Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
582/10.9TCLRS-E.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: ENTREGA DE FRAÇÃO VENDIDA
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
LEGISLAÇÃO EXCECIONAL NO ÂMBITO DA SITUAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGAR PROVIMENTO
Sumário: I - Tendo, no âmbito de execução para pagamento de quantia certa, sido efetuada a venda de fração autónoma penhorada que é casa de morada de família da Executada e sido requerida, em 13-11-2022, pela sociedade que a adquiriu, a respetiva entrega, nos termos conjugados dos artigos 828.º e 861.º do CPC, foi correta a decisão que a indeferiu, ao abrigo do disposto no art.º 6.º-E, n.º 7, al. e), da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, que aprovou medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 (aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 05-04).
II - Ainda não estava então revogado (expressa ou tacitamente), nem nos parecendo que fosse oportuno considerar caducado, o disposto no art.º 6.º-E, n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, perspetivando-se que a sua revogação virá a ocorrer face ao processo legislativo em curso – cf. Proposta de Lei n.º 45/XV/1.ª (GOV), que “Determina a cessação de vigência de leis publicadas, no âmbito da pandemia da doença COVID-19” e Projeto de Lei n.º 240/XV/1.ª (PSD), que “Procede à décima terceira alteração à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que aprova medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus sars-cov-2 e da doença da covid-19” (aprovados na votação na generalidade ocorrida na Reunião Plenária n.º 105, realizada em 24-03-2023).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

MÁXIMATENÇÃO, UNIPESSOAL LDA. interpôs o presente recurso de apelação do despacho que indeferiu o requerimento de entrega judicial do imóvel que adquiriu na ação executiva para pagamento de quantia certa que foi intentada pelo BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A. contra AV, ANV (entretanto falecido, tendo a Exequente vindo desistir da execução quanto a este), MCV e CT.
Os autos tiveram início em 26-01-2010, com a apresentação de Requerimento executivo, pelo qual a Exequente peticionou o pagamento da quantia exequenda com base em duas escrituras públicas de mútuo com hipoteca incidente sobre a fração autónoma designada pela letra B, correspondente ao rés do chão esquerdo para habitação, com uma arrecadação na cave, do prédio situado na Rua .., n.º …, 2695-698 São João da Talha, descrita na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob o n.º …/…-B da freguesia de São João da Talha, cuja aquisição estava registada a favor da 1.ª Executada, mediante ap. … de 2004/03/17.
Alegou a Exequente, para tanto e em síntese, que:
- Em 13 de abril de 2004, Exequente e Executados celebraram dois Contratos de Mútuo com Hipoteca e Fiança, tendo pelo primeiro (compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança) a Exequente mutuado à 1.ª Executada (que então adquiriu pelo preço de 75.000 € a fração acima indicada e declarou destiná-la a sua habitação própria permanente) a quantia de capital de 75.000,00€, e pelo segundo a Exequente mutuado àquela Executada a quantia de capital de 15.450,00€, constituindo-se os demais Executados fiadores;
- Como garantia do cumprimento das obrigações emergentes dos mútuos foram constituídas duas hipotecas, registadas a favor da Exequente, que incidiram sobre a referida fração autónoma;
- Os Executados não cumpriram com as prestações dos contratos de mútuo celebrados e, apesar de instados para procederem à regularização dos mútuos em incumprimento, não o fizeram.
Os Executados foram citados através de carta registada com a/r, tendo a carta dirigida à 1.ª Executada sido enviada e rececionada na morada indicada no requerimento executivo (Rua …, Vivenda Valada e Silva, 2695-543 São João da Talha).
Em 15-02-2022 foi elaborado auto de penhora da fração autónoma hipotecada.
Em 28-02-2022, foi deduzida oposição à penhora (que veio a ser autuada como apenso C) pela 1.ª Executada, identificando-se como residente na Rua …, n.º …, r/c esq. 2695-709 São João da Talha, tendo esse processo sido apensado ao apenso B, de oposição deduzida pelo Executado CT. Nesses autos, foi realizada audiência prévia em 16-02-2023, tendo a Executada sido convocada mediante carta enviada para aquela morada.
Em 13-04-2022, o Agente de Execução determinou a venda da fração penhorada mediante leilão eletrónico.
Em 29-09-2022, o Agente de Execução decidiu aceitar a proposta apresentada pela MÁXIMATENÇÃO, UNIPESSOAL LDA. para aquisição dessa fração.
Após depósito do preço, o Agente de Execução emitiu título de transmissão.
Em 24-10-2022, o Agente de Execução comunicou à 1.ª Executada, através de carta registada enviada para a morada da aludida fração, que havia sido emitido título de transmissão da fração e solicitou a entrega da fração, sob pena de ser requerida a entrega coerciva do imóvel, acrescentando que “as mesmas já não se encontram suspensas por força da Lei 66-A/2022 de 30 de Setembro”.
Em 13-11-2022, esta sociedade apresentou Requerimento, alegando que vem, ao abrigo do disposto no art.º 828.º do CPC, expor e requerer o seguinte:
1.º Por força do Título de Transmissão datado de 19 de Outubro de 2022, que se anexa sob o doc. n.º 1 a ora requerente, adquiriu, em 28 de Setembro de 2022, em sede de leilão eletrónico, e por via de proposta de adjudicação, no valor global de 111.864,93€ (cento e onze mil oitocentos e sessenta e quatro euros e noventa e três cêntimos) conforme decisão do Senhor Agente de Execução, com data de 29 de Setembro de 2022 a FRAÇÃO que infra melhor se discrimina, da qual a requerente, passou a ser dona e legítima proprietária: Fração autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao rés do chão esquerdo, para  habitação, com uma arrecadação na cave, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua …, número …, em São João da Talha, da união das freguesias de Santa Iria da Azóia, São João da Talha e Bobadela, concelho de Loures, inscrito na matriz sob o artigo … “B” da supra mencionada freguesia e concelho, descrita na Segunda Conservatória do Registo Predial de Loures sob o número … “B” da freguesia de São João da talha, concelho de Loures.
2.º A fração acima melhor descrita encontra-se registada a favor da ora adquirente, pela inscrição correspondente à apresentação número … de 21 de Outubro de 2022, conforme certidão permanente que se anexa, sob o doc. n.º 2.
3.º A ex-proprietária da referida fração, AV executada na referida execução, tem impedido a adquirente, aqui requerente, desde a data da aquisição do referido prédio, até à presente data, de tomar posse do referido imóvel, recusando-se a entregar as respetivas chaves, e ocupando, ilegitimamente, o mesmo imóvel, apesar das várias interpelações que lhe foram feitas para que procedesse à sua entrega, porém sem sucesso.
4.º A adquirente, ora requerente, já efetuou o cancelamento de todos os ónus e encargos incidentes sobre o referido prédio, cancelamentos esses decorrentes do facto do prédio ter sido vendido em execução, conforme decorre da certidão permanente anexa, ao presente requerimento.
5.º A requerente tem o direito de obter a posse efetiva da fração, através do mecanismo previsto no artigo 828º do C. P. Civil.
6.º A pretensão da requerente ao fazer uso do mecanismo previsto no art.º 828.º do CPC é a entrega da fração adquirida devoluta de pessoas e bens, a entrega física da mesma, das suas chaves, de forma a que lhe seja concedido o poder de uso, fruição e designadamente de disposição da fração (os quais lhe são conferidos pela Lei) tanto mais que a adquiriu, no âmbito do seu objeto social, de entre o qual, compra, venda e revenda dos adquiridos, e que por via do comportamento inadimplente da executada na entrega da fração, se encontra impossibilitada de o fazer, com prejuízo para o exercício da atividade económica, que constitui o seu objeto social.
Nestes termos e nos mais de Direito, requer-se a V. Exa.:
- Que seja ordenado, nos termos do art.º 828º do C.P. Civil, o prosseguimento da execução contra a detentora do imóvel e aqui executada AV;
- A notificação da executada AV para proceder à entrega à ora requerente da fração acima melhor identificada, devendo esta ser investida na sua posse;
- Que à cautela, seja desde já, proferido por V. Exa. Despacho Judicial, a determinar o auxílio das autoridades policiais, para arrombamento e mudança de fechadura, se necessário for e em caso continuação de oposição da ex-proprietária, como tem sido o caso”.
Juntou certidão do registo predial da qual consta o registo de aquisição a seu favor da aludida fração autónoma, efetuado mediante ap. … de 2022/10/21, por compra em processo de execução.
De seguida, em 02-12-2022, foi proferido o Despacho recorrido, com o seguinte teor:
“Nos termos do disposto no artigo 6º E n.º 7 alínea b) da Lei 1-A/2020, com a redação conferida pela Lei 13-B/2021, de 5 de abril, estão suspensos os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.
A Lei 1-A/2020 é uma lei excecional, motivada e justificada por razões de saúde pública, que justificam a restrição de outros direitos, nomeadamente o direito de propriedade privada.
Por via do Decreto-Lei 66-A/2022, publicado em 30/09/2022, foi determinada a cessação de vigência de decretos-leis publicados, no âmbito da pandemia da doença COVID-19. Mas, por via de tal diploma não foi determinada a cessação da Lei 1-A/2020, que, por isso, e por enquanto, se mantém em vigor.
Termos em que:
· Deverá o Sr. Agente de execução indagar se o imóvel vendido está habitado (casa de morada de família), juntando aos autos auto de diligência certificativo.
Após:
· Confirmando-se que constitui casa de morada de família deve manter-se a suspensão das diligências de entrega.
· Se o imóvel estiver devoluto, desde que cumprido o disposto no artigo 861º n.º 3 do Código de Processo Civil, e ao abrigo do disposto no artigo 757º, aplicável ex vi artigo 861º, ambos do Código de Processo Civil, autorizo desde já a solicitação de auxílio das autoridades policiais e, se necessário, arrombamento da porta e substituição da fechadura, com observância do disposto nos n.ºs 5 a 7 do artigo 757º, e sempre acautelando eventual necessidade de realojamento – artigo 861º n.º 6 do Código de Processo Civil.
Notifique e comunique.”
O Agente de Execução informou, em 06-12-2022, que por anteriores diligências verificou que a fração era a casa de morada da família da 1.ª Executada.
A Requerente, inconformada com o citado despacho, interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
A) A presente execução, culminou com a venda executiva da fração autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao rés do chão esquerdo, para habitação, com uma arrecadação na cave, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua …, número …, em São João da Talha, da união das freguesias de Santa Iria da Azóia, São João da Talha e Bobadela, concelho de Loures, inscrito na matriz sob o artigo … “B” da supra mencionada freguesia e concelho, descrita na Segunda Conservatória do Registo Predial de Loures sob o número … “B” da freguesia de São João da talha, concelho de Loures.
B) Por força do Título de Transmissão datado de 19 de outubro de 2022, a Adquirente/Recorrente, no âmbito do seu objeto social, adquiriu, para revenda, a fração, supra melhor identificada, da qual passou a ser dona e legítima proprietária.
C) A fração acima melhor descrita encontra-se registada a favor da Recorrente pela inscrição correspondente à apresentação número 5387 de 21 de outubro de 2022.
D) Por notificação de 24 de outubro de 2022, com a referência CITIUS número 12929732 (rececionada em 25 de outubro de 2022) o Senhor Agente de Execução, deu conhecimento à executada AV, da emissão do título de transmissão, da apresentação do registo de aquisição da fração a favor da ora Recorrente junto da Conservatória do Registo Predial, bem assim para que a mesma procedesse à entrega do imóvel livre e desocupado em 20 dias.
E) A Executada AV, não procedeu à entrega voluntária da fração dos autos, assim como também nada veio dizer aos autos.
F) A Recorrente, tendo o direito de obter a posse efetiva da fração, através do mecanismo previsto no artigo 828º do Código de Processo Civil, apresentou aos autos Requerimento, para os aludidos fins, o que fez em 13 de novembro de 2022, com a referência CITIUS 13012529.
G) Sobre o Requerimento que a Recorrente apresentou aos autos em 13 de novembro de 2022, recaiu, Despacho com data de 02 de dezembro de 2022, com a referência CITIUS número 154847766 do qual a mesma foi notificada em 05 de dezembro de 2022 com a referência CITIUS número 154963760 o qual determinou “Termos em que: Deverá o Sr. Agente de Execução indagar se o imóvel vendido está habitado (casa de morada de família), juntando aos autos auto de diligência certificativo. Após: Confirmando-se que constitui casa de morada de família deve manter-se a suspensão das diligências de entrega.”
H) O Senhor Agente de Execução, por Requerimento aos autos datado de 06 de dezembro de 2022, com a referência CITIUS número 13110255 fez constar “...que por anteriores diligencias verificou o imóvel ser a casa de morada de família da executada.”.
I) A tese em que assentou o despacho recorrido foi, em síntese, a seguinte:
“(…)”
J) Ora, salvo o devido respeito, que é muito, julga-se que, ao decidir da forma indicada, o Tribunal a quo efetuou, uma errada interpretação e aplicação da lei.
K) A Lei 1-A/2020, na redação original, estabelecia que o regime processual excecional sobre prazos e diligências, só por decreto-lei, poderia deixar de se aplicar, conforme art.º 7.º, n.º 2 dessa Lei.
L) Entretanto, este preceito foi revogado pela Lei 16/2020, de 29/5, conforme estabelece o art.º 8.º deste último diploma.
M) Verifica-se assim a cessação da vigência da Lei 1-A/2020 por CADUCIDADE, dado que a revogação deixou de ser a forma prevista para aquela lei deixar de vigorar.
N) Em 29 de setembro de 2022, no seguimento de reunião do Conselho de Ministros, foi decidido, não prolongar o Estado de Alerta a partir de 01 de outubro de 2022, assim como foi decidido determinar a cessação de vigência de diversos diplomas e medidas excecionalmente aprovados no âmbito e por causa da pandemia COVID 19.
O) O Decreto-Lei 66-A/2022, publicado em 30 de setembro de 2022 com data de entrada em vigor no passado dia 01 de outubro de 2022, veio determinar os decretos-leis que continuam a vigorar, e por outro lado, eliminou as medidas que face à atual conjuntura, já não se revelavam como úteis e ou necessárias, bem assim quais os decretos leis que deixariam de vigorar, de entre os quais, e para o que ora interessa, a maioria dos artigos dos Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de março, por caducos, anacrónicos, ou ultrapassados, face à positiva evolução da pandemia.
P) Foi expressamente revogada, a medida de isolamento profilático por Covid 19 e, consequentemente, terminou a atribuição do respetivo subsídio de doença.
Q) Cotejando, a atual conjuntura do país, com a circunstância de ter sido revogada a medida de isolamento profilático, por doença COVID 19 e atribuição do respetivo subsídio de doença, e vista, por outro lado, a não renovação do estado de alerta, entende-se, ter-se verificado a CADUCIDADE da Lei 1-A/2020 de 19 de março de 2020, por terem deixado de existir os pressupostos fáticos e substantivos que determinaram a sua criação e aplicação.
R) A CADUCIDADE da Lei 1-A/2020 de 19 de março de 2020, revela-se desde logo, pela cessação das situações de vigência no nosso país, do estado de emergência, do estado de calamidade e do estado de alerta;
S) A Resolução do Conselho de Ministros número 73-A/2021, de 26 de agosto, estabeleceu que o estado de alerta vigorará até às 23h59m do dia 30 de setembro de 2022.
T) Do Comunicado de Conselho de Ministros de 29 de setembro de 2022, resulta a não renovação do estado de alerta após a referida data.
U) A não prorrogação do estado de alerta visou adequar a legislação ao estado epidemiológico atual, equiparando, em termos legais e procedimentos daí decorrentes, a infeção Covid-19, às outras doenças.
V) A suspensão automática de entrega prevista na alínea b) do n.º 7 do artigo 6.º-E determinada pelo Tribunal a quo, não tem assim qualquer suporte legal, face à verificada CADUCIDADE da Lei 1-A/2020.
W) A suspensão automática de entrega prevista na alínea b) do n.º 7 do artigo 6.º-E determinada pelo Tribunal a quo causa um prejuízo grave à subsistência da Recorrente.
X) A Recorrente é uma sociedade com escopo lucrativo, tem como objeto social, entre outros “Serviços de mediação e angariação imobiliária, gestão de imóveis, compra, venda e revenda dos adquiridos para esse fim, arrendamento de imóveis, alojamento local, remodelação e revenda” que só consegue manter a sua atividade em funcionamento, pagar vencimentos, pagar impostos e honrar os seus compromissos, quando fatura e, no caso em concreto, com a revenda do imóvel que comprou.
Y) O prejuízo da Recorrente a é manifesto quando já se fala numa bolha imobiliária e se vê impedida de entrar na posse efetiva do imóvel e o revender.
Z) É necessário fazer um juízo de ponderação, entre os interesses em causa, acautelando-se os direitos da Recorrente, sob pena de assim não se fazendo, se criar uma situação desproporcional e injusta, tal como o risco de a Recorrente ser colocada em situação de fragilidade por ter adquirido o imóvel objeto de venda judicial para o exercício da sua atividade, ou seja, para revenda, e se encontrar de todo em todo impossibilitada de o fazer, em razão do despacho ora recorrido.
AA) O despacho recorrido deve assim ser revogado, e substituído por douta decisão que defira o pedido de autorização judicial para entrega imediata da fração dos autos à Recorrente.
BB) O tribunal a quo tomou a iniciativa de aplicar o regime processual excecional e transitório, emergente do citado artigo 6º-E da Lei n.º 1-A/2020 de 19/03 CADUCO sem estar munido de quaisquer factos ou pedido da executada, no sentido de que a entrega da fração é suscetível de a colocar em situação de fragilidade, por falta de habitação ou por qualquer outra razão social imperiosa.
CC) A suspensão da diligência de entrega da fração à Recorrente constitui uma clamorosa e grave violação do seu direito de propriedade, apta a produzir prejuízos irreparáveis, para a sua atividade, o que salvo douto e melhor entendimento, não se pode consentir.
DD) A restrição de direitos, designadamente o direito de propriedade, por razões de saúde pública, sustentada pela Lei n.º 1-A/2020 de 19/03, como lei excecional, que foi, encontra-se completamente anacrónica, face à conjuntura atual do país, em que por via da não prorrogação do estado de alerta se visou adequar a legislação, ao estado epidemiológico atual, equiparando, em termos legais e procedimentos daí decorrentes, a infeção Covid-19, às outras doenças.
EE) O Despacho ora recorrido ao manter a suspensão da entrega judicial da fração dos autos, por a mesma constituir casa de morada de família, com fundamento no artigo 6.º E n.º 7 alínea b) da Lei 1-A/2020, não tem qualquer suporte legal, uma vez verificada a CADCUCIDADE da referida Lei.
FF) E como tal deve ser revogado, e substituído por douta decisão que defira o pedido de autorização judicial, para entrega imediata da fração dos autos à Recorrente.
Não foi apresentada alegação de resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

***

II - FUNDAMENTAÇÃO

Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
A única questão a decidir é a de saber se devia ter sido ordenada a entrega judicial da fração autónoma adquirida pela Apelante na presente execução.

Os factos com relevância para o conhecimento do mérito do recurso são os que constam do relatório supra.
A pretensão da Apelante assenta no preceituado no art.º 828.º do CPC. Este artigo dispõe, sobre a epígrafe, “Entrega dos bens”, que:
“O adquirente pode, com base no título de transmissão a que se refere o artigo anterior, requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens, nos termos prescritos no artigo 861.º, devidamente adaptados.”
De salientar que o art.º 861.º é uma disposição específica da execução para entrega de coisa certa, preceituando, sob a epígrafe “Entrega da coisa”, que:
“1 - À efetivação da entrega da coisa são subsidiariamente aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições referentes à realização da penhora, procedendo-se às buscas e outras diligências necessárias, se o executado não fizer voluntariamente a entrega; a entrega pode ter por objeto bem do Estado ou de outra pessoa coletiva referida no n.º 1 do artigo 737.º.
2 - Tratando-se de coisas móveis a determinar por conta, peso ou medida, o agente de execução manda fazer, na sua presença, as operações indispensáveis e entrega ao exequente a quantidade devida.
3 - Tratando-se de imóveis, o agente de execução investe o exequente na posse, entregando-lhe os documentos e as chaves, se os houver, e notifica o executado, os arrendatários e quaisquer detentores para que respeitem e reconheçam o direito do exequente.
4 - Pertencendo a coisa em compropriedade a outros interessados, o exequente é investido na posse da sua quota-parte.
5 - Efetuada a entrega da coisa, se a decisão que a decretou for revogada ou se, por qualquer outro motivo, o anterior possuidor recuperar o direito a ela, pode requerer que se proceda à respetiva restituição.
6 - Tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo 863.º e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes.”
Sobre a conjugação destes preceitos legais, acompanhamos o entendimento adotado no acórdão da Relação de Coimbra de 24-04-2018, proferido no proc. n.º 2911/11.9TBFIG.C1, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual, conforme consta do respetivo sumário:
“1. O adquirente de bens através da venda executiva pode requerer a entrega do bem contra o detentor na própria execução, devendo a entrega ser deferida, sem mais.
2. Na verdade, o adquirente já beneficia, é detentor, do título de transmissão, o qual é suficiente para promover/requer a entrega do bem.
3. Assim, se o anterior proprietário/detentor de um imóvel, vendido no âmbito de um processo de execução, se recusar a entregá-lo, basta investir o adquirente na respectiva posse, tendo por base o título de transmissão, sendo desnecessário intentar uma nova execução para entrega de coisa certa”.
A questão a decidir é a de saber se devia ter sido determinada pelo Tribunal recorrido a entrega da fração autónoma vendida na execução nos termos requeridos pela ora Apelante, ao abrigo destes preceitos legais, ou se, como entendeu aquele Tribunal, a tanto obsta o disposto no art.º 6.º-E, n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, que aprovou medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 (aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 05-04).
Dispõe este artigo, sob a epígrafe “Regime processual excecional e transitório”, no que ora importa, que:
“1 - No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo.
(…) 4 - Nas demais diligências (isto é, que não sejam audiências de discussão e julgamento) que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer outros atos processuais e procedimentais realiza-se:
a) Preferencialmente através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente; ou
b) Quando tal se revelar necessário, presencialmente.
(…) 7 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo:
(…) b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
(…) 8 - Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.
(…)”
De referir que a aplicação deste artigo (e dos que o antecederam) tem suscitado alguma controvérsia, em particular no que concerne à conjugação das citadas alíneas b) e c), mas a maioria da jurisprudência, que acompanhamos, vem entendendo que, na execução para entrega de coisa imóvel arrendada, no âmbito das ações de despejo, para que o arrendatário possa beneficiar da “suspensão do despejo” prevista na lei [na alínea c) do n.º 7 do art.º 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020], mesmo quando se trate da casa de morada de família, tem o ónus de a requerer, bem como de alegar e provar factos de onde resulte que, a concretizar-se a entrega do arrendado, ele ficará numa “situação de fragilidade por falta de habitação própria” ou que há uma “outra razão social imperiosa” que também justifica que, momentaneamente, não se realize tal entrega, o que será apreciado pelo tribunal, não sendo automática uma tal suspensão. A título exemplificativo, cf. os acórdãos da Relação de Lisboa de 11-01-2022, proc. n.º 16182/20.2T8SNT-A.L1-7, da Relação de Guimarães de 10-03-2022, proc. n.º 2822/19.0T8VCT-A.G1, e da Relação do Porto de 25-10-2022, proc. n.º 18281/21.0T8PRT.P1, disponíveis em www.dgsi.pt, citando, pelo seu interesse para o caso dos autos, a seguinte passagem deste último acórdão:
“(…) IV – A suspensão prevista na al. b) do n.º 7 e a suspensão prevista no n.º 8 dizem respeito a imóveis pertencentes ao executado ou ao insolvente, apreendidos nos respectivos processos de execução ou de insolvência, tendo em vista a sua venda e a subsequente satisfação dos créditos do exequente ou dos credores do insolvente; mas enquanto a al. b) se aplica apenas quando está em questão a casa de morada do executado ou do insolvente e abrange tão somente os actos relacionados com a entrega judicial dessa casa, o n.º 8 aplica-se a quaisquer imóveis e abrange também os actos relacionados com a venda.”
Assim, não obstante a aparente abrangência da expressão atos a realizar em sede de processo executivo” constante da citada alínea b) do n.º 7 (que opera ope legis, isto é, automaticamente, por força da lei), a mesma não inclui a entrega a efetuar no âmbito de execução para entrega de coisa imóvel arrendada, já que contemplada especialmente na alínea c) do n.º 7 (suspensão essa que, tal como a determinada no n.º 8, operam ope judicis, ou seja, depois de confirmada por decisão judicial a verificação dos respetivos requisitos legais). Esta diferenciação de regime compreende-se já que, mesmo quando o local arrendado seja casa de morada de família, isso não significa que o arrendatário não possa dispor de alternativa de habitação própria. Porém, quando se trate de execução para pagamento de quantia certa, como acontece no caso em apreço, a circunstância de estar a ser concretizada uma diligência de entrega judicial da casa de morada de família indicia, em regra, uma situação de fragilidade económica do executado-devedor, sobretudo no atual quadro legislativo, na medida em que não terão bastado os diversos mecanismos legais que visam conferir alguma proteção à casa de morada da família, designadamente os previstos no n.º 4 do art.º 751.º do CPC.
Nos presentes autos, a Apelante não questiona que a fração autónoma em apreço seja a casa de morada de família da 1.ª Executada. Aliás, e pese embora a Executada não tenha sido citada nessa morada (mas na que foi indicada no requerimento executivo, correspondente à mencionada nas escrituras dadas à execução), os demais elementos apontavam claramente para que essa fosse a sua residência e, naturalmente, casa de morada da família. De qualquer modo, o Agente de Execução assim o veio confirmar.
Portanto, é de concluir que a situação em apreço se subsume na previsão da citada alínea b) do n.º 7 do art.º 6.º-E, como entendeu o Tribunal recorrido.
A controvérsia está em saber se, como defende a Apelante, já caducou o citado art.º 6.º-E, n.º 7, al. b) da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03.
A Relação de Lisboa tem vindo a pronunciar-se sobre esta questão, sempre, do que temos notícia, em sentido negativo, designadamente nos seguintes acórdãos (disponíveis em www.dgsi.pt): acórdão de 13-10-2022, no proc. n.º 17696/21.2T8LSB.L1-6; acórdão da Relação de Lisboa de 09-02-2023, no proc. n.º 8834/20.3T8SNT.L1, relatado pela ora Relatora e com intervenção do ora 2.º Adjunto; e acórdão da Relação de Lisboa de 23-02-2023, no proc. n.º 16142/12.7T2SNT-F.L1-6, conforme se alcança do respetivo sumário, com o seguinte teor:
“I - A inconstitucionalidade procede da desconformidade de uma determinada norma, em si, à Constituição, o que não se confunde com a cessação da situação de facto que determinou a emissão legislativa da referida norma.
II - A suspensão das diligências de entrega de casa de morada de família vendida em processo executivo, prevista na alínea b), do nº 7, do art.º 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, não foi revogada pelo DL nº 66-A/2022 de 30 de Setembro, nem a norma em causa caducou.”
Vejamos melhor, seguindo de perto a fundamentação desenvolvida no acórdão de 09-02-2023, acima referido.
Sobre a cessação da vigência da lei, preceitua o art.º 7.º do CC:
“1. Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei.
2. A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.
3. A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador.
4. A revogação da lei revogatória não importa o renascimento da lei que esta revogara.”
De referir, em primeiro lugar, que o citado n.º 7 do art.º 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, não pode ser qualificado como lei temporária (isto é, limitada a um determinado período de vigência, por estar na mesma prevista a sua vigência durante um período temporal fixado ou enquanto durar um certo acontecimento aí indicado) – neste sentido, veja-se o referido acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2022, proferido no proc. n.º 17696/21.2T8LSB.L1-6.
Ademais, apesar de o legislador ter já vindo reconhecer - no Decreto-Lei n.º 66-A/2022, de 30 de setembro (que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação) - a cessação de vigência de diversos artigos de decretos-leis publicados, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, tal ainda não sucedeu com a referida Lei n.º 1-A/2020. Isto mesmo foi também reconhecido pelo citado acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2022, referindo-se no ponto 4 do respetivo sumário que «O art.º Artigo 6.º-E, nº 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, não foi pelo Decreto-Lei 66-A/2022, de 30 de Setembro, visado/atingido, mantendo-se em vigor, o que deverá suceder enquanto permanecer a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.»
Ainda se poderá discutir se, à data da prolação do despacho recorrido (em 02-12-2022) já não era aplicável, por caducidade, o regime legal em causa, o que pressupõe a demonstração, posto que não se está perante facto notório [cf. artigos 5.º, n.º 2, al. c), e 412.º, n.º 1, do CPC] da cessação (àquela data) da “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.
Tal como entendemos no referido acórdão da Relação de Lisboa de 09-02-2023, parece-nos que a resposta deve ser negativa.
Efetivamente, importa ter presente que o n.º 2 do art.º 7.º da referida Lei n.º 1-A/2020, de 19-03 (cuja epígrafe era “Prazos e diligências”) dispunha, na sua redação primitiva (não tendo sido alterado pela Lei n.º 4-A/2020, de 06-04), que “(O) regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.”. Este artigo foi expressamente revogado pelo art.º 8.º da Lei n.º 16/2020, de 29-05, tendo essa mesma lei, no seu art.º 2.º, logo aditado à Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, o art.º 6.º-A acima citado, com a epígrafe “Regime processual transitório e excecional”, o qual já não aludia à definição de data para cessação a definir por decreto-lei, que declarasse o termo da situação excecional. Deixou então de estar previsto que o Governo poderia, mediante decreto-lei, vir declarar o termo da situação excecional prevista naquela.
Por outro lado, embora tecnicamente não se confundam tais situações, não há dúvida que o legislador, ao aludir à “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19” estava a considerar a situação epidemiológica vivida em Portugal na sequência da pandemia da doença COVID-19 que motivou as sucessivas declarações do Estado de Emergência e das Situações de Calamidade e Alerta.
Como é sabido, a declaração do estado de emergência é da competência do Presidente da República [cf. artigos 19.º, 134.º, al. d), e 138.º da CRP], o que já não sucede com a declaração das situações de calamidade, contingência e alerta, matérias reguladas na Lei n.º 27/2006, de 03-07 (Lei de Bases da Proteção Civil).
O Estado de Emergência vigorou em todo o território nacional entre 19 de março e 2 de maio de 2020 (cf. Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18-03, n.º 17-A/2020, de 02-04, e 20-A/2020, de 17-04) e de 9 de novembro de 2020 a 30 de abril de 2021 (cf. Decretos do Presidente da República n.º 51-U/2020, de 06-11, n.º 59-A/2020, de 20-11, n.º 61-A/2020, de 04-12, º 66-A/2020, de 17-12, n.º 6-A/2021, de 06-01, n.º 6-B/2021, de 13-01, n.º 9-A/2021, de 28-01, n.º 11-A/2021, de 11-02, n.º 21-A/2021, de 25-02, nº 25-A/2021, de 11-03, n.º 31-A/2021, de 25-03, n.º 41-A/2021, de 14-04).
Foram igualmente declaradas as situações de calamidade, contingência e alerta, em moldes que seria fastidioso enumerar, com âmbito territorial diversificado (municipal, nacional, continental nacional), pelo que destacamos a Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30-04 - que estabeleceu “uma estratégia de levantamento de medidas de confinamento no âmbito do combate à pandemia da doença COVID 19” -, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 51-A/2020, de 26-06 - que declarou “a situação de calamidade, contingência e alerta, no âmbito da pandemia da doença COVID-19” tendo em consideração o território, nos termos da Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual - e a Resolução do Conselho de Ministros n.º 51-A/2022, de 30-06 - que veio prorrogar a declaração da Situação de Alerta, no âmbito da pandemia da doença COVID-19 até 31 de julho de 2022, em todo o território nacional continental.
É bem certo que esta última Resolução veio a ser considerada expressamente revogada, a partir de 25-10-2022, conforme Resolução do Conselho de Ministros n.º 96/2022, de 24-10-2022, que determina a cessação de vigência de resoluções do Conselho de Ministros publicadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, tendo o respetivo sumário o seguinte teor (sublinhado nosso):
“Desde o início da pandemia da doença COVID-19, o Governo tem vindo a adotar uma série de medidas de combate à pandemia, seja numa perspetiva sanitária, seja nas vertentes de apoio social e económico às famílias e às empresas, com o intuito de mitigar os respetivos efeitos adversos.
Face ao desenvolvimento da situação epidemiológica num sentido positivo, observado nos últimos meses, assistiu-se à redução da necessidade de aprovação de novas medidas e de renovação das já aprovadas.
Concomitantemente, importa ter presente que a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 consubstanciou-se num número significativo de resoluções do Conselho de Ministros com medidas aprovadas com o desidrato de vigorar durante um período justificado de tempo.
Neste contexto, através da presente resolução do Conselho de Ministros, procede-se à clarificação das resoluções do Conselho de Ministros que ainda se encontram em vigor, bem como à eliminação das medidas que atualmente já não se revelam necessárias, através da determinação expressa de cessação de vigência de resoluções do Conselho de Ministros já caducas, anacrónicas ou ultrapassadas pelo evoluir da pandemia.
Desta forma, ganha-se em clareza e certeza jurídica, permitindo aos cidadãos saber - sem qualquer margem para dúvidas - quais as normas relativas à pandemia da doença COVID-19 que se mantêm aplicáveis.”
Aliás, em comunicado oficial, disponível em https://www.portugal.gov.pt, o Governo veio informar o seguinte (sublinhado nosso):
“Fim do estado de alerta
Atenta a atual situação da pandemia pela Covid-19, o Governo decidiu não prorrogar a situação de alerta no território continental, bem como a cessação de vigência de diversos decretos-leis e resoluções aprovados no âmbito da pandemia.
A não prorrogação do estado de alerta visa adequar a legislação ao estado epidemiológico atual, equiparando, em termos legais e procedimentos daí decorrentes, a infeção Covid-19 às outras doenças.
Ao longo do tempo, para orientar e proteger a população portuguesa perante uma situação de excecional imprevisibilidade e gravidade, foi sendo criado um conjunto de diplomas legais e normas que acompanharam os estados de exceção que o país foi vivendo, nomeadamente o estado de alerta.
Agora, são eliminados do ordenamento jurídico os atos legislativos cuja vigência se mostrou desnecessária ou ultrapassada, mantendo-se em vigor disposições dirigidas à proteção das pessoas mais vulneráveis à Covid-19, bem como salvaguardando-se os efeitos futuros de factos ocorridos durante a vigência das respetivas disposições.”
Mas, como é evidente, a Resolução falhou no seu propósito de permitir aos cidadãos saber, sem qualquer margem para dúvidas, quais as normas relativas à pandemia da doença COVID-19 que se mantêm aplicáveis, sendo certo que não poderia ter o alcance, até pelo princípio da hierarquia das leis, de “eliminar do ordenamento jurídico” leis da Assembleia da República, que nem sequer foram contempladas pelo referido Decreto-Lei n.º 66-A/2022, de 30 de setembro.
A Resolução veio, há que o reconhecer, evidenciar que o território continental de Portugal já não se encontra em situação de alerta no âmbito da pandemia da doença COVID-19.
Ainda assim, a verdade é que, à data de prolação do despacho recorrido, se mantinham em vigor no território nacional continental algumas medidas de prevenção, contenção e mitigação como a obrigatoriedade do uso da máscara nas unidades de saúde e nas unidades residenciais para pessoas idosas.
Além disso, importa não olvidar que o território nacional também abrange as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, tendo aí sido aprovadas ao longo do tempo um vasto leque de medidas no âmbito da pandemia de COVID-19, destacando-se a Resolução do Conselho do Governo (Regional dos Açores) n.º 173/2022 de 18-10-2022, que “declara que todas as ilhas do arquipélago dos Açores se encontram em situação de alerta - COVID 19”, sendo-lhes aplicáveis as medidas de cumprimento obrigatório previstas no anexo à referida resolução.
Podemos afirmar que, com o fim do estado de alerta em território continental nacional, a partir das 23h59 de 30 de setembro, foi pelo Governo dado um sinal claro de que já seria oportuno que a Assembleia República legislasse sobre a cessação de vigência de leis publicadas no âmbito da pandemia, incluindo naturalmente as citadas normas legais previstas para vigoraram no decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
Tal resulta inequívoco da circunstância de ter sido pelo Governo apresentada na Assembleia da República, em 11-11-2022, a Proposta de Lei n.º 45/XV, aprovada em Conselho de Ministros de 29 de setembro de 2022, em que, além do mais, está previsto o seguinte:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei considera revogadas diversas leis aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que as mesmas não se encontram em vigor, em razão de caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pela presente lei.
Artigo 2.º
Norma revogatória
Nos termos do artigo anterior consideram-se revogadas:
a) A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, que estabelece medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, com exceção do artigo 5.º;
(…)
Artigo 3.º
Efeitos
1 - Quando incida sobre normas cuja vigência já tenha cessado, a determinação expressa de não vigência de atos legislativos efetuada pela presente lei não altera o momento ou os efeitos daquela cessação de vigência.
2 - A revogação operada pelo artigo anterior não prejudica a produção de efeitos no futuro de factos ocorridos durante o período de vigência dos respetivos atos legislativos.”
O processo legislativo está em curso em termos tais que se nos afigura inaceitável entender que o preceito em apreço pura e simplesmente caducou. Veja-se que a referida Proposta de Lei n.º 45/XV/1.ª (GOV), que “Determina a cessação de vigência de leis publicadas, no âmbito da pandemia da doença COVID-19”, foi objeto de discussão conjunta com o Projeto de Lei n.º 240/XV/1.ª (PSD), que “Procede à décima terceira alteração à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que aprova medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus sars-cov-2 e da doença da covid-19”, tendo recentemente, na votação na generalidade ocorrida na Reunião Plenária n.º 105, realizada em 24-03-2023, ambos sido aprovados.
Torna-se, pois, claro que ainda não foi revogado (expressa ou tacitamente), nem nos parecendo que fosse oportuno considerar caducado, o disposto no art.º 6.º-E, n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, perspetivando-se, tão-só, que a sua revogação virá a ocorrer a breve trecho.
Para terminar, diremos apenas que não se nos afigura que esta interpretação normativa, atenta a transitoriedade da medida legislativa em apreço, afronte quaisquer normas ou princípios constitucionais, mormente o direito à propriedade privada (consagrado no art.º 62.º da CRP).
Embora tal nos pareça ser irrelevante no presente processo, sempre se dirá ainda que os factos apurados não sugerem que da suspensão do ato de entrega judicial em apreço advenham prejuízos irreparáveis para a atividade da Apelante (a qual poderá, se for caso disso, equacionar uma futura demanda fundada em responsabilidade civil do estado por omissão legislativa – cf. Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro).
A Apelante adquiriu a fração autónoma em apreço na vigência daquele regime legal, que, por certo, não ignorava, não se descortinando razão séria para afastar a aplicação do mesmo nos presentes autos em ordem a deferir o requerimento que aquela apresentou em 13-11-2022.
Logo, não merece censura o despacho recorrido, improcedendo as conclusões da alegação de recurso, ao qual não pode deixar de ser negado provimento.

Vencida a Apelante, é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).

***

III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, o despacho recorrido.
Mais se decide condenar a Apelante no pagamento das custas do recurso.

D.N.

Lisboa, 11-05-2023
Laurinda Gemas
Arlindo Crua
António Moreira