Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1006/23.7YRLSB-4
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: GREVE
PROFESSORES
SERVIÇOS MÍNIMOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: 1. A garantia constitucional de um processo equitativo não afasta liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo, não resultando afrontada pela LTFP pela circunstância de os árbitros que integram o colégio arbitral serem sorteados de listas elaboradas pelas confederações sindicais.
2. A substituição dos árbitros que integram o colégio arbitral deve ser fundamentada.
3. Ocorrendo sem dependência de fundamentação o ato de substituição não se mostra ferido de nulidade, podendo ser anulável.
4. O vício de nulidade da sentença por falta de fundamentação pressupõe a completa ausência de factos, não abarcando a fundamentação insuficiente ou medíocre.
5. Revelando a parte ter compreendido a decisão, não se lhe pode imputar o vício de ininteligibilidade.
6. O direto à greve só pode ser sacrificado no mínimo indispensável.
7. A imposição de serviços mínimos no setor da educação cinge-se às atividades de avaliações finais, de exames ou provas de caráter nacional que tenham de se realizar na mesma data em todo o território nacional.
8. Não verificado este circunstancialismo, é ilegal a fixação de serviços mínimos.
(Elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

SINDICATO  … (AAA) devidamente identificado nos autos, não se conformando com o Acórdão proferido no processo acima e à margem referenciado,
Vem dele interpor recurso de APELAÇÃO.
Pede a revogação do acórdão arbitral.
Sustenta-se nas seguintes conclusões:
(…)
O MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, notificado para contra-alegar no âmbito do recurso interposto pelo AAA, vem para o efeito apresentar as suas contra-alegações debatendo-se pela manutenção da sentença.
O MINISTÉRIO PÚBLICO emitiu parecer no sentido da procedência do recurso e consequente revogação da decisão arbitral.
Respondeu o Apelado, refutando o parecer.
***
As conclusões delimitam o objeto do recurso, o que decorre do que vem disposto nos Art.º 608º/2 e 635º/4 do CPC. Apenas se exceciona desta regra a apreciação das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Nestes termos, considerando a natureza jurídica da matéria visada, são as seguintes as questões a decidir, extraídas das conclusões:
1ª – O sorteio do árbitro representante dos trabalhadores é inconstitucional?
2ª – A constituição do júri é ilegal?
3ª – A matéria de facto é insuficiente e infundada?
4ª – A decisão arbitral é inconstitucional ou ilegal?

***

Foi a seguinte a decisão do Tribunal arbitral:
O Tribunal Arbitral delibera por unanimidade fixar os seguintes serviços mínimos:
I. Pessoal docente e técnicos superiores:
- Garantia dos apoios aos alunos que beneficiam de medidas seletivas adicionais previstas no Decreto-Lei nº 54/2018, de 6 de Julho;
- Garantia dos apoios terapêuticos prestados nas escolas e pelos Centros de Recursos para a Inclusão, bem como o acolhimento nas unidades integradas nos Centros de Apoio à Aprendizagem, para os alunos para quem foram mobilizadas medidas adicionais;
- Garantia dos apoios aos alunos em risco ou perigo sinalizados pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens e aos alunos em situações mais vulneráveis, em especial perigo de abandono escolar;
- Garantia da continuidade das medidas em curso que visam apoiar o bem-estar social e emocional dos alunos, no âmbito do Plano 21/23 Escola+ - Plano Integrado para a Recuperação das Aprendizagens;
II. Pessoal não docente:
- Garantia do serviço de portaria (vigilância e controlo de acessos) dos estabelecimentos escolares;
- Garantia da disponibilização das refeições (quando o refeitório não está concessionado);
- Garantia da vigilância e segurança das crianças e alunos no espaço escolar e nos locais de refeição.
III. Meios: os que forem estritamente necessários ao cumprimento dos serviços mínimos acima determinados, escola a escola, adequados à dimensão e ao número de alunos que a frequenta.
- Docentes e Técnicos Superiores: 1 por apoio, de acordo com a especialidade, aos alunos que carecem das medidas acima identificadas nos diferentes ciclos de ensino;
- Não docentes:
- mínimo de 1 trabalhador para o serviço de portaria/controlo dos acessos acolhimento das crianças e alunos;
- mínimo de 1 trabalhador para vigilância do refeitório de acordo com a dimensão do espaço e o número de alunos envolvidos;
- mínimo de 2 trabalhadores, de acordo com o número de refeições servidas, para assegurar a confeção das refeições nos refeitórios não concessionados;
- mínimo de 1 trabalhador por espaço escolar para a vigilância e segurança dos alunos, de acordo com a dimensão do espaço.
OS FACTOS:
Consta da decisão arbitral, sob a epígrafe FACTOS, o seguinte relato:
1. O Sindicato [doravante designado (AAA) dirigiu às entidades competentes um aviso prévio referente a greve a todo o serviço, durante o período de funcionamento correspondente aos dias 8, 9.10.13.14 e 15 de fevereiro de 2023. para os trabalhadores docentes, e nos dias 8, 9,10.13,14. 15.16.17.20, 22. 23 e 24 de fevereiro de 2023. para os trabalhadores não docentes.
2. Em face do aviso prévio, o representante do Ministério da Educação [ME] solicitou a intervenção da Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público [DGAEP] ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 398.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas [LTFP] aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20/06.
3. Em obediência ao previsto no n.º 2 do artigo 398.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP) aprovada em anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, foi convocada para o dia 30 de janeiro de 2023, na DGAEP, uma reunião com vista à negociação de um acordo de serviços mínimos para as greves em referência, não sendo possível, contudo, a realização da mesma pela não comparência por parte do AA., conforme comunicação remetida a esta Direção-Geral por aquela associação sindical, na qual foi informado que para "(...) Enquanto se mantiver este quadro, o AAA não está disponível para fazer parte da "encenação" que é este procedimento. (...)
4. Consequentemente, nesse mesmo dia, e cumprido o n.º 4 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 259/2009, de 25 de setembro, aplicável por força do artigo 405.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), pelas 12h00m, foi promovido o Sorteio de Árbitros a que alude o artigo 400.º da LTFP, com vista à constituição deste Colégio Arbitral, conforme emerge da respetiva ata, vindo o colégio arbitral a ser constituído com a seguinte composição:
Árbitro Presidente: Dr. …. (Efetivo)
Árbitro Representante dos Trabalhadores: Dr. …, sendo que por impedimento superveniente apresentado, posteriormente, foi este árbitro substituído pela Dr.ª …., que também veio a apresentar impedimento superveniente, foi também substituída pelo Dr. …(2.º suplente)
Árbitro Representante dos Empregadores Públicos: Dr. … (por impedimento do árbitro efetivo).
5. Notificadas as partes nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 402.º da LTFP, apenas o ME veio pronunciar-se.
6. O ME, pugnando pela fixação de tais serviços mínimos, sustentando que:
   … (resumo da tese defendida pelo ME)
***
O DIREITO:
A 1ª questão a que importa responder prende-se com o direito a um processo equitativo constante da previsão contida no Art.º 20º/4 da CRP.
Sustenta o Apelante que o representante dos trabalhadores que integrou o colégio arbitral foi sorteado de uma lista que representa as confederações sindicais, que o não representam, visto ser um sindicato independente, não integrado em nenhuma delas.
Contrapõe o Apelado alegando que na arbitragem sobre serviços mínimos regulada pela Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, os árbitros são sorteados de listas elaboradas pelas confederações sindicais e pelo membro do Governo responsável pela área da Administração Pública (cfr. artigo 384º, n.º 1 da LGTFP). Não são nomeados um por cada parte, como sucede na arbitragem, se nada em contrário tiver sido acordado (cf. artigo 10º da Lei 63/2011, de 14.12). O argumento, se fosse válido, a arbitragem para definição de serviços mínimos, em greve convocada por sindicato não filiado em confederação sindical, estaria sujeita a regime diferente da arbitragem em que participasse sindicato filiado: o sindicato não filiado poderia, como o recorrente pretende, indicar árbitro para integrar o tribunal arbitral, situação essa, sim, que geraria desigualdade.
Que dizer?
O direito a um processo equitativo encontra consagração constitucional. Na verdade, dispõe o Art.º 20º/4 da CRP que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
Na lição de Jorge Miranda e Rui Medeiros “um processo equitativo postula… a efetividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas”. A exigência de um tal processo não afasta, por um lado, a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo e, por outro, pode, por força da interpretação conforme à que vem sendo feita pela jurisprudência europeia do Art.º 6º da CEDH, aplicar-se a qualquer outra situação em que se conclua que um processo não está estruturado em termos que permitam a descoberta da verdade e uma decisão ponderada (Constituição da Republica Portuguesa, Tomo I, Coimbra Editora, 192 e ss.).
Não se pode, pois, deixar de ter presente que a igualdade postulada pela CRP importa igualdade de armas, impondo paridade de condições.
Por sua vez, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira consideram como equitativo o processo que compreenda os direitos de ação, ao processo, à decisão, á execução da decisão, sendo o significado básico da exigência de um processo equitativo, “o da conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efetiva”. Avançam que na densificação do conceito tanto a doutrina, como a jurisprudência, apelam, entre outros, ao princípio da igualdade de armas. (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 415 e ss.).
A arbitragem dos serviços mínimos vem prevista na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei 35/2014 de 20/06.
Do Art.º 400º resulta que o colégio arbitral é constituído por árbitros sorteados de entre as listas de árbitros dos trabalhadores, dos empregadores públicos e dos presidentes.
Dispõe o Art.º 382º/1 que a arbitragem necessária se rege pelas normas da presente lei e, com as necessárias adaptações, pelo regime de arbitragem previsto no Decreto-Lei n.º 259/2009, de 25 de setembro, nomeadamente quanto à constituição e funcionamento do tribunal arbitral e à independência, aos impedimentos e à substituição dos árbitros.
De acordo com o disposto no Art.º 383º/2 a arbitragem é realizada por três árbitros, um nomeado por cada uma das partes e o terceiro escolhido por estes, prevendo-se, no nº 5, a possibilidade de alguma das partes não proceder à nomeação – sorteio de entre os constantes da lista de árbitros dos representantes dos trabalhadores ou dos empregadores públicos.
A Lei prevê ainda a existência de Listas de árbitros, dispondo-se no Art.º 384º que as mesmas são integradas por 8 árbitros e elaboradas, respetivamente, pelas confederações sindicais e pelo membro do Governo responsável pela área da Administração Pública.
A par, dispõe o Art.º 3º/1 do DL 259/2009, que os representantes das confederações sindicais e das confederações de empregadores com assento na Comissão Permanente de Concertação Social elaboram as respetivas listas de árbitros.
Segundo noticia o Apelante o colégio foi constituído por sorteio de árbitros constantes das listas previamente organizadas, tendo, pois, o árbitro sorteado pelo “lado” dos trabalhadores saído da lista previamente elaborada pelas confederações sindicais onde não está representado.
Decorrerá daqui uma afronta ao princípio do processo equitativo?
Não cremos!
Os árbitros devem ser independentes face aos interesses em conflito, considerando-se como tal quem não tem, nem teve no ano anterior, qualquer relação, institucional ou profissional, com alguma das entidades abrangidas pelo processo arbitral, nem tem outro interesse, direto ou indireto, no resultado da arbitragem (Artº 9º/1 do DL 259/2009).
Nenhum indício existe nos autos da violação deste normativo.
Por outro lado, e dada esta exigência de independência, nenhum dos árbitros representa alguma das partes no conflito.
Acresce que, conforme emerge do disposto no Art.º 26º da Lei e 9º/2 do DL, os árbitros estão sujeitos a um regime de impedimentos e suspeições conforme previsto no CPC. Também não havendo notícia de que foi suscitado algum incidente tendo por objeto alguma dessas vicissitudes.
Ora, como se disse acima, a estruturação do processo está na livre conformação do legislador, nada impedindo a regulamentação do sorteio nos moldes em que a lei a delineia. Não é por o Apelante não estar filiado em alguma confederação que vê frustrado o seu direito a um processo equitativo, falecendo o argumento de que está arredado na defesa da sua posição em representação dos trabalhadores, pois, como já dito, os árbitros estão vinculados à independência. A circunstância de, no julgamento, intervir um determinado árbitro, não significa o cerceamento de apresentação das observações que a parte considere pertinentes, ou a ausência de análise das mesmas por parte do colégio arbitral, que tem o dever de efetuar um exame criterioso e diligente de todas pretensões, argumentos e provas apresentados pelas partes. Ou seja, delimitando a lei a legitimidade para a nomeação, tal não significa que, sendo nomeados por uma concreta entidade, a vão representar no colégio arbitral. Bem pelo contrário!
A norma cuja estatuição regula a seleção de árbitros mais não é do que legitimadora da mesma, definindo um critério –objetivo – para o ato.
Improcede, assim, a questão em apreciação.
*
Vejamos, agora, se a constituição do júri padece de ilegalidade.
Defende o Apelante que o procedimento de arbitragem está ferido de ilegalidade porque ocorreu substituição de um dos árbitros – o efetivo foi substituído pelo suplente – sem que na ata (datada de 30/01/2023) se tivessem consignando as razões para tanto.
Responde o Apelado, em síntese, que a lei não exige que os motivos do impedimento constem da ata, nem se trata de qualquer decisão que importe fundamentar, nos termos do art.º 152.º do CPA. Ao invés, havendo impedimento ou apenas ausência do árbitro, este é substituído pelo suplente seguinte que, aliás, foi designado por esse motivo.
Que dizer?
Consta da ata em referência (fls. 52) a operação de sorteio, verificando-se, no concernente ao árbitro representante dos trabalhadores o seguinte:
- Efetivo: …
- 1º Suplente: …
- 2º - Suplente: …
O acórdão recorrido é subscrito por ….
Consignou-se no acórdão recorrido que os demais foram substituídos por impedimento superveniente.
Não encontramos nos autos, para além daquela menção no acórdão, outra justificação para a intervenção do árbitro suplente.
Conforme já avançado o colégio arbitral é composto por árbitros sorteados de entre os das mencionadas listas. O sorteio comporta efetivos e suplentes (Art.º 8º do DL 259/2009).
Designados os árbitros, a respetiva substituição na composição do tribunal arbitral ocorre por motivo de morte, renúncia, incapacidade permanente ou, no caso de árbitro presidente, de impedimento referido no n.º 1 ou no n.º 3 do artigo 4º do DL 259/2009 (Art.º 5º/1). Por outro lado, dispõe o Art.º 7º/6 que qualquer árbitro deve ser substituído na composição do tribunal arbitral nos casos a que se refere o n.º 1 do artigo 5.º, de incapacidade temporária ou, no caso de árbitro presidente, se ocorrer a situação referida no n.º 3 do artigo 4.º e não renunciar, sendo aplicáveis as regras dos números anteriores.
Extrai-se deste conjunto normativo que a substituição não é livre. Deve ser fundamentada.
Porém, não vemos que esteja ferida de nulidade – invalidade que o Apelante sustenta dever prevalecer-, dado o conteúdo do Art.º 161º do CPA no qual se não enquadra o circunstancialismo invocado. Na verdade, em parte alguma da lei vemos que se comine de nulo o ato em causa e, por outro lado, o mesmo não se enquadra em nenhum dos previstos no nº 2 do normativo em referência.
Donde, a irregularidade detetada não pode ser qualificada como proposto.
Poderá o vício ser o da anulabilidade, como também é aventado?
Como já dissemos o ato de substituição carece de fundamentação.
O dever de fundamentação é inerente à atividade administrativa conforme decorre do que dispõe o Art.º 152º/1 do CPA.
Conforme dispõe o Art.º 163º/1 do CPA são anuláveis os atos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção. Porém, resulta do nº 2 que o ato anulável produz efeitos jurídicos, que podem ser destruídos com eficácia retroativa, se o ato vier a ser anulado por decisão proferida pelos tribunais administrativos ou pela própria Administração. E do nº 3 que os atos anuláveis podem ser impugnados perante a própria Administração ou perante o tribunal administrativo competente, dentro dos prazos legalmente estabelecidos.
Donde, ainda que se conclua pela anulabilidade, a mesma carece de ser declarada nos termos supra descritos.
Improcede, pois, a questão em apreciação.
*
Centrar-nos-emos agora na insuficiência da matéria de facto.
Conclui o Apelante pela ilegalidade da decisão por violação do disposto no Artº 615º/1-b) e c) do CPC afirmando que os factos assentes pelo colégio arbitral são manifestamente insuficientes para sustentar a decisão de fixar serviços mínimos.
Muito concretamente sustenta que no que toca aos docentes e técnicos superiores o acórdão não contém factualidade de onde emerja qual o impacto efetivo e real da greve, no universo das escolas portuguesas quantas turmas ficaram sem apoio, quantas e quando estiveram as mesmas totalmente encerradas e, no que toca aos não docentes, as mesmas questões e ainda quantas escolas deixaram efetivamente de fornecer refeições aos alunos.
Pronuncia-se a contraparte alegando, por um lado, que os factos que o recorrente entende que também deviam ter sido conhecidos, ainda não se tinham produzido, quando o Acórdão recorrido foi prolatado e, por outro, que a referência ao Art.º 615º/1-c) deve-se provavelmente a lapso, pois nada é referido e também se não vislumbra, que torne a decisão ininteligível, tanto que o Recorrente percebeu o seu sentido.
O Art.º 615º/1-b) e c) do CPC comina de nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e aquela cujos fundamentos estejam em oposição com a decisão ou em que ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Compulsada a decisão recorrida é uma evidência que a mesma é muito parca em termos de factualidade, limitando-se a um relato sobre os trâmites processuais conducentes ao momento decisório.
Contudo, como é uniformemente decidido pela jurisprudência o vício de nulidade por falta de fundamentação pressupõe a completa ausência de factos. Não abarca a fundamentação insuficiente ou medíocre. Muito embora este possa sustentar erro de julgamento. Neste sentido os Ac. do STJ de 2/06/2016, Proc.º 781/11.6TBMTJ, 22/01/2019, Proc.º 19/14.4T8VVD, 21/03/2019, Proc.º 713/12.4TBBRG, 15/03/2019, Proc.º 835/15.0T8LRA, entre outros.
Por outro lado, não invocada contradição, a invocação da alínea c) do Art.º 615º/2 pretenderá sustentar ininteligibilidade decorrente de ambiguidade ou obscuridade.
A obscuridade e a ambiguidade mencionadas na segunda parte do preceito verificam-se, respetivamente, quando alguma passagem da decisão seja ininteligível ou quando se preste a mais do que um sentido.
É que, conforme se afirmou no Ac. do STJ de 20/11/2019, Proc.º 62/07.0TBCSC.L3.S1, o discurso decisório tem que encerrar a explicação da razão por que decide de determinada maneira, fundamentação esta que deverá, necessariamente, atender a todas as questões colocadas ao Tribunal de recurso, e conduzir, logicamente, ao resultado adotado, devendo, pois, os fundamentos ser congruentes, justificando a decisão acolhida, importando inteligibilidade, sob pena de erro de julgamento.
No caso, é uma evidência que o Apelante compreendeu cabalmente a decisão recorrida, não se revelando a mesma ininteligível.
Razões pelas quais improcede a questão em apreciação. Sem prejuízo de a manifesta insuficiência fática poder vir a fundamentar erro de julgamento, questão que infra abordaremos.
*
Por fim, a inconstitucionalidade ou ilegalidade da decisão arbitral.
Em causa o Acórdão proferido em sede de arbitragem que fixou serviços mínimos para a greve decretada pelo recorrente (AAA) para os dias 8, 9, 10, 13, 14 e 15 de fevereiro de 2023 para os trabalhadores docentes e para os dias 8, 9, 10, 13, 14, 15, 16,17, 20, 22, 23 e 24 de fevereiro de 2023 para os trabalhadores não docentes.
Ponderou-se ali que “o setor da educação presta serviços básicos cuja paralisação coloca em causa a satisfação de necessidades essenciais, as quais não se restringem ao consignado no citado artigo 397º da Lei 35/2014 de 20/06”, exemplificando-se com a situação vivenciada durante a pandemia COVID19 e com o impacto que teve o encerramento de estabelecimentos de ensino na população estudantil, impondo, “designadamente, a abertura das escolas de acolhimento para as crianças menores de 12 anos cujos pais trabalhem em serviços essenciais e não possam estar em casa com os filhos, salvaguarda do apoio alimentar a todas as crianças que beneficiam da ação social escolar e a continuidade das atividades relativas à intervenção precoce e o apoio às crianças com necessidades educativas especiais”.
E, tecidos estes considerandos, o acórdão sustentou-se em dois outros, proferidos em distintos processos, tendo transcrito a respetiva fundamentação, da qual emerge que “existe uma intenção – mais ou menos assumida- de as sucessivas greves que se vêm mantendo, desde há cerca de dois meses de forma quase contínua, se irem manter, ao que tudo indica, por tempo indeterminado”, “a indefinição quanto ao seu termo e a consequente imprevisibilidade quanto ao efeito acumulado do somatório dos diversos períodos de greve parcelares que têm sido e continuam a ser decretados”, o que redundará num prejuízo insuportável para o direito de acesso ao ensino, o somatório das greves porá “em risco, de forma danosa e tendencialmente irreversível, os direitos das crianças e alunos e respetivos agregados familiares…”, dano que será particularmente gravoso para os alunos que irão realizar provas finais.
A presente questão põe a tónica nas razões aduzidas para decretamento de serviços mínimos, razões que o Apelante defende encerrarem um juízo de censura sobre a extensão e modo de execução da greve que viola o direito de as associações sindicais decretarem greve e definirem o seu âmbito. Afirma-se ainda a desproporcionalidade manifesta dos serviços mínimos decretados.
Respondeu o Apelado alegando que é entendimento da jurisprudência e da doutrina ser meramente exemplificativa a enumeração dos sectores em que podem ser definidos serviços mínimos, que o tribunal limitou-se a constatar que se está na presença de necessidades sociais impreteríveis, insuscetíveis de autossatisfação individual, para a satisfação das quais não existem meios paralelos ou alternativos viáveis e que não podem ficar privadas de satisfação pelo tempo de paralisação que a greve importa, sob pena de prejuízos irreparáveis, havendo que considerar no tempo de paralisação as greves já realizadas e as greves já convocadas. Conclui, por isso, que não há censura sobre a extensão e modo de execução da greve, pois o Acórdão recorrido apenas analisa o efeito que as várias greves sucessivamente convocadas têm sobre as necessidades sociais impreteríveis que a lei manda acautelar. Afirma ainda que não se mostra desnecessária, desadequada e desproporcionada a definição de serviços mínimos estabelecida pelo Colégio Arbitral, inexistindo qualquer violação dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
Que dizer?
A CRP garante o direito à greve (Art.º 57º/1), estabelecendo que compete aos trabalhadores definir o âmbito dos interesses a defender e, ao mesmo tempo, remete para a lei a definição das condições de prestação, durante a greve, de serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e instalações, bem como de serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis (nº 2 e 3).
Tratando-se de um direito fundamental, qualquer restrição terá que obedecer ao comando ínsito no Art.º 18º/2 e 3 da CRP e muito concretamente, não poderá a restrição diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
O direito á greve, sendo um direito fundamental, é também um direito limitado, coexistindo com outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos. Daí que se entenda que possa ser objeto de limitações.
Entre tais limitações encontra-se a determinação de serviços mínimos.
Serviços, que por força de imperativo constitucional se hão-de ter como indispensáveis e, por outro lado, visar a satisfação de necessidades sociais impreteríveis.
Na verdade “O conceito de serviços mínimos não pode ser considerado isoladamente ou fora de um contexto relacional, impondo o Art.º 57º/3, numa solução conforme às exigências da proporcionalidade, que seja assegurada a prestação do conjunto mínimo de serviços que se revele, em concreto, indispensável para garantir a satisfação de necessidades sociais impreteríveis” (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 581).
Nestas necessidades relevam as exigências da comunidade, o interesse coletivo.
A “obrigação de serviços mínimos só existe quando e na estrita medida em que a necessidade afetada não possa ser satisfeita por outros meios, isto é, quando e na medida em que as prestações com que se cumpre aquela obrigação se revelem indispensáveis à satisfação de necessidades sociais impreteríveis” (Jorge Leite, Direito do Trabalho, Vol. I, Serviços de Acção Social da U.C., 301).
Monteiro Fernandes ensina que a definição dos limites externos do direito de greve envolve a articulação de dois conceitos difusos: o de necessidade social impreterível e o de serviços mínimos (Direito do Trabalho, 12ª Ed., 918).
Assim, é, antes de mais, necessário identificar aquelas necessidades e, num segundo momento, o próprio conceito de serviços mininos indispensáveis à respetiva satisfação.
O autor identifica duas perspetivas definitórias: uma primeira que estabelece uma correlação entre a medida da prestação e a natureza das necessidades a satisfazer, delimitando tais serviços como os adequados a cobrir necessidades impreteríveis; numa segunda, o caráter mínimo dos serviços corresponde a um certo grau de satisfação das necessidades em causa, um grau abaixo do que se entraria em situação idêntica à de insatisfação. Conclui que a primeira é a que permite corresponder ao sentido da lei.

O Art.º 397/1 da Lei 35/2014 de 20/06 (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas) dispõe que nos órgãos ou serviços que se destinem à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, a associação que declare a greve, ou a comissão de greve, e os trabalhadores aderentes devem assegurar, durante a greve, a prestação dos serviços mínimos indispensáveis à satisfação daquelas necessidades.
Para efeitos do ali disposto, consideram-se órgãos ou serviços que se destinam à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, os que se integram, nomeadamente, no setor da Educação, no que concerne à realização de avaliações finais, de exames ou provas de caráter nacional que tenham de se realizar na mesma data em todo o território nacional [1](nº 2/d)).
É consensualmente reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência que o elenco constante do nº 2 do Art.º 397º não é taxativo, porquanto, no seu corpo, se inseriu a expressão, “nomeadamente”. Isto mesmo foi declarado pelo TC no Ac. 572/2008 de 26/11/2008.
Contudo, permitindo-se a instituição de serviços mínimos no setor da educação, é absolutamente claro que tal instituição está circunscrita a um número limitado de atividades - avaliações finais, de exames ou provas de caráter nacional que tenham de se realizar na mesma data em todo o território nacional.
Daí que, tal como se afirma no parecer emitido pelo Ministério Público junto desta Relação, “quer a lei, quer a evolução histórica da norma[2], deve levar a concluir que só se podem legalmente fixar serviços mínimos no setor da educação no circunstancialismo expressamente previsto na alínea d) do nº 2 do Artº 397º da LTFP”.
Também o Apelante sustenta que ao limitar a prestação de serviços mínimos na educação a esses aspetos específicos, o legislador estabeleceu uma barreira inultrapassável.
Tese que subscrevemos.
É assim contra-legem a fixação de serviços mínimos efetuada mediante a decisão recorrida.
O Apelado sustenta, porém, que em parecer da PGR de 1990 (Parecer 100/89, DR 2ª Série nº 276 de 29/11/1990) a posição do Ministério Público era distinta, ali se tendo consignado que a fixação de serviços mínimos na área da educação poderá ir além da realização de avaliações finais, de exames ou provas de carater nacional[3].
Este parecer é, porém, anterior à alteração legislativa introduzida por via da Lei 35/2014 de 20/06, pelo que tendo o legislador limitado o circunstancialismo suscetível de permitir a imposição de serviços mínimos no setor da educação, a interpretação terá que ser conforme a tal intenção. A isto não obsta a circunstância de o nº 2 do Artº 397º conter o vocábulo “nomeadamente”, porquanto conforme emerge do normativo tal vocábulo reporta-se apenas e tão só ao elenco de setores de atividade.
Como é sabido são elementos integrantes da interpretação jurídica a “análise da letra e determinação do espírito da lei, esta através dos elementos racional, sistemático, histórico e conjuntural” (Diogo Freitas do Amaral, in Código Civil Anotado, Vol. I, Coord. Ana Prata, 24 e ss.).
Assim, dispondo, embora, o Art.º 9º do CC que a interpretação se não deve cingir à letra da lei, mas sim atender ao pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico e as circunstâncias em que a lei foi elaborada, afigura-se-nos absolutamente clara a tese defendida – centrada na evolução legislativa e na inovação constante do texto legal- que é, aliás, conforme ao disposto neste Artº 9º.
Na verdade, tal como afirma o Apelante, o legislador poderia apenas ter-se referido ao setor da educação como faz relativamente a outros serviços. Mas não o fez. Alargou a estatuição definindo, no âmbito deste setor, um conjunto restrito de atividades.
Concluímos, pois, pela ilegalidade de fixação de serviços mínimos no caso presente.

Ainda sustenta o Apelante a ilegalidade da argumentação contida no acórdão recorrido no concernente à natureza e extensão da greve, e seu modo de execução, argumentação que acolheu a posição defendida pelo Apelado e que, conforme alegado, afronta o disposto no Art.º 57º/2 da CRP.
Considerando que acima concluímos pela ilegalidade na fixação de serviços mínimos, ficam prejudicados quaisquer considerandos a propósito deste argumentário. Nomeadamente no que tange à invocada falta de fundamentação fática para as conclusões ínsitas na decisão.
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A responsabilidade tributária recairia, segundo o disposto no Artº 527º do CPC, sobre o Apelado.
Contudo, por força do disposto no Artº 4º/1-g) do RCP este está isento.
Porém, dado o disposto no Artº 4º/7 do mesmo diploma a isenção de custas não abrange os reembolsos à parte vencedora a título de custas de parte, que, naqueles casos, as suportará.
Termos em que se decidirá que as custas devidas pelo Apelado se cingem às de parte.
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Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar o acórdão recorrido.
Custas pelo Apelado, restritas às de parte.
Notifique.
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Lisboa, 17 de maio de 2023
MANUELA FIALHO
ALDA MARTINS
SÉRGIO ALMEIDA
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[1] Sublinhado nosso
[2] Evolução detalhada no referido parecer e também invocada na apelação
[3] Aduz ainda vários argumentos relacionados com a legalidade da greve, matéria que aqui não está em discussão e sobre a qual não discorreremos – pontos 14 e ss. da resposta ao parecer
Decisão Texto Integral: