Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
416/22.1KRSXL.L1-5
Relator: ANA LÚCIA GORDINHO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - O crime de violência doméstica geralmente é consumado através de ações que integram outros tipos de crime (sendo os mais habituais a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou até o sequestro), sendo necessário estabelecer quando é que estes deixam de ser autonomizáveis e passam a integrar o crime de violência doméstica.
II - A Jurisprudência tem entendido que ocorre o crime em análise quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar ou especial desconsideração pela vítima.
III - Não se nos afigura que o crime de violência doméstica exija a ocorrência de uma relação de subjugação, de domínio ou superioridade do agressor para com a vítima. Com efeito, basta atentarmos em condutas reiteradas de maus tratos físicos e psicológicos que não integrariam o crime de violência domésticas apenas porque a vítima não se deixou submeter aos desejos do agressor, fazendo-lhe frente ou reagindo às suas provocações.
IV - A vítima de violência doméstica não tem de suportar os maus tratos ficando em silêncio ou abstendo-se de qualquer ato mais agressivo, o facto de empurrar quando é empurrada ou de responder com agressões verbais depois de ser agredida verbalmente também não afasta a possibilidade de o agressor ser condenado pela prática do crime de violência doméstica.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
No processo comum singular 416/22.1KRSXL.L1, que corre termos no Juízo Local Criminal do Seixal, J2, foi proferida sentença, datada de 20.05.2024 (ref. Citius 435689210), nos termos da qual foi decidido, entre o demais, condenar AA pela prática de um crime de violência doméstica, pp pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, numa pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo de 3 (três) anos, ficando tal suspensão condicionada a regime de prova, assente em plano individual de readaptação a elaborar pela Direção-Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais, do qual fará parte integrante a frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica, nos termos dos artigos 50.ºe 53.º do Código Penal, em conjugação com o artigo 34.º-B da Lei n.º 112/2009, de 16/09.
Foi, ainda, o arguido condenado, ao abrigo do disposto nos artigos 21.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16/09 e 82.º-A do Código de Processo Penal, a pagar a BB o montante indemnizatório de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros) por danos não patrimoniais por esta sofridos, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da leitura da sentença.
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Inconformado com esta decisão, veio o AA interpor o presente recurso, apresentado motivações e concluindo do seguinte modo (transcrição):
“I.
Afigura-se-nos que os factos provados não preenchem o tipo legal de crime de violência doméstica de que vinha acusado, pelo que o arguido deveria ter sido absolvido da prática do referido crime.
II.
O Tribunal ad quo atribuiu uma equívoca qualificação jurídica dos factos dados como provados;
III.
As condutas do arguido não são próprias, suficientes e bastantes para o preenchimento do tipo legal de violência doméstica;
IV.
Dos factos provados constata-se, apenas, a prática do crime de ofensas à integridade física por estarem preenchidos os elementos do tipo (objectivo e subjectivo) ao contrário do que se verifica quanto aos elementos do tipo do crime de violência doméstica.
V.
As agressões são maioritariamente recíprocas (seja de que tipo forem), não sendo atingido o bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, não tendo ocorrido uma relação de domínio ou subjugação e submissão, diminuindo a dignidade da pessoa humana, de um agente sobre o outro.
VI.
A relação entre a assistente e o arguido, tal como resulta da globalidade da matéria de facto dada como provada, é marcada por discussões, com agressões verbais mútuas.
VII.
Denota-se um afrouxamento, por ambos, dos especiais vínculos de afecto, respeito e união que caracterizam uma relação conjugal, não se pode considerar como integrando um crime de violência doméstica, os empurrões e as ofensas verbais proferidas mutuamente, no decurso dessas discussões. Discussões, essas que foram sempre incitadas pela assistente.
VIII.
O crime de violência doméstica não pode ser executado em reciprocidade, quando estamos perante actos desrespeitosos e agressivos perpetrados de forma recíproca, na mesma ocasião e com idêntica gravidade, não sendo assim atingido o bem jurídico tutelado pela norma incriminatória. É o entendimento vertido no Ac. RP de 09-05-2018 (proc. n.º 40/17, www.jusnet.pt)
IX.
Atentas as razões supra referidas, cometeu o Tribunal a quo um erro de julgamento da matéria de facto, violando o disposto no artigo 32.º n.º 2 da CRP e no art. 127.º do Código de Processo Penal.
X.
Ao condenar o arguido pela prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, al. a) do Código Penal, violou o tribunal a quo o referido dispositivo legal, por deficiente interpretação e aplicação do mesmo.
XI.
Para qualificar a conduta do arguido aos factos provados tem de resultar a demonstração de um estado de degradação ou abjecção da dignidade humana.
XII.
O que nunca se apurou da conduta do arguido, aquando das discussões que resultavam em agressões mútuas. Seria necessário que a assistente fosse tratada pelo arguido de uma forma desumana e cruel, resultante da insensibilidade do arguido para com a assistente e que dai adviesse desprezo ou desconsideração, ou determinando uma vida de medo, de tensão e de subjugação insuportáveis.
XIII.
O que não resulta da prova produzida, apenas da motivação convicta do tribunal ad quo, para justificar a subsunção da conduta do arguido ao crime de violência doméstica e a condenação na pena aplicada.
XIX.
No caso dos autos, indagada a factualidade provada, verifica-se que o arguido agiu sem qualquer especificidade susceptível de configurar uma especial censurabilidade ou perversidade.
XX.
Forçosamente ter-se-á que concluir que não obstante a censurabilidade da conduta do arguido, a mesma não atinge o patamar de gravidade previsto e punido pelo tipo legal de crime pelo qual o arguido foi condenado, não se vislumbrando nos factos provados o ascendente moral e o domínio do agressor sobre a vítima que este tipo legal de crime pressupõe e pune.
XXI.
No caso dos presentes autos, não estamos perante um crime de violência doméstica, mas sim três crimes de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º do Código Penal.
XXII.
E deveria ter sido esta a qualificação jurídica quanto aos factos praticados pelo arguido.
XXIII.
Por não se verificar o preenchimento do elemento subjectivo do crime de violência doméstica, deverá a conduta do arguido ser subsumida à previsão legal do crime de ofensas à integridade física.
XXIV.
O arguido mostra-se profissionalmente integrado.
XXV.
O arguido não tem antecedentes criminais.
XXVI.
Entendendo o Douto Tribunal Ad quem manter a qualificação jurídica do crime de violência doméstica e sendo o arguido condenado pela prática do mesmo, entendemos que tem necessariamente de haver algum equilíbrio na modelação da pena, e o que se constata é que tal não resulta da douto sentença que de forma absolutamente empolada atribui gravidade extrema aos factos praticados pelo arguido e o condena na exagerada pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 (três) anos, ficando tal suspensão condicionada a regime de prova, assente em plano individual de readaptação a elaborar pela Direcção Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais, do qual fará parte integrante a frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica, nos termos dos artigos 50.ºe 53.º do Código Penal, em conjugação com o artigo 34.º-B da Lei n.º 112/2009, de 16/09;
XXVII.
Não podemos concordar com a sentença e, é nosso entendimento que, em caso de condenação em pena de prisão, é de aplicar uma pena inferior àquela que foi aplicada pelo tribunal a quo, quanto à pena aplicada.
XXVIII.
Dever-se-á atender a que, o arguido, ora recorrente, tem 63 anos de idade, está familiar, social e profissionalmente integrado.
XXIX.
Por outro lado, o grau da ilicitude e da culpa nos presentes autos é reduzido e as necessidades de prevenção geral e especial não são, in casu, de sobremaneira gravosas.
XXX.
Pelo que, em caso de condenação, deverá ser de aplicar no que tange ao crime de violência doméstica uma pena inferior àquela que foi aplicada, nunca superior a um ano de prisão e suspensa na sua execução por igual período sem necessidade de sujeição a plano individual de readaptação, que se mostra também exagerado e desadequado à gravidade dos factos, sendo o arguido primário e atendendo ao grau de ilicitude e da culpa.
XXXI.
Deverá, assim, ser revogada a decisão recorrida e em consequência ser o arguido absolvido da prática do crime de violência doméstica de que vinha acusado. Por não se verificar o preenchimento do elemento subjectivo do crime de violência doméstica, deverá a conduta do arguido ser subsumida à previsão legal do crime de ofensas à integridade física.
Termos em que, atendendo ao disposto no artigo 410.º do Código do Processo Penal, deve o presente recurso obter provimento e a parte da sentença desfavorável, no dispositivo em que condena o arguido num crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e 2, do Código Penal, numa pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 (três) anos, ficando tal suspensão condicionada a regime de prova, assente em plano individual de readaptação a elaborar pela Direcção Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais, do qual fará parte integrante a frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica, nos termos dos artigos 50.ºe 53.º do Código Penal, em conjugação com o artigo 34.º-B da Lei n.º 112/2009, de 16/09 e ao abrigo do disposto nos artigos 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16/09 e 82.ºA do Código de Processo Penal, condeno o arguido a pagar a BB o montante indemnizatório de € 3500,00 (três mil e quinhentos euros) por danos não patrimoniais por esta sofridos, actualizado na presente data, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, a contar de hoje e até integral e efectivo pagamento, deverá o recorrente ser absolvido do crime de violência domestica bem como no pagamento do valor indemnizatório arbitrado à assistente e alterada a qualificação jurídica dos factos pelo qual o arguido foi condenado, só assim se fará
JUSTIÇA.”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo (Ref. Citius 436992589, de 05.07.2024).
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O Ministério Publico respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, apresentando as seguintes conclusões (transcrição – ref. Citius 40099489, de 01.08.2024):
1 - O Tribunal a quo valorou corretamente a prova produzida, fundamentando a formação da sua convicção e os motivos que levaram a considerar os factos provados (e os factos não provados), verificando-se uma correta e irrepreensível aplicação dos critérios legais estabelecidos no artigo 127º do Código de Processo Penal;
2 - Os factos imputados ao arguido consubstanciam a prática de um crime de violência doméstica, porquanto ficou provado que o comportamento do arguido assumiu uma dimensão manifestamente ofensiva da dignidade pessoal da assistente.
3 - Ficou provada gravidade dos factos suficiente para o Tribunal concluir pela existência um tratamento com contornos cruéis infligido pelo arguido à ofendida.
4 - Está patente, pois, uma atuação patentemente atentatória da dignidade e integridade pessoal da ofendida que se possa configurar como integrante do tipo objetivo e subjetivo previsto no artigo 152.º, nº1, alínea a) e n.º 2, alínea a) do Código Penal e não o tipo do artigo 143.°, n.º 1, do Código Penal, como sustenta o recorrente.
5 - Assim, o enquadramento jurídico-penal, tendo em conta os factos dados como provados, mostra-se correto e a pena aplicada revela-se bem doseada, atendendo ao ilícito criminal em causa, aos bens jurídicos tutelados, à personalidade do arguido e seus antecedentes, e às necessidades de prevenção, geral e especial, que o caso reclama.
6 - Posto isto, e porque nenhum reparo nos merece a Douta Sentença recorrida, ao condenar o arguido nos moldes em que o fez, pugnamos pela sua manutenção.
Nestes termos e noutros que Vossas Excelências mui doutamente saberão suprir, deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos”.
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Remetido o processo a este Tribunal, o Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer (parcialmente transcrito - ref. Citius 21995279, de 30.08.2024):
“(…) Contrariamente ao que alega o Recorrente, a sentença proferida não nos merece qualquer censura.
Com efeito, a Mmª Juíza fez correta apreciação da matéria de facto, não se vê que tenha havido qualquer vício de erro na aplicação do direito e foram aplicados os preceitos legais adequados.
Mantem-se tudo quanto foi dito pela Exmª. Magistrada do Ministério Público na primeira instância, aderindo, pois, às suas doutas contra-alegações, que merecem a nossa inteira concordância e para as quais remetemos.
Termos em que somos de parecer que o recurso não merece provimento, devendo a sentença recorrida ser mantida na sua íntegra”.
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Notificado do parecer do Ministério Público junto deste Tribunal, o recorrente nada veio dizer.
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Colhidos os vistos, o processo foi presente a conferência, por o recurso dever ser aí decidido, de harmonia com o disposto no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Penal.
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II. Questões a decidir:

Como é pacificamente entendido tanto na doutrina como na jusrisprudência, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
Atentas as conclusões apresentadas, no caso em análise são as seguintes as questões a decidir por ordem de procedência lógica:
• Se o tribunal a quo fez uma correta qualificação jurídica dos factos.
• Se a pena imposta é adequada.
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III. Com vista à apreciação das questões suscitada, importa ter presente o seguinte teor da sentença proferida (ref. Citius 1504882276, de 16.04.2024 -transcrição):
“Factos Provados:
1) O arguido e BB casaram em .../.../1987, estando divorciados desde .../.../2022;
2) Após terem casado, residiram primeiro no ..., por cerca de 10 anos, após o que foram morar para habitação sita na ..., passando depois a residir, desde finais de 2011, na ...
3) Na constância do casamento nasceram os filhos CC em .../.../1991 e DD em .../.../1994;
4) Frequentemente, o arguido chegava a casa, já de noite, embriagado, dando origem a discussões onde era verbal e fisicamente agressivo para a esposa;
5) Mais concretamente, a partir de data não concretamente apurada dos primeiros 10 anos de casamento, quando o casal ainda morava no ..., o arguido começou a chegar por diversas vezes a casa pela meia-noite, 2, 3 horas da madrugada, actuação que se foi tornando mais frequente, chegando a suceder mais do que uma vez por semana e vindo mesmo sob o efeito de bebidas alcoólicas;
6) Perante estes actos do arguido, era BB quem abordava então o arguido, questionando-o porque chegava àquelas horas, ao que o arguido inicialmente se limitava a responder-lhe que não tinha feito nada de mal, que tinha ido beber uns copos, após o que se deitava e adormecia;
7) Quando o casal estava já a residir na casa sita na ..., em 1997, 1998, tendo o filho do casal uns 3, 4 anos, quando BB o interpelou por chegar tarde a casa e sob o efeito de bebidas alcoólicas, o arguido empurrou-a pela primeira vez e aquela retribuiu, empurrando-o também;
8) A partir daí, em diversas situações em que BB o questionava pelas horas de chegada a casa (e sendo sempre ela quem tinha a iniciativa de abordar o arguido, pois se ela nada lhe dissesse, ele também nada fazia e ia dormir) o arguido empurrava BB e ela empurrava-o de volta, chegando ele também a dar-lhe chapadas nos braços e nos ombros;
9) Também quando já moravam na ..., com uma frequência na ordem de duas vezes por mês, quando BB, ao almoçar com o arguido em casa, antevia que o mesmo não ia trabalhar à tarde e ia sair sozinho, ela pedia-lhe para falarem até das empresas que tinham e o arguido, porque não gostava de ser confrontado, ou levantava-se da mesa e ia-se embora, ou dizia-lhe em tom de voz alto, aos gritos, que ela “não valia nada, era uma merda, estava passadinha dos cornos, que era maluca, burra, parva”;
10) Também BB chegou a apodar o arguido de “porco”, “bêbado”, “egoísta” e “mentiroso” por diversas vezes, quando se desentendiam;
11) Sempre que ocorriam discussões, o arguido mandava a esposa embora de casa através da expressão ‘quem não está bem, muda-se!’;
12) Em dia não apurado de 1998/1999, quando a filha tinha 7 anos, o arguido chegou a casa embriagado e, quando confrontado pela esposa com a situação, dirigiu-se a ela, apertou-lhe o pescoço e só terminou o referido comportamento quando a criança começou a gritar;
13) Quando os filhos tinham 9 e 12 anos, respectivamente, e residiam todos na ..., o arguido chegou a casa, pelas 23h00, alcoolizado, quando BB o confrontou acerca da hora de chegar a casa, dando azo a uma discussão, o arguido empurrou-a e ela empurrou-a de volta, ao que, a seguir, o arguido lhe deu outro empurrão e imobilizou-a em cima do sofá, colocando-lhe uma mão no pescoço ao ponto de lhe tirar o ar;
14) Quando a largou, BB, que não tinha telemóvel, disse que ia chamar a polícia, o arguido arrancou o fio do telefone fixo para a impedir de contactar com terceiros, motivo que levou a ofendida a sair de casa e a dirigir-se até ao Centro de Saúde onde disse ao médico o que tinha acontecido, mas que não queria apresentar queixa;
15) Em virtude do comportamento do arguido, BB ficou com marcas vermelhas no pescoço, com os dedos do mesmo marcados, as quais depois ficaram arroxeadas e persistiram cerca de uma semana;
16) Em Maio de 2011, o arguido numa discussão com a ofendida voltou a dizer-lhe “quem não está bem, muda-se!’ o que a determinou a sair de casa e a ir morar com a filha que já se tinha autonomizado, ficando a residir com esta até Dezembro de 2011, data em que reatou o casamento e passou a residir novamente com o arguido e o filho na casa sita na ...;
17) Contudo, o arguido continuou com os mesmos comportamentos de chegar tarde a casa, até na passagem de Ano de 2012 para 2013, em que o casal tinha combinado sair naquela noite pelas 19 horas e o arguido somente apareceu em casa pelas 22 horas, tal como as interpelações da assistente e as discussões, com as já supra aludidas respostas do arguido por vezes e dela;
18) Em meados de 2014, 2015, e apercebendo-se BB que o arguido mantinha por estes anos um relacionamento amoroso com outra mulher, uma vez quando estava com o arguido à mesa ao almoço, disse-lhe que ficasse para conversarem, ao que o arguido, desagradado, lhe desferiu um empurrão que a fez cair e ficar magoada na coxa direita;
19) Quando já residiam há 2 ou 3 anos na casa da ..., no início de 2015, o arguido chegou e foi confrontado uma vez mais por BB pelo facto de ter chegado tarde e embriagado, tal como lhe disse saber que ele mantinha uma relação com outra mulher, ao que ele lhe respondeu que não era verdade, que ela estava maluca, que ele fazia o que queria e ninguém tinha nada a ver com isso;
20) Na altura, o filho do casal, que estava em casa, sem dizer ao pai, tirou do porta-chaves do mesmo as chaves da porta de casa, sem que ele percebesse quando saiu, impedindo-o de entrar;
21) Nessa noite, a assistente resolveu sair para ir à missa, por volta das 21 horas, encontrando-se com o arguido no mesmo local, sem que houvesse troca de palavras. Quando regressou a casa, pela meia-noite, estando já dentro do logradouro do imóvel da casa de morada de família e a colocar a chave na porta para entrar, BB foi surpreendida pelo arguido, o qual, por querer entrar em casa com ela, depois de se ter apercebido que não tinha a chave, a empurrou nessa altura, colocando-lhe as mãos nos ombros e levando a que ela embatesse com a cabeça na porta, que então já não abriu;
22) BB, porque não queria que o arguido entrasse em casa, e estando os filhos de ambos no interior, foi para dentro do carro do arguido que estava dentro do logradouro do imóvel, sentando-se na parte de trás do mesmo e o arguido também para ali entrou, permanecendo os mesmos dentro dessa viatura até às 8 da manhã, sendo que, durante esse tempo, ela, por vezes, saia do carro e dirigia-se à porta de casa e o arguido ia atrás para ver se conseguia ir para a habitação, mas sem a voltar a empurrar, ao que ela logo voltava para a viatura e ele também;
23) Nesse espaço de tempo, o arguido chegou a dizer a BB que queria entrar em casa, ao que ela lhe respondeu que ele não tinha esse direito, porque se estava a portar como entendia, mas a maior parte dessas horas nem falaram;
24) Quando de manhã tentou entrar em casa, BB foi novamente surpreendida pelo arguido que, aquando da entrada dela, empurrou a porta e forçou a entrada, tendo sido impedido pelos filhos, que o empurraram e puxaram, com quem acabou por entrar em conflito, empurrando o filho também;
25) Depois da situação ter acalmado, a filha do arguido colocou roupas do mesmo dentro de um saco e ele foi-se embora por um dia ou dois;
26) Do empurrão supra mencionado que o arguido desferiu a BB e levando a que a mesma batesse com a cabeça na porta, a mesma não ficou com nenhuma lesão;
27) A partir dessa data, o arguido passou a entrar em casa pelas traseiras, deixando ambos de viver enquanto casal, não dormindo no mesmo quarto e falando somente quando era indispensável, mas coabitando no mesmo espaço e continuando BB a tratar da casa e a fazer as refeições;
28) No início de 2021, por BB ainda ter esperança de que o casamento continuasse, voltaram a fazer vida em comum e a fazerem ambos terapia de casal;
29) A 14/03/2021, o arguido saiu durante a tarde, chegou a casa pelas 20 horas e pelas 21 horas e 30 minutos, disse que ia sair novamente para ver futebol, dizendo que já vinha;
30) O arguido chegou a casa, pela 1H15, alcoolizado, ao que a ofendida, no quarto, se sentou na cama e quando ele ali entrou, disse-lhe “que seja a última vez que entras em casa a uma hora destas e nesse estado”, ao que ele lhe perguntou o que é que tinha a ver com isso, tal como lhe disse que estava “armada em parva” e se calasse;
31) Quando BB se deitou na cama, o arguido veio para cima dela, imobilizou-a e apertou-lhe com força o pescoço, a qual se limitava a tentar tirar-lhe as mãos dessa parte do corpo e a empurrá-lo, após o que ele a empurrou contra o chão. Nesse momento, o arguido começou a desferir-lhe pontapés no ‘rabo’ e retirou o cinto das calças, segurando-o nas mãos;
32) Ouvindo a discussão, o filho DD abeirou-se do casal e vendo que o pai se preparava para dar cintadas na mãe, empurrou-o, terminando a contenda;
33) Em virtude dos actos do arguido, BB ficou marcas vermelhas no pescoço, que depois ficaram arroxeadas;
34) Desde então o casal passou a dormir em quartos separados e quando interpelado no sentido se queria o divórcio ‘amigável ou litigioso’ o arguido respondia “litigioso!”, o que acabou por culminar numa Acção de Divórcio sem consentimento do outro cônjuge;
35) Quando o casal coabitou na ..., entre Dezembro de 2011 e 14-3-2021, as vezes em que o arguido agrediu fisicamente BB foram as supra elencadas, não havendo outras situações de confronto físico;
36) Em Abril de 2022, depois do divórcio e de ter sido atribuído o uso da casa de morada de família a BB, esta disse ao arguido que ele tinha que sair lá de casa, mas ele não o queria fazer, ao que ela o avisou de que ia mudar a fechadura e quando o fez, enviou-lhe uma mensagem a dar conhecimento;
37) Todavia, o arguido, no final de Abril de 2022 foi tocar à campainha da casa de morada de família e como BB não abriu, ele telefonou-lhe dizendo que “rebentava com aquilo tudo”, ao que a mesma chamou as autoridades policiais, tendo sido na semana seguinte que lhe entregou os bens pessoais dele que ainda permaneciam na habitação;
38) Ao agir do modo supra descrito, durante todo o período de duração do casamento e mesmo após a separação emocional do casal, o arguido quis maltratar física e psicologicamente a esposa e mãe dos filhos, sempre dentro do domicilio comum, provocando-lhe dor e receios de morrer, menosprezando-a, amesquinhando-a, inferiorizando-a e atingindo a sua honra e consideração de forma tal que a atingiu de forma vincada na sua dignidade enquanto pessoa;
39) O arguido não se coibiu nunca de assim agir, o que fez de forma reiterada e consolidada pelo tempo, actuando com supremacia de poder e autoridade e pretendendo deixar claro que ele é que mandava e que não admitia que o confrontassem, principalmente se estivesse embriagado;
40) Nunca o arguido respeitou a esposa e ofendida, actuando sempre de modo livre, deliberado e consciente de todos os seus actos, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida pela lei penal;
41) Em virtude dos actos do arguido, BB sentiu-se desiludida, espezinhada e humilhada, chorando muitas vezes, tal como tinha medo do arguido, mormente que o mesmo lhe batesse e insultasse até depois de ele ter saído definitivamente de casa.
Mais se provou que:
42) Na actualidade, a assistente e o arguido, que vivem desde Abril de 2022 em casas separadas, estão na presença um do outro diariamente, sendo que, numa semana a assistente trabalha num estabelecimento onde também fica a … do mesmo e estando presente uma funcionária e, na outra semana, está numa outra loja sita na ..., só indo ao mesmo espaço onde o arguido trabalha no final do dia, lidando um com o outro de forma distante, ainda que haja questões por resolver e não sendo reportados pela assistente outras situações de conflito com o mesmo desde Abril de 2022;
43) A assistente trabalha como …, auferindo dessa actividade, em média, € 1.000,00 mensais;
4) A assistente vive com o filho, que é estudante e sendo ela quem o sustenta, em casa paga, e não suporta o pagamento de empréstimos;
45) O arguido tem dois veículos automóveis registados em seu nome, sendo um deles um veículo da marca ..., modelo ..., registado a seu favor desde 17-9-2015, e um..., modelo..., registado a seu favor desde 19-4-2023;
46) O arguido explora uma …, tendo remunerações processadas junto do Instituto de Segurança Social, I.P., tendo a última delas o valor de € 900,00 em Março de 2024;
47) O arguido não tem antecedentes criminais”.
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IV. Do Mérito do Recurso
IVa) Da qualificação jurídica dos factos.
Sustenta o recorrente que os factos dados como provados não integram o tipo legal do crime de violência doméstica de que vinha acusado, pelo que devia ter sido absolvido.
Por um lado, defende que as agressões são maioritariamente recíprocas, não sendo atingido o bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, não tendo ocorrido uma relação de domínio ou subjugação e submissão, diminuindo a dignidade da pessoa humana, de um agente sobre o outro. Defende, por outro lado, que os factos descritos apenas se podem subsumir a três crimes de ofensa à integridade física simples, pp. no artigo 143.º do Código Penal.
Vejamos.
A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011 (ratificada por Portugal em 2013), no seu artigo 3.º, alínea b) estabelece que, para os respetivos efeitos, «Violência doméstica» abrange todos os atos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima.
Nos termos do artigo 152.º do Código Penal, pelo qual o recorrente foi condenado:
“1- Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a. Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a. Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;
(…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
O crime de violência doméstica foi introduzido no Código Penal pela Lei 59/2007, de 04.09, agora a par do crime de maus tratos (artigo 152.º - A do Código Penal).
A crescente proliferação dos fenómenos de violência ocorridos no seio familiar, suscetíveis de acarretarem consigo sérias consequências para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem-estar e dignidade pessoal da vítima, tem vindo, ao longo dos anos, a suscitar uma cada vez maior preocupação e consciencialização ético social.
Assim, o tipo legal foi criado na sequência da consciencialização de que no seio da família existem frequentemente situações violentas, ao arrepio dos valores inerentes a tal instituição num Estado de Direito (cf. artigos 13.º e 67.º da Constituição da República Portuguesa). Nas palavras de Taipa de Carvalho, a incriminação destas condutas foi o “resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família, a escola, e a fábrica não mais podiam constituir feudos sagrados, onde o Direito Penal se tinha de abster de intervir2.
Tais preocupações suscitaram, inclusivamente, sucessivas alterações legislativas ao nível deste tipo de crime. Repare-se que, ao contrário do que acontecia na versão originária do Código Penal de 1982 (artigo 153.º), deixou de ser elemento constitutivo deste tipo de crime “a malvadez ou egoísmo”. Ou seja, com a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, deixou de se exigir que o agente atuasse revelando maldade ou egoísmo o que significa, na prática, um alargamento das condutas suscetíveis de serem abrangidas por este tipo de ilícito.
Para além disso, fruto da redação introduzida pela Lei n.º 7/2000, de 27 de maio, este crime passou a assumir natureza pública.
Acrescente-se, também, que a alteração decorrente da Lei n.º 59/2007 de 15 de setembro, retificada através da Declaração de Retificação n.º 102/2007, de 31 de outubro, ao afastar expressamente a necessidade de reiteração (muito embora a doutrina maioritária considerasse já que um único ato, pela sua gravidade, podia ser suscetível de preencher este tipo de crime) alargou a abrangência do crime de maus tratos, agora designado por violência doméstica.
No crime de violência doméstica, tal como acontecida no tipo legal que o antecedeu, ou seja, o crime de maus tratos, o bem jurídico protegido é a saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física psíquica e mental, bem jurídico este que pode ser afetado por toda a multiplicidade de comportamentos que afetem a dignidade pessoal do cônjuge”3.
Não se protege a comunidade conjugal, mas a proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana.4
Como se escreveu no Ac.do STJ de 05.11.20085o bem jurídico protegido nesta incriminação, tendo em conta até a sua inserção sistemática no Título I do CP (“Crimes contra as pessoas”), é a pessoa do cônjuge (ou equiparado), a sua integridade física, a sua saúde e a sua dignidade, enquanto pessoa humana, e não a instituição familiar. Na verdade, da descrição típica não consta qualquer referência que possa induzir a preocupação do legislador com a família, ou o ambiente familiar. É certo que a punição do cônjuge infrator poderá contribuir para a pacificação familiar, mas também poderá suceder o oposto. Em qualquer caso, serão efeitos reflexos ou laterais da tutela penal, pois é óbvio que a preocupação do legislador, neste preceito, é o cônjuge-vítima, a sua saúde física ou psíquica, a sua dignidade como pessoa. É um crime contra as pessoas, não um crime contra a família”.
Ainda sobre o bem jurídico tutelado afirma Plácido Conde Fernandes que não se vê “razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização direta da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efetivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos6.
A violência doméstica pode abranger todas as violações de carácter físico (empurrões, beliscões, pontapés, espancamento, murros, estrangulamento, queimaduras, agressão com objetos, esfaqueamentos, uso de água a ferver, ácido, fogo, etc.) e sexual, mas também a violência psicológica e mental, que pode consistir em agressões verbais repetidas, perseguição, clausura e privação de recursos físicos, financeiros e pessoais, controlo e limitação de contactos. Mas, nem todas as ofensas à integridade física, à honra e consideração ou à liberdade de determinação de outrem, constituem um crime de violência doméstica, apenas pelo facto de ocorrerem no seio de uma relação conjugal ou equiparada.
Já sabemos que este crime geralmente é consumado através de ações que integram outros tipos de crime (sendo os mais habituais a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou até o sequestro), sendo necessário estabelecer quando é que estes deixam de ser autonomizáveis e passam a integrar o crime de violência doméstica.
A Jurisprudência tem entendido que ocorre o crime em análise quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar ou especial desconsideração pela vítima.
Como se escreve no Acórdão da RL de 21.03.20237importa, assim, analisar e caracterizar o quadro global da agressão de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, o que por si mesmo, constitui, nas palavras de Nuno Brandão, «um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima», e impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.
O que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é suscetível de se classificar como “maus tratos”.
(…) Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele”.
Podemos, a este propósito, ler no Ac. RP de 28.09.20118, “No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima”.
Defende o recorrente que o crime violência doméstica exige sempre a ocorrência de uma relação subjugação do agressor sobre a vítima. Ora, não se nos afigura que o crime em causa exija a ocorrência deste tipo de relação de subjugação, de domínio ou superioridade do agressor para com a vítima. Com efeito, basta atentarmos em condutas reiteradas de maus tratos físicos e psicológicos que não integrariam o crime de violência domésticas apenas porque a vítima não se deixou submeter aos desejos do agressor, fazendo-lhe frente ou reagindo às provocações.
Como se escreve no Ac. RC de 22.09.20219 “a exigência da verificação de uma relação de domínio por parte do autor do crime deixaria de fora múltiplas situações que em bom rigor deveriam considerar-se abrangidas pela norma. A título de exemplo, suponha-se que no âmbito do relacionamento de um casal se criou uma acentuada relação de dependência por parte de um dos cônjuges relativamente ao outro, com manifestações evidentes em diversas situações da vida do casal e que, no entanto, o cônjuge mais fragilizado sistematicamente destrata pública e provocatoriamente o outro elemento do casal, causando-lhe acentuado sofrimento psicológico. Numa tal situação, a exigência de uma relação de dependência como condição de preenchimento do tipo, levada ao extremo, obstaria à verificação do crime, o que evidencia o desajustamento da exigência desse elemento que, na verdade, não tem apoio na letra do tipo legal de crime, ainda que porventura o tenha no seu espírito e que esteja presente, do lado do agente do crime, na esmagadora maioria das situações que chegam à barra dos tribunais”. No mesmo sentido vide, entre outros, Ac. Relação de Coimbra de 13.09.202310 e Ac. RP de 12.06.202411.
Cremos, portanto, que não assiste razão ao recorrente quando alega a necessidade de ocorrência de uma relação de subordinação ou de domínio por parte do agente agressor para que ocorra o crime de violência doméstica, pp. no artigo 152.º do Código Penal.
Entende também o recorrente que havendo agressões verbais e físicas mútuas não poderia ter sido condenado pelo crime de violência doméstica. Todavia, esta é uma afirmação que não tem qualquer respaldo nos factos provados (que não foram postos em causa).
Analisemos com cuidados os factos provados.
Durante os primeiros 10 anos de casamento, o arguido chegava a casa, já de madrugada, embriagado, dando origem a discussões, quando a mulher lhe perguntava por que motivo chegava a casa àquelas horas. Esta situação foi ficando mais frequente. Mais tarde, em 1197 e 1998, quando BB o interpelou por chegar tarde a casa e sob o efeito de bebidas alcoólicas, o arguido empurrou-a pela primeira vez e aquela retribuiu, empurrando-o também. A partir daí, em diversas situações em que BB o questionava pelas horas de chegada a casa (e sendo sempre ela quem tinha a iniciativa de abordar o arguido, pois se ela nada lhe dissesse, ele também nada fazia e ia dormir) o arguido empurrava BB e ela empurrava-o de volta, chegando ele também a dar-lhe chapadas nos braços e nos ombros, sendo certo que relativamente a estas últimas situações não consta que a ofendida ripostasse.
Abrimos aqui um parêntesis para dizer que o fator que desencadeava as discussões entre o casal não era o facto de a assistente questionar o recorrente por que motivo chegava a casa tardiamente e ébrio (como parece defender o recorrente), o que efetivamente desencadeava as discussões era o facto de o arguido ter aquele tipo de comportamentos e achar que a sua mulher devia aceitar e não o questionar.
Regressando à análise dos factos, quando já moravam na ..., com uma frequência na ordem de duas vezes por mês, quando BB, ao almoçar com o arguido em casa, antevia que o mesmo não ia trabalhar à tarde e ia sair sozinho, ela pedia-lhe para falarem até das empresas que tinham e o arguido, porque não gostava de ser confrontado, ou levantava-se da mesa e ia-se embora, ou dizia-lhe em tom de voz alto, aos gritos, que ela “não valia nada, era uma merda”, “estava passadinha dos cornos”, que era “maluca”, “burra” e parva”.
É certo que também BB chegou a apodar o arguido de “porco”, “bêbado”, “egoísta” e “mentiroso” por diversas vezes, quando se desentendiam, mas convenhamos que era apenas em resposta a comportamentos do arguido. Não consta que alguma vez a ofendida tenha proferido tais expressões sem ser provocada.
Sempre que ocorriam discussões, o arguido mandava a assistente embora de casa através da expressão “quem não está bem, muda-se!”, sendo certo que não se apurou que, nestas circunstâncias, a assistente respondesse ou injuriasse o recorrente.
Em dia não apurado de 1998/1999, quando a filha de ambos tinha 7 anos, o arguido chegou a casa embriagado e, quando confrontado pela esposa com a situação, dirigiu-se a ela, apertou-lhe o pescoço e só terminou o referido comportamento quando a criança começou a gritar. Ora, em relação a esta situação altamente gravosa não há qualquer conduta imputada à ofendida, o arguido agressivamente apertou o pescoço à sua mulher apenas por esta lhe perguntar mais uma vez por que motivo chegava a casa tarde e embriagado. Não há comportamento provocador da ofendida nem resposta à agressão de que foi vítima.
Quando os filhos tinham 9 e 12 anos, o arguido chegou a casa, pelas 23h00, alcoolizado, quando BB o confrontou acerca da hora de chegar a casa, dando azo a uma discussão, o arguido empurrou-a e ela empurrou-a de volta, ao que, a seguir, o arguido lhe deu outro empurrão e imobilizou-a em cima do sofá, colocando-lhe uma mão no pescoço ao ponto de lhe tirar o ar. Se numa primeira fase a assistente ripostou, já na última situação a ofendida não reagiu, quase ficando sem ar com a conduta perpetrada pelo arguido.
Em meados de 2014, 2015, e apercebendo-se BB que o arguido mantinha por estes anos um relacionamento amoroso com outra mulher, uma vez, quando estava com o arguido à mesa ao almoço, disse-lhe que ficasse para conversarem, ao que o arguido, desagradado, lhe desferiu um empurrão que a fez cair e ficar magoada na coxa direita, sem que a ofendida, mais uma vez, tenha reagido ou ripostado.
No início de 2015, o arguido chegou a casa e foi confrontados por BB pelo facto de ter chegado tarde e embriagado, tal como lhe disse saber que ele mantinha uma relação com outra mulher, ao que ele lhe respondeu que não era verdade, que ela estava maluca, que ele fazia o que queria e ninguém tinha nada a ver com isso. Na altura, o filho do casal, que estava em casa, sem dizer ao pai, tirou do porta-chaves do mesmo as chaves da porta de casa, sem que ele percebesse quando saiu, impedindo-o de entrar. Nessa noite, o arguido, por querer entrar em casa com a assistente, depois de se ter apercebido que não tinha a chave, empurrou-a, colocando-lhe as mãos nos ombros e levando a que ela embatesse com a cabeça na porta. Também desta vez não houve qualquer reação da ofendida.
A 14/03/2021, o arguido saiu durante a tarde, chegou a casa pelas 20 horas e pelas 21 horas e 30 minutos, disse que ia sair novamente para ver futebol, dizendo que já vinha mas apenas chegou a casa, pela 1H15, alcoolizado, ao que a ofendida, no quarto, se sentou na cama e quando ele ali entrou, disse-lhe “que seja a última vez que entras em casa a uma hora destas e nesse estado”, ao que ele lhe perguntou o que é que tinha a ver com isso, tal como lhe disse que estava “armada em parva” e se calasse. Quando BB se deitou na cama, o arguido veio para cima dela, imobilizou-a e apertou-lhe com força o pescoço, a qual se limitava a tentar tirar-lhe as mãos dessa parte do corpo e a empurrá-lo, após o que ele a empurrou contra o chão. Nesse momento, o arguido começou a desferir-lhe pontapés no “rabo” e retirou o cinto das calças, segurando-o nas mãos. Ouvindo a discussão, o filho DD abeirou-se do casal e vendo que o pai se preparava para dar cintadas na mãe, empurrou-o, terminando a contenda. Mais uma vez, a ofendida não ripostou, apenas se tentou defender quando o arguido lhe apertou o pescoço.
Ora, estes factos não demonstram a reciprocidade nas agressões verbais e físicas entre o casal como alega o recorrente. As vezes que a assistente reagiu limitou-se a fazer o mesmo que o arguido lhe tinha feito: empurrou-o ou chamou-lhes nomes, mas sempre em respostas a condutas agressivas do arguido.
É nosso entendimento que a vítima de violência doméstica não tem de suportar os maus tratos ficando em silêncio ou abstendo-se de qualquer ato mais agressivo, o facto de empurrar quando é empurrada ou de responder com agressões verbais depois de ser agredida também não afasta a possibilidade de o agressor ser condenado pela prática do crime de violência doméstica.
No sentido do quem temos vindo a fundamentar pode ler-se no Ac. da RP de 16.03.202212As injúrias e ameaças tidas como provadas foram reiteradas e prolongaram-se no tempo, sendo suscetíveis de afetar a dignidade e bem-estar psíquico da ofendida.
De facto, pese embora também se tenha provado que a ofendida chegou a insultar o arguido e que também tinha uma personalidade ciumenta e possessiva, tal não atinge dimensão suficiente para concluir que os insultos, ameaças e perseguição eram recíprocos.
Retendo a idade do arguido e ofendida, jovens, a relação de namoro, bem como os inúmeros insultos proferidos pelo arguido, o ter-se dado como provado que a ofendida também chegou a insultar o ofendido apelidando-o de estúpido e burro, não afasta a atuação do arguido que manifestamente e repetidamente atinge a ofendida na sua dignidade, e que a ameaça por várias vezes, numa atitude bastante afastada do comportamento normal e de respeito, e suscetível de causar receio, pressão e, logo, de afetar a ofendida na sua liberdade de determinação, como se logrou provar, pela sua intensidade.”
Veja-se também o que se escreve no Ac. RC de 13.09.2013 “Nos comportamentos ofensivos recíprocos, a circunstância de cada um dos arguidos assumir quer a qualidade de agressor quer a qualidade de vítima, não impede que se tenham por verificados, em relação à concreta conduta de cada um deles descrita na acusação, os elementos constitutivos – objectivos e subjectivos – do crime de violência doméstica, nomeadamente quando os comportamentos de cada um dos arguidos não ocorre na sequência dos comportamentos do outro13”.
Em suma, não obstante algumas das condutas descritas perpetradas pela assistente possam integrar os crimes de ofensa à integridade física ou de injúrias, o certo é que ocorreram em resposta a um comportamento agressivo do arguido, também integrador dos crimes indicados, pelo que não está afastada a possibilidade de o mesmo ser condenado pelo crime de violência doméstica.
Concordamos na integra com a douta decisão recorrida quando refere “é patente a disparidade entre os actos levados a cabo pelo arguido relativamente a BB e os perpetrados por esta e há que ter em conta que a vítima de violência doméstica não tem necessariamente que se conformar com a sua condição, não tem que ser amorfa e sem reacção aos actos de lesão da sua saúde física e psíquica, nem tem que deixar de ter opinião e de a manifestar. E são estes os actos do arguido que aqui importam no preenchimento do tipo de crime (…)”.
Aqui chegados diremos que os repetidos atos de insulto e agressões perpetrados pelo arguido – chamando a assistente de “burra”, “parva”, que não valia nada, que era “uma merda”, que estava “passadinha dos cornos”, que era “maluca”, bem como “Quem não está bem, muda-se”, e mandando-a calar, pelo mero facto dela querer com ele conversar, o confrontar pelo facto dele chegar a casa tarde e alcoolizado; os repetidos atos de agressão física – empurrando a assistente nas discussões que tinham, bem como lhe desferindo chapadas nos braços e ombros, empurrá-la ao ponto de a fazer cair ao chão e magoá-la na coxa direita; em três ocasiões lhe ter apertado o pescoço e na última delas, em 14-3-2021, também a empurrando para o chão, pontapeando-a quando estava caída e tirando o cinto das calças para lhe bater com ele - consubstanciam uma atuação reiterada por parte do arguido que, pela sua frequência, repetição ao longo de vários anos, afetam a saúde física e psíquica de BB, conferindo-lhe um tratamento indigno. Estão, pois, preenchidos os elementos objetivos do crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado.
Invoca o recorrente que não se mostram preenchidos os elementos subjetivos do crime de violência doméstica. Todavia, apenas retira esta conclusão sem argumentar factos para a sustentar.
Em todo caso, diremos que, no que respeita ao elemento subjetivo, para o preenchimento deste tipo de crime é sempre necessário o dolo que pode abranger apenas a própria conduta ou estender-se ao resultado.
Na sentença recorrida consignou-se: “Ao agir do modo supra descrito, durante todo o período de duração do casamento e mesmo após a separação emocional do casal, o arguido quis maltratar física e psicologicamente a esposa e mãe dos filhos, sempre dentro do domicilio comum, provocando-lhe dor e receios de morrer, menosprezando-a, amesquinhando-a, inferiorizando-a e atingindo a sua honra e consideração de forma tal que a atingiu de forma vincada na sua dignidade enquanto pessoa; o arguido não se coibiu nunca de assim agir, o que fez de forma reiterada e consolidada pelo tempo, atuando com supremacia de poder e autoridade e pretendendo deixar claro que ele é que mandava e que não admitia que o confrontassem, principalmente se estivesse embriagado. Nunca o arguido respeitou a esposa e ofendida, actuando sempre de modo livre, deliberado e consciente de todos os seus actos, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida pela lei penal”.
Não restam assim dúvidas que estão preenchidos os elementos do dolo presentes no artigo 14.º do Código Penal: o elemento intelectual (o conhecimento das circunstâncias de facto) e o elemento volitivo (a decisão de praticar ou abster-se de praticar esse facto).
Temos, então, de concluir que se encontram preenchidos tanto os elementos objetivos como os subjetivos do crime de violência doméstica, pp. no artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a) do Código Penal (o crime foi cometido no domicílio comum e na presença de menores), pelo qual o arguido foi condenado em primeira instância.
Improcede assim a pretensão do recorrente no sentido de ser absolvido do crime de violência doméstica e condenado pela prática de três crimes de ofensa à integridade física simples.
*
IVb) Da adequação da pena aplicada.
O crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado é sancionado com pena de prisão 2 a 5 anos de prisão – cf. artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, com condições.
De acordo com o recorrente a pena imposta mostra-se excessiva, devendo ser aplicada uma pena de 1 ano de prisão (o que manifestamente não pode proceder, pois 1 ano é inferior à moldura penal abstrata), devendo ser considerado que tem 63 anos, está familiar, social e profissionalmente integrado, o grau de culpa é reduzido e as exigências de prevenção geral e especial não são gravosas.
Analisemos esta questão.
Preceitua o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.”
Culpa e prevenção constituem o binómio com auxílio do qual há de ser construído o modelo da medida da pena.
De acordo com a lição de Figueiredo Dias, “através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária de punição do facto concretamente praticado pelo agente e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena; com a consideração da culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime - ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente - limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.”14
A culpa constitui, pois, o pressuposto-fundamento da validade da pena e tem, ainda, por função estabelecer o limite máximo da pena concreta. Forçoso é, assim, concluir que não há pena sem culpa, não podendo a medida da pena ultrapassar a da culpa, tal como dispõe o n.º 2 do artigo 40.º do Código Penal.
Estabelece, ainda, o artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal que, na determinação da medida concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as que aí resultam especificadas nas alíneas a) a f).
Na decisão recorrida ficou consignado (transcrição):
“Com relevância nesta sede temos o seguinte:
1-O grau de ilicitude do facto, dentro da moldura de danosidade ao bem jurídico tutelado, é elevado, tendo em conta que a conduta maltratante do arguido incidiu na saúde psíquica e física de BB, e de forma grave, englobando actos de insulto, vexame, ameaça e agressão física, com contornos cruéis, tendo-lhe apertado o pescoço por 3 vezes, em duas delas com uma força tal ao ponto de a deixar com marcas vermelhas e que passaram a roxo e de lhe pontapear o corpo quando estava caída no chão, como forma de manutenção de uma postura de dominância sobre a sua esposa, e persistiram de modo prolongado no tempo, por mais de 20 anos, sendo que também o desvalor do resultado merece tal qualificação, conseguindo o arguido com tais condutas infligir dor, lesões físicas, medo e tristeza na sua esposa;
2- O arguido agiu com dolo intenso, na modalidade de dolo directo;
3- Na actualidade, a assistente e o arguido, que vivem desde Abril de 2022 em casas separadas, estão na presença um do outro diariamente, sendo que, numa semana a assistente trabalha num estabelecimento onde também fica a … do mesmo e estando presente uma funcionária e na outra semana está numa outra loja sita na ..., só indo ao mesmo espaço onde o arguido trabalha no final do dia, lidando um com o outro de forma distante, ainda que haja questões por resolver e não sendo reportados pela assistente outras situações de conflito com o mesmo desde Abril de 2022;
4- O arguido mostra-se profissionalmente integrado, angariando o seu sustento mediante a exploração de uma …;
5- O arguido é pessoa de condição económica algo razoável, auferindo mensalmente cerca de € 900,00 pela exploração de uma …, e tem dois veículos automóveis registados a seu favor, um deles desde 19-4-2023, ou seja, recentemente adquirido, desconhecendo-se outros contornos das suas condições pessoais e de vida;
6- O arguido não tem antecedentes criminais.
Tendo em conta que apenas está em causa a aplicação de pena de prisão, de 2 a 5 anos, cumpre proceder à sua determinação em concreto.
Em termos de necessidades de prevenção geral positiva, as mesmas são elevadas, atendendo a que já são altos os índices de criminalidade desta região, e que este crime se mostra frequente, causando um considerável clamor na comunidade, dada a relevância do bem jurídico por ele tutelado e a especial relação entre o arguido e a vítima, unidos por laços de uma relação de conjugalidade, que durou mais de 20 anos. Assim, a moldura de prevenção deve ser fixada entre 2 anos e 9 meses e 3 anos e 6 meses de prisão.
Quanto à culpa do arguido, entendo que o juízo de censura a verter sobre o seu comportamento é elevado, dados os contornos dos factos por si praticados, a sua reiteração ao longo de mais de duas décadas, a intensidade do dolo revelada e a multiplicidade de condutas que adoptou para lesar a dignidade e a saúde física e psíquica de BB, pelo que limita assim a pena a um máximo de 3 anos e 6 meses de prisão.
Quanto às necessidades de prevenção especial que se fazem sentir neste caso, as mesmas assumem uma densidade algo elevada, pois se abona em favor do arguido a sua integração profissional e a ausência de antecedentes criminais, a agravar tais necessidades quanto a este crime, temos o seguinte:
- o arguido evidencia uma postura impulsiva e de falta de respeito para com a saúde física e psíquica alheias, ante a postura que adoptou para com a sua esposa ao longo de mais de 20 anos;
- os actos do arguido deixam transparecer um sentimento de poder quanto a BB, como se ela não tivesse vontade própria e que possa prevalecer sobre a sua.
Em face do exposto, ponderando tais necessidades de prevenção geral e especial, bem como a culpa do arguido, julgo adequada a aplicação ao mesmo de uma pena de prisão, fixada em 3 (três) anos”.
A este passo, desde já adiantamos, que a pena imposta não se nos afigura excessiva e concordamos na integra com a fundamentação da sentença recorrida.
Acrescentamos apenas, em relação às exigências de prevenção geral, que este tipo de criminalidade, não raras vezes, tem nefastas consequências na vida das vítimas, basta atentarmos ao número de mortes que ocorrem todos os anos em vítimas de violência doméstica e sem esquecer os graves problemas da saúde psíquica que amiúde lhes anda associado. A sociedade reclama rigor punitivo para este tipo de comportamentos.
Também se nos afiguram relevantes as exigências de prevenção especial, como bem explicou a sentença recorrida. É certo que o arguido não tem antecedentes e está inserido socialmente, mas o facto de desvalorizar os seus comportamentos evidencia que necessita de alguma intervenção para ajustamento individual, o que aliás também justifica que lhe seja aplicado o regime de prova, com do qual fará parte integrante a frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica, com bem decidiu a sentença recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 50.º, n.º 1 e 5 e 53.º do Código Penal.
Em suma, cremos que a pena aplicada é justa, proporcional e adequada, não merecendo reparo.
Neste conspecto, também neste particular não merece censura a decisão recorrida.
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Por fim, entendemos que fica prejudicada a análise da pretensão do recorrente referente à não atribuição de indemnização à assistente, pois esta revindicação pressupunha a não verificação do crime de violência doméstica.
Sempre diremos que, nos termos do disposto no artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, “À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável. Para efeitos da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.
Da conjugação do teor dos artigos 21.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, com o artigo 82.º-A, n.º 1 do Código de Processo Penal, conclui-se que, em caso de condenação pelo crime de violência doméstica, impõe-se ao tribunal condenar o agente do crime no pagamento à vítima de uma indemnização arbitrada a título de reparação dos prejuízos [materiais e/ou não patrimoniais] sofridos, independentemente de particulares exigências de proteção da vítima (por já serem inerentes ao tipo de crime em causa), salvo oposição expressa da vítima.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s.
Notifique.

Lisboa, 22 de outubro de 2024
Ana Lúcia Gordinho
Ana Cristina Cardoso
Ester Pacheco dos Santos
_______________________________________________________
1. De acordo com o estatuído no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995. Cf. também Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., pág. 89.
2. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 330.
3. cf. Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Vol I, pág. 332.
4. Cf. Taipa de Carvalho, ob. e loc. cit.
5. Processo 08P2504 in www.dgsi.pt.
6. Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal”, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305.
7. Cf. http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/852b9e557af110df80258989003e2015?OpenDocument
8. in www.dgsi.pt, processo 170/10.0GAVLC.P1.
9. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/976513cb73750d418025875f0027fb2b?OpenDocument
10. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/b70cee7486b866af80258a3c003b5c1a?OpenDocument
11. http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/9db16181e76b605380258b4f002eba40?OpenDocument
12. https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/073ae81fcc78daad8025882b0036e4e5?OpenDocument
13. https://jurisprudencia.pt/acordao/217586/
14. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português - Parte Geral – As consequências jurídicas do crime, II, Coimbra, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, §281.