÃO SABEM DO QUE SOU CAPAZ”.
No dia 27 de junho de 2022, a ofendida abandonou o lar com os seus três filhos, permanecendo o arguido naquela casa.
Factos não indiciariamente apurados
Desde o ano de 2017 que o arguido alterou o seu comportamento, passando a ser possessivo e controlador da vida da sua esposa BB.
BB era ... mas, por imposição e pressão psicológica do arguido, que dizia à esposa que ela não tinha capacidade de exercer essa profissão, o que a entristecia e diminuía a autoestima, em 2019 a ofendida deixou de trabalhar na ... e passou a dedicar-se exclusivamente a cuidar dos filhos menores.
Desde que a ofendida deixou de trabalhar como ... em 2019 que o arguido a começou a controlar financeiramente, só dando a BB os meios financeiros básicos para sustentar as despesas domésticas, e nada mais.
Desde o início da relação o arguido muitas vezes discute e grita com a esposa, dizendo a BBESTÚPIDA, ÉS UMA MERDA, NÃO ÉS NADA”, o que a entristece e rebaixa, em discussões dentro de casa em frente às crianças.
Em datas não concretamente apuradas e por um número indeterminado de vezes, o arguido puxou os cabelos com força à sua filha CC, outras vezes puxou-a pelo braço com força, magoando a menor repetidamente com estes castigos corporais.
Em datas não concretamente apuradas, mas entre 2017 e 2022, e por um número indeterminado de vezes, o arguido infligiu castigos físicos ao filho DD.
No ano de 2020, o suspeito empurrou, com força o filho DD, contra uma mesa, provocando-lhe uma lesão na cabeça, tinha o menino 4 ou 5 anos de idade.
Em datas não concretamente apuradas, e por um número de vezes indeterminado, o arguido puxou as orelhas com força ao filho EE, com dois anos de idade.
No dia 10 de Junho de 2022, estavam a viver em ..., o arguido atirou uma garrafa de iogurte contra o filho DD, tendo causado uma ferida no lábio do menor.
Nesse momento, a ofendida interveio em defesa do seu filho DD, tendo o suspeito desferido um murro no braço direito da esposa, BB, causando-lhe hematomas no cotovelo.
Dias depois, em 24-06-2022 o arguido, a esposa e os filhos, deixaram ... e regressaram a Portugal, voltando a viver na casa da família sita na ....
Dois dias após o seu regresso a Portugal, no dia 27 de Junho de 2022, pelas 20h00, na residência comum em ..., o arguido dirigiu-se à ofendida, BB, e proferiu as seguintes expressões: “ÉS UMA PUTA, NÃO ÉS NADA, TU NÃO SABES DO QUE EU SOU CAPAZ.”
Nas mesmas circunstâncias o arguido dirigiu-se a cada um dos três filhos menores e disse- lhes, a cada um de cada vez, “ÉS UMA MERDA, ÉS UM ESTÚPIDO, ÉS UM ANIMAL”, ofendendo as três crianças com estes insultos.
De seguida, o arguido agarrou nos braços dos três filhos com força, que estavam assustados, não tendo concretizado qualquer ofensa corporal por que terceiros intervieram e impediram que o arguido levasse as crianças à força.
Ao praticar os factos supra descritos, agredindo, ameaçando e atormentando a esposa, BB, em actos violentos muitas vezes perpetrados dentro de casa da vítima em frente aos filhos menores, desferindo na ofendida murros, insultando-a com a expressão “ÉS UMA PUTA, ESTÚPIDA, ÉS UMA MERDA”, o arguido agiu com o propósito conseguido de molestar a saúde física e psíquica da sua mulher, mãe dos seus filhos, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu realizar.
Ao praticar os factos supra descritos, desferindo castigos corporais nos seus três filhos pequenos, CC, DD e EE, batendo-lhes com empurrões contra os móveis, puxando-lhes os cabelos e as orelhas, provocando-lhes lesões, ao gritar impropérios para com os menores, dizendo a cada um deles “ÉS UMA MERDA, UM ESTÚPIDO, UM ANIMAL”, o arguido agiu com o propósito conseguido de molestar a saúde física e psíquica dos seus filhos pequenos, então com 7, 6 e 2 anos de idade, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu realizar.
O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Da motivação:
Vejamos a prova que foi produzida em inquérito:
Foi ouvida, BB, identificada a fls. 12, a qual reiterou os factos alegados na queixa, isto é, que vivia com o arguido há 10 anos, casaram há 8 anos e têm 3 filhos com 7, 6 e 2 anos. Mais disse que o arguido há 5 anos alterou o seu comportamento, mostrando um lado mais possessivo e que ao longo desse tempo proibia a vítima e os seus filhos de ter contacto com os avós maternos, que sofria pressão psicológica e que já não exercia a profissão pois o suspeito rebaixava-a e humilhava-a, dizendo-lhe que não tinha estofo para exercer a profissão de ..., que o suspeito não ajudava nas lides domésticas, que o arguido lhe disse “és uma merda, não és nada e tu não sabes do que sou capaz e aos filhos “és uma merda, um estúpido e um animal”. Mais acrescentou que em o suspeito puxava os cabelos à filha e manietava-lhe o braço, que atirou o filho DD contra uma mesa e devido ao empurrão a criança bateu com a cabeça numa mesa e que puxa as orelhas ao mais novo. Disse ainda que quando viveram em ... o suspeito atirou uma garrafa de iogurte ao lábio do filho DD e que ela veio em socorro do filho e o arguido lhe deu um murro no cotovelo, o que registou fotograficamente.
O pai da assistente, GG, apesar de ter sido convocado para depor presencialmente, nesse acto, juntou um papel escrito em computador e para ele remeteu quanto às declarações a prestar, não tendo qualquer validade tal papel pois a testemunha não goza da prerrogativa de depor por escrito.
A mãe da assistente, FF, identificada a fls. 85, jurista de profissão, assim se identificou, veio aos autos dizer que acompanhou o relacionamento da ofendida através dos relatos e desabafos feitos pela filha que lhe enviava fotografias com as marcas corporais das agressões físicas levadas a cabo pelo suspeito.
Mais refere que já há 4 anos (2018) que a filha se queria separar do arguido, sobretudo por violência psicológica e receio que o arguido lhe tirasse os filhos. Referiu-se ainda a episódios ocorridos em 2014 e 2016, os quais não foram objecto de queixa por parte da ofendida, designadamente dizendo que o arguido não queria que a filha nascesse em Portugal e por isso ela sugeriu que fossem para a ... para a criança nascer, que durante a estadia na ... o arguido a ameaçou de morte com uma faca, que quis expulsá-la de casa, o que a depoente não aceitou pois era ela que pagava a casa e que também no ano de 2016, numas férias em ... o arguido impedia a ofendida de contactar com outras pessoas… Termina referindo-se aos episódios ocorridos em momento posterior a separação do casal, mormente que o arguido no dia 09.07 foi a casa dela e tocou 2/3 vezes à porta de casa e que enviou muitas mensagens à ofendida, deixando-a perturbada e transtornada e levando-a a contratar uma empresa de segurança.
A testemunha NN, identificada a fls. 88, cuidadora da avó da ofendida pouco ou nada sabia sobre os factos, a não ser que o arguido um dia foi a casa da mãe da ofendida tocar a campainha para falar com a mesma, ouviu o ruído de buzinadelas e o arguido a gritar pelo nome dos menores.
Por seu turno, a testemunha KK, identificada a fls. 90, única amiga que a ofendida indicou, nada viu ou presenciou, tendo dito que a última vez que esteve mais tempo com a ofendida foi em julho de 2021, antes de ir para ... e que já depois de virem de ..., o arguido foi tomar chá a casa da depoente e lhe disse que a estadia não correra bem. Disse também que nessa visita a ofendida confidenciou que estaria em processo de divórcio e não voltou a estar com a ofendida. No mais, disse que a ofendida conversava com ela por whatsapp, mas nunca visualizou quaisquer agressões ou marcas e que a vítima lhe relatou que o único receio que sente é que o arguido lhe subtraia os filhos, embora ela testemunha não acredite que essa seja a intenção do arguido, caso contrário não teria voltado para Portugal e inscrito os filhos em escolas portuguesas.
No mais, existe junto aos autos uma fotografia do menor DD de fls. 21 e uma fotografia da ofendida BB de fls. 22, cuja data se desconhece e que são pouco perceptíveis, pelo menos quanto a uma pretensa lesão do filho menor.
Foi junta uma Pen e o auto de visionamento de imagens constantes desse aparelho informático, de fls. 98 a 99, onde se vê uma criança menor a chorar, desconhecendo-se o porquê, mas que se pretendem ser uma espécie de depoimento gravado pela mãe para valer em tribunal acerca do relacionamento dos menores com o arguido, mas que não tem, obviamente, nenhuma valia a esse título.
Na instrução, prestou declarações o arguido, no âmbito das quais afirmou que a ofendida nunca dependeu dele financeiramente pois recebia dinheiro dos pais desde 2015. Mais disse que fundaram uma empresa em 2018 e que a mulher e o irmão também lá trabalhavam, a qual foi encerrada em 2021 por terem ido para .... Disse ainda que foi a ofendida quem quis ir viver para .... Disse ainda que nunca chamou nomes à mulher e aos filhos, nem nunca os agrediu. Mais disse que ela saiu de casa e deixou uma carta e que combinaram um encontro no jardim da estrela em 09.07, tendo a ofendida aparecido com seguranças e uma hora atrasada.
Prestaram também declarações na instrução, MM, farmacêutica, cunhada do arguido e que disse que quando o casal chegou a ... ficaram a morar por baixo deles e, portanto, conviviam muito, saíam muitas vezes juntos e nunca a ofendida se queixou do arguido, não obstante passarem muito tempo juntas. Mais disse que não eram escravizadas pela sogra e que a ofendida não chegou a exercer ... em ... porque não conseguiu que o seu diploma estivesse válido.
Também prestou declarações na instrução OO, médico, primo do arguido, que afirmou que esteve em Portugal em 2019 e ficou a viver em casa do casal durante 4 meses até encontrar uma casa e durante esse tempo, e depois também em ..., para onde também foi, nunca presenciou qualquer agressão física ou verbal entre ambos e que até achava que tinham um casamento perfeito.
Foi igualmente ouvido na instrução, PP, médico, amigo do casal, dado que estudaram todos juntos na ..., e que afirmou que o casal se dava muito bem e que a mãe da ofendida era contra o casamento, mas, apesar disso o arguido tudo fez para que ficassem juntos. Mais disse que veio a Portugal duas semanas e que nunca presenciou qualquer agressividade e que em ... havia uma relação normal com os filhos, o AA abriu um clube desportivo e a testemunha nunca viu qualquer atitude agressiva do arguido para com os seus filhos, antes pelo contrário, via a ofendida também nesse tal clube.
Por fim, a testemunha QQ, ..., casada com a testemunha anterior disse que veio a Portugal em 2019 quando a ofendida estava grávida do terceiro filho, tendo ido a casa do arguido e da ofendida por duas vezes. Detectou um bom relacionamento entre ambos e mais disse que em ... esteve várias vezes sozinha com a ofendida e ela nunca se queixou do arguido, antes pelo contrário, queixava-se era da burocracia e da dificuldade em fazer o exame para exercer .... Disse ainda que o arguido alugou uma casa em ... para que a ofendida estivesse confortável, pois ela não estava habituada a viver com a família, e que chegou a ver a ofendida com véu posto porque queria usá-lo.
O arguido juntou ainda aos autos um recibo de 2016, relativo à preparação da ofendida para internato médico; um contrato de arrendamento celebrado por ela, relativo a casa de morada de família, declarações de rendimentos recebidos pela ofendida no exercício da ... relativos aos anos de 2017, 2018 e 2019 e ainda um extenso rol de mensagens trocadas pelo casal nos anos de 2021 e 2022.
A assistente também juntou alguns documentos, designadamente relativos a marcações/desmarcações de aulas de yoga, mensagens de telemóvel trocadas com a amiga KK, alguns documentos em inglês que se presume reportaram-se às viagens para ..., um papel não assinado que terá sido a carta que escreveu ao arguido quando se foi embora de casa, documentos relativos à presença da filha menor no médico e bem assim fotografias tiradas em ..., perto de onde viveriam.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que a acusação subordinada apresentada pela ofendida é uma narrativa que extravasa o âmbito dessa mesma subordinação e, por outro lado, não encontra sustentação em qualquer elemento de prova junto aos autos, nem sequer nas declarações da vítima, parecendo-nos apenas o resultado de um exercício imaginativo para impressionar os receptores de tal peça processual e criar toda uma aparência.
A assistente podia, de acordo com o artigo 284º do CPP, deduzir acusação pelos factos acusados pelo MP, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial daqueles.
Contudo, aquilo que a assistente fez foi compor toda uma história, juntando pormenores sobre os quais ninguém se pronunciou, nem a própria, e envolvendo até violações sexuais e até um fantioso sequestro, motivo pelo qual o tribunal não se pronunciará sobre a acusação subordinada para além dos factos que estão incluídos na acusação pública, até porque constituem uma alteração substancial dos factos da acusação pública.
A assistente começa por aludir a uma só agressão na sua pessoa, que terá ocorrido em 2022, em ..., mas já a sua mãe, a única pessoa, próxima da arguida, que na verdade prestou declarações sobre os factos, diz que ao longo dos anos a filha lhe foi enviando fotos com as marcas das agressões físicas.
Aliás, a mãe da assistente tem um depoimento perfeitamente contraditório com o da própria assistente.
Senão vejamos. Afirma que já há 4 anos (2018) que a filha se queria separar do arguido porque era vítima de violência psicológica e, no entanto, a assistente ainda teve mais um filho com o arguido em finais de 2019, o que, eventualmente, sendo a ofendida ... podia claramente ter evitado que acontecesse, além do que a mãe sendo jurista também claramente a podia ter ajudado com o divórcio.
Por outro lado, afirma que o casal foi ter a filha na ... porque o arguido não queria ter a filha em Portugal por ser um país católico, e, no entanto, conforme resulta dos assentos de nascimento dos outros filhos, os mesmos nasceram em Portugal (???) (um deles no ano imediatamente a seguir). Mais diz que o arguido e a ofendida foram viver para casa dela, em Portugal e, no entanto, afirma que o arguido ainda na ... a ameaçou com uma faca que a matava.
Ora, sendo a mãe da ofendida jurista, porventura seria crível que deixasse ir viver para sua casa um homem que a ameaça com uma faca e que pagasse, como a própria afirma, uma casa para ele viver na ... com a filha? E seria também crível que a filha continuasse a viver com ele e tivessem mais dois filhos, depois de ele ameaçar a sua própria mãe com uma faca?
Além de a ofendida ser uma jovem, nascida em 1989, e, portanto, em 2014 com 25 anos de idade, é ... e os pais têm posses financeiras (para a mesma ter estudado na ..., lhe terem pago uma casa na ... em 2014, de lhe darem uma mesada, pagarem a uma empresa de segurança para acompanhar a filha (quando a própria disse em janeiro de 2023 que já não vê o arguido desde a data dos factos, junho/julho de 2022, e ainda assim continua a apresentar-se no tribunal com seguranças).
O que é que a levaria a aceitar factos desta jaez, quando, inclusive, o arguido e a ofendida viveram até 2017 em casa dos pais da ofendida e foi a própria ofendida que arrendou uma casa para se mudarem de casa de seus pais, como resulta do contrato junto aos autos a fls. 198? Se desde sempre a ofendida foi maltratada porque é que simplesmente não disse ao arguido que saísse de casa de seus pais, onde vivia o casal com os filhos, e foi arrendar uma casa para viver com o arguido e teve com ele mais um filho?
Se desde 2018, como diz a mãe da ofendida que a mesma se queria separar, o que é que a fez ir para ... com o arguido e para junto da família deste? Mesmo tendo o arguido aberto uma clínica ... em Portugal? Terá sido obrigada a fazê-lo? Claro que não e nem a ofendida vai tão longe ao ponto de o dizer.
Aliás, o arguido juntou aos autos um rol de mensagens trocadas entre ele e a ofendida nos anos de 2021 e 2022, que dão bem nota do carácter paciente e pacífico do arguido e do bom relacionamento entre ambos.
O arguido prestou declarações de modo bastante tranquilo e esclarecedor, mantendo-se sempre calmo e cabisbaixo e as testemunhas que apresentou revelaram-se igualmente bastante credíveis e isentas, eximindo-se de falar sobre o que não conheciam e esclarecendo com bastante rigor os factos dos quais tiveram conhecimento directo.
Ao contrário, as declarações da ofendida são elas próprias contraditadas pelas da sua mãe e incompatíveis com as mensagens juntas a fls. 216 e seguintes, com a vivência tida com o arguido, do qual teve três filhos, e com o seu poder económico que a leva a contratar seguranças para vir ao tribunal(??), quando há mais de um ano que não vê o arguido. O próprio pai da arguida não foi capaz de prestar declarações de viva voz e não houve uma única amiga, conhecida, colega de profissão que corroborasse as declarações prestadas pela ofendida.
As fotografias que juntou e o vídeo que fez pouco ou nenhum valor têm e podia muito bem a ofendida ter trazido os filhos ao tribunal, tanto mais que vivem com ela e só vêm o pai por videochamada, um deles já tem 9 e outro 8 anos, razão pela qual poderiam ter vindo confirmar ou infirmar os factos.
Em suma, tendo em conta o que acima se disse, o tribunal considera não haver indícios suficientes de o arguido ter praticado os factos que lhe são imputados pela ofendida, antes pelo contrário, há indícios de que não os praticou.
O arguido demonstrou, com as suas declarações, e a prova documental e testemunhal que juntou, serem inconsistentes as declarações da ofendida, as quais não são corroboradas por ninguém, nem sequer por prova documental cabal.
Quanto aos factos indiciariamente apurados, valoramos as declarações do arguido, que admitiu que após deixar de ver os filhos e a ofendida abandonar a casa foi procurar os filhos e tentar saber deles, o que se reputa mais que normal, tendo em conta que o arguido é pai de três filhos e tem o direito de saber, ao menos, onde se encontram, sendo também normal que por esses dias próximos estivesse mais exaltado e mais ansioso, assim se justificando o número de chamadas efetuado.
No mais, valoraram-se as certidões de nascimento quanto aos factos sujeitos a registo.
Atenta a factualidade que se logrou apurar indiciariamente, outra coisa não resta que não seja não pronunciar o arguido, dado que não estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos integradores do tipo de crime de violência doméstica.
Em face do exposto, decide-se não pronunciar o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152º, nº 1 al. a), nº 2 al. a), nº4 e nº5 do Código Penal e b) três crimes de violência doméstica contra cada um dos seus três filhos menores, CC, DD, e EE, ilícito previsto e punido nos termos do artigo 152º, nº 1 al. d), nº 2 al. a), nº4 e nº5 do Código Penal, ou por qualquer outro.”
(fim de transcrição)
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1ª pretensão recursiva: padece o Despacho instrutório de um vício quanto à sua incipiente fundamentação?
Consagra o artigo 205º da Constituição da República Portuguesa (CRP), o dever de fundamentação das decisões judiciais, lendo-se no seu n.º 1 “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”, sendo este uma decorrência das garantias de defesa do arguido expressas no artigo 32º da CRP, em cujo n.º 1 se consagra que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.”.
O dever de fundamentação da sentença penal, de facto e de direito, com indicação do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, surge assim como um dos requisitos da sentença enunciados no artigo 374º do CPP, cominando a lei a sua omissão com a nulidade, nos termos previstos no artigo 379º do mesmo diploma legal.
Sucede que o disposto neste preceito legal relativo à nulidade da sentença, não é aplicável aos despachos, designadamente aos despachos de pronúncia ou não pronúncia, o mesmo acontecendo com o disposto no referido artigo 374º do CPP relativo aos requisitos da sentença, entre os quais surge o dever de fundamentação (artigo 374º, n.º 2, do CPP) (neste sentido, por outros, veja-se o Ac. Rel. Évora de 29.11.2016, Proc. n.º 884/13.2TAMTA.E1, relatora Juíza Desembargadora Maria Leonor Botelho, in www.dgsi.pt).
Contudo, não deixa a lei de impor a obrigatoriedade de fundamentação, de facto e de direito, dos actos decisórios, entre os quais claramente se encontra o despacho de pronúncia ou de não pronúncia, como resulta do disposto no artigo 97º, n.º 5 do CPP (2), pois desta forma se dá a conhecer aos destinatários da decisão e ao público em geral a justiça e correcção do decidido, permitindo conhecer o processo lógico e racional que subjaz a tal decisão e, consequentemente, o exercício criterioso do direito ao recurso, pois, só conhecendo devidamente a decisão e os seus fundamentos poderá rebater-se o decidido. O cumprimento de tal dever permitirá ainda o autocontrolo por parte do Tribunal que profere a decisão, obrigando-o a reflectir devidamente sobre o decidido e a expressar de forma independente, isenta e imparcial as razões daquele, assim contribuindo para a credibilidade e legitimidade dos juízes e das suas decisões.
A ausência de fundamentação ou uma fundamentação insuficiente ou gravosamente deficiente, facilitando decisões arbitrárias e desprovidas de suporte legal e/ou factual, não assegurará as garantias de defesa, já que não permitirá exercer conscientemente o direito ao recurso, pois, desconhecendo-se os fundamentos que suportam a decisão, não poderão os mesmos ser analisados, nem aceites ou rebatidos.
Seguindo este entendimento, pode ler-se no Ac. Rel. Coimbra de 9.09.2015, Proc. n.º 175/07.8TASRT-B.C1, relator Juiz Desembargador Vasques Osório, in www.dgsi.pt: “O que é necessário é que a fundamentação da decisão judicial, dando executoriedade ao respectivo dever, assegure sempre os fins para que existe isto é, o auto-controlo de quem a profere, a sua total transparência objectivada na percepção e compreensão, pelos seus destinatários directos e pela própria comunidade, dos juízos de facto e de direito que dela constam, e, já em momento posterior, a possibilidade de fiscalização da actividade decisória pelo tribunal de recurso.”
Também de forma lapidar se pode ler no Ac. TC nº 59/2006, in tribunalconstitucional.pt, o dever de fundamentação “constitui um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto (juris dicere). E, nessa medida, é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões”.
Tendo carácter manifestamente decisório, que contenderá com direitos e garantias individuais, dúvidas não existem de que o despacho de pronúncia ou não pronúncia deverá ser fundamentado. E isto, independentemente da cominação imposta na lei para a omissão de tal dever.
Vejamos então.
Argumentam os recorrentes, nos pontos XLVIII. e XLIX. das Conclusões de Recurso que o “Tribunal de Instrução Criminal desconsidera ainda os documentos que foram juntos, limitando-se a referir, quanto aos documentos juntos pela Assistente, que “As fotografias que juntou e o vídeo que fez pouco ou nenhum valor têm”, defendendo que “estes concretos meios de prova devem ser considerados, sendo evidente que os mesmos corroboram totalmente aquilo que foi declarado pela Assistente.”. Acrescentam no ponto L. que “o Tribunal a quo deveria ter valorado igualmente as mensagens trocadas entre a Assistente e a sua amiga KK, nas quais a Assistente relatou os comportamentos abusivos do Arguido”.
Olhando para o assim argumentado, e salvo entendimento diverso, confundem os recorrentes a invocada omissão da análise crítica das provas produzidas no inquérito e na instrução com a livre convicção da prova feita pelo tribunal a quo sobre os meios de prova que aqueles juntaram aos autos. Com efeito, o que defendem os recorrentes é que as fotografias, o vídeo e as mensagens por si juntos deveriam ter sido “alvo” de outra leitura por parte da Senhora JIC por forma a considerar suficientemente indiciada a factualidade denunciada.
Tendo presente que a motivação da decisão de facto pode evidenciar um maior ou menor poder de síntese, não podendo contudo, e repetimos, deixar de possibilitar uma efectiva compreensão do raciocínio feito pelo Tribunal ao considerar provado ou não provado determinado facto, devendo espelhar as razões que levaram a formar tal convicção, temos que a decisão em crise cumpriu tal ónus, pois, a dado passo, e a propósito de tais concretos meios de prova, se pronunciou da seguinte forma: “No mais, existe junto aos autos uma fotografia do menor DD de fls. 21 e uma fotografia da ofendida BB de fls. 22, cuja data se desconhece e que são pouco perceptíveis, pelo menos quanto a uma pretensa lesão do filho menor. Foi junta uma Pen e o auto de visionamento de imagens constantes desse aparelho informático, de fls. 98 a 99, onde se vê uma criança menor a chorar, desconhecendo-se o porquê, mas que se pretendem ser uma espécie de depoimento gravado pela mãe para valer em tribunal acerca do relacionamento dos menores com o arguido, mas que não tem, obviamente, nenhuma valia a esse título.”
O mesmo sucede quanto às apontadas mensagens trocadas via WhatsApp entre a assistente BB e a sua amiga KK. Com efeito, da leitura da decisão instrutória decorre que o tribunal a quo não ignorou tal meio de prova, antes o ponderou e conjugou com os demais meios de prova, mormente com as mensagens trocadas entre o arguido e aquela assistente, atribuindo, ao contrário do pretendido pelos recorrentes, um “peso maior” a estas últimas mensagens na formação da sua convicção, conjugadas com a prova testemunhal coligida na fase de Instrução, bem assim às declarações prestadas pelo arguido.
Entendemos assim que a decisão recorrida procedeu à análise crítica dos apontados meios de prova carreadas para os autos pelos assistentes, decorrendo do aí exposto as razões que levaram a Senhora JIC a afastar o pretendido peso na valoração probatória que foi levado a cabo. Se se concorda, ou não, com tal apreciação, é outra questão que cai já, como referido, no âmbito da livre apreciação dos meios de prova, plasmado no artigo 127º do CPP.
Pelo exposto, não se concede provimento à primeira pretensão recorrida.
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Pretendem os assistentes/recorrentes que a Decisão Instrutória seja revogada e substituída por outra que pronuncie o arguido pelo cometimento dos factos considerados em tal decisão não indiciariamente apurados, factos esses que correspondem aos que se encontram descritos nos artigos 5. a 17. e 24. a 27. da Acusação Pública e no ponto L.1. das Conclusões.
Importa, desta feita apreciar se dos autos resultam indícios suficientes da prática pelo arguido de tais factos.
Comecemos por deixar consagrado o seguinte entendimento: se é certo, como nos ensina Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo 1994, III vol., pág. 183, que “o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido”, não é menos verdade que “a decisão instrutória não deve ser um pré-julgamento” (usando a expressão constante do voto de vencido do Senhor Juiz Desembargador João Abrunhosa no Ac. Rel. de Lisboa de 23.03.2023, Proc. n.º 6094/21.8 T9SNT.L1, relatora Juíza Desembargadora Paula Bizarro, in www.dgsi.pt).
Com efeito, na decisão instrutória “o juiz não julga a causa; verifica se se justifica, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, o arguido seja submetido a julgamento para ser julgado pelos factos da acusação” (Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 183).
E “a lei só admite a submissão a julgamento desde que a prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força delas, uma pena ou medida de segurança (artigo 283º, n.º 2); não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.” (ibidem, pág. 183; sublinhado no original)
O que ficou dito não afasta o entendimento de que em sede de decisão instrutória vale o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do CPP. Antes o convoca, pois que a lei exige ao Juiz de Instrução Criminal um “juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação” (ibidem, pág. 183).
Defendendo de igual forma que o princípio consagrado no artigo 127º do CPP deve pontuar na apreciação dos meios de prova na fase da Instrução, temos o já citado Acórdão de 23.03.2023, desta 9º secção criminal, bem assim o Ac. Rel. de Évora de 13.07.2021, Proc. n.º 280/19.8T9SLV.E1, relator Juiz Desembargador Fernando Pina e o Ac. Rel. Coimbra de 23.05.2018, Proc. n.º 80/16.7GBFVN.C1, relator Juiz Desembargador Orlando Gonçalves, todos in www.dgsi.pt.
Esta mesma perspectiva resulta clara do Ac. Rel. Lisboa de 04.05.2021, Proc. n.º 756/19.7PTLSB.L1-5, relator Juiz Desembargador Luís Gominho, in www.dgsi.pt, onde se pode ler: Importa que se esclareça desde já, que pese embora esse não seja o seu domínio de eleição, o princípio da livre apreciação da prova não deixa de pontuar nesta fase. Tal como a Exm.ª Desembargadora Dr.ª Ana Brito deixa referido na sua intervenção “Valoração da Prova e Prova Indirecta”, no âmbito da obra colectiva promovida pelo CEJ, a propósito da Criminalidade Económico-Financeira, Vol. III, pág. 236, “a livre apreciação é, (…), o princípio máximo, base e transversal de prova, que rege no processo desde o início deste. Ele “vale para todo o decurso do processo penal e para todos os órgãos da justiça penal”. Daí precisamente o art.º 127.º do Cód. Proc. Penal, que o enuncia, referir que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção”, não apenas do juiz, mas sim “da entidade competente”. Incidências diferentes, são já a forma de evidenciar essa violação e as consequências a extrair, na hipótese de se operar tal demostração. No que concerne à decisão final, a primeira processa-se de modo privilegiado pela impugnação de facto, e de forma mais mitigada, pela invocação dos vícios do art. 410.º, n.º2, do Cód. Proc. Penal. Que conduzirão, então, respectivamente, à alteração da matéria de facto ou ao reenvio, se não for possível julgar da causa. Na instrução, passará, no seu essencial, pela alegação contraditória da suficiência probatória, que assim afastará, ou não, o juízo de pronúncia efectuado.” (sublinhado nosso)
O argumentário recursivo apresentado pelos assistentes, na veste de recorrentes, centra-se, precisamente, na existência de indícios suficientes que possibilitam afirmar que o arguido, para além do cometimento dos factos considerados suficientemente indiciados na Decisão Instrutória, cometeu igualmente os demais aí elencados no item “Factos não indiciados” (correspondentes aos factos descritos na acusação pública), factos esses que visaram a denunciante/assistente BB, esposa do arguido, bem como os três filhos menores do casal, o que consubstancia a prática, por aquele, de um crime de violência doméstica na pessoa da esposa, previsto e punível (p.p.) pelo artigo 152º, n.º 1, al. a), n.º 2, al. a), n.º 4 e n.º 5, do Código Penal (doravante CP) e de três crimes de violência doméstica na pessoa de cada um dos seus três filhos menores CC, DD e EE, p.p. cada um pelo artigo 152º, n.º 1, al. d), n.º 2, al. a), n.º 4 e n.º 5 do CP.
Tal alegação remete-nos para a formulação da seguinte questão: o que deve entender-se por indícios suficientes?
Diz-nos a doutrina:
- “Devem considerar- se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o arguido poderá vir a ser condenado” (Luís Osório, in “Comentário ao Código de Processo Penal Português,” vol. IV, pág. 441)
- “(…) os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição.” (Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, vol. I, Coimbra Ed., 1984, pág. 133)
- “(…) o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido (…). Para a pronúncia, como para acusação, a lei não exige, pois, a prova no sentido de certeza moral da existência de um crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido (…).” (Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, Verbo, 1994, pág. 182 e 183):
- “(…) deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação.” (Jorge Noronha e Silveira in “O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coordenação Prof. Fernanda Palma, Almedina, 2004, pág. 171). Esta tese surge na senda de alguma doutrina recente que vem defendendo uma maior exigência quanto à suficiência dos indícios, sustentando que esta não se basta com a maior possibilidade de condenação do que de absolvição.
Observa o último autor apontado que na resposta à questão do que seja a possibilidade razoável de condenação podem distinguir-se, na doutrina e jurisprudência, três correntes fundamentais: - uma primeira solução afirma que basta uma mera possibilidade, ainda que mínima, de futura condenação em julgamento; - numa segunda resposta possível, é necessário uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição; - e uma terceira via defende ser necessária uma possibilidade particularmente forte de futura condenação. Depois de esclarecer que certos autores advogam esta terceira interpretação da suficiência de indícios como forte possibilidade de condenação sem verdadeiramente a autonomizar da segunda interpretação referida, adopta este mesmo autor a terceira posição, mas com o sentido de que para a acusação, como para a pronúncia, se exige a mesma exigência de prova e de convicção probatória requerida pelo julgamento final, atendendo, designadamente, ao facto de naquelas primeiras fases processuais já se encontrarem recolhidas todas as provas da acusação e de o princípio da presunção da inocência vigorar para todo o processo penal. (ob. cit., pág. 161)
Porque entendemos que a primeira das teses existentes apontada por este último autor não tem correspondência na letra da lei e viola, ademais, o princípio da presunção da inocência, não a podemos perfilhar. De igual forma, e salvo o devido respeito, entendemos ser de afastar a posição que exige na fase da pronúncia a mesma exigência de prova e de convicção probatória requerida pelo julgamento final.
Com efeito, e sob pena de nos repetirmos, a instrução não é um pré-julgamento, pois que nesta fase processual, ademais facultativa, “não se pretende alcançar a demonstração da realidade dos factos; pretende-se, tão só, recolher indícios, sinais, de que um crime foi, ou não, cometido pelo arguido. As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento.” (cfr. cit. Ac. Rel. Coimbra de 23.05.2018). Quer isto significar que o juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º 2 do artigo 283º do CPP, aplicável à decisão instrutória (de pronúncia ou não pronúncia), não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação. A entender-se assim, e salvo o devido respeito, esvaziado de conteúdo e de utilidade ficaria a fase de julgamento (3).
E a posição a que aderimos não viola, salvo melhor opinião, o princípio da presunção da inocência, com consagração constitucional no artigo 32º, n.º 2 (4), nem o princípio processual penal in dubio pro reo, ambos presentes na fase da Instrução, mormente aquando da prolação da decisão instrutória (5). Isto, porque, por um lado e como já referimos, não deixamos de impor “uma exigência de fundamentação para o despacho de pronúncia superior ao de um juízo de manifesta não improcedência da acusação, em que a ultrapassagem das dúvidas razoáveis sobre a possibilidade futura de condenação não terá de ser demonstrada” (cfr. cit. Ac. TC n.º 439/02). Por outro lado, “se o Tribunal que pronunciar não demonstrar que ultrapassou as dúvidas sobre uma efectiva possibilidade de condenação através de um juízo probabilístico apoiado nos factos concretos constantes da acusação” (ibidem), enfraquecendo assim “de conteúdo a garantia processual, suportada pelo contraditório, consistente em poder infirmar a sustentabilidade da acusação e anulará, na prática, a possibilidade de o arguido impedir a sua submissão a julgamento” (ibidem, sublinhados nossos), importa que se revogue a decisão instrutória proferida, porquanto não respeitadora dos aludidos princípios.
Em suma: aderimos à jurisprudência maioritária que tem considerado indícios suficientes aqueles que correspondem à persuasão ou à convicção de que, mediante o debate amplo da prova em julgamento, se poderão provar os elementos constitutivos da infracção descritos na acusação deduzida. Os indícios suficientes correspondem assim a um conjunto de factos que, relacionados e conjugados entre si, conduzem à convicção da culpabilidade do arguido e de lhe vir a ser aplicada uma pena.
Aqui chegados, importa então que se afira da existência (ou não) de tais suficientes indícios.
Os autos tiveram o seu início com a denúncia apresentada pela assistente BB a 29.06.2022, após a sua saída da casa de morada de família com os seus três filhos menores a 27.06.2022, regressada que foi toda a família de ... onde estiveram entre 14.07.2021 e 24.06.2022. Juntou, na ocasião, duas fotografias, uma de si própria e outra do seu filho DD, a fim de com as mesmas documentar as denunciadas lesões físicas provocadas pelo denunciado nesse mesmo mês de Julho, em .... Foi também nessa ocasião inquirida a denunciante.
Datado de 09.07.2022, surge o Aditamento n.º 1, relatando a assistente BB a ocorrência de novos factos praticados pelo arguido nos dias 3, 5, 7 e 9 de Julho de 2022.
Feita avaliação de Risco, foi o mesmo classificado de “Elevado”.
Juntou ainda a assistente BB uma pen onde se encontra registados dois vídeos, com vista a documentar as consequências nos menores dos factos denunciados de 09.07.2022, cujo visionamento pelo OPC foi realizado a 07.11.2022, lavrando-se o respectivo Auto e extraindo-se dois fotogramas (fls. 98 e 99).
A 19.07.2022 foi o arguido sujeito a 1º interrogatório judicial, tendo-lhe sido aplicada a medida de coacção de proibição de contactos, por qualquer meio, com os agora assistentes, por que se considerar indiciada a prática pelo arguido dos factos descritos no despacho de apresentação de arguido detido.
Nesta mesma data foi feito o Aditamento n.º 5 referente à junção aos autos de um documento referente ao episódio datado de 9.07.2022 (relatório elaborado pela ...”).
Reiterada a avaliação de Risco como sendo “elevado”.
Foi novamente a denunciante BB inquirida a 04.01.2023, desta feita com vista à possibilidade de suspensão da execução provisória do processo, à qual se opôs, encontrando-se a diligência em causa gravada no sistema integrado Citius, a cuja audição se procedeu.
Juntamente com a Acusação Subordinada que apresentou, a assistente juntou vários documentos (fls. 85 a 205 do ficheiro Citius) - capturas de ecrã do seu telemóvel referentes a conversações pelo WhatsApp com a sua amiga KK, pessoa que indicou como testemunha na denúncia e que foi inquirida em sede de Inquérito a 21.09.2022 (fls. 90).
Foram igualmente inquiridas, nessa mesma data de 21.09.2022, a mãe da assistente, FF (fls. 85) e NN (fls. 88).
Nessa mesma data, o pai da assistente requereu a junção de um escrito contendo “as suas declarações” – vide fls. 94 v.º a 97.
Na Instrução foram inquiridas, a 03.01.2023 e 13.12.2023, as testemunhas arroladas pelo requerente da abertura da instrução, cujos depoimentos se encontram igualmente gravados, tendo sido por nós ouvidos. Na primeira das apontadas datas foram ainda tomadas declarações ao arguido, as quais se encontram igualmente registadas no sistema integrado Citius, tendo-se procedido à respectiva audição.
Pese embora o teor dos depoimentos coligidos na fase de Inquérito se encontrem sumulados na Decisão Instrutória em apreço, entendemos fazê-lo aqui novamente pois, salvo o devido respeito, tais súmulas apresentam-se incompletas. Assim,
- BB, reiterou os factos alegados na queixa. Vivia com o arguido há 10 anos, casaram há 8 anos e têm 3 filhos com 7, 6 e 2 anos. Depende financeiramente do arguido. Há 5 anos o arguido alterou o seu comportamento, mostrando um lado mais possessivo e que ao longo desse tempo proibia a vítima e os seus filhos de ter contacto com os avós maternos, que sofria pressão psicológica e que já não exercia a profissão, pois o arguido rebaixava-a e humilhava-a, dizendo-lhe que não tinha estofo para exercer a profissão de .... O arguido, embora contribuísse financeiramente para o lar, não ajudava nas lides domésticas. Por diversas vezes o arguido disse-lhe “és uma merda, não és nada e tu não sabes do que sou capaz e aos filhos “és uma merda, um estúpido e um animal”. O arguido, em Portugal, puxava os cabelos à filha e manietava-lhe o braço; já em ..., atirou o filho DD contra uma mesa e devido ao empurrão a criança bateu com a cabeça numa mesa; puxa as orelhas ao mais novo. Quando viveram em ... o suspeito atirou uma garrafa de iogurte ao lábio do filho DD e que ela foi em socorro do filho e o arguido deu-lhe um murro no cotovelo, o que registou fotograficamente. Esta foi a primeira vez que foi agredida fisicamente pelo arguido e ocorreu a 10.06.2022. Mais disse que embora não fosse proibida directamente, o arguido manipulava-a de forma a não ter contacto com amigos ou familiares e embora não fosse proibida de entrar ou sair da residência, sempre que o fazia, o arguido fazia imensas perguntas sobre onde ia e com quem. Embora nunca tenha sido forçada através da força física, o arguido proferia por diversas vezes que ela “tinha que o satisfazer”. Na estadia em ... houve muito atrito no casal, pois o arguido queria que passassem a ali residir, mas a denunciante não concordava com tal, tendo-lhe o arguido dito que poderia regressar a Portugal mas as crianças ficavam com ele, razão porque foi “colaborando” com o arguido por forma a que ele concordasse com o regresso a Portugal, o que veio a suceder a 24.06.2022. No dia 27.06.2022 saiu de casa com os filhos menores e foi residir para casa dos seus pais. Deu ainda nota que o arguido consome diariamente haxixe e que já partilhou por algumas vezes pensamentos agressivos e violentos. Tem medo do arguido.
- A mãe da assistente, sogra do arguido, FF, disse que acompanhou o relacionamento da filha através dos relatos e desabafos que esta lhe fazia e que lhe enviava fotografias com as marcas corporais das agressões físicas levadas a cabo pelo arguido. Já há 4 anos (2018) que a filha se queria separar do arguido, sobretudo por violência psicológica e receio que aquele lhe tirasse os filhos. Ainda durante a gravidez, a filha disse-lhe, chorosa, que o arguido não permitia que a filha CC nascesse em Portugal, antes em ..., tendo a depoente sugerido que nascesse na ..., o que veio a suceder. Relatou que numas férias em ..., em 2016, em que estiveram todos juntos, se apercebeu que o arguido fazia pressão na vítima para esta não se aproximar nem conviver com os amigos e impingia que a BB fosse à praia vestida e só a deixou ir ao mar após muita insistência, mas totalmente coberta e só na companhia do arguido. Deu ainda nota de um episódio no natal de 2020 que, tanto quanto se pode aperceber a atitude da filha – não passaram a quadra juntos nem levou os netos a visitar os avós - se deveu a algum tipo de imposição feita pelo arguido, sentindo nessa altura que a filha estava a viver uma tristeza profunda. Termina referindo-se aos episódios ocorridos em momento posterior a separação do casal, mormente que o arguido no dia 09.07 foi a casa dela e tocou 2/3 vezes à porta de casa. A filha recebia constantemente inúmeras mensagens e telefonemas do arguido, o que a deixava ansiosa, transtornada e perturbada, pois o arguido exercia muita pressão e ameaçava que lhe retirava as crianças, razão pela qual contratou uma empresa de segurança, pois não se sentia segura andar sozinha. Três dias antes do dia 09.07.2022, ouviu um carro buzinar junto à sua residência e constatou tratar-se do arguido, que lhe disse “Chama a BB, chama a BB” e começou também a gritar pelo nome das crianças. Presenciou o que se mostra vertido no Aditamento n.º 1 reportado à data de 09.07.2022, confirmando-o. Deu conta que quando os netos se mudaram para sua casa adoptavam comportamentos muito violentos e de agressividade.
- A testemunha NN, cuidadora da avó da denunciante só presenciou o episódio referente à ida do arguido a casa da mãe da denunciante, ocasião em que se apercebeu de “buzinadelas” vindas do exterior, constatando que era o arguido, tendo-lhe este dito de forma arrogante “Chama-me a BB”. Depois ouviu ainda o arguido a gritar pelo nome dos menores. Três ou quatro dias antes o arguido já tinha ido, à noite, a casa dos pais da denunciante, onde esta se encontra a viver com os filhos, tocando à campainha de forma insistente. Após o episódio do parque, o filho mais novo do ex-casal disse-lhe que o pai o tinha agarrado no braço com força.
- KK, amiga da denunciante e do arguido, disse que a última vez que esteve mais tempo com aquela foi em julho de 2021, antes do ex-casal viajar para ... e que depois disso falava diariamente com a amiga por WhatsApp, tendo sido dessa forma que teve conhecimento que o ex-casal estava a atravessar alguns problemas conjugais, pois a denunciante relatava-lhe isso; No mês de Abril de 2022, a ofendida relatou-lhe que não aguentava mais estar em ..., que tinha tido uma discussão muito grande com o arguido e que iram regressar a Portugal, o que aconteceu. Após o regresso de ..., o arguido foi tomar chá a casa da depoente e disse-lhe que a estadia não correra bem e que por isso regressaram a Portugal. No dia seguinte a denunciante fez-lhe uma visita curta, para matar saudades, confidenciando-lhe que estava em processo de divórcio, sem relatar pormenores. Não voltou a estar com a denunciante. Confirmou a existência de relatos feitos pela denunciante à depoente de episódios de agressões físicas, mas a depoente não os presenciou nem viu marcas corporais na denunciante. A vítima relatou-lhe que o único receio que sente é que o arguido lhe subtraia os filhos, embora ela testemunha não acredite que essa seja a intenção do arguido, caso contrário não teria voltado para Portugal e inscrito os filhos em escolas portuguesas.
- Quanto ao pai da assistente, GG, convocado para depor presencialmente, juntou, nesse acto, um papel escrito em computador e para ele remeteu quanto ao depoimento a prestar. Entendeu a Senhora JIC, e bem, que tal papel não tem qualquer validade, pois a testemunha não goza da prerrogativa de depor por escrito consagrada no artigo 624º do CPC, aplicável ex vi do artigo 4º do CPP - aqui, a admissão do depoimento por escrito tem como pressuposto o estatuto ou condição profissional da testemunha.
E acrescentamos nós que não se está igualmente perante a situação prevista no artigo 518º do CPC que consagra a possibilidade da testemunha apresentar, por escrito, o seu depoimento, pois que nada resulta dos autos, mormente do Auto de Inquirição, que o depoente preenchesse os requisitos que se exigem em tal preceito legal para que se possa atribuir qualquer valor probatório a tal documento (6) (7).
O que fica dito afasta assim o que a dado passo escreveu a Senhora JIC na decisão alvo de recurso: “O próprio pai da arguida não foi capaz de prestar declarações de viva voz.”
Por último, não podendo o documento em causa que foi junto aos autos pela identificada testemunha servir de prova, não tem igualmente aplicação o n.º 5 do artigo 138º do CPP.
- Foi o arguido ouvido em sede de 1º interrogatório, a 19.07.2022, tendo em tal sede declarado:
- a denunciante trabalhou até aos primeiros 4/5 meses do ano de 2016 e que deixou de o fazer na sequência da gravidez do último filho, considerada de risco, respectiva licença de parto, considerando ainda as restrições do Covid;
- o próprio pagava todas as despesas da casa e da família, sendo que a denunciante recebia dinheiro dos pais;
- no dia 27.06.2022, após o regresso de ..., saiu de casa para trabalhar e quando regressou tinha à sua espera uma carta de 6 páginas que a denunciante lhe deixara e tinha levado os filhos e os respectivos passaportes;
- a denunciante nunca falou em divórcio; apenas lhe pediu para respeitar o seu espaço e o seu tempo; nunca mais falou com ela;
- no dia seguinte, enviou sms para tentar ver os filhos, ao que não obteve resposta;
- nega alguma vez ter agredido fisicamente os filhos, negando ser violento com os mesmos; só no DD, que é o mais rebelde, desferiu algumas palmadas educativas no rabo, “quando já é demais”; nega o denunciado empurrão do filho DD contra uma mesa; negou puxar as orelhas ao mais novo;
- confrontado com a foto de fls. 21 declarou desconhecer quando e onde foi a mesma tirada, não reconhecendo o local nem a roupa que o filho usava.
- quanto à foto de fls. 22 nega ter desferido na sua mulher qualquer murro no cotovelo; antes deu nota de se recordar de um episódio em que, por mero acaso, embateu contra a denunciante, mas sem lhe causar qualquer lesão;
- confirmou os denunciados telefonemas, mas “para saber dos meus filhos”;
- quanto ao episódio do dia 09.07.2022, no ..., referiu que aa denunciante e os filhos só chegaram às 10:30 horas, quando combinaram ás 9:30 h; esteve 10 minutos com os filhos em vide-chamada com os avós paternos; pediu para ir passear com os filhos, ao que a denunciante se opôs, razão porque agarrou com força num dos filhos, no braço; vieram duas pessoas que o acalmaram; ficou exaltado porque há duas semanas que não via os filhos.
- Foi a denunciante inquirida a 04.01.2023, dando nota que desde a data em que o arguido foi sujeito a 1º interrogatório judicial não mais foi contactada por este, não voltando a ocorrer nenhum outro episódio semelhante aos denunciados. Todos os dias, por volta das 19:00 h, estabelece ligação de videochamada por WhatsApp para o arguido falar com os filhos. Continuam a viver em casas separadas, vivendo a denunciante e os filhos em casa dos pais. Retomou o exercício da ... a 02.01.2023 no ....
Na fase de Instrução, prestou o arguido declarações a 03.01.2023, no âmbito das quais afirmou que a esposa nunca dependeu dele financeiramente pois recebia dinheiro dos pais desde 2015, ao que julga, no montante de 1.000,00 €. Mais disse que fundaram uma clínica em 2018 e que o seu irmão e a denunciante também eram sócios. Em Outubro 2021, depois por terem ido para ..., teve que fechar a clinica, pois não conseguiu geri-la à distância. Disse ainda que foi a denunciante quem quis ir viver para ..., porque já não queria mais viver em Portugal. Disse ainda que nunca chamou nomes à mulher e aos filhos, nem nunca os agrediu. Mais disse que a denunciante saiu de casa e deixou uma carta. Depois combinaram um encontro no ... em 09.07.2022, tendo a denunciada chegado atrasada cerca de uma hora. Só depois reparou que a denunciante estava acompanhada dos sogros, tendo justificado tal “para se sentir mais acompanhada”. Quando começou a discussão com a denunciante a propósito de querer levar os filhos a passear e a denunciante opôs-se a tal, surgiram dois seguranças que lhe tiraram os filhos à força. Respondeu que a decisão de irem para ... foi tomada em conjunto e que a compra, na ocasião de bilhetes de ida e volta foi com vista a ultrapassar questões burocráticas relacionadas com o visto de permanência em .... Em Março/Abril de 2022 a sua mulher começou a dizer que não queria continuar a viver em ..., que queria regressar a Portugal. O arguido opôs-se a tal pois os filhos estavam a meio do ano lectivo. Diligenciou pela antecipação dos exames finais na escola para puderem regressar, definitivamente, a Portugal, como fizeram. Compraram só bilhete de vinda para Portugal, entregaram a casa que tinham arrendado ao proprietário e trouxeram todos os seus pertences.
Foram inquiridas várias testemunhas, arroladas pelo arguido: - MM, farmacêutica, cunhada do arguido; - OO, médico, primo do arguido; - PP, médico, amigo do casal, dado que estudaram todos juntos na ...: o casal dava-se muito bem; - QQ, ..., casada com a testemunha anterior, tendo-se procedido à audição dos registados depoimentos.
O arguido juntou ainda aos autos:
- um recibo de 2016, relativo à preparação da denunciante para internato médico;
- um contrato de arrendamento celebrado por ela, relativo a casa de morada de família,
- declarações de rendimentos recebidos pela denunciante no exercício da ... relativos aos anos de 2017, 2018 e 2019;
- print´s de mensagens trocadas entre o casal nos anos de 2021 e 2022.
A assistente também juntou alguns documentos:
- relativos a marcações/desmarcações de aulas de yoga,
- print´s de mensagens trocadas com a amiga KK por WhatsApp,
- a carta (em word) que terá escrito ao arguido quando se foi embora de casa;
- relativos à presença da filha menor no médico
- fotografias tiradas em ..., perto de onde viveriam.
- alguns documentos em inglês [porque desacompanhados da respectiva tradução, por força do disposto no artigo 92º, n.º 1 do CPP, não poderão ser tidos em conta como meios de prova].
Sendo este o acervo probatório coligido em ambas as fases processuais, e ressalvando sempre o respeito por entendimento diverso, cremos que o juízo indiciário a fazer se impõe contrário àquele que foi feito pelo tribunal a quo, ou seja, entendemos que da análise conjugada e crítica da prova produzida resulta suficientemente indicada a prática pelo arguido tanto dos factos considerados na Decisão Instrutória como indiciariamente apurados, como os aí considerados não indiciariamente apurados.
Mas para melhor se perceber e alcançar os fundamentos das razões que de seguida passaremos a elencar, comecemos por relembrar que, de acordo com a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação da Violência Sobre as Mulheres, constitui violência contra as mulheres “todo o ato de violência baseado na pertença ao sexo feminino que tenha ou possa ter como resultado o dano ou o sofrimento físico, sexual ou psicológico da mulher”, assumindo diversas formas, como seja a violência financeira, física, emocional, psicológica e social.
E tal como é referido no e-book “Violência Doméstica – Implicações Sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno” - Manual Pluridisciplinar, 2.ª edição, dezembro 2020, in https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=jQXSesE72kk%3D&portalid=30,não podemos esquecer que, ao contrário do que é frequentemente afirmado (ou, se calhar, frequentemente esquecido…) a VD atravessa todas as culturas, sociedades e classes. Vítimas e agressores são provenientes de qualquer estrato socioeconómico – esta é uma forma de violência transversal aos diferentes padrões culturais, religiosos, económicos, profissionais, etc.”
Adiante, na obra em referência, pode ainda ler-se: “(…) Uma das maiores e mais complexas especificidades da violência doméstica é precisamente no contexto de relações íntimas, nas quais o agressor, para além de uma particular proximidade afetiva, dispõe de todo um leque de conhecimentos e estratégias para controlas a(s) vítima(s). (…) as relações de conjugalidade, para além de íntimas, são complexas, (…) as interações entre companheiros estão envolvidas por uma forte componente emocional e sexual e, para além disso, eles partilham projetos, papéis e responsabilidades relativos à sua vida e à vida dos filhos, como a gestão dos bens, a alimentação, a educação, as atividades sociais, profissionais. É, assim, mais fácil ao agressor criar uma rede de dependências e controlos que “armadilham” a relação e tornam mais difícil à vítima a rutura com a relação abusiva”.
Mais ali pode ler-se: “Neste contexto, assume particular relevância, nos quadros dos estudos e das intervenções na VC, a consideração do ciclo da violência. De acordo com este modelo, a VC desenvolve-se através de ciclos cuja intensidade e frequência aumenta com o tempo. No contexto da VC qualquer incidente pode desencadear uma crise acompanhada de ameaças ou agressões psicológicas que são, muitas vezes seguidas de agressões físicas. Após esta crise, instala-se muitas vezes um período de remissão dos comportamentos violentos durante a qual o homem violento, temendo perder a sua companheira, minimiza o que fez, justifica o seu comportamento através de racionalizações e desculpas várias (provocações pela mulher…). Por vezes, assume- se até como culpado dos seus atos e tem atitudes afetuosas com a mulher, prometendo nunca tornar a repeti-los e adotando atitudes não violentas. Esta mudança de atitude cria na mulher a esperança de que ele não voltará a ser violento e poderá mesmo redescobrir nele um companheiro calmo e atencioso. Contudo, o exercício da violência sobre a vítima surgirá de novo, sendo que muitos destes períodos de “lua- de-mel” se apresentam bastante curtos e tendem a desaparecer ao longo do tempo. Com as sucessivas repetições deste ciclo, a mulher passará a avaluar-se como incompetente na sua vida de casal (e não só), sendo frequente sentir-se responsável pela existência da própria violência”.
A propósito da dificuldade que a própria vítima, bem assim os que a rodeiam e convivem com o casal, nem sempre é fácil de perceber que o que está a acontecer é uma forma de violência, pode ler-se num outro e-book “Violência(s) Doméstica(s) – Violência no namoro – a realidade em estudo” - Coleção Formação Contínua, Jurisdição Penal e Processual Penal, Dezembro de 2018, disponível em eb_ViolenciasDomesticas.pdf: “Pode ser difícil compreender e acreditar que alguém de quem se gosta seja capaz de nos fazer mal e magoar; Apesar de o nosso namorado nos maltratar continuamos a gostar dele; Não o queremos magoar, desiludir, nem prejudicar; Não queremos ficar sozinhos ou temos medo que a relação acabe; Temos vergonha de contar o que se está a passar e de pedir ajuda; Temos medo que ninguém acredite em nós ou que ninguém nos consiga ajudar; Temos medo que o nosso namorado nos faça mal ou a si próprio se contarmos o que está a acontecer; Temos esperança que ele mude ou ele promete que vai mudar; Desculpamos ou entendemos o comportamento dele por causa do ciúme ou pelo facto de gostar de nós”.
Tal como bem é referido no primeiro dos e-book mencionados, “estes mitos levam, frequentemente, a atribuir responsabilidade pela VD à vítima (estão intrinsecamente associados à questão que muitos cidadãos e profissionais se colocam frequentemente, sobretudo nas fases iniciais do contacto com a vítima: porque é que ela não deixou o agressor/não saiu de casa?). A primeira ideia assenta na falsa conceção de que a mulher tem o poder de interromper a situação abusiva quando quiser, quando tal não é, na maioria dos casos, a verdade – fruto das estratégias de manipulação e controlo que o abusador implementa e das consequências psicológicas da própria VD e as suas dinâmicas abusivas (…) muitas vítimas tendem só a tomar plena consciência da sua situação quando a violência se tornou já regular e grave e a rutura é complexa e exige capacidades que, por efeito (…) da dependência emocional do agressor, crença de que o casamento “é uma cruz a ser carregada”, investimento no projeto conjugal como elemento central da sua identidade e realização pessoal etc., a vítima não possui naquele momento. (…)
Por outro lado, é errado pensar que por haver sucessivas reconciliações e períodos de afeto, não pode haver violência, porque, tal como explicado supra sobre o ciclo da violência doméstica, “existem períodos em que não ocorrem agressões. Sobretudo nos primeiros tempos da relação, estes períodos de não-violência, ou mesmo de manifestação de afetos positivos, alternam ou coexistem com períodos em que são exercidos atos violentos. É, por isso, frequente (e normal) que muitas vítimas continuem a sentir afetos positivos/amor pelos seus agressores”, mesmo quando a violência doméstica já se instalou.” (fim de citação)
É por todos estes motivos que se torna difícil aceitar a ideia de que estes padrões de violência possam ser exercidos por indivíduos normais e … contudo … são-no.
Em segundo lugar, não é pelo facto da mulher ser economicamente independente do seu companheiro/marido que não pode ser vítima de violência doméstica (como parece querer o arguido convencer-nos de tal, ao afirmar que a denunciante, mesmo depois de casada, continuou a receber uma “mesada” por parte dos pais). Adotar esse entendimento é não compreender o fenómeno da violência doméstica, é considerar que só há subjugação quando há dependência financeira, é diminuir e minimizar a mulher entendendo que existe uma hierarquia e um poder distintos para ambos os sexos, é entender que uma mulher capaz de prover ao seu sustento tem que aguentar tudo porque o “normal” é o marido/companheiro ter esse papel e, se assim não é, não é possível acreditar que a mesma admita ser subjugada pelo marido, é quase como considerar ser obrigatório e necessário encontrar uma “justificação” para o preenchimento do crime de violência doméstica quando, na realidade, é uma conduta injustificável.
Por fim, é normal que uma vítima demore muito tempo – e isso pode implicar o decurso de alguns anos – a perceber e a identificar-se como vítima de violência doméstica. É infelizmente normal, no contexto de violência doméstica, fruto da dependência emocional da ofendida em relação ao arguido, haver períodos de agressão e depois períodos marcados pela reconciliação e afecto, e o facto da vítima ser economicamente independente não justifica a conduta física, psicológica e emocionalmente violenta do arguido para com a assistente, não afasta a prática do crime de violência doméstica.
Tendo assim presentes todos estes ensinamentos, não podemos concordar com os considerandos feitos pelo tribunal a quo, nomeadamente para descredibilizar os relatos feitos pela agora assistente BB e pela senhora sua mãe.
Vejamos então.
a. Não se mostra contraditório o afirmado pela mãe da denunciante no sentido de que a sua filha já havia manifestado vontade de se separar do arguido (por sentir, por banda deste, pressão psicológica) e o facto de o casal ter tido, no entretanto outro filho. A este propósito cabe perguntar quantos casais não há que tentam encontrar na gestação de mais um filho uma solução para uma relação que sentem como periclitante? E a resposta é uma: muitos.
b. Nesta sequência, não se compreende o afirmado pelo tribunal a quo quando refere a propósito da terceira gravidez da denunciante “(…) sendo a ofendida ... podia claramente ter evitado que acontecesse (…).”
c. Pode ler-se na decisão objecto de recurso que a mãe da denunciante se referiu a episódios ocorridos em 2014 e 2016 “que não foram objecto de queixa por parte da ofendida”, nomeadamente o dissídio referente ao local de nascimento do segundo filho do casal - a menor CC -, e o afastamento da denunciante do contacto com outras pessoas, em 2016, numas férias em .... Salvo o devido respeito, assim não é, porquanto a denunciante, quando inquirida pelo OPC, afirmou, ainda que sem concretizar, que o arguido “manipulava-a de forma a não ter contacto com amigos ou familiares e embora não fosse proibida de entrar ou sair da residência, sempre que o fazia, o arguido fazia imensas perguntas sobre onde ia e com quem.”
d. E quanto ao aludido diferendo, mostra-se comprovado nos autos que a menor CC nasceu, efectivamente, na ..., não retirando credibilidade ao narrado pela mãe da denunciante a este propósito o facto dos demais filhos do casal terem nascido em Portugal, como se mostra afirmado na decisão recorrida.
e. Se é certo que a denunciante BB apenas deu nota de um episódio de violência física do arguido para consigo – murro num cotovelo, em ..., na data de 10.06.2022 – ao contrário do que mencionou a sua mãe, a testemunha FF, tal é razão suficiente para afirmar que “a mãe da assistente tem um depoimento perfeitamente contraditório com o da própria assistente”? Não perfilhamos de tal opinião, pois que é consabido que, por vezes, as testemunhas “entusiasmam-se” e falam para além do que efectivamente vivenciaram, não necessariamente com a intenção de faltar à verdade, mas porque não conseguem, emocionalmente, distanciar-se o necessário da situação em análise.
f. Ditam igualmente as regras da experiência que sobre temas tão delicados e íntimos como o dos autos (mesmo (apenas) num contexto de “fracasso do casamento”), as pessoas não têm por hábito partilhá-lo com uma infinidade de pessoas, elegendo apenas do seu círculo mais próximo um ou dois confidentes… E mesmo a estes muito ficará por dizer. Assim, não se estranha, ao contrário do que lavrou nota na decisão recorrida, que a testemunha KK foi a “única amiga que a ofendida indicou” e que “(…) não houve uma única amiga, conhecida, colega de profissão que corroborasse as declarações prestadas pela ofendida.”
g. E o que dizer quanto ao depoimento desta testemunha? Desde logo, atente-se que KK afirmou ser amiga tanto do arguido como da assistente BB, evidenciando o seu depoimento uma pretensão de se distanciar de toda esta situação, pois que de forma muito superficial e passageira deu conta que nas conversas que manteve diariamente com a assistente enquanto esta esteve em ..., via WhatsApp, ficou a saber que o “ex-casal estava a atravessar alguns problemas conjugais, pois a denunciante relatava-lhe isso”. Ora, a este propósito impõe-se dizer que dos print´s juntos aos autos que documentam parte de tais conversações, resulta que as mesmas eram diárias e os relatos aí feitos pela assistente contêm pormenores e dão conta de várias vivencias do casal que vão para além de meros “problemas conjugais”. Assim, só se compreende a reserva da testemunha com o intuito de não difundir em tribunal o que lhe foi transmitido em contexto de confidência. Porém, não se pode ignorar o que se mostra registado nos aludidos print´s, para se poder concluir que tudo o relatado pela denunciante não se resumia a simples “problemas conjugais”. Evidente que o eram, mas a dimensão do então relatado pela denunciante testemunham uma gravidade/complexidade maior do que pretendeu aquela testemunha transmitir ao tribunal, como aliás a mesma manifesta em algumas dessas conversações (v.g. “Isso foi longe de mais” e ainda os conselhos que deu à denunciante para “aguentar mais um pouco” com vista a lograr convencer o arguido a regressar a Portugal).
h. Quanto ao dito por esta testemunha na recta final do seu depoimento e evidenciado na súmula feita pela Senhora JIC – “(…) embora ela testemunha não acredite que essa seja a intenção do arguido [levar os menores consigo para ...], caso contrário não teria voltado para Portugal e inscrito os filhos em escolas portuguesas.”- apenas uma palavra: trata-se de uma mera opinião da testemunha, não admissível, por cindível do facto relatado, a saber - os filhos do casal foram inscritos em escolas portuguesas (vide artigo 128º, n.º 1 e 130º, n.º 2, al. a), a contrario, ambos do CPP).
i. As demais considerações feitas pela Senhora JIC a propósito das condições económicas da família da depoente – “(…) pais têm posses financeiras (para a mesma ter estudado na ..., lhe terem pago uma casa na ... em 2014, de lhe darem uma mesada, pagarem a uma empresa de segurança (…)” – mostram-se inócuas para o que urge apurar nos autos, considerando o que supra ficou registado a propósito da VD – é um fenómeno transversal à sociedade; vítimas e agressores são provenientes de qualquer estrato socioeconómico.
j. Por outro lado, dos autos nada resulta que na ocasião da realização de Debate Instrutório/prolação da decisão instrutória - vide respectivas Actas - a assistente BB se encontrasse acompanhada de “seguranças”, pelo que não se compreende o lavrado, a este propósito, na decisão recorrida.
k. A circunstância da assistente se ter feito acompanhar de seguranças na ocasião descrita nos autos – 09.07.2022 -, como parece resultar do documento junto aos autos, em nada diminui a credibilidade da denunciante, considerando, ademais, que a avaliação do Risco feita por essa mesma ocasião mereceu o grau de “Elevado” e fundamentou, ainda, a aplicação ao arguido das supra apontadas medidas de coacção.
l. E quanto à ida do casal para ..., com os filhos, olhando para a factualidade em causa imputada ao arguido, impunha-se tecer qualquer consideração, mormente aquela que na decisão sob recurso se pode ler: “Se desde 2018, como diz a mãe da ofendida que a mesma se queria separar, o que é que a fez ir para ... com o arguido e para junto da família deste? Mesmo tendo o arguido aberto uma clínica ... em Portugal? Terá sido obrigada a fazê-lo? Claro que não e nem a ofendida vai tão longe ao ponto de o dizer.”? Salvo o devido respeito, cremos que não.
m. Mas quanto a este particular aspecto, considerando o que resulta dos autos, nomeadamente que o arguido tem a sua família em ..., conjugado com as regras da experiência e das considerações acima tecidas sobre o fenómeno da violência doméstica, também não nos merece credibilidade o que a este propósito o arguido afirmou em sede de instrução, quando ouvido pela Senhora JIC que “foram para ... porque ela [a denunciante] “não queria viver mais aqui” [em Portugal].
n. Quanto ao “rol de mensagens trocadas entre ele [o arguido] e a ofendida nos anos de 2021 e 2022”, estas não poderão ser vistas isoladamente, mas antes conjugadamente com os demais print´s juntos aos autos reportados às conversações diárias mantidas entre a denunciante e a sua amiga KK, pelo que não logramos sufragar o entendimento feito pela Senhora JIC de que aquelas primeiras “dão bem nota do carácter paciente e pacífico do arguido e do bom relacionamento entre ambos”.
o. Não contestando a apreciação feita pela Senhora JIC quanto à forma como o arguido prestou declarações – “de modo bastante tranquilo e esclarecedor, mantendo-se sempre calmo e cabisbaixo” -, atenta a imediação que fez do mesmo, o certo é que não tendo a Senhora JIC tomado declarações à assistente não logrou ter termo de comparação quanto ao “comportamento declarativo” desta aquando da sua inquirição nos autos. Diga-se, a este propósito, que o depoimento da denunciante que se encontra gravado nos autos não se reporta ao relato dos factos, mas apenas, como referido acima, visando aferir da sua concordância com vista à suspensão provisória do processo.
p. Resta-nos o último reparo, se nos é permitido. Os crimes em causa são de natureza pública. Quem determina quais as diligências de recolha de prova a realizar é o Ministério Público, podendo o assistente requerer a realização de determinadas diligências que poderão ser, ou não, atendidas pelo MP. Sucede que a denunciante apenas se constituiu assistente após a dedução de acusação pública. Por outro lado, e sendo certo que não compete a este Tribunal apreciar da bondade ou não da actuação do Ministério Público na condução do inquérito, atento o princípio do acusatório constitucionalmente consagrado, poderemos dizer que não terá sido o MP indiferente à tenra idade dos menores – 9 e 8 anos – para não determinar a sua inquirição nos autos.
Admitiu, ainda, o arguido que após deixar de ver os filhos e a ofendida abandonar a casa, foi procurá-los e tentar saber deles, justificando neste mesmo contexto o número de chamadas efetuado. Se é certo que perfilhamos o entendimento plasmado na decisão instrutória de que o arguido, pai de três filhos, tem o direito de saber, ao menos, onde se encontram, o certo é que o arguido tinha conhecimento de tal, pois que no escrito que a denunciante lhe deixou ali referiu expressamente: “Vou uns tempos para casa dos meus pais, quando quiseres ver e estar com os miúdos, diz-me que combinamos”. Desta feita, e ainda que compreendendo o estado de exaltação e de ansiedade em que pudesse o arguido, por esses dias, estar, o seu comportamento melhor descrito no libelo acusatório, porque não pode ser separado do demais ali descrito, não pode deixar de assumir relevo criminal.
Resta-nos uma última observação quanto aos depoimentos das testemunhas prestados na fase de instrução: como resulta da evidenciada razão de ciência, são pessoas que com o arguido e a assistente privaram socialmente e pontualmente, não podendo assim, afiançar mais do que aquilo que se mostra registado nos autos, que vai para além da súmula feita na Decisão instrutória, como bem sublinham os recorrentes nos pontos XLV. a XLVII. das Conclusões de Recurso. Contudo, as afirmações feitas não se mostram capazes de colocar em crise as considerações acima feitas reportadas à análise dos demais meios de prova elencados.
Por tudo o exposto, entendemos que dos autos resultam indícios suficientes que permitem revogar (parcialmente) a Decisão Instrutória proferida, pronunciando-se o arguido pelo cometimento dos factos elencados na Decisão Instrutória sob recurso nos itens “Factos indiciariamente apurados” e “Factos não indiciariamente apurados”, integradores da prática, pelo arguido, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de violência doméstica na pessoa da esposa BB, previsto e punível (p.p.) pelo artigo 152º, n.º 1, al. a), n.º 2, al. a), n.º 4 e n.º 5, do Código Penal (doravante CP) e de três crimes de violência doméstica na pessoa de cada um dos seus três filhos menores CC, DD e EE, p.p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. d), n.º 2, al. a), n.º 4 e n.º 5 do CP.
No entanto, expurgar-se-ão do elenco factual que se seguirá os seguintes segmentos que constam do libelo acusatório no artigo 5º - “Desde o ano de 2017 que o arguido alterou o seu comportamento passando a ser possessivo e controlador da vida da sua esposa BB”-, no artigo 10º - “Em datas não concretamente apuradas, mas entre 2017 e 2022, e por um número indeterminado de vezes, o arguido infligiu castigos físicos ao filho DD” -, no artigo 18º - “saturada dos maus tratos do arguido” -, bem assim o que consta no artigo 25º - “a agredindo, ameaçando e atormentando a esposa, em atos violentos, desferindo na ofendida murros, insultando-a com a expressão “és uma puta, estúpida, és uma merda”” - e no artigo 26º - “desferindo castigos corporais nos seus três filhos pequenos, batendo-lhes com empurrões contra os móveis, puxando-lhes os cabelos e as orelhas, provocando-lhes lesões, ao gritar impropérios para com os menores, dizendo a cada um deles “és uma merda, um estúpido, um animal”- pois que se entende que tal acervo não são factos, antes juízos conclusivos e considerações (artigos 5º, 10º e 18º) ou ainda desnecessárias repetições do que consta no elenco descritivo e discriminativo feito nos artigos 6º a 23º de tal peça processual (artigos 24º e 25º). Por outro lado, está apenas indiciada a prática pelo arguido de um murro na pessoa da assistente BB e o constante no ponto 26º inculca a ideia, errada, de que o aí descrito se reporta indistintamente a todos os menores, o que não se compagina com o demais elencado nos artigo 9º, 11º, 12º e 13º.
Ora, factos são acontecimentos, ocorrências, situações, qualidades, preexistentes ou consequentes a um comportamento ou actividade humana, referidos à natureza, às coisas, materiais ou pessoais, e que se inscrevem e apresentam na realidade externa de modo identificável; quando tais acontecimentos, situações, ou qualidades sejam juridicamente relevantes, constituem elementos de necessária conformação processual. Nesta dimensão, não são factos, porque não constituem acontecimentos, situações, ocorrências ou qualidades, tudo quanto constitua juízos lógicos e valorativos que, em dedução permitida ou imposta pelas regras da experiência ou pela normalidade das coisas, derivam de acontecimentos materiais ou qualidades pessoais anteriormente comprovadas.
São ainda factos as inferências que se retiram de outros factos tanto quanto o permitem as regras da experiência que estão na base de uma presunção, isto é, quando um facto conhecido se firma num facto desconhecido; não são já factos, neste sentido e no sentido processualmente relevante, as conclusões das ordem das valorações que ao juiz é permitido retirar dos factos provados e que utiliza como módulos do processo argumentativo e fundador da decisão (tais noções podem ler-se no Ac. STJ de 15.10.2003, Proc. n.º 03P1882, sendo Relator Juiz Conselheiro Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt)
Por tal, os trechos acima assinalados devem ser considerados não escritos e deixarão de fazer parte integrante do elenco dos factos pelos quais se considera dever ser o arguido pronunciado, integradores dos supra aludidos crimes de crimes de violência doméstica, tanto na pessoa da sua esposa BB, como em cada um dos seus três filhos menores de idade, não podendo ainda ser avaliados para qualquer outro acto ilícito criminal.
E não se contra-argumente, dizendo que no que tange ao plasmado nos artigos 24º e 25º da acusação tal se traduz na síntese dos factos elencados nos artigos precedentes. Se tal é certo, torna-se irrelevante e reduz-se a uma mera repetição, inevitavelmente “polvilhada” com algum juízo valorativo, como disso são exemplo as expressões “atormentando”, “actos violentos” e “castigos corporais”.
Ora, tendo sempre presente que o arguido só pode contrariar uma acusação ou uma decisão instrutória de pronúncia, de forma adequada e eficaz, se em tais peças processuais se encontrarem vertidos especificadamente e com clareza os factos imputados, não poderá aquele contestar, eficazmente, uma imputação de uma situação abstracta ou vaga, muito menos validamente contraditar a prova de uma tal situação em que são feitas imputações genéricas, visto que estas não são susceptíveis de impugnação, pelo que a aceitação destas como “factos” inviabiliza o direito de defesa que ao arguido assiste, constituindo assim grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no artigo 32º da CRP (neste sentido, veja-se Ac. STJ de 21.02.2007, Proc. 06P3932, citado no Ac. Rel. Porto de 10.01.2018, Proc. 821/16.2 T9GDM.P1, sendo Relator Juiz Desembargador José Carreto, in www.dgsi.pt).
Neste mesmo sentido, de que uma imputação genérica, sem individualização dos actos integrantes dessa actividade, não podendo revelar para o efeito do enquadramento jurídico-penal dos factos, já que inviabiliza o exercício do direito, porquanto fica o arguido impedido de organizar adequadamente a sua defesa, contraditando as provas apresentadas e oferecendo provas de que não cometeu actos se pronunciou o STJ em vários outros Acordãos, mencionando-se, a título de exemplo os Acordãos de 17.01.2017, Proc. 06P3644, sendo relator Juiz Conselheiro Silva Flor, de 06.05.2004, Proc. n.º 908/94, de 04.05.2005, Proc. n.º 889/05 e de 07.12.2005, Proc. n.º 2942/05.
Em suma: devem os factos imputados ser claros e precisos. Não podem ser utilizados/imputados na acusação (e consequentemente na sentença) conceitos vagos e imprecisos, genéricos e conclusivos porquanto isso não apenas impede um eficaz exercício do direito de defesa, como impede o exercício do contraditório ínsito naquele.
Assim, e porque tais apontadas passagens nunca poderão desencadear qualquer reacção penal, há que considerá-las como matéria não escrita.
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Concomitantemente com a pretensão recursiva vinda de apreciar, que logrou obter provimento, requereram ainda os assistentes a revogação da Decisão Instrutória na parte em que não se pronunciou sobre os factos constantes da Acusação subordinada por si deduzida que vão para além dos factos incluídos na acusação pública, “uma vez que tais aditamentos não consubstanciam uma alteração substancial dos factos, mas apenas, quando muito, uma alteração não substancial de factos, em conformidade com o âmbito de aplicação do regime previsto no artigo 284º do CPP” (cfr. ponto XVII. das Conclusões)
Salvo o devido respeito por diverso entendimento, cremos que a apreciação que acima se fez da questão recursiva apresentada, concedendo-lhe provimento, preclude a análise que houvesse a fazer da pretensão vinda de referir.
Se não, vejamos.
Os assistentes, ao pretenderem que este Tribunal de recurso aprecie os meios de prova coligidos nos autos e dos mesmos faça um juízo indiciário parcialmente contrário àquele que fez o Tribunal da 1ª instância, proferindo-se Decisão Instrutória de pronúncia do arguido pelos factos explicitamente vertidos no ponto LI. das Conclusões [e apenas por estes e não por quaisquer outros, mormente os que constituem a factualidade constante da Acusação Subordinada que vai para além do acervo factual vertido no libelo acusatório], circunscreveu a actividade deste Tribunal de recurso à apreciação da existência ou não de indícios quanto àqueles apontados factos, e tão só, repete-se.
Donde, debruçar-se este Tribunal de recurso sobre a existência (ou não) de indícios quanto a quaisquer outros factos redundaria na prática de actos inúteis, pois que foram os próprios assistentes/recorrentes quem, a final de contas, “fecharam” as suas pretensões recursivas com o elencar da factualidade pela qual pretendem seja o arguido pronunciado, factualidade essa, repete-se, que se circunscreve apenas àquela que foi apreciada pela Decisão Instrutória colocada em crise com o presente recurso.
Ora, a prática de actos inúteis viola o princípio da economia processual, tal como se encontra estabelecido no artigo 130º do CPC. E embora o CPP não contenha norma equivalente, aquele preceito do processo civil pode ser aplicado no processo penal, conforme o estatuído no artigo 4º do CPP, na medida em que se harmoniza em absoluto com o processo penal (8) (assim, Ac. STJ de 11.02.2016, Proc. n.º 15/14.1UGLSB.S2, relator Juiz Conselheiro Arménio Sotto Mayor, in www.dgsi.pt).
Assim, não importa discorrer sobre qual a posição do assistente no processo criminal face à do Ministério Público, quando em causa estão, como sucede, crimes públicos; não há que questionar sobre o que tal significa e quais as suas implicações, nomeadamente nos termos e no âmbito do artigo 284º do CPP, indagando se os factos elencados na Acusação subordinada se encontram (ou não) dentro dos limites do citado preceito legal; por fim, não se exigirá que apreciemos se tal invocada factualidade se mostra (ou não) suficientemente indiciada nos autos, pois que os assistentes não requerem a pronúncia do arguido por tal acervo factual.
Desta feita, e salvo o devido respeito por entendimento diverso, a apreciação que haja a fazer sobre se a Acusação subordinada se contém dentro dos limites estabelecidos pelo citado artigo 284º do CPP não competirá já a este Tribunal de recurso, mas antes ao Juiz de Julgamento aquando da prolação do despacho nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 311º, n.º 2, al. b) do CPP.
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III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam as Juízas Desembargadoras da 9º secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelos assistentes, revogando (parcialmente) a Decisão Instrutória de não pronúncia e, em consequência pronunciam o arguido AA pela prática dos factos descritos na acusação pública deduzida, a saber:
1. O arguido, AA, e a ofendida, BB, casaram- se em meados de 2014, e viveram juntos durante 8 anos, até 2022.
2. Quando casaram o arguido e a ofendida foram viver para casa dos pais desta, na ..., depois foram para uma casa própria na ..., em 2018 foram para a sua última residência, na ..., onde viveram até à sua separação em 27-06-2022, data em que a ofendida saiu de casa com os filhos.
3. Durante esse período de relação matrimonial, o arguido, a esposa e os filhos viveram entre 14-07-2021 e 24-06-2022 em ..., terra natal do arguido, regressando a Portugal, à última casa mencionada no ponto anterior, pouco antes da separação.
4. Do matrimonio nasceram três filhos, CC em ...-...-2014, actualmente com 8 anos de idade, DD em ...-...-2015, actualmente com 7 anos de idade, e EE em ...-...-2019, actualmente com 3 anos de idade, os quais residiam com os pais até à sua separação.
5. BB era ... mas, por imposição e pressão psicológica do arguido, que dizia à esposa que ela não tinha capacidade de exercer essa profissão, o que a entristecia e diminuía a autoestima, em 2019 a ofendida deixou de trabalhar na ... e passou a dedicar-se exclusivamente a cuidar dos filhos menores.
6. Desde que a ofendida deixou de trabalhar como ... em 2019 que o arguido a começou a controlar financeiramente, só dando a BB os meios financeiros básicos para sustentar as despesas domésticas, e nada mais.
7. Desde o início da relação o arguido muitas vezes discute e grita com a esposa, dizendo a BB “ESTÚPIDA, ÉS UMA MERDA, NÃO ÉS NADA” o que a entristece e rebaixa, em discussões dentro de casa em frente às crianças.
8. Em datas não concretamente apuradas e por um número indeterminado de vezes, o arguido puxou os cabelos com força à sua filha CC, outras vezes puxou-a pelo braço com força, magoando a menor repetidamente com estes castigos corporais.
9. No ano de 2020, o suspeito empurrou, com força o filho DD, contra uma mesa, provocando-lhe uma lesão na cabeça, tinha o menino 4 ou 5 anos de idade.
10. Em datas não concretamente apuradas, e por um número de vezes indeterminado, o arguido puxou as orelhas com força ao filho EE, com dois anos de idade.
11. No dia 10 de Junho de 2022, estavam a viver em ..., o arguido atirou uma garrafa de iogurte contra o filho DD, tendo causado uma ferida no lábio do menor.
12. Nesse momento, a ofendida interveio em defesa do seu filho DD, tendo o suspeito desferido um murro no braço direito da esposa, BB, causando-lhe hematomas no cotovelo.
13. Dias depois, em 24.06.2022 o arguido, a esposa e os filhos, deixaram ... e regressaram a Portugal, voltando a viver na casa da família sita na ...
14. Dois dias após o seu regresso a Portugal, no dia 27 de junho de 2022, pelas 20h00, na residência comum em ..., o arguido dirigiu-se à ofendida, BB, e proferiu as seguintes expressões: “ÉS UMA PUTA, NÃO ÉS NADA, TU NÃO SABES DO QUE EU SOU CAPAZ”;
15. Nas mesmas circunstâncias o arguido dirigiu-se a cada um dos três filhos menores e disse-lhes, a cada um de cada vez, “ÉS UMA MERDA, ÉS UM ESTÚPIDO, ÉS UM ANIMAL”, ofendendo as três crianças com estes insultos.
16. Nesse dia 27 de Junho de 2022, a ofendida abandonou o lar com os seus três filhos, permanecendo o arguido naquela casa.
17. No dia 3 de Julho de 2022, entre as 14h00 a as 18h00 o arguido realizou 40 chamadas telefónicas para o telemóvel da ofendida BB.
18. No dia 5 de Julho de 2022, às 21:30, o arguido deslocou-se à actual residência da ofendida, na ..., onde vive com os filhos e os pais, e tocou insistentemente à campainha, incomodando BB.
19. No dia 7 de Julho de 2022, às 20:30, o arguido deslocou-se novamente à residência da ofendida, tocou insistentemente à campainha, e vendo que não lhe abriam a porta, tocou repetidamente a buzina do carro, enquanto gritava na rua os nomes dos filhos, incomodando e atormentando BB e as crianças.
20. No dia 9 de julho de 2022, pelas 10h30, no ..., local combinado para a ofendida entregar os filhos ao arguido, este exigiu que BB lhe entregasse os filhos no local onde ele estava.
21. Nesse dia gerou-se uma discussão tendo o arguido dito à ofendida BB “ISTO NÃO VAI FICAR ASSIM, NÃO SABEM DO QUE SOU CAPAZ”.
22. De seguida, o arguido agarrou nos braços dos três filhos com força, que estavam assustados, não tendo concretizado qualquer ofensa corporal porque terceiros intervieram e impediram que o arguido levasse as crianças à força.
23. Ao praticar os factos supra descritos, muitas vezes dentro de casa da vítima em frente aos filhos menores, o arguido agiu com o propósito conseguido de molestar a saúde física e psíquica da sua mulher, mãe dos seus filhos, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu realizar.
24. Ao praticar os factos supra descritos, o arguido agiu com o propósito conseguido de molestar a saúde física e psíquica dos seus filhos pequenos, então com 7, 6 e 2 anos de idade, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu realizar.
25. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Factos estes integradores do cometimento, pelo arguido, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de:
- um crime de violência doméstica na pessoa da esposa BB, previsto e punível (p.p.) pelo artigo 152º, n.º 1, al. a), n.º 2, al. a), n.º 4 e n.º 5, do Código Penal (doravante CP),
- três crimes de violência doméstica na pessoa de cada um dos seus três filhos menores CC, DD e EE, p.p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. d), n.º 2, al. a), n.º 4 e n.º 5 do CP.
Prova:
- a indicada na acusação pública, para a qual remetemos;
- a indicada nas nas als. a) e b) do requerimento probatório do RAI, para onde remetemos;
- os documentos juntos pela assistente: print´s de mensagens trocadas por WhatsApp,entre a assistente BB e KK e a carta (em word) dirigida ao arguido.
*
Sem custas.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 11 de Julho de 2024
(texto elaborado e revisto pela relatora, bem assim pelas demais senhoras Juízas Desembargadoras Adjuntas, sendo por todas assinado digitalmente)
CARLA CARECHO
PAULA CRISTINA BIZARRO
MICAELA PIRES RODRIGUES
_______________________________________________________

1. Por força das disposições conjugadas dos artigos 19º, n.º 1 e n.º 3 e 22º, n.º 2, todos do CPP, artigo 7º do CP, traduzindo-se os denunciados crimes de violência doméstica na prática de diversos comportamentos parciais, reiterados e repetidos do arguido, alguns deles localizados em país estrangeiro, mas cuja consumação terá ocorrido em território português (onde terá sido praticado o último acto de execução), é este Tribunal da Relação (bem assim o Tribunal de primeira instância - JIC de Cascais -) competente para apreciar a responsabilidade criminal do arguido pela prática de todos os denunciados factos, mesmo aqueles que terão sido perpetrados pelo arguido no estrangeiro, pois que não é aqui aplicável o disposto nos artigos 4º e 5º do CP, porquanto tais dispositivos legais prendem-se com a competência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria penal, ou seja, respeitam a situações nas quais está em causa a defesa dos interesses nacionais e nas quais é ineficaz o princípio da territorialidade para salvaguardar tais interesses. (neste sentido, veja-se Ac. Rel. Évora de 20.12.2018, Proc. n.º 828/15.7T9STR.E1, relator Juiz Desembargador João Amaro, www.dgsi.pt)
2. Dispõe este preceito legal: “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.”
3. A reforçar este nosso entendimento, tenha-se presente que em sede de julgamento podem ainda ser produzidas outras provas para além das coligidas nas duas fases antecedentes, não só ao abrigo do artigo 340º do CPP, como também com a apresentação, pelos arguidos, das respectivas contestações ao abrigo do artigo 311º-B do CPP, pelo que “dar por encerrado” o capítulo da produção de prova na fase de instrução, é esvaziar de conteúdo tais preceitos legais, bem assim a finalidade do julgamento onde os vários sujeitos processuais exercitam em pleno o direito ao contraditório.
4. “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
5. Cfr. Ac. TC n.º 439/02, consultável em tribunalconstitucional.pt., no qual se decidiu: “Pelos fundamentos anteriores, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucionais os artigos 286º, nº 1, 298º, e 308º, nº 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32º, nº 2, da Constituição, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de um juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um acto manifestamente inútil.”
6. Dispõe o artigo 518º do CPC: “1 - Quando se verificar impossibilidade ou grave dificuldade de comparência no tribunal, pode o juiz autorizar, havendo acordo das partes, que o depoimento da testemunha seja prestado através de documento escrito, datado e assinado pelo seu autor, do qual conste relação discriminada dos factos a que assistiu ou que verificou pessoalmente e das razões de ciência invocadas. 2 - Incorre nas penas cominadas para o crime de falsidade de testemunho quem, pela forma constante do número anterior, prestar depoimento falso.”
7. Consta do Auto de Inquirição da Testemunha GG, de 22.09.2022, de fls. 92 dos autos ter sido o mesmo advertido nos termos e para os efeitos do artigo 134º, n.º 1, al. a) do CPP e ainda: “No hiato temporal indicado, compareceu, perante mim, a testemunha GG, devidamente identificado nos presentes autos. Neste ato, o depoente foi elucidado da possibilidade de fazer-se acompanhar por defensor, tendo prescindido desse facto. Foi ainda advertido da obrigatoriedade de responder com verdade às perguntas formuladas, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal. Da matéria factual constante dos autos disse: 1. Que se apresenta nos autos como pai da ofendida. 2. Que redigiu um texto com as suas declarações, relacionadas com os factos em investigação, pretendendo juntá-las aos presentes autos e reportá-las para a presente diligência, conforme documento de 4 fls. Que junto se envia. 3. Que relativamente aos factos em questão, nada mais tem a acrescentar, sendo que lido o presente auto, achou-o conforme, retifica e vai assinar. (…)”
8. É a proibição da prática de actos inúteis que subjaz, v.g., à norma do artigo 420º, n.º 1, al. a) do CPP, onde se prevê a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência.