Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15776/20.0T8LSB.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: ACTIVIDADE PERIGOSA
CULPA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário: 1.A actividade de carga e descarga de contentores levada a cabo no terminal de contentores explorado pela A. é uma actividade perigosa, atenta a natureza dos meios empregues, já que para tanto é utilizado um pórtico, que corresponde a uma grua que se desloca sobre carris, com a qual são suspensas cargas de várias toneladas (os contentores).

2.Face a tal perigosidade está instituída a proibição dos veículos com contentores para carga/descarga se imobilizarem nas áreas de funcionamento do pórtico, delimitadas com linhas amarelas no solo.

3.Pela mesma razão, está instituída a proibição de o manobrador do pórtico iniciar a descarga do contentor se o veículo que o transportar estiver em movimento ou se não estiver imobilizado no local correcto para a descarga.

4.Podendo o manobrador do pórtico ter visto o local da descarga e as manobras que o condutor do veículo da 1ª R. estava a fazer, tendo em vista imobilizá-lo para lá das linhas amarelas delimitadoras da área de funcionamento do pórtico, e tendo colocado o pórtico em movimento, fazendo-o colidir com o veículo da 1ª R., a culpa na produção do evento danoso é de imputar exclusivamente ao manobrador do pórtico, por poder e dever actuar de forma distinta.


(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:



S., S.A. intentou a presente acção declarativa de condenação, sob forma de processo comum, contra Transportes, S.A. (1ª R.) e Seguradoras, S.A. (2ª R., entretanto incorporada por fusão na G., S.A.), pedindo a condenação solidária das RR. no pagamento da quantia de € 9.187,54, acrescida de juros de mora desde a citação até integral e efectivo pagamento.

Alega para tanto, e em síntese, que:
  • A 1ª R. efectuou um serviço de transporte de um contentor para o terminal de contentores operado pela A., com o seu veículo de matrícula ---RV---;
  • Nesse terminal foi entregue ao condutor do veículo da 1ª R. o regulamento de segurança que contém as normas de circulação no terminal, e do qual resulta ser proibida a paragem/estacionamento nas linhas, áreas e caminhos de pórticos, assinalados a amarelo;
  • No momento da operação de descarga o condutor do veículo da 1ª R. estacionou o mesmo para além da linha de limitação da área de funcionamento do pórtico, assim fazendo com que este tenha embatido na parte lateral esquerda do veículo;
  • Em consequência desse embate o pórtico sofreu danos, ficando imobilizado, e levando a A. a proceder à sua reparação, por não o poder ter imobilizado, no que despendeu a quantia global de € 9.187,54;
  • Por contrato de seguro a 1ª R. havia transferido para a 2ª R. a responsabilidade civil emergente do acidente em questão.

As RR. foram citadas e apresentaram contestações separadas, reconhecendo a existência do contrato de seguro e o acidente, mas impugnando a dinâmica deste, alegando que o embate só se deu porque o operador do pórtico começou a efectuar a manobra de descarga quando o condutor do veículo da 1ª R. ainda estava a concluir a manobra de estacionamento do mesmo para que ficasse fora da área de funcionamento do pórtico, não esperando pela conclusão da mesma. Mais impugnam os danos alegados pela A. e concluem pela improcedência da acção, com a absolvição do pedido.

Procedeu-se ao saneamento da causa, bem como à fixação do objecto do litígio e dos temas da prova, sem reclamações.

Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Pelos fundamentos expostos, julgo a acção procedente, e em consequência, condeno as RR., solidariamente, no pagamento à A da quantia de € 9.187,54, acrescida de juros de mora contabilizados à taxa de 4%, desde a citação até integral e efectivo pagamento”.

A 1ª R. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1.Interpõe a Recorrente o presente recurso por entender que o Tribunal a quo andou mal ao considerar improcedente a acção interposta.

2.Da matéria de facto dada como provada resultou que:
8.- Ao motorista da 1.ª R. foram dadas indicações para iniciar a manobra de estacionamento dentro dos limites estabelecido.
9.- Após iniciar a manobra de estacionamento, o Arnaldo S. verificou que não estava parqueado em respeito das normas estabelecidas pelo Terminal e iniciou nova manobra para parar o veículo dentro os limites.
10.- Nessa altura, o operador da A. deu início ao movimento de translação do pórtico, que embateu na parte lateral esquerda do veículo da 1.ª R.

3.Estes factos dados como provados estão de acordo com o depoimento prestado pela testemunha Arnaldo S., condutor do veículo pesado, única testemunha arrolada que presenciou o sinistro, que descreveu o percurso que realizou no dia do sinistro até chegar ao local do embate, demonstrando conhecimento sobre as normas impostas pelo terminal.
4.E que admitiu que sabia que não se encontrava correctamente estacionado, por não estar a respeitar as linhas delimitadoras, motivo pelo qual iniciou de imediato nova manobra.
5.Veja-se o depoimento da testemunha Arnaldo S., condutor do veículo pesado gravado, na audiência de julgamento realizada no dia 2 de Dezembro de 2021, encontrando-se registado em suporte digital na aplicação H@bilus (registo 15:24:50 a 15:43:40).
6.No entanto, o Mm.º Juiz a quo entendeu que o embate entre o pórtico e o veículo pesado propriedade da ora Recorrente se deveu à conduta do motorista Arnaldo S., que não cumpriu as normas de segurança do Terminal de Contentores de Santa Apolónia e que o embate não teria ocorrido se o motorista Arnaldo S. tivesse estacionado o veículo dentro das linhas delimitadoras.
7.Como ficou provado em sede de audiência de julgamento, através do depoimento da testemunha Arnaldo S. condutor dos autos, e que importa recordar, depoimento que se reconhece como sendo sério, coerente e consistente, decorre que este tinha perfeito conhecimento de que tinha que estacionar o veículo pesado em respeito às linhas delimitadoras.
8.E nesse sentido, entende a Recorrente que deverá ser aditado um novo facto ao elenco de factos provados, com a seguinte redacção: o condutor Arnaldo S. conhece as normas impostas pelo Terminal de Contentores de Santa Apolónia.
9.Em virtude da localização do local de descarga ser junto a um cruzamento, o condutor não conseguiu efectuar a manobra de estacionamento à primeira.
10.Motivo pelo qual, após abrir a porta e verificar que não estava correctamente posicionado, iniciou de imediato nova manobra. E foi nesse momento que o manobrador do pórtico, sem verificar que o veículo pesado estava em andamento, iniciou a manobra de descarga.
11.Veja-se o depoimento da testemunha Arnaldo S., condutor do veículo pesado, gravado, na audiência de julgamento realizada no dia 2 de Dezembro de 2021, encontrando-se registado em suporte digital na aplicação H@bilus (registo 15:24:50 a 15:43:40)
12.E nesse sentido, entende a Recorrente que deverá ser aditado um novo facto ao elenco de factos provados, com a seguinte redacção: O condutor Arnaldo S. não conseguiu efectuar a manobra de estacionamento à primeira, em virtude do local de descarga se situar em cima de um cruzamento, e o contentor ser de 45 pés.
13.Resulta ainda do depoimento da testemunha Arnaldo S., que efectua descargas naquele terminal de contentores há vários anos, e que não existe nenhum tipo de sinal ou aviso que os motoristas possam efectuar, por forma a avisar o manobrador de que o veículo se encontra estacionado em respeito das regras do terminal, para que o manobrador possa iniciar o procedimento de descarga.
14.Veja-se o seu depoimento gravado, na audiência de julgamento realizada no dia 2 de Dezembro de 2021, encontrando-se registado em suporte digital na aplicação H@bilus (registo 15:24:50 a 15:43:40), minuto 06:27 a minuto 07:19.
15.Para além de que a descarga não pode ser feita com o veículo em andamento, pelo que sempre caberia ao manobrador, certificar-se antes de iniciar a manobra, de que o veículo se encontrava bem estacionado.
16.Até porque como referido pela Testemunha Paulo S., o manobrador consegue visualizar o veículo, quando está no local de descarga, conforme depoimento prestado pela testemunha Paulo S., gestor de operações. O seu depoimento foi gravado, na audiência de julgamento realizada no dia 2 de Dezembro de 2021, encontrando-se registado em suporte digital na aplicação H@bilus (registo 14:30:14 a 15:00:46), minuto 21:10 a minuto 24:03.
17.E ainda o depoimento da testemunha Pedro M., engenheiro no departamento de manutenção gravado na audiência de julgamento realizada no dia 2 de Dezembro de 2021, encontrando-se registado em suporte digital na aplicação H@bilus (registo 15:03:54 a 15:23:32) Minuto 16:56 a minuto 17:50
18.Acresce ainda que, a cabine onde se encontrava o manobrador tem uma rede no fundo, o que permite que o manobrador tenha visão do que está a acontecer por baixo de si.
19.Estando o manobrador a 10 metros de altura, conforme resulta dos depoimentos de Paulo S. e Pedro M., aquele sempre conseguiria ver se o veículo se encontrava em movimento, ou se já estaria parqueado dentro dos limites impostos.
20.Veja-se o depoimento da testemunha Paulo S. gravado na audiência de julgamento realizada no dia 2 de Dezembro de 2021, encontrando-se registado em suporte digital na aplicação H@bilus (registo 14:30:14 a 15:00:46), minuto 24:41 a minuto 24:46
21.Veja-se também o depoimento da testemunha Pedro M., engenheiro no departamento de manutenção gravado na audiência de julgamento realizada no dia 2 de Dezembro de 2021, encontrando-se registado em suporte digital na aplicação H@bilus (registo 15:03:54 a 15:23:32), minuto 10:27 a minuto 10:49
22.E ainda o depoimento da testemunha Arnaldo S., condutor do veículo pesado gravado na audiência de julgamento realizada no dia 2 de Dezembro de 2021, encontrando-se registado em suporte digital na aplicação H@bilus (registo 15:24:50 a 15:43:40 minuto 17:25 a minuto 17:40
23.E nesse sentido, entende a Recorrente que deverá ser aditado um novo facto ao elenco de factos provados, com a seguinte redacção: O manobrador não pode iniciar o procedimento de descarga sem se assegurar que o veículo está parado dentro dos limites, quer através da comunicação do planeamento que recebe, quer através da visão que tem em virtude do chão do local onde se encontra ser constituído por uma rede, que lhe permite ter visão para o local da descarga.
24.A tudo o que foi dito, acresce o facto de a descarga ter acontecido por volta das 19h20, conforme resulta do facto provado número 3.
25.Conforme depoimento prestado pelo condutor Arnaldo S., o turno dos funcionários do terminal termina pelas 20h00, hora em que aqueles iriam jantar. No dia do sinistro, o veículo da Recorrente era o único veículo a descarregar.
26.Pelo que, no entender da referida testemunha, o manobrador iniciou a manobra de descarga sem se assegurar de que o veículo estava estacionado, em virtude de se encontrar perto da hora de fim de turno e querer iniciar a manobra de descarga o mais breve possível.
27.Veja-se o depoimento gravado, na audiência de julgamento realizada no dia 2 de Dezembro de 2021, encontrando-se registado em suporte digital na aplicação H@bilus (registo 15:24:50 a 15:43:40) Minuto 08:08 a minuto 09:51
28.Por todo o exposto, para além dos factos dados como provados nos números 8, 9 e 10, deveria ainda ter sido dados como provado os seguintes factos:
a)-O condutor Arnaldo S. conhece as normas impostas pelo Terminal de Contentores de Santa Apolónia.
b)-O condutor Arnaldo S. não conseguiu efectuar a manobra de estacionamento à primeira, em virtude do local de descarga se situar em cima de um cruzamento, e o contentor ser de 45 pés.
c)-O manobrador não pode iniciar o procedimento de descarga sem se assegurar que o veículo está parado dentro dos limites, quer através da comunicação do planeamento que recebe, quer através da visão que tem em virtude do chão do local onde se encontra ser constituído por uma rede, que lhe permite ter visão para o local da descarga.
29.Não se provou que o manobrador do pórtico da A. deveria ter-se assegurado que o espaço de circulação do pórtico se encontrava desimpedido.
30.Estes factos estão em contradição com a factologia dada como provada sob os pontos 8, 9, 10.
31.Assim, quanto a esta matéria resultou provado que o condutor do veículo da Recorrente, não tendo conseguido estacionar o veículo pesado à primeira, em respeito das normas estabelecidas, iniciou nova manobra para parquear o veículo dentro dos limites, para que assim se pudesse proceder à descarga do contentor.
32.E que o manobrador, aquando da segunda manobra do condutor Arnaldo S., iniciou o movimento de translação do pórtico que foi embater na parte lateral esquerda do veículo.
33.O condutor não tem forma de avisar o manobrador do pórtico de que o veículo se encontra correctamente posicionado para que se proceda à descarga.
34.Acresce ainda que, o manobrador vê o veículo quando o mesmo está estacionado, conforme resulta dos depoimentos das testemunhas Paulo S., Pedro M. e Arnaldo S.
35.O manobrador não poderia iniciar a manobra de descarga com o veículo em andamento. O manobrador não tem como efectuar a descarga de um veículo sem ter visão sobre o mesmo.
36.O condutor do veículo pesado sabia que o veículo estava mal estacionado, motivo pelo qual iniciou de imediato nova manobra, não se podendo, assim, afirmar que a culpa do acidente se deveu ao facto de o condutor do veículo pesado ter estacionado fora dos limites, porque, as instalações da Autora possuíam cruzamentos entre os parques, que posteriormente vieram a ser encerrados.
37.Em virtude dos referidos cruzamentos, tendo o veículo da 1.ª Ré instruções para parquear o veículo no primeiro número do parque, e atendendo às dimensões do contentor, o condutor, após efectuar o cruzamento, não conseguiu parar o veículo dentro dos limites.
38.O manobrador, estando a uma altura de 10 metros, e conseguindo olhar para baixo através da estrutura de rede, sempre conseguiria ver o veículo e também as linhas que se encontram ao lado do mesmo e que este não poderia ultrapassar.
39.No caso, o manobrador já estava à espera do veículo pesado para proceder à descarga, atendendo a que era o único veículo que se encontrava naquela linha.
40.Tendo perfeita noção de que não respeitava as regras, o condutor iniciou nova manobra para parquear o veículo. No entanto, nunca chegou a concluir a mesma, em virtude do manobrador ter iniciado a manobra de descarga de imediato.
41.Ora, não tendo o condutor do pesado forma de informar o manobrador que o veículo não está devidamente parqueado, é a este último que incumbe a responsabilidade de fazer essa verificação.
42.Do depoimento de Arnaldo S. que, importa recordar, é o motorista condutor dos autos, decorre que o manobrador terá iniciado a manobra de descarga sem se certificar que o veículo estava correctamente parqueado, em virtude daquele se encontrar perto da sua hora de jantar e, por forma a efectuar a descarga com a maior brevidade possível, iniciou o procedimento sem se certificar que o veículo estava estacionado em respeito às normas do terminal.
43.Quanto a este facto, não foi feita qualquer prova para além da prova testemunhal agora transcrita, já que o manobrador do pórtico não foi arrolado como testemunha.
44.Sendo que da prova testemunhal resulta o contrário do referido no facto dado como não provado.
45.Neste sentido veja-se o depoimento da testemunha Arnaldo S., encontrando‑se registado em suporte digital na aplicação H@bilus (registo 15:24:50 a 15:43:40).
46.E ainda o depoimento da testemunha Paulo S., gestor de operações. O seu depoimento foi gravado, na audiência de julgamento realizada no dia 2 de Dezembro de 2021, encontrando-se registado em suporte digital na aplicação H@bilus (registo 14:30:14 a 15:00:46), Minuto 21:10 a minuto 24:03.
47.Pelo que deve ser dado como provado que cabia ao manobrador do pórtico assegurar que o espaço de circulação do pórtico se encontrava desimpedido até porque, conforme resulta do depoimento supra, o veículo da Recorrente era o único veículo na linha de descarga, pelo que o manobrador não tinha, naquela altura, preocupação com qualquer outra manobra ou procedimento.
48.a prova produzida e carreada para os autos, resulta que a 1.ª Ré não violou qualquer dever de vigilância, que não lhe era exigível outro tipo de conduta, nem actuação diversa, bem como que tomou todas as providências exigíveis à luz de um bom pai de família e que segundo as regras da experiência comum e da vida lhe eram exigíveis.
49.Atentos os factos que se demonstram provados, salta à vista a improcedência da presente acção. Significa isto que é necessária a prova da existência de um facto ilícito, do dano e do nexo de causalidade entre esse facto e esse dano.
50.Na douta sentença recorrida é imputada a culpa ao condutor Arnaldo S., por não ter cumprido as normas de segurança estabelecidas pelo Regulamento do Terminal de Contentores de Santa Apolónia. Resulta ainda da Douta Sentença que o embate não teria ocorrido se o motorista da 1.ª Ré tivesse estacionado o veículo dentro das linhas delimitadoras
51.Ora, tal conclusão nunca poderia colher, pois está em clara contradição com o facto dado como provado no ponto 9, em que se conclui que o condutor do veículo pesado, após iniciar a manobra de estacionamento, verificou que não estava parqueado dentro das linhas delimitadoras, motivo pelo qual deu início a uma nova manobra de estacionamento.
52.E assim sendo, não é concebível a imputação da culpa ao condutor da Recorrente por não conseguir estacionar correctamente na área de descarga à primeira manobra que efectua.
53.Já que, conforme resulta de tudo o que foi dito supra, atendendo ao facto do local de descarga ser em cima de um cruzamento, e de o contentor a descarregar ser de 45 pés, ser muito difícil efectuar o estacionamento à primeira.
54.E que o condutor do veículo pesado tinha perfeita consciência de que não estava parqueado correctamente, motivo pelo qual procedeu à segunda manobra de estacionamento de imediato.
55.Se o condutor não tivesse conhecimento ou quisesse infringir as normas do terminal, nunca teria intenção de proceder à correcção do estacionamento do veículo, como o fez de forma imediata.
56.Para além de que o embate ocorreu no momento em que o condutor do pesado se encontrava a executar a segunda manobra de estacionamento, tendo em vista o parqueamento do veículo em respeito das linhas delimitadoras.
57.E foi nesse momento, sem verificar que o veículo estava parqueado, que o manobrador iniciou o procedimento de descarga.
58.Não resulta da douta sentença qualquer facto provado quanto à conduta do manobrador, pelo que não se pode concluir que o mesmo agiu em respeito às normas de segurança do terminal de contentores.
59.Esse juízo é meramente especulativo, hipotético, não é sustentado por qualquer facto, ou seja, não tem substrato fáctico, é órfão de matéria e de concretização. Porquanto, nenhum facto é alegado ou provado de modo a permitir tais conclusões.
60.Pelo que não ficou provado que o manobrador cumpriu as regras de segurança do terminal de contentores.
61.E dos depoimentos prestados não resultou outra versão do sinistro, a não ser a descrita pelo condutor Arnaldo S., única testemunha do sinistro.
62.Mas ficou demonstrado através da prova produzida em sede de audiência de julgamento, que o manobrador tem visibilidade para o cais, e que só tem ordem para iniciar o procedimento de descarga quando o mesmo puder ser feito com segurança, ou seja, quando o veículo estiver devidamente estacionado.
63.No entanto, o manobrador iniciou o procedimento de descarga com o veículo pesado a efectuar a segunda manobra de estacionamento.
64.Acresce ainda que, conforme resultou do depoimento de Arnaldo S., o veículo pesado era o único que se encontrava naquela linha de descarga, uma vez que estava próximo o fim de turno, que aconteceria às 20h00.
65.Não tendo o manobrador outra preocupação que não a de realizar a descarga daquele veículo, pelo que a atenção deste deveria estar apenas e só no procedimento de descarga.
66.E assim, não pode ser imputada culpa ao condutor do veículo pesado, mas sim ao manobrador do pórtico que iniciou o movimento de descarga quando o condutor do pesado se encontrava a realizar a segunda manobra de estacionamento.
67.E em consequência, nenhuma responsabilidade pode ser imputada às Rés.

A 2ª R. recorre igualmente da sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1.O presente recurso visa submeter à apreciação do Tribunal Superior a decisão proferida sobre a matéria de facto, bem como a subsunção jurídica de tal factualidade constante da douta Sentença proferida pelo Mmº Juiz do Tribunal a quo.
2.Da leitura da douta Sentença resulta que o Mmº Juiz do Tribunal a quo não efectuou uma correcta interpretação da prova produzida nos presentes autos, uma vez que o elenco de factos provados se encontra incompleto face à prova produzida.
3.Tendo em conta a prova testemunhal produzida nos presentes autos, a Recorrente pugna pelo aditamento de cinco novos factos ao elenco de factos provados.
4.No entendimento da Recorrente, o Mmº Juiz do Tribunal a quo não valorou correctamente todo o depoimento do condutor do veículo ---RV---, tendo apenas enfatizado o facto de o veículo não ter sido estacionado correctamente junto ao pórtico, não obstante a manobra de correcção.
5.A testemunha Arnaldo S. explicou, de forma isenta e imparcial, todo o circunstancialismo do acidente, cujo depoimento é relevante no apuramento da culpa do condutor.
6.Do depoimento da testemunha Arnaldo S. resultou que o veículo ---RV--- era o único veículo no Terminal e era o último a efectuar a descarga naquele turno [conforme depoimento ora transcrito entre os minutos 3:13 e 3:28, 8:13 e 8:37, 18:12 e 18:21].

7.Entende a Recorrente que deverá ser aditado um novo facto ao elenco de factos provados, com a seguinte redacção:
Nas circunstâncias de tempo e de lugar do acidente, o veículo ---RV--- era o único e o último veículo no Terminal de Contentores de Santa Apolónia a efectuar a descarga de contentores.
8.Do depoimento da testemunha Arnaldo S. resultou que atenta as configurações do cais, em especial, nas linhas C1 e D1, e da dimensão do veículo [45 pés] não é possível aos condutores dos veículos com aquelas características estacionar no local onde ocorreu o acidente apenas com recurso a uma manobra, sob pena de danificar os pneus. Para o efeito, veja-se o depoimento da testemunha Arnaldo S. nos minutos: 3:31 e 4:06, 9:19 e 9:51, 12:12 e 12:56.
9.Entende a Recorrente que deverá ser aditado um novo facto ao elenco de factos provados, com a seguinte designação:
Atenta as características do local do embate, os condutores dos veículos com 45 pés não conseguem estacionar os veículos correctamente junto ao pórtico apenas com recurso a uma manobra.
10.Da leitura da douta Sentença não resulta qualquer facto provado relativamente ao funcionamento do pórtico, pese embora, no entendimento da Recorrente, é pertinente aferir o modo de funcionamento do mesmo, em especial, saber como é que o manobrador inicia o movimento do pórtico.
11.As testemunhas Paulo S. e Pedro M. explicaram o procedimento e normas estabelecidas para o Terminal de Contentores de Santa Apolónia.
12.Da conjugação dos depoimentos das testemunhas Paulo S. e Pedro M. resulta que o manobrador do pórtico só inicia o movimento do pórtico após receber uma informação do planeamento.
13.Sobre o modo de funcionamento do pórtico, veja-se os depoimentos transcritos das testemunhas Paulo S. [entre os minutos 21:14 e 24.03 e 28:03 e 28:19:] e Pedro M. [entre os minutos 12:29 e 12:32].

14.Em face do depoimento das testemunhas arroladas pela Autora, entende a Recorrente que deverá ser aditado um novo facto ao elenco de factos provados com a seguinte redacção:
O manobrador do pórtico inicia o movimento de descarga e carga após receber uma comunicação do planeamento a informar que pode iniciar a manobra em segurança.
15.Do depoimento da testemunha Paulo S. resultou que o pórtico é constituído por sensores [conforme depoimento prestado entre os minutos 19:26 e 19:36], pelo que deve ser adicionado um novo facto ao elenco de factos provados, com a seguinte redacção: O pórtico é constituído por sensores.
16.Do depoimento da testemunha Paulo S., [entre os minutos 22:52 e 23:26 da gravação do depoimento], resulta que a visibilidade do manobrador varia consoante o tipo de operação que está a realizar, tendo mais visibilidade quando os veículos estão em movimento.

17.Entende a Recorrente que deve ser aditado um novo facto ao elenco de factos provados com a seguinte redacção:
O manobrador do pórtico consegue ver os veículos no cais quando estão em movimento.
18.Do depoimento das testemunhas Paulo S. e Pedro M. não pode resultar provado o cumprimento ou incumprimento das normas de segurança pelo manobrador.
19.Tendo em consideração os factos provados 7., 8. e 9. da douta Sentença recorrida, resultou que o condutor do veículo ---RV---, após iniciar a manobra de estacionamento, e verificando que não estava parqueado em respeito das normas estabelecidas pelo Terminal, iniciou nova manobra para estacionar o veículo dentro os limites.
20.O condutor do veículo ---RV--- não parou nem estacionou o veículo em algum momento em desrespeito das normas estabelecidas para o Terminal.
21.Para apurar as causas do acidente, o Mmº Juiz do Tribunal a quo devia ter tido em consideração o facto de o condutor do veículo RV não conseguir estacionar correctamente na área junto ao com recurso a apenas uma manobra, atentas as características do veículo e condições do próprio Terminal.
22.Da prova produzida em sede de Audiência de Julgamento não resultou qualquer facto relativamente ao cumprimento/ incumprimento da actividade do manobrador, uma vez que este não prestou depoimento.
23.Nos presentes autos apenas temos conhecimento da versão do acidente relatada pelo condutor do veículo ---RV---.
24.Não tendo resultado provado que o manobrador não tem visibilidade para o cais, salvo o devido respeito, não se pode concluir que aquele não tinha condições para apurar se o camião que ia proceder à descarga naquele momento estava devidamente estacionado para iniciar o movimento do pórtico.
25.Admitindo-se que o manobrador não tem visibilidade do pórtico, para que o manobrador tenha dado início ao movimento do pórtico, a Recorrente equaciona três hipóteses possíveis: i) Verificou-se alguma anomalia nos sensores do pórtico; ii) a informação prestada ao manobrador não identificava que a posição do camião junto ao pórtico não estava correcta; iii) ou o manobrador iniciou o movimento do pórtico sem aguardar pela informação do planeamento.
26.Não pode ser imputada culpa ao condutor do veículo ---RH--- por anomalia do pórtico, erro na informação prestada ao manobrador ou pelo incumprimento de regras de segurança do manobrador.
27.Da dinâmica do acidente relatada pelo condutor do veículo ---RV--- resultou ilidida a presunção que impendia sobre o condutor, nos termos do disposto no artigo 503º, nº 3 do Código Civil, tendo resultado provado que não existiu qualquer culpa do mesmo na produção do acidente, pelo que a Sentença deverá ser alterada conforme a Recorrente logrou demonstrou, devendo a acção ser totalmente improcedente, por não provada, e as RR. absolvidas do pedido.
28.Caso se considere que resultou provado que o manobrador não tem qualquer tipo de visibilidade para o cais e que não ocorreu qualquer anomalia ou incumprimento na manobra de movimentação do pórtico, bem como que o condutor do veículo ---RV--- não agiu com culpa deverá ser observado o disposto no artigo 506º, nº 1 do Código Civil.
29.Em cumprimento do disposto no nº 1 do artigo 506º do Código Civil, a responsabilidade deverá ser repartida numa proporção de 70/30%, para o manobrador do pórtico e para o condutor do veículo ---RV---, respectivamente, uma vez que o risco do pórtico contribuiu numa maior proporção para a produção dos danos verificados.
30.Em face do supra exposto, a douta Sentença recorrida deve ser alterada em conformidade, devendo a acção ser improcedente, por não provada e as RR. absolvidas do pedido.
A A. apresentou alegação de resposta conjunta a ambos os recursos, sustentando a manutenção da sentença recorrida, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de direito.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem-se com a alteração da matéria de facto e consequente aplicação do direito ao novo elenco de factos provados, com a determinação da responsabilidade da A. na produção do evento danoso.
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Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto:
1.A A. é uma sociedade comercial que é concessionária da exploração do Terminal de Contentores de Santa Apolónia.
2.A 1ª R. é uma sociedade comercial que se dedica ao transporte de mercadorias.
3.No dia 30 de Janeiro de 2019, pelas 19.20 horas, a 1ª R. executou um serviço de transporte de carga para o Terminal de Contentores de Santa Apolónia.
4.O serviço foi efectuado pelo seu funcionário, Arnaldo S., que conduzia o veículo com a matrícula ---RV---.
5.O veículo em causa compunha-se por tractor e semi-reboque L-1....7, que tinha acoplado ao seu estrado o contentor SANU 7....6.
6.Aquando da entrada do aludido veículo no Terminal de Contentores de Santa Apolónia, foi entregue a Arnaldo S. o regulamento de segurança contendo as normas de circulação e estadia no terminal de contentores.
7.Nesse mesmo regulamento pode ler-se como “Expressamente proibido a paragem/estacionamento nas linhas e áreas dos pórticos de cais bem como nos caminhos de rolamento dos pórticos de parque assinalados a amarelo”.
8.Ao motorista da 1ª R. foram dadas indicações para iniciar a manobra de estacionamento dentro dos limites estabelecidos.
9.Após iniciar a manobra de estacionamento, o Arnaldo S. verificou que não estava parqueado em respeito das normas estabelecidas pelo terminal e iniciou nova manobra para parar o veículo dentro dos limites.
10.Nessa altura, o operador da A. deu início ao movimento de translação do pórtico, que embateu na parte lateral esquerda do veículo da 1ª R.
11.Após o embate, no próprio dia, a A. comunicou por e-mail enviado à 2ª R., enquanto seguradora da 1ª R., o ocorrido, bem como solicitou-lhe a realização de uma vistoria dos danos causados no pórtico.
12.Todavia não obteve qualquer resposta por parte da 2ª R.
13.Tendo a A. insistido junto da 2ª R., quer pelos e-mails remetidos em 31.01.2019, 05.02.2019 e 11.02.2019, quer por contactos telefónicos, para o agendamento da peritagem, e alertado para os custos de imobilização do pórtico que se encontrava inoperativo desde o dia do acidente.
14.Por e-mail datado de 27 de Fevereiro de 2019, a A. informou a 2ª R. que, por força dos constrangimentos operacionais e prejuízos causados pela imobilização do pórtico, iria proceder naquele dia à reparação dos cabos danificados para repor o funcionamento, ainda que deficiente, do pórtico.
15.Por comunicação datada daquele dia de 27 de Fevereiro de 2019, a 2ª R. afirmou que o acidente se deveu ao manobrador do pórtico por este alegadamente não ter verificado se estavam reunidas as condições necessárias de segurança para iniciar o descarregamento, declinando assim a responsabilidade pelo mesmo.
16.O embate ocorrido em especial o sistema eléctrico do pórtico da A.
17.Como consequência do embate, o pórtico ficou imobilizado desde o dia 30 de Janeiro de 2019 e por um período não apurado, o que provocou constrangimentos operacionais à A.
18.A fim de conter os prejuízos causados pela imobilização do pórtico, a A. procedeu à reparação do sistema eléctrico do pórtico de modo a torná-lo operacional, embora com várias limitações.
19.Nesse sentido a A. adquiriu junto da fornecedora Policabos, S.A., diversos cabos eléctricos cujo fornecimento orçou a quantia de 6.267,54 €.
20.E solicitou à C., LDA. a prestação de serviços de montagem e ligações de cabos eléctricos, que orçou no valor de 2.080,00 € (s/IVA).
21.A A. solicitou igualmente à M. & O. a disponibilização de uma plataforma elevatória com manobrador durante três dias, com o custo diário de 280,00 €.
22.A 1ª R. transferiu por contrato de seguro pela apólice n.º 0003920978000009 a responsabilidade civil pelo acidente ocorrido para a 2ª R.
23.O condutor do veículo da 1ª R. conhecia o terminal de contentores explorado pela A. (aditado, nos termos adiante decididos)
24.O condutor do veículo da 1ª R. conhecia as regras de circulação e permanência no terminal (designadamente aquela a que respeita o ponto 7.). (aditado, nos termos adiante decididos)
25.Nas circunstâncias de tempo e de lugar do acidente, o veículo da 1ª R. era o único que se encontrava no terminal de contentores para ser descarregado, com recurso ao pórtico identificado em 10. (aditado, nos termos adiante decididos)
26.Atentas as características do concreto local onde ia ser descarregado o contentor, e o comprimento do mesmo (45 pés, ou seja, 13,56 metros), dificilmente seria possível a imobilização do veículo com o contentor fora da área reservada ao funcionamento do pórtico, apenas com recurso a uma manobra. (aditado, nos termos adiante decididos)
27.Por essa razão o condutor do veículo da 1ª R. não conseguiu imobilizar o mesmo fora dessa área reservada, apenas com recurso à primeira manobra que efectuou. (aditado, nos termos adiante decididos)
28.O manobrador do pórtico não inicia a descarga do contentor se o veículo que o transporta estiver em movimento ou não estiver imobilizado no local correcto para a descarga. (aditado, nos termos adiante decididos)
29.A partir do local onde se encontrava, o manobrador do pórtico conseguia ver o local de descarga e as manobras do veículo da 1ª R. referidas em 9. (aditado, nos termos adiante decididos)
***

Na sentença recorrida considerou-se ainda como não provado que:
  • O manobrador do pórtico da A. deveria ter-se assegurado que o espaço de circulação do pórtico se encontrava desimpedido. (eliminado, nos termos adiante decididos)
***

Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.

A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes, (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 196-197):
a)- Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b)- Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c)- Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e)- O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.

E, mais adiante, afirma (pág. 199-200) arejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.

Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 770) afirmam quecumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objecto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões (art. 635º)”, mais afirmando que “relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder apresentar a respectiva transcrição”.

E, do mesmo modo, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29/10/2015, relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resultaum ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”.

Revertendo tais considerações para o caso concreto, pode-se desde logo afirmar que as RR. deram cumprimento ao ónus de especificação a que alude o art.º 640º do Código de Processo Civil, não só porque nas conclusões das alegações concretizam os pontos de facto que consideram incorrectamente julgados e que pretendem ver alterados (correspondentes à eliminação do ponto único dos factos não provados e ao aditamento dos factos que elencam), mas igualmente porque na motivação especificam os meios de prova que conduzem ao resultado pretendido e, no que respeita à prova gravada, identificam as passagens das gravações que entendem conduzir às alterações pretendidas.

Assim, e relativamente aos pontos de facto em questão, que se prendem com as características do local do acidente e com a actuação de cada um dos intervenientes (o manobrador da A. e o motorista da 1ª R.), em razão da especificidade da actividade em questão (a descarga de contentores no terminal da A.), o tribunal recorrido motivou pela seguinte forma a sua decisão:
Os factos 3) a 11) assentaram no essencial no depoimento da testemunha Arnaldo S., funcionário da 1.ª R. e condutor do veículo em causa que autos e que esteve envolvido no embate alegado pela A.
Arnaldo S. foi a única testemunha do embate que depôs sobre o mesmo na audiência, relatando todo o percurso desde a entrada no terminal até ao choque do pórtico com o veículo que conduzia.
A testemunha descreveu a manobra de estacionamento, admitindo que num momento inicial a posição do veículo não respeitava as linhas demarcadoras no chão, pelo que iniciou a manobra para colocar o veículo na posição correcta. Foi nesse momento que ocorreu o embate do pórtico.
O regulamento com as regras de circulação e de estadia dentro do Terminal, cuja cópia se encontra junta aos autos, era do conhecimento da testemunha.
Nesta parte, as testemunhas Paulo da S. e Pedro M., pelas funções que desempenham para a A. no Terminal explicaram em pormenor o conjunto de regras que os motoristas dos veículos que transportam contentores estão obrigados a cumprir. Em especial, explicaram a importância das linhas demarcadoras dos espaços e o seu respeito, para evitar acidentes como o dos autos.
Explicaram que a dimensão do pórtico e posição do seu manobrador impedem que este, enquanto faz manobras, consiga atender ao que se está a passar no chão, nomeadamente a manobras dos veículos com os contentores. Por essa razão, as regras impostas à entrada a todos os motoristas são claras: a paragem ou estacionamento no Terminal tem sempre de obedecer às linhas que estão desenhadas no chão.
Neste caso, não assistiram ao sucedido, mas pelo que lhes foi contado, o motorista da 1.ª R. não respeitou as linhas, pelo que o embate com o pórtico aconteceu”.

Não sofre qualquer controvérsia que, das três testemunhas que se pronunciaram sobre o acidente, apenas o referido Arnaldo S. estava no local, quando o mesmo ocorreu, na sua qualidade de condutor do veículo da 1ª R.

Também não sofre qualquer controvérsia que o mesmo conhecia as regras de circulação e permanência que devia observar, no interior do terminal de contentores explorado pela A., não só porque não era a primeira vez que aí se deslocava, mas igualmente porque lhe foi entregue o denominado regulamento de segurança, onde tais regras constavam.

E também não sofre qualquer controvérsia que nesse regulamento constava a proibição de parar ou estacionar nos caminhos de rolamentos dos pórticos de parque, que estavam assinalados a amarelo no solo.

Do mesmo modo, e não obstante a ligação funcional existente entre o referido Arnaldo S. e a 1ª R., o seu depoimento não deixa de merecer credibilidade, desde logo pela forma isenta e objectiva como descreveu o local do acidente e toda a sua actuação, inclusive confirmando que não imobilizou o veículo com o contentor a descarregar no local de descarga assinalado, à primeira tentativa, porque “estava um pouco em cima da linha. Em cima não, estava um pouco ao lado, mas tinha de ficar mais meio metro desviado da linha (…) mesmo a queimar a linha”.
Todavia, o mesmo também referiu que “daí eu abrir a porta [do veículo, entenda-se] e ver que não estava completamente no sítio e tentar iniciar a manobra para pôr-me no local, porque eu conheço há muitos anos aquilo e sei que aquilo [o veículo, entenda-se] não podia estar ali”.

Ou seja, desse depoimento é possível retirar a verificação de vários factos que concretizam e complementam a factualidade alegada pelas RR. em cada uma das contestações (desde logo a correspondente à que resulta provada nos pontos 8. a 10.) e que, nessa medida, devem também integrar a factualidade provada, por força do disposto nos art.º 5º, nº 2, al. b), e 607º, nº 3 a 5, ambos do Código de Processo Civil. Todavia, e como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 718), “a enunciação dos factos complementares e concretizadores far-se-á desde que se revelem imprescindíveis para a procedência da acção ou da defesa, tendo em conta os diversos segmentos normativos para o caso”.

Assim, a mesma testemunha explicou que o local onde o veículo devia ficar imobilizado, para que o contentor que transportava pudesse ser descarregado pelo pórtico, era “logo o primeiro número”, a seguir a uma “linha que corta ao meio dos contentores, que foi logo encerrada”, estando situado “logo ali na quina”, quando deveria “estar mais abaixo”, pelo que “um carro daqueles não pode fazer um ângulo tão grande”, sendo muito difícil “estacionar à primeira (…) porque tenho de vir com a roda quase aqui ao pé e andar assim depois é enrolar tudo e ficar aqui, senão fico sujeito a rebentar os pneus”.

E, por isso, é que explicou igualmente que teve de abrir a porta e confirmar se tinha conseguido colocar o veículo no local correcto, só com recurso à primeira manobra que efectuou, constatando que não o havia conseguido, pelo que iniciou nova manobra de correcção do posicionamento do veículo, para fora da linha delimitadora da área de funcionamento do pórtico.

Ou seja, o que se alcança do depoimento da testemunha em questão, e que não foi contrariado por qualquer outro meio de prova, é que:
  • O condutor do veículo da 1ª R. conhecia o terminal de contentores explorado pela R. e as regras de circulação e permanência no mesmo (designadamente no que respeita à não imobilização dos veículos com contentores nas áreas reservadas ao funcionamento dos pórticos);
  • Atentas as características do concreto local onde ia ser descarregado o contentor, e o comprimento do mesmo (45 pés, ou seja, 13,56 metros), dificilmente seria possível a imobilização do veículo com o contentor fora da área reservada ao funcionamento do pórtico, apenas com recurso a uma manobra;
  • Por essa razão o condutor do veículo da 1ª R. não conseguiu imobilizar o mesmo fora dessa área reservada ao funcionamento do pórtico, apenas com recurso à primeira manobra que efectuou.

Acresce ainda que, como igualmente resultou do depoimento do referido condutor do veículo da 1ª R., no momento do acidente não existia qualquer outro veículo para ser descarregado, estando apenas presente o mesmo e “a máquina à minha espera”, o que o mesmo condutor justifica pela circunstância de se estar perto da hora (20.00 h.) em que “as máquinas param”.
E como tal factualidade releva para apurar da diligência do manobrador da “máquina” (a“máquina” é o pórtico que ia descarregar o contentor, sendo também referido como “grua”), segundo o alegado pelas RR. quanto à actuação deste, importa que a mesma factualidade seja igualmente considerada no elenco de factos provados, nos termos invocados pela 2ª R.
No mais, relativamente à actuação do manobrador do pórtico e ao funcionamento deste equipamento, embora as testemunhas Paulo S. e Pedro M. tenham confirmado que não estavam presentes quando se deu o acidente, nas qualidades de funcionários da A. lograram explicar de forma objectiva e credível como é que o pórtico é operado e quais as condicionantes da sua manobra, em razão do tipo de equipamento em questão.

Assim, dos referidos depoimentos, conjugados com o diagrama que consta do denominado regulamento de segurança (e que consta do documento 1 junto com a P.I.)  resulta que:
  • O terminal de contentores operado pela A. está dividido em parques de contentores, identificados por letras;
  • Cada parque de contentores está dividido em filas, identificadas por algarismos, onde os contentores são “parqueados”;
  • No parque de contentores funciona um pórtico, que corresponde a uma grua que opera sobre carris, ao longo das filas do parque, e que serve para a carga e descarga de contentores;
  • Quando um veículo que transporta o contentor a descarregar entra no terminal de contentores, é indicado ao respectivo condutor qual o concreto parque e fila onde o contentor vai ser descarregado;
  • O veículo deve dirigir-se para o parque e ficar imobilizado ao lado da fila indicada, fora da área reservada ao funcionamento do pórtico (ou seja, para lá da linha delimitadora amarela);
  • O pórtico desloca-se ao longo das filas do parque até àquela fila indicada, aí “agarra” o contentor de cima do veículo onde se encontra, desloca-o lateralmente e “poisa-o” no parque, na mesma concreta fila previamente indicada.

Resulta ainda do depoimento de Paulo S. (que enquanto funcionário da A. exerce as funções de gestor de operações do terminal de contentores e, por isso, denotou conhecimento circunstanciado das operações de descarga de contentores, designadamente no que respeita à manobra do referido pórtico) que o manobrador do pórtico tem visibilidade reduzida do veículo que transporta o contentor a descarregar, enquanto está a deslocar o pórtico para a fila do parque onde vai ser efectuada a descarga, sendo que o veículo já é visível para o manobrador durante a operação de descarga, do mesmo modo que é visível antes de iniciar a “translação” (ou seja, a deslocação do pórtico para a fila do parque onde vai ser efectuada a descarga).

E quando confrontada tal testemunha (Paulo S.) com a possibilidade de o veículo ainda não ter terminado a manobra para se imobilizar no local da descarga, referiu a mesma testemunha que “se o veículo estiver em movimento o operador não faz, o operador não inicia o processo de descarga”, mais esclarecendo que no “acto de deslocar [o pórtico] é quando [o manobrador] não tem visibilidade sobre a linha”.

Só que, do mesmo modo, esclareceu que não existe qualquer sinal que possa ser dado ao manobrador do pórtico para o mesmo saber que está tudo pronto para iniciar a manobra, bastando que o veículo esteja “parado naquela zona”, correspondendo a mesma à fila para onde deve ser descarregado o contentor.

Todavia, também foi explicado pelo condutor do veículo da 1ª R., que “normalmente a máquina [o pórtico] fica logo no local à nossa espera”, mas esclarecendo que, naquela fila em concreto, por ser a primeira do parque, o pórtico não pode ficar no local à espera “porque não me dá ângulo para eu passar, para eu estacionar o carro”, e esclarecendo ainda que, naquela descarga em concreto, “então esperou que eu passasse, como eu não fiquei à primeira vez, ele iniciou logo a marcha para me descarregar o contentor, só que eu não estava no sítio correcto porque não consegui pô-lo à primeira vez e quando abri a porta vi que não estava fui iniciar a manobra e ele já estava a roçar com os tubos”.

Do mesmo modo, o referido condutor explicou que, muitas vezes, os condutores saem dos veículos para auxiliar na descarga (apesar de admitir que tal não seja uma prática autorizada pelo regulamento de segurança da A.), mais explicando que os próprios manobradores comunicam com os condutores através de toques da buzina que o pórtico possui, no sentido de fazer com que os condutores alterem a posição dos veículos, para que se torne possível a manobra de descarga.

Ou seja, conjugando os dois depoimentos em questão resulta que o manobrador do pórtico já não estava a efectuar o referido movimento de deslocação (translação) para o local da descarga (momento em que a visibilidade seria reduzida), mas estava já com o pórtico nesse local, aí conseguindo ver o veículo da 1ª R. a manobrar para se colocar na posição de descarga e, do mesmo modo, conseguindo ver se o veículo já estava imobilizado e no local correcto.

Pelo que, da mesma forma, o manobrador do pórtico logrou verificar que não tinha sido possível, à primeira tentativa, a imobilização do veículo da 1ª R. em respeito das normas estabelecidas pelo terminal, e que o condutor do mesmo veículo iniciava nova manobra para imobilizar o veículo no local correcto.
Por outro lado, em face desta constatação de procedimentos concretos, há que desconsiderar o pretendido assentimento da testemunha Pedro M., no sentido de que é o planeamento (feito a partir da entrada do veículo na portaria do terminal de contentores) que determina que a manobra de descarga pode ser iniciada em segurança. É que, desde logo, a testemunha nada referiu relativamente a uma decisão do planeamento desse teor, apenas consentindo que o manobrador recebe do planeamento “a indicação de que o carro está lá parado”, e bem ainda porque aquilo que a testemunha referiu é que “nós sabemos que o carro, quando entra no terminal, sabemos que o carro está colocado na posição, a máquina está não sei onde, vem a máquina, carrega o contentor, descarrega”, o que é desmentido pela concreta afirmação (do condutor do veículo da 1ª R., única testemunha presente no local, ao tempo do acidente) de que o pórtico  (a “máquina”) já estava no local à espera do veículo da 1ª R. (ou seja, chegou à “posição” ainda antes de o veículo da 1ª R. aí “estar colocado”), o que se justifica porque não havia outro veículo para descarregar.

Assim, há que concluir que o ponto único dos factos não provados carece de ser eliminado, mais carecendo de ser aditada à enunciação dos factos provados a seguinte factualidade, que complementa e concretiza aquela a que correspondem os pontos 8. a 10.:
23.O condutor do veículo da 1ª R. conhecia o terminal de contentores explorado pela A.;
24.O condutor do veículo da 1ª R. conhecia as regras de circulação e permanência no terminal (designadamente aquela a que respeita o ponto 7.);
25.Nas circunstâncias de tempo e de lugar do acidente, o veículo da 1ª R. era o único que se encontrava no terminal de contentores para ser descarregado, com recurso ao pórtico identificado em 10.;
26.Atentas as características do concreto local onde ia ser descarregado o contentor, e o comprimento do mesmo (45 pés, ou seja, 13,56 metros), dificilmente seria possível a imobilização do veículo com o contentor fora da área reservada ao funcionamento do pórtico, apenas com recurso a uma manobra;
27.Por essa razão o condutor do veículo da 1ª R. não conseguiu imobilizar o mesmo fora dessa área reservada, apenas com recurso à primeira manobra que efectuou;
28.O manobrador do pórtico não inicia a descarga do contentor se o veículo que o transporta estiver em movimento ou não estiver imobilizado no local correcto para a descarga;
29.A partir do local onde se encontrava, o manobrador do pórtico conseguia ver o local de descarga e as manobras do veículo da 1ª R. referidas em 9.
Todavia, e face ao acima exposto, já não há que dar como provado que “o manobrador do pórtico inicia o movimento de descarga e carga após receber uma comunicação do planeamento a informar que pode iniciar a manobra em segurança”, do mesmo modo que não se pode dar como provado que é através da comunicação do planeamento que recebe (por computador) que o manobrador sabe que o veículo está parado no local correcto para ser efectuada a descarga, face à ausência de prova bastante que confirme tal factualidade.
Do mesmo modo, ainda, e relativamente à existência de sensores no pórtico, a sua existência é confirmada pelo referido gestor de operações do terminal de contentores (Paulo S.), bem como pelo condutor do veículo da 1ª R. (Arnaldo S.).
A 2ª R. pretende que se dê como provada a sua existência, porque entende que, se os mesmos sensores não detectaram a presença do veículo da 1ª R., é porque se verificou alguma anomalia com os mesmos, e tendo sido por isso que o manobrador do pórtico iniciou o movimento com o mesmo quando o veículo ainda estava a completar a sua imobilização no local correcto.
Ora, tendo o condutor do veículo da 1ª R. explicado igualmente que tais sensores correspondem a varetas que fazem parar instantaneamente o pórtico, caso toquem em algum objecto (designadamente, os veículos que se imobilizam para descarregar contentores), destinando-se a evitar que a estrutura do pórtico colida com esse objecto, e mais explicando que essa colisão entre a estrutura do pórtico e o veículo não era susceptível de ocorrer (face à posição do veículo, não em cima da linha delimitadora da área reservada ao funcionamento do pórtico, mas “um pouco ao lado”, “mesmo a queimar a linha”, quando “tinha de ficar mais meio metro desviado da linha”), o que resulta igualmente evidenciado pela circunstância de a única parte do pórtico que tocou no veículo da 1ª R. terem sido “três ou quatro tubos”, logo se alcança a irrelevância da afirmação da existência desse tipo de sensor, porque o mesmo não teria a capacidade, mesmo estando a funcionar correctamente, de fazer interromper o movimento que o manobrador havia imprimido ao pórtico, já que não compreendia a única parte do pórtico que estava em “rota de colisão” com o veículo da 1ª R., correspondente aos referidos “tubos”.
Assim, também não carece de ser aditado ao elenco de factos provados que “o pórtico é constituído por sensores”.

Em suma, na parcial procedência das conclusões dos recursos de cada uma das RR., no que respeita à impugnação da decisão de facto, há que eliminar do elenco dos factos não provados que “o manobrador do pórtico da A. deveria ter-se assegurado que o espaço de circulação do pórtico se encontrava desimpedido”, do mesmo modo sendo de aditar ao elenco de factos provados os sete pontos acima enunciados, de 23. a 29.
***

Face à factualidade dada como provada entendeu o tribunal recorrido que “o embate entre o pórtico e o veículo da 1.ª R., deveu-se à conduta do seu motorista que não cumpriu as normas de segurança estabelecidas pelo Regulamento do Terminal de Contentores de Santa Apolónia.
O embate não teria ocorrido se motorista da 1.ª R. tivesse estacionado o veículo dentro das linhas de limitação da área de funcionamento do pórtico.
Neste caso, existe uma presunção legal de culpa relativamente ao condutor do veículo da 1.ª R., nos termos do disposto no artigo 503.º, n.º 3, do Código Civil, pelo que as RR. tinham de provar que a culpa do embate derivava do comportamento do manobrador do pórtico. E tal não aconteceu: a matéria de facto provada não revela nenhum acto por parte do dito manobrador que seja causa do embate.
Assim, a 1.ª R. é responsável civilmente perante a A. pelo acidente ocorrido e por conseguinte encontra-se adstrita à obrigação de indemnizar a A. pelos danos sofridos, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 483.º, 562.º, 563.º. e 564.º, todos do Código Civil”.

Os argumentos apresentados pelas RR. para defender entendimento diferente daquele exposto na sentença recorrida assentam, desde logo, na constatação da actuação do manobrador do pórtico, que colocou tal equipamento em movimento quando o condutor do veículo da 1ª R. ainda não tinha concluído a manobra que lhe permitia dar cumprimento às normas de segurança decorrentes do regulamento do terminal de contentores explorado pela A., ou seja, imobilizar o veículo fora da área reservada ao funcionamento do pórtico.

É inequívoco, face à factualidade apurada, que a presunção legal de culpa do condutor do veículo da 1ª R., referida na sentença recorrida, se mostra afastada, face à constatação de que foi a actuação do manobrador do pórtico da A. que deu causa ao embate que se verificou.

Com efeito, importa não esquecer que a actividade de carga e descarga de contentores levada a cabo no terminal de contentores explorado pela A. é uma actividade perigosa, atenta a natureza dos meios empregues. Assim, para tal actividade é utilizado um pórtico, que corresponde a uma grua autoportante (já que se desloca por si só sobre carris), com a qual são suspensas cargas de várias toneladas (os contentores). E as gruas, como todos os equipamentos industriais semelhantes, com os quais se suspendem e movimentam pelo ar cargas pesadas, apresentam uma aptidão especial para a produção de danos de maior gravidade e com mais frequência, face ao risco associado ao seu funcionamento, como já ficou reconhecido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/2/1999 (relatado por Ribeiro Coelho e com sumário disponível em www.dgsi.pt), ou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/2017 (relatado por António Piçarra e disponível em www.dgsi.pt).

Assim, e tendo presente a caracterização da actividade em questão como uma actividade perigosa, face ao disposto no nº 2 do art.º 493º do Código Civil presume-se a culpa da A. na produção dos danos verificados em resultado dessa actividade.

O que significa, como também já referiu o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 7/3/2017 (relatado por Hélder Roque e disponível em www.dgsi.pt), que “a presunção de culpa por parte de quem exerce uma actividade perigosa, consagrada pelo art. 493.°, nº 2, do CC, não altera o princípio matricial de que a responsabilidade depende da culpa, salvo nos casos especificados na lei, portanto se trata de responsabilidade delitual e não de responsabilidade pelo risco ou objectiva, agravando o dever normal de diligência, não bastando, para afastar a responsabilidade, a prova de ter agido sem culpa, sendo necessário demonstrar que se adoptaram todas as providências destinadas a evitar o dano”. E, do mesmo modo, que “as providências a adoptar pelo agente, idóneas a evitar os danos são ditadas pelas particulares normas técnicas ou legislativas inerentes às especiais actividades, ou as regras da experiência comum”.

Ou seja, perante a presunção de que os danos que se verificaram no sistema eléctrico do pórtico da A., em resultado da actividade do mesmo na operação de descarga do veículo da 1ª R., decorrem da não adopção das regras que visam salvaguardar a especial perigosidade dessa actividade, a A. só poderia afastar tal presunção de culpa se lograsse demonstrar que todas essas regras foram cumpridas pelo seu manobrador, beneficiando então da presunção de culpa do condutor do veículo do 1ª R., que emerge do nº 3 do art.º 503º do Código Civil (como se refere na sentença recorrida, em termos que não merece qualquer controvérsia).

Do mesmo modo, para lograr afastar a presunção de culpa do referido condutor do veículo da 1ª R., as RR. careciam de demonstrar que a conduta do mesmo se conformou com as regras de circulação e permanência de veículos terrestres, no concreto local onde ocorreu o acidente (o terminal de contentores explorado pela A.).

Ora, desde logo sobressai dessas regras aquela que proíbe “a paragem/estacionamento nas linhas e áreas dos pórticos de cais bem como nos caminhos de rolamento dos pórticos de parque assinalados a amarelo”.

Porque o regulamento de segurança de onde emerge tal regra não contém a definição do que é que se entende por “paragem/estacionamento”, e porque tal regulamento de segurança mais não corresponde que ao conjunto de regras que disciplinam o funcionamento do terminal de contentores que a A. explora, bem como o acesso e permanência no mesmo de pessoas e veículos estranhas à organização da A., é de concluir que o mesmo regulamento corresponde a um conjunto de declarações de vontade da A., no sentido de a mesma autorizar tal acesso e permanência nas instalações que detém, nas condições aí declaradas.

Assim, desde logo há que lançar mão das regras de interpretação das declarações de vontade, que decorre do art.º 236º do Código Civil, para interpretar o referido conceito de “paragem/estacionamento”.

E, nessa medida, há-de tal “paragem/estacionamento” ter o sentido que um condutor normal, colocado na posição do concreto destinatário da regra onde esse conceito está presente (ou seja, os condutores dos veículos que vão carregar e descarregar contentores ao terminal de contentores explorado pela A.) possa deduzir, do comportamento da A.

Ora, da matéria de facto provada resulta que a forma como a A. tinha organizado espacialmente o terminal de contentores conduzia a que houvesse um concreto local de descarga de contentores em que a “paragem/estacionamento” fora dos “caminhos de rolamento dos pórticos de parque assinalados a amarelo” dificilmente conseguia ser feita com recurso a uma só manobra.

Pelo que qualquer condutor, colocado perante essa organização espacial estabelecida pela própria A., sabia que a regra em questão devia ser interpretada no sentido de a A. querer que a imobilização dos veículos com contentores para descarregar, naquele concreto local de descarga, pudesse ser feita com recurso a mais de uma manobra, e na medida em que através das mesmas ficasse assegurado que a imobilização ocorria fora da área de funcionamento do pórtico (ou seja, para lá das linhas amarelas delimitadoras dessa área de funcionamento).

No caso concreto o condutor do veículo da 1ª R. conhecia o local e as regras em questão, pelo que sabia que só deveria ter o veículo por “parado/estacionado” em conformidade com tais regras quando o mesmo estivesse colocado para lá das referidas linhas amarelas, e ainda que para tanto tivesse de efectuar mais de uma manobra com o veículo, com vista a tal imobilização conforme às regras da A.

E foi isso mesmo que fez, tendo em vista o cumprimento das regras de “paragem/estacionamento” da A. E só não concluiu o conjunto de manobras destinado a essa imobilização conforme às regras da A., porque o manobrador colocou o pórtico em movimento e foi embater com o mesmo no veículo da 1ª R.

Ou seja (e recorrendo ao afirmado na sentença recorrida) “ponderando as circunstâncias de cada caso e a diligência do homem médio” para apurar da culpa do condutor do veículo da 1ª R., logo é de afastar qualquer juízo de reprovação da sua actuação, na medida em que não é de afirmar que “podia e devia, nas circunstâncias, ter agido de modo diverso”.

Já relativamente ao manobrador do pórtico, está demonstrado que na manobra desse equipamento não podia o mesmo iniciar a descarga do contentor se o veículo que o transportava estivesse em movimento ou não estivesse imobilizado no local correcto para a descarga.

Tal regra encontra a sua razão de ser na mesma circunstância que conduz à existência da regra da proibição da “paragem/estacionamento nas linhas e áreas dos pórticos de cais bem como nos caminhos de rolamento dos pórticos de parque assinalados a amarelo”, a saber a prevenção de colisões entre o pórtico e os veículos que carregam e descarregam contentores, tendo presente a já referida perigosidade da actividade de carga e descarga de contentores com recurso ao pórtico. Com efeito, tendo em atenção que o pórtico se move sobre carris (ou seja, não se pode desviar de obstáculos durante a sua marcha), e tendo em atenção que os veículos que carregam e descarregam contentores têm de estar imobilizados para que tais operações de carga/descarga possam ocorrer (o que significa que não podem desviar-se de forma célere do pórtico em movimento), a forma segura de evitar colisões entre ambos passa pelo estabelecimento das regras específicas a tal actividade, que se assumem como determinantes para a segurança dos pórticos e dos veículos e, sobretudo, dos respectivos manobradores/condutores.

Assim, e como no caso concreto o manobrador do pórtico podia ver o local de descarga, bem como as manobras que o condutor do veículo da 1ª R. estava a fazer, tendo em vista imobilizá-lo para lá das linhas amarelas delimitadoras da área de funcionamento do pórtico, a partir do local onde este se encontrava, estava o mesmo manobrador impedido de colocar o pórtico em movimento com vista a concretizar a descarga, enquanto o veículo da 1ª R. não estivesse no local correcto para a descarga.

Não tendo sido essa a sua actuação, mas exactamente a contrária, colocando o pórtico em movimento e fazendo o mesmo colidir com o veículo da 1ª R., enquanto o condutor deste ainda executava as manobras necessárias à correcta “paragem/estacionamento” do veículo, há que concluir que foi o manobrador do pórtico quem actuou com culpa na produção do evento danoso, face à violação das regras acima referidas, que lhe determinavam uma conduta de sinal contrário à que tomou. Do mesmo modo, e sendo o veículo da 1ª R. o único presente no local para ser descarregado, inexiste qualquer justificação para aquela prematuridade da descarga, designadamente algum excesso de serviço que desencadeasse tal rapidez na conduta do manobrador do pórtico. O que mais faz concluir pela juízo de culpabilidade deste.

Assim estando determinada a culpa do manobrador do pórtico da A. e afastada a referida presunção de culpa do condutor do veículo da 1ª R., não responde esta civilmente (nem a 2ª R., como seguradora da responsabilidade civil emergente de acidentes causados pelo veículo da 1ª R.) pelos danos sofridos pela A., quantificados no montante despendido pela A. para reparar o pórtico e colocá-lo de novo em funcionamento.

Em suma, na procedência das conclusões do recurso de cada uma das RR., nesta parte, não se pode manter o decidido na sentença recorrida, antes havendo que declarar a improcedência da acção, com a absolvição das RR. do pedido formulado pela A., por não estarem reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito.
***

DECISÃO
Em face do exposto julga-se procedente o recurso de cada uma das RR., revogando-se a sentença recorrida e substituindo-se a mesma por esta outra decisão em que, na improcedência da acção, se absolvem as RR. do pedido.
Custas (na acção e em cada um dos recursos) pela A.



Lisboa, 7 de Julho de 2022



António Moreira
(assinatura electrónica)
Carlos Castelo Branco
(assinatura electrónica)
Orlando Nascimento