Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1593/23.0SFLSB.L1-9
Relator: EDUARDO DE SOUSA PAIVA
Descritores: FURTO
SUBTRAÇÃO
APROPRIAÇÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CONDENAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade do relator)
I. No crime de furto, apenas a subtração (quando o agente tira a coisa) é seu elemento do tipo objetivo, mas não a apropriação, cuja intenção (de apropriação) é apenas elemento do tipo subjetivo deste crime.
II. Para o cometido do crime de furto é necessária a efetiva subtração da coisa ou objeto, mas não a sua apropriação. Deve, porém, o agente, quando subtrai a coisa, fazê-lo com intenção de apropriação.
III. Subtração e apropriação são dois conceitos distintos. Assim, enquanto a (mera) subtração pressupõe um contacto do agente com a coisa, retirando-a de onde se encontrava, já a apropriação implica que o agente se comporte como seu proprietário, dispondo da coisa (ou, em termos subjetivos, a queira fazer coisa sua).
IV. Nenhuma contradição existe, assim, na circunstância de ter sido dada como provada a substração da coisa com intenção de apropriação e ser dado como provado que o agente não logrou apropriar-se da coisa subtraída.
V. A questão saber se os factos provados integram todos os elementos típicos do crime de furto e, consequentemente, se o arguido, em vez de ser absolvido, deveria ser condenando, constitui erro de direito (qualificação jurídico penal), nada tendo que ver com a impugnação da matéria de facto.
VI. Quando o Tribunal da Relação, em recurso interposto de decisão absolutória da 1ª instância, podendo decidir da causa, concluir pela condenação do arguido, não deve determinar o reenvio para novo julgamento, nos termos do art.º 426º, nº 1 do Código de Processo Penal, antes devendo proceder à escolha e determinação da pena, nos termos das disposições conjugadas dos arts 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal, conforme Acórdão do STJ de 4/2016 (in DR nº 36, Série I, de 22/02/2016).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
No âmbito do processo sumário nº 1593/23.0SFLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa – Juiz 2, no qual é arguido,
AA, filho de BB e de CC, ..., solteiro, nascido em .../.../1994, nacional de ..., residente na ..., foi proferida (oralmente) sentença, a 02/11/2023, a julgar “a acusação improcedente, por não provada, e em consequência” a “absolver o arguido AA da prática do crime de furto, previsto e punido pelos artigos 203.º n.º 1do Código Penal, de que vem acusado”.
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O Ministério Público interpôs o presente recurso apresentando as seguintes conclusões:
«1. Na sentença recorrida o tribunal a quo absolveu o arguido AA da prática do crime de furto, previsto e punido pelos artigos 203.º n.º 1 do Código Penal.
2. Porém, o Ministério Público não se conforma com tal decisão, invocando para o efeito: a nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia, prevista no art.º 379.º n.º 1 al. c) do CPP; o erro de julgamento da matéria de facto dada como não provada em audiência de discussão e julgamento; subsidiariamente, a contradição insanável entre a fundamentação e entre esta e a decisão, tal como prevista no art.º 410.º n.º 2 al. b) do CPP.
3. A decisão recorrida invoca que no libelo acusatório não consta que o arguido se tenha apoderado dos bens (mala e quantia pecuniária) da ofendida, sendo este um elemento essencial do tipo objetivo de ilícito de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º n.º 1 do Código Penal. Em consequência, decidiu o tribunal a quo julgar a acusação deduzida pelo Ministério Público totalmente improcedente e absolver o arguido, com fundamento no facto de a acusação ser omissa quanto à indicação da efetiva apropriação pelo arguido de qualquer bem (mala ou quantia monetária) da ofendida, referindo-se na decisão recorrida que “não cabendo ao tribunal suprir tal lacuna, por insuficiência de factos descritivos do tipo objetivo imputado ao arguido”.
4. A verdade é que o tribunal a quo não atentou (nem leu), como devia, em todos os factos descritos na acusação deduzida pelo Ministério Publico contra o arguido.
5. Para tanto, basta atentar na acusação deduzida pelo Ministério Publico, uma vez que se encontra descrito no ponto 3. do libelo acusatório o seguinte: “3. Após, ao verificar a existência de uma sala de arrumos, localizada junto à casa de banho, decidiu introduzir-se no seu interior e dali retirar uma mala de características não concretamente apuradas, propriedade de DD e que continha no seu interior duas notas de € 20,00 (vinte euros), perfazendo um total de € 40,00 (quarenta euros), fazendo-a sua.”
6. Não se compreende os motivos que levaram o tribunal a quo a desconsiderar e não atender à descrição factual constante da parte final do ponto 3. da acusação, na qual se descreve de forma objetiva e concreta que o arguido se apropriou (“fazendo-a sua ”) da mala da ofendida, que continha no seu interior a quantia monetária de € 40,00 (quarenta euros).
7. A decisão recorrida ao não atender e apreciar tal facto descrito na acusação deduzida, constante da parte final do ponto 3. da acusação, na parte em que se imputa ao arguido o facto de se ter apropriado do bem alheio, incorreu impreterivelmente na nulidade prevista no art.º 379.º n.º 1 al. c) do CPP, por omissão de pronúncia do tribunal quanto ao segmento factual constante do referido ponto 3. da acusação, dado que não deu tal facto como provado, nem como não provado.
8. Pelo exposto, deverá ser declarada nula a decisão recorrida, atento o disposto no art.º 379.º n.º 1 al. c) do CPP, por omissão de pronúncia do tribunal quanto ao segmento factual constante do referido ponto 3. da acusação, relativo à apropriação pelo arguido da mala da ofendida. Em consequência, deverá ser suprida tal nulidade, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 379.º n.º 2 do CPP.
9. Por sua vez, o tribunal a quo deu, incorretamente, como não provados os seguintes factos: “que no interior da mala estivessem contidos 40,00 EUR, em duas notas de 20,00 EUR, dos quais o arguido se tenha apropriado.”
10. No entanto, a prova testemunha produzida (em especial o depoimento prestado pelas testemunhas DD e EE), em sede de audiência de discussão e julgamento, analisada à luz das regras da experiência comum, impunha ao tribunal a quo que considerasse como provado que o arguido, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, se apropriou da mala da ofendida, que continha no seu interior a quantia pecuniária de 40,00 EUR (quarenta euros), em duas notas de 20,00 EUR.
11. Com efeito, a ofendida DD, em audiência de discussão e julgamento, declarou que na manhã do dia 31 de outubro de 2023 se deslocou até ao estabelecimento comercial ..., propriedade do seu filho EE, e que colocou a sua mala a tiracolo, que continha a sua carteira, no cacifo localizado na sala de arrumos que se situava junto à casa de banho daquele estabelecimento comercial. Disse ainda esta testemunha que, cerca das 11h00 desse dia, viu o arguido a entrar naquele estabelecimento comercial, e que após pedir um café, o mesmo dirigiu-se de imediato para a casa de banho. Referiu que passados alguns momentos, o seu filho EE disse-lhe que tinha visto o arguido a sair da casa de banho e a entrar na sala de arrumos e a voltar a introduzir-se na casa de banho, levando consigo a mala a tiracolo da ofendida DD. Declarou esta testemunha que de imediato se deslocou até à porta da casa de banho, tendo batido insistentemente na porta, para que o arguido abrisse a mesma e lhe devolvesse a sua mala. Referiu que alguns momentos depois, o arguido abriu a porta, tendo nas suas mãos a mala da ofendida, e após entregou a mala à declarante. De imediato, a ofendida retirou a sua carteira do interior da sua mala e verificou que na sua carteira faltavam duas notas de 20,00 EUR, no total de 40,00 EUR, quantia esta que havia guardado no interior da sua carteira nessa manhã. (Ficheiro: 20231102115543_20716425_2871196, minuto 01:00 a 08:15).
12. Tal depoimento prestado pela ofendida DD foi integralmente corroborado pelo depoimento prestado pela testemunha EE e parcialmente corroborado pelo depoimento prestado pelas testemunhas FF e GG, agentes da PSP.
13. Com efeito, a testemunha EE relatou que no dia 31 de outubro de 2023 encontrava-se no interior do estabelecimento comercial ..., de sua propriedade, na companhia de DD, sua progenitora. Referiu ainda que, pelas 11h30, viu o arguido entrar naquele estabelecimento comercial, e após pedir um café, dirigiu-se de imediato para a casa de banho. Referiu que, passados alguns momentos, viu o arguido a sair da casa de banho e a entrar na sala de arrumos e a voltar a introduzir-se na casa de banho, levando consigo a mala a tiracolo da sua mãe, DD. Declarou esta testemunha que de imediato relatou a situação à sua mãe e que de seguida se dirigiram ambos para a porta da casa de banho, tendo a sua mãe batido insistentemente na porta, para que o arguido abrisse a mesma e devolvesse a mala. Referiu que passado alguns momentos, o arguido abriu a porta da casa de banho, tendo nas suas mãos a mala da sua mãe, e após entregou a mesma à sua mãe. Disse que, de seguida a sua mãe verificou a sua carteira, referindo que lhe faltavam duas notas de 20,00 EUR, no total de 40,00 EUR. (Ficheiro: 20231102122012_20716425_2871196, minuto 00:55 a 04:20).
14. As testemunhas inquiridas DD e EE (bem como FF e GG) prestaram depoimentos claros, objetivos, circunstanciados e coerentes entre si, razão pela qual deveria o tribunal a quo atribuir total credibilidade ao relato prestado por tais testemunhas.
15. Sendo certo que as testemunhas DD e EE não conheciam o arguido antes da ocorrência em causa, não existindo qualquer suspeita de falta de veracidade dos relatos por si prestados.
16. Acresce que os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas DD e EE não foram infirmados por nenhum outro meio de prova.
17. Assim, os relatos efetuados por estas testemunhas DD e EE, conjugados com a demais prova, nomeadamente os depoimentos prestados pelos agentes da PSP (FF e GG), analisados à luz das regras da experiência comum, permitem concluir, de forma inequívoca e com a necessária segurança, que o arguido praticou todos os factos constantes do libelo acusatório, concretamente que no dia 31 de outubro de 2023, pelas 11h30, se deslocou à sala de arrumos localizado no estabelecimento comercial ..., e dali retirou uma mala, propriedade de DD, que continha no seu interior duas notas de 20,00 EUR, perfazendo um total de 40,00 EUR (quarenta euros), fazendo-a sua.
18. Pelo que não se compreende o motivo que levou o tribunal a quo a desconsiderar e não tomar na devida conta, as declarações prestadas pelas testemunhas DD e EE.
19. Cumpre realçar que o facto de não terem sido localizadas na posse do arguido, as duas notas de 20,00 EUR, no total de 40,00 EUR, não permite concluir que essas notas não estivessem no interior da carteira da ofendida e que o arguido não se tivesse apoderado das mesmas. Com efeito, cumpre referir que o arguido, após ser surpreendido pela ofendida (que batia insistentemente na porta do wc onde o arguido se encontrava e pedia para o mesmo sair) e ao tomar consciência que havia sido descoberto, teve tempo e oportunidade para se desfazer das referidas notas de 20,00 EUR, por diversas formas, nomeadamente deitando-as na sanita da casa de banho, ou engolindo-as ou introduzindo-as no ânus. Neste mesmo sentido, pronunciou-se aliás a testemunha GG, agente da PSP.
20. De todo o modo, independentemente de saber qual a quantia monetária que a carteira da ofendida continha, a verdade é que não restam dúvidas, atenta a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, de que resultou provado à saciedade que o arguido se apoderou e apropriou da mala da ofendida, tendo assim consumado, indubitavelmente, o seu intuito de fazer seu aquele bem alheio.
21. Na verdade, resultou demonstrado em sede de audiência de julgamento que o arguido retirou a mala da ofendida do cacifo, localizado na sala de arrumos, transportando nas mãos a referida mala até ao interior da casa de banho do estabelecimento, local onde permaneceu alguns minutos na posse efetiva da mala da ofendida. Sendo irrelevante, para efeito de consumação do tipo em causa, o facto de o arguido ter sido posteriormente surpreendido pela ofendida na posse da mala e que esta a tenha recuperado.
22. No presente caso, o crime de furto atingiu a sua perfeição quando o arguido logrou pegar na mala da ofendida, transportando-a até à casa de banho, porquanto nesse momento o arguido adquiriu o total controlo e domínio sobre a mala da ofendida, que lhe permitiu, abri-la e retirar as duas notas de 20,00 EUR, sendo irrelevante o facto de o arguido não ter logrado concretizar todo o plano que delineou, de fugir daquele local na posse dos bens da ofendida.
23. Porquanto, tal como tem vindo a ser entendido pela Jurisprudência dos Tribunais Superiores, o crime de furto é um crime de consumação instantânea, não sendo de exigir a posse pacífica da coisa alheia, o que se traduziria no caso vertente na fuga bem-sucedida do agente. (inter alia vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-05-2015, no âmbito do proc. n.º 571/14.4GBMTJ.L1-9).
24. Face ao exposto, consideramos que andou mal o tribunal a quo ao não dar como provada tal factualidade, de que o arguido se apoderou da mala da ofendida, fazendo-a coisa sua.
25. Destarte, assentando a convicção do julgador no que a oralidade e a imediação das provas lhe permitem apreender, consideramos que resulta da apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, que o tribunal a quo violou os critérios da livre apreciação de prova, consagrados no art.º 127.º do Código de Processo Penal, pelo deverá o tribunal superior modificar a matéria de facto dada como não provada.
26. Na verdade, não pode o julgador furtar-se a considerar como provado um facto que decorre das declarações de uma testemunha, a quem o tribunal deu credibilidade, sem que tal facto tenha sido refutado ou afastado pelos restantes meios de prova.
27. Pelo exposto, atenta a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento (em especial considerando os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas DD e EE), deverão ser dados como provados os seguintes factos: - “Após, ao verificar a existência de uma sala de arrumos, localizada junto à casa de banho, decidiu introduzir-se no seu interior e dali retirar uma mala de características não concretamente apuradas, propriedade de DD e que continha no seu interior duas notas de € 20,00 (vinte euros), perfazendo um total de € 40,00 (quarenta euros), fazendo-a sua.” (ponto 3. do libelo acusatório); - “O arguido agiu com o propósito concretizado de fazer sua a mencionada mala, com o que se encontrava no seu interior, bem sabendo que aqueles não lhe pertenciam e que agia contra a vontade da sua legitima proprietária, a ofendida DD.” (ponto 5. do libelo acusatório);
28. Em consequência, perante os factos provados, entendemos que no presente caso se encontram preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos que integram o tipo de furto, pelo que deverá ser proferida decisão de condenação do arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, do crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º n.º 1 do Código Penal, entendendo-se como adequado impor-lhe uma pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de €5,00 (cinco euros).
29. Subsidiariamente, caso assim não se entenda, cumpre invocar a contradição insanável entre a fundamentação probatória da matéria de facto e a factualidade dada como provada.
30. Apesar de o tribunal a quo ter dado como provado que o arguido “retirou uma mala de características não concretamente apuradas, propriedade de DD e que continha no seu interior quantia não concretamente determinada” e que “ao pegar na referida mala e seu conteúdo, o arguido agiu com o propósito de fazer seus tais bens, resultado que não logrou obter”, a verdade é que, na fundamentação da matéria de facto, o tribunal a quo refere, por diversas vezes, na sua argumentação que o arguido se apoderou dos bens da ofendida.
31. Assim, não obstante o tribunal a quo ao longo da sua fundamentação referir que o arguido se apoderou da mala da ofendida, que continha uma quantia monetária não concretamente apurada, todavia, o mesmo tribunal apenas deu como provado a prática de atos de execução da subtração dos bens alheios pelo arguido, que seriam enquadráveis e puníveis a título de tentativa do crime de furto.
32. Pelo exposto, consideramos que a decisão recorrida padece do vício de contradição insanável entre a fundamentação probatória e a factualidade dada como provada.
33. Por sua vez, consideramos que a decisão recorrida incorre igualmente no vício de contradição insanável entre a matéria de facto dada como provada e a decisão final de absolvição do arguido, tal como se encontra previsto no art.º 410.º n.º 2 al. b) do CPP.
34. De facto, o tribunal a quo ao declarar totalmente improcedente a acusação deduzida pelo Ministério Público, absolvendo in totum o arguido da prática dos factos de que vinha acusado, e ao dar como provados factos que seriam enquadráveis e puníveis a título de tentativa do crime de furto, incorreu no vício previsto no art.º 410.º n.º 2 al. b) do CPP.
35. Os factos dados como provados pelo tribunal a quo, acima referidos, consubstanciam a prática pelo arguido de atos de execução do crime de furto, porquanto os mesmos preenchem o elemento constitutivo (substração de bem alheio) do tipo de crime de furto.
36. Nestes termos, entendemos que, com a factualidade dada como provada, impunha-se ao Tribunal a quo que condenasse (pelo menos) o arguido pela prática, na forma tentada, do crime de furto. Ao não fazê-lo, é de concluir que o Tribunal a quo, ao proferir decisão de absolvição do crime de furto, na forma tentada, incorreu em violação expressa do artigo 203.º n.º 2 do Código Penal.
37. Em face do exposto, (caso não se entenda que o arguido praticou, na forma consumada, o crime de furto, conforme se pugnou supra) entendemos que em face dos factos dados como provados na decisão recorrida, impunha-se ao Tribunal a quo proferir (pelo menos) decisão de condenação do arguido pela prática do crime de furto, na forma tentada, atento o disposto no artigo 203.º n.º 2 do Código Penal».
Concluiu pedindo a condenação do arguido, pela prática de um crime de furto simples, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00.
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Respondeu o arguido, sem formular conclusões, pugnando pela improcedência do recurso, com a manutenção da decisão recorrida.
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Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.
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Corridos os vistos, foram os autos à conferência.
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Nada obsta à prolação de acórdão.
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II. OBJETO DO RECURSO
Em conformidade com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J. de 19/10/1995 (in D.R., série I-A, de 28/12/1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Atendendo às conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a apreciar:
a) Nulidade da decisão recorrida (por omissão de pronúncia, quanto a factos da acusação);
b) Contradição insanável entre a fundamentação e entre esta e a decisão;
c) Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento;
d) Qualificação jurídico-penal dos factos e, se for o caso, escolha e determinação da medida concreta da pena.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
A) A decisão recorrida
A sentença recorrida estabeleceu os seguintes factos provados:
1.- “No dia 31 de Outubro de 2023 cerca das 11:30, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado ..., sito na ...”.
2.- “E uma vez no interior do referido estabelecimento comercial pediu um café e de imediato dirigiu-se à casa de banho ali existente onde permaneceu a alguns minutos”.
3.- “Ao verificar a existência de uma sala de arrumos próxima da referida casa de banho, o arguido agindo com o intuito de se apoderar de objetos que ali se encontrassem e que despertassem o seu interesse fazendo seus, introduziu-se nessa sala de arrumos e daí retirou uma mala de características não apurada, propriedade de DD”.
4.- “Que continha no seu interior, quantia concretamente não determinada, pretendendo o arguido fazer seus tal bem e a quantia monetária”.
5. - “No entanto, tendo sido percecionado pela testemunha EE, que o arguido havia pegado na referida mala, foi o mesmo intercetado pelo referido EE e pela ofendida DD proprietária da mala, tendo sido recuperada a mala e a quantia aí contida”.
6. - “O arguido agiu com o propósito [de] pegar na referida mala e seu conteúdo”.
7. - “O arguido agiu com o propósito de fazer seus tais bens, factos que não logrou resultado que não logrou obter pela intervenção atempada de EE e DD”.
8. - “O arguido agiu de forma descrita deliberada e conscientemente bem sabendo (…) ser a sua conduta proibida e punida por lei penal”.
9. - “O arguido não tem antecedentes criminais registados (…)”.
Os seguintes factos não provados:
- «A mala foi recuperada, com a carteira e o montante que na mesma constava».
E fundamentou a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
«Entende o Tribunal dado[s] (…) os factos, por provados e não provados os factos supra referidos, pela valoração conjunta e crítica dos seguintes elementos de prova. As testemunhas (…) FF e GG, Agentes da PSP que intercetaram o arguido [,] o conduziram à esquadra e fizeram a revista quer no local quer ao arguido.
Não tendo localizado os 40 euros que se referem na acusação como existindo no interior da mala (…)de que o indivíduo se apossou, tendo não mais reportado aquilo que lhe fora relatado pela ofendida DD e pela testemunha (…) EE, também ouvidos em audiência. Estas duas testemunhas descreveram os factos de forma circunstanciada, sendo clara a descrição e credível a descrição que fazem quanto à entrada do arguido no estabelecimento, à introdução do arguido na casa de banho e depois a sua entrada no espaço de arrumos, aonde estava a mala da ofendida. A perceção de que o arguido pegou na referida mala, e ao terem intercetado o arguido que abriu a porta da casa de banho após insistência para o efeito da testemunha DD, tendo nas suas mãos a mala que retirara do espaço de arrumos aonde antes se encontrava. Apenas suscita dúvidas quanto à efetiva entrada na posse do arguido dos 40 euros, porquanto não obstante a testemunha DD ser perentória no sentido de que tinha aí guardado em determinado compartimento da sua carteira 50 euros, dividido em 2 notas de 20 euros e uma de 10. E que ao ser restituída a mala, as 2 notas de 20 euros já aí não se encontravam. Estando a nota de 10 que perfazia o montante de 50 euros junto com outra nota de 20 num outro compartimento da carteira. Cabe valorar como pertinente a objeção do arguido, de que não faria muito sentido desfazer-se desses 40 euros para ficar suspeito da prática da sua subtração, ao invés de os deixar no local. Acresce também a ponderação de que de acordo com as regras da experiência, também não faria sentido que o arguido tentasse de alguma forma desfazer-se, ou ocultar 40 euros, passando outra nota de 10 euros que se encontrava exatamente na mesma divisória, para um compartimento diferente da carteira. Onde de acordo com as declarações da ofendida se encontrava uma outra nota de 20 euros que foi recuperada juntamente com a mala. Aliás também a testemunha autuante FF referiu terem sido recuperados 3 euros e não 30 como resulta das declarações da ofendida. Outra discrepância que o Tribunal entende que corroboram ou aumentam as suas dúvidas quanto aos montantes efetivamente existentes no interior da carteira em causa. Subsistindo estas dúvidas, o Tribunal não pode deixar de valorar o princípio [in]dúbio para o réu, dando por não provado o valor exato existente no interior da mala da ofendida e a eventual subtração desse montante.
(…) No caso dos a autos não se apurou que o arguido tenha efetivamente logrado e ficado na posse, ou se apropriado no sentido de ter ficado … ter mantido em seu poder, ou ter conseguido ficar em poder de bens pertencentes a terceiros. Aliás, com o devido respeito, a acusação é omissa quanto à indicação da efetiva apropriação pelo arguido de qualquer bem. Dizendo apenas que, o arguido ao verificar a existência de uma sala de arrumos, aí se introduziu para retirar uma mala aí existente e que continha quantia monetária no seu interior. E que a mala foi recuperada, mas a quantia não foi».
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B) Da apreciação do recurso
Em primeiro lugar, defende o Digno Recorrente que a decisão recorrida é nula, por omissão de pronúncia, por não se ter pronunciado sobre o facto constante da parte final do ponto 3 da acusação, que consiste na apropriação, pelo arguido, da mala da ofendida e do montante de €40,00 nela contido (mais concretamente o excerto da acusação que refere “fazendo-a sua”).
Em segundo lugar, o tribunal recorrido deu como não provado “que no interior da mala estivessem contidos 40,00 EUR, em duas notas de 20,00 EUR, dos quais o arguido se tenha apropriado.”
Contudo, a prova produzida em audiência - em especial os “depoimento prestados pelas testemunhas DD e EE - analisada à luz das regras da experiência comum, impunha ao tribunal a quo que considerasse” tal facto como provado. Tendo havido, em seu entender, erro notório na apreciação da prova.
O terceiro lugar, a sentença recorrida, ao dar como provados os factos integradores do crime de furto e ao absolver o arguido de tal crime, em vez de o condenar, implica que estejamos perante uma contradição insanável entre os fundamentos e a decisão.
Conclui que, por se encontrarem “preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos que integram o tipo de furto, (…) deverá ser proferida decisão de condenação do arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, do crime de furto previsto e punido pelo artigo 203.º n.º 1 do Código Penal”, na “pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de €5,00 (cinco euros)”.
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a) Da omissão de pronúncia.
Nos termos do artº 379º, nº 1, al a) do Código de Processo Penal, a sentença é nula quando não contiver as menções referidas no nº 2 do artº 374º do Código de Processo Penal.
De acordo com esta última norma, “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de factos e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do julgador”.
É igualmente nula a sentença, “quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”, por força do disposto no citado artº 379º, nº 1, alínea c).
Importa, assim, na conjugação das citadas normas, apurar quais os factos relativamente aos quais a sentença tem que se pronunciar, dando-os como provados ou não provados.
Em termos de aquisição processual, é pacífico que os factos sobre os quais deve recair o julgamento são tanto os trazidos pela acusação ou pronúncia, pelo pedido de indemnização civil e pela contestação, como os que resultem da discussão da causa.
Todos os referidos conjuntos de factos, nos termos do artº 358º, nº n.º 2 do Código de Processo Penal, têm de ser “relevantes para as questões de saber:
a) Se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime;
b) Se o arguido cometeu crime ou nele participou;
c) Se o arguido atuou com culpa;
d) Se se verifica alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa;
e) Se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança;
f) Se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil”.
De igual modo e com igual âmbito, o artº 124º do Código de Processo Penal delimita os factos que podem ser objeto de prova em processo penal, ao estabelecer, no seu nº 1, que “constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis”, a que acrescem, nos termos do seu nº 2, “os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil”.
Diversamente do que refere o Digno Recorrente, a parte final do ponto 3 da acusação foi objeto de pronúncia pela sentença recorrida, no 6º ponto (nos termos que acima numerámos ao reproduzir os factos provados da sentença da 1ª instância) dos factos provados, nos termos do qual “o arguido agiu com o propósito de fazer seus tais bens, factos que não logrou (…) obter”.
Vale por dizer que, resulta de forma clara e inequívoca da leitura de tal facto provado constante da sentença, que o tribunal recorrido se pronunciou expressamente sobre esse facto, concluindo não ter ocorrido apropriação por parte do arguido, ou seja, que o arguido “não logrou” apropriar-se da mala que retirou/subtraiu”.
Não se verifica, assim, a invocada nulidade da sentença, por não ter havido omissão de pronúncia quanto a tal facto.
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b) Da contradição entre os fundamentos da sentença e entre estes e a decisão.
Entre os vícios da sentença, mais concretamente da decisão da matéria de facto, que podem ser arguidos (e, mesmo não o sendo, podem ser conhecidos oficiosamente) estão os vícios previstos no artº 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, os quais têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, e consistirem, nos termos daquela norma na ou em (e passamos a citar):
“a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova”.
Conforme refere Sérgio Poças (no artigo “Recurso da Matéria de Facto”, in Julgar nº 10, pág. 28), ocorre a apontada contradição quando se dão “como provados dois factos totalmente incompatíveis entre si” ou quando “se dá como provado e como não provado o mesmo facto”.
Esclarece ainda o autor acabado de citar (na mesma obra e local) que, “ao contrário do que por vezes se dá, quando o tribunal a quo faz uma qualificação jurídica desadequada, relativamente à matéria de facto fixada, não está aqui em causa qualquer contradição do artigo 410º, nº 2, al. b), mas sim um erro de direito, um erro de enquadramento jurídico”.
Vejamos se se verifica alguma contradição entre os factos provados, nomeadamente entre os 3º e 5º factos provados (segundo a numeração por nós efetuadas acima, quando reproduzimos os factos provados), ou seja, entre o facto de o arguido ter retirado os objetos e o facto o arguido não ter logrado fazer seus os objetos que retirara.
Para o efeito importa apurar os elementos típicos do crime de furto.
Dispõe o artº 203º, nº 1 do Código Penal que “quem, com intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
Para o preenchimento do tipo objetivo do crime de furto é, portanto, necessário que o agente tire ou subtraia a coisa da posse do respetivo dono ou detentor, contra a vontade deste, e a coloque na sua própria posse, substituindo-se ao poder de facto sob o qual a coisa se encontrava (neste sentido, entre muitos outros: Ac. S.T.J. de 21/11/90, B.M.J. nº 401, pág. 234). Assim, “logo que a coisa subtraída passa da esfera do poder do seu detentor para a esfera do poder do agente, o crime tem-se por consumado” (Ac. S.T.J. de 13/01/88, B.M.J. nº 373, pág. 279).
Ao nível subjetivo, para além de ilegítima intenção de apropriação, exige-se dolo por parte do agente (artº 13º do Código Penal) consistindo este no conhecimento do carácter alheio da coisa e na vontade de a subtrair (artº 14º do Código Penal).
Deste modo, a subtração (quando o agente tira ou subtrai a coisa) é elemento do tipo objetivo do crime de furto, mas não a apropriação, cuja intenção (de apropriação) é apenas elemento do tipo subjetivo deste crime.
Assim, para o cometido do crime de furto é necessária a efetiva subtração da coisa ou objeto, mas não a sua apropriação. Deve, porém, o agente, quando subtrai a coisa, fazê-lo com intenção de apropriação.
Subtração e apropriação são dois conceitos distintos. Assim, enquanto a (mera) subtração pressupõe um contacto do agente com a coisa, retirando-a de onde se encontrava, já a apropriação implica que o agente se comporte como seu deu proprietário, dispondo da coisa (ou, em termos subjetivos, a queira fazer coisa sua).
Como bem refere Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal, na anotação nº 23 ao artº 203º do Código Penal), “o crime de furto é um crime de resultado cortado, atenta a circunstância de a ‘intenção de apropriação’ não ter de se concretizar numa efetiva apropriação”.
Nenhuma contradição existe, assim, na circunstância de ter sido dada como provada a substração da coisa com intenção de apropriação e ser dado como provado que o agente não logrou apropriar-se da coisa subtraída.
Não existe, portanto, qualquer contradição entre os factos provados em 3º (“o arguido agindo com o intuito de se apoderar de objetos que ali se encontrassem e que despertassem o seu interesse fazendo seus, introduziu-se nessa sala de arrumos e daí retirou uma mala de características não apurada, propriedade de DD”) e em 5º (“o arguido agiu com o propósito de fazer seus tais bens … resultado que não logrou obter”) da sentença recorrida.
Questão diversa é a de saber se os factos provados integram todos os elementos típicos do crime de furto e, consequentemente, se o arguido, em vez de ser absolvido, deveria ser condenando. Mas, por se tratar de questão de direito (qualificação jurídico penal) será apreciada depois da apreciação da decisão sobre a impugnação da matéria de facto.
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c) Da impugnação da matéria de facto:
O Digno Recorrente defende que a sentença recorrida, em vez de ter dado como não provadoque no interior da mala estivessem contidos 40,00 EUR, em duas notas de 20,00 EUR, dos quais o arguido se tenha apropriado”, deveria ter dado tal facto como provado, face à prova produzida em audiência e, em especial, devido aos “depoimento prestados pelas testemunhas DD e EE (…), analisada à luz das regras da experiência comum”. Esta prova “impunha ao tribunal a quo que considerasse” tal facto como provado. Tendo havido erro notário na apreciação da prova.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto pode ser feita por uma de duas vias, ou seja, ou através da arguição dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Código de Processo Penal ou mediante a impugnação ampla da matéria de factos, nos termos do art.º 412º, nºs 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal.
No primeiro caso, denominado de impugnação em sentido restrito ou revista alargada, equivalente a error in procedendo, por força do disposto no artº 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, o vício tem de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com a as regras da experiência e tem por fundamento, nos termos desta norma (e passamos a citar):
“a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova”.
No segundo caso, denominado de impugnação ampla da matéria de facto, equivalente a error in judicando, nos termos do art.º 412º, nº 3 do Código de Processo Penal, “o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõe decisão diversa;
c) As provas que devem ser renovadas”.
Por força do disposto no nº 4 do mesmo artigo, nas especificações referidas alíneas b) e c) do nº 3, o recorrente deve indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Em tal caso, “o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa” (art.º 412º, nº 6 do Código de Processo Penal).
Porém, “o incumprimento das formalidades impostas pelo art.º 412º, nºs 3 e 4, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso” (Ac. RE de 09/01/2018, relatado por Ana Brito, in dgsi.pt).
No que concerne ao alegado erro notório na apreciação da prova, o qual tem de resultar do texto da decisão conjugado com as regras da experiência comum, após a leitura da fundamentação da decisão da matéria de facto da sentença recorrida, concluímos que não se verifica.
Efetivamente, a sentença recorrida indica, de forma completa (ainda que sintética, o que bem se compreende por ter sido proferida oralmente), os meios de prova em que se baseou para não dar como provado o facto em causa, fazendo uma análise crítica dos mesmos. Explana de forma clara, perfeitamente percetível e de alguma forma circunstanciada, o raciocínio que seguiu para a decisão tomada sobre a matéria de facto, analisando as provas, conjugando-as entre si e com as regras da experiência comum. É perfeitamente percetível e lógico o seu pensamento e as razões para dar como não provada a “subtração”, pelo arguido, das duas notas de vinte euros.
Em resumo, a sentença esclarece que, tendo o arguido sido revistado, o local inspecionado e a mala recuperada imediatamente a seguir à subtração, concluiu que, não tendo sido encontradas as duas notas, em qualquer dos três locais (nas instalações do estabelecimento comercial, na mala ou em poder do arguido), imediatamente a seguir aos factos, e tendo o arguido negado a subtração das notas em causa, é razoável a dúvida sobre se tais notas estavam ou não na mala quando o arguido a retirou, pelo que, por aplicação do princípio in dúbio pro reo, deu tal facto como não provado.
Estando, como está, à luz das exigências legais, bem fundamentada a decisão da matéria de facto, nesta parte, já que indica as provas em que se fundamenta, faz um correto e completo exame crítico das mesmas, o qual é conforme à regras da experiência comum, e permitem, pelas razões expostas a dúvida razoável sobre o facto em apreciação, a decisão tomada não incorreu em erro notório na apreciação da prova.
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Vejamos agora se, ouvida a prova produzida, deveria tal facto ter sido dado como provado.
A reapreciação da matéria de facto e a audição da prova gravada não se destinam a formar uma nova convicção pelo Tribunal de recurso, mas apenas a sindicar erros de julgamento do Tribunal de primeira instância, segundo é pacífico na jurisprudência e na doutrina. Vale por dizer que, havendo depoimentos a relatar e a negar o facto em causa – e há-os, ou seja, a ofendida referiu ter as duas notas de vinte euros no interior da sua mala, o arguido negou ter retirado e feito desaparecer as notas e as restantes testemunhas esclarecerem que o local foi inspecionado e o arguido revistado logo a seguir - e tendo o Tribunal recorrido valorado tais provas para fundar a dúvida razoável sobre se o arguido retirou ou não os €40 - afastado está qualquer erro de julgamento a corrigir. Questão diversa é a de saber se dos depoimentos prestados seria possível formar duas diferentes convicções, sendo uma a que o Tribunal recorrido formou e uma outra diversa daquela, caso em que, não se destinando o recurso da matéria de facto a efetuar um novo julgamento, não pode o Tribunal de recurso substituir a convicção daquele pela sua convicção.
Na realidade, por virtude da imediação, deve ter-se como mais segura e fundamentada a convicção de quem assistiu à produção da prova, por ter visualizado, nomeadamente os gestos, as expressões faciais e as interjeições dos depoentes, enquanto eram inquiridos.
Assim, tendo o tribunal de recurso, ao ouvir a prova gravada, concluído, como efetivamente concluiu, que a decisão - de dar como não provada a subtração das duas notas de €20,00 - tem respaldo na prova produzida em audiência e na qual o tribunal recorrido fundou a sua convicção, como ocorre na situação em apreciação, temos de julgar o recurso improcedente, nesta parte.
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d) Qualificação jurídico-penal dos factos.
A sentença recorrida deu como provado que, o arguido, no dia 31/10/2023, na ..., em Lisboa, dirigiu-se à casa de banho e, ao verificar a existência de uma sala de arrumos próxima da referida casa de banho, agindo com o intuito de se apoderar de objetos que ali se encontrassem, fazendo-os seus, introduziu-se nessa sala de arrumos e daí retirou uma mala, propriedade de DD, que continha no seu interior quantia concretamente não determinada, pretendendo o arguido fazê-los seus. Tendo agido de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que aqueles bens não lhe pertenciam, querendo retirá-los, como fez, e querendo fazê-los seus. O arguido não conseguiu fazer seus tais objetos porque foi intercetado e impedido por terceiros, tendo a mala sido recuperada e entregue à sua proprietária.
Nos termos do art.º 203º, nº 1 do Código Penal, “quem, com intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
Para o preenchimento do tipo objetivo do crime de furto é, portanto, necessário que o agente tire ou subtraia a coisa da posse do respetivo dono ou detentor, contra a vontade deste, e a coloque na sua própria posse, substituindo-se ao poder de facto sob o qual a coisa se encontrava (neste sentido, entre muitos outros: Ac. S.T.J. de 21/11/90, B.M.J. nº 401, pág. 234). Assim, “logo que a coisa subtraída passa da esfera do poder do seu detentor para a esfera do poder do agente, o crime tem-se por consumado” (Ac. S.T.J. de 13/01/88, B.M.J. nº 373, pág. 279).
Ao nível subjetivo, para além de ilegítima intenção de apropriação, exige-se dolo por parte do agente (artº 13º do Código Penal) consistindo, este, no conhecimento do carácter alheio da coisa e na vontade de a subtrair (artº 14º do Código Penal).
Conforme acima já referimos, a subtração (quando o agente tira ou subtrai a coisa) é elemento do tipo objetivo do crime de furto, mas não a apropriação, cuja intenção (de apropriação) é apenas elemento do tipo subjetivo.
Deste modo, para o cometido do crime de furto é necessária a efetiva subtração da coisa ou objeto, mas não a sua apropriação. Deve, porém, o agente, quando subtrai a coisa, fazê-lo com intenção de apropriação.
Face à factualidade provada, dúvidas não restam de que a conduta do arguido preenche todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de furto simples p. e p. pelo artº 203º, nº 1, do Código Penal, tendo atuado com dolo direto (artº 14º, nº 1 do Código Penal).
Porque não se verificam quaisquer causas que excluam a ilicitude do facto ou a culpa do agente, importa concluir que o arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada, o crime de furto simples p. e p. pelo artº 203º, nº 1, do Código Penal, de que vinha acusado.
Impõe-se, assim, revogar a sentença recorrida, na parte em que absolveu o arguido do crime de que vinha acusado, condenando-o pelo referido crime.
De acordo com a jurisprudência fixada pelo STJ “em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal” (Acórdão 4/2016, in DR nº 36, Série I, de 22/02/2016).
Nos termos do artº 426º, nº 1 do Código de Processo Penal, só se deve determinar o reenvio do processo para novo julgamento “quando não for possível decidir da causa”.
In casu, os autos, mas não a sentença, dispõem dos elementos necessários para a escolha e determinação da pena.
Na verdade, das declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência (aquando da sua identificação) resulta que o mesmo é ... de profissão, facto que, não constando dos factos provados, mas que consideramos provado, leva a que a sentença (conjuntamente com os demais factos provados) passe a conter os elementos (não abundantes, mas) suficientes para a escolha e determinação da medida concreta da pena.
Importa, assim, em conformidade com o disposto nos arts 426º, nº 1, a contrario sensu, 428º, e 431º, al. a), todos do Código de Processo Penal, aditarmos aos factos provados o seguinte facto:
- “O arguido é ...”.
Passemos então à escolha e determinação da medida concreta da pena.
O crime cometido pelo arguido é punido, em alternativa, com pena de prisão ou com pena de multa (arts 203º, nº 1 do Código Penal).
Os critérios a atender na escolha da pena, entre prisão e multa, vêm apontados no artº 70º do Código Penal, determinando esta norma que, o Tribunal deve preferir a multa, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Tais finalidades são, segundo resulta do disposto no artº 40º, nº 1 do Código Penal, a proteção dos bens jurídicos e a reinserção do agente na comunidade.
Assim, a escolha entre prisão e multa, nos termos do artº 70º do Código Penal, depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial (Ac. R.C. de 17/1/96, C.J., tomo I, pág. 38).
O arguido é primário e tem profissão, pelo que, não se fazem sentir particulares exigências de prevenção especial positiva.
Fazem-se sentir algumas exigências de prevenção geral, dada a frequência com que se verificam crimes contra o património, mas atenuadas, uma vez que o objeto furtado foi recuperado quase de imediato pela sua proprietária.
Assim, no caso em análise, atendendo a que, a aplicação de pena de multa realiza de forma adequada e suficiente as necessidades de prevenção geral e especial, dá-se preferência à aplicação de uma pena de multa (arts 70º e 40º, nº 1 do Código Penal).
A moldura abstrata da pena de multa do crime de furto simples é de 10 a 360 dias (arts 203º, nº 1, e 47º, ambos Código Penal).
Na determinação da medida concreta da pena importa atender à culpa do agente, às exigências de prevenção de futuros crimes e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (artº 71º do Código Penal.).
Pela via da culpa, segundo refere o Prof. Figueiredo Dias (“As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, pág. 239), releva para a medida da pena a consideração do ilícito típico, ou seja, “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente”, conforme prevê o artº 71º, nº 2, al. a) do Código Penal.
A culpa, como fundamento último da pena, funcionará como limite máximo inultrapassável da pena a determinar (artº 40º, nº 2 do Código Penal). A prevenção geral positiva (“proteção de bens jurídicos”), fornecerá o limite mínimo que permita a reposição da confiança comunitária na validade da norma violada. Por último, é dentro daqueles limites que devem atuar considerações de prevenção especial, isto é, de ressocialização do agente (F. Dias, ob. cit., págs. 227 e segs.; Anabela Rodrigues, in R.P.C.C., 2, 1991, pág. 248 e segs.; e Ac. S.T.J. de 9/11/94, B.M.J. nº 441, pág. 145).
No caso em análise, fazem-se sentir algumas necessidades de prevenção geral, pelas razões que acima referimos.
Atendendo ao objeto furtado (uma mala que, assim, não terá especial valor), ao modo de execução do facto e ao facto de ter sido recuperado, é de concluir que é médio/baixo o grau de ilicitude do facto e relativamente reduzidas as suas consequências. Devendo-se ter presente que a elasticidade da pena do crime de furto decorre, não só do valor das coisas furtadas, mas também da multiplicidade das condutas que se compreendem na previsão da norma.
O arguido é primário e tem profissão.
Nestes termos, e à luz do disposto nos arts 203º, nº 1, e 71º, nºs 1 e 2, ambos do Código Penal), entendemos adequado e proporcional aplicar ao arguido a pena de 90 (noventa) dias de multa.
Por último, importa referir que, nos termos do artº 47º, nº 2 do Código Penal, a quantia a pagar por cada dia de multa será fixada em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, entre €5,00 (cinco euros) e €500,00 (quinhentos euros).
Atendendo a que não se apurou que o arguido tenha rendimentos (apesar de ter profissão, não se apurou que esteja efetivamente a trabalhar e a auferir salário) e encargos, é justo, adequado e proporcional fixar o quantitativo diário da multa em €5,00 (cinco euros).
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordamos em:
I. Julgar procedente o recurso, na parte em que a douta sentença recorrida absolveu o arguido do crime de que vinha acusado e, em consequência, condenamos o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto simples previsto e punido pelo 203º, nº 1 do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz a quantia total de €450,00 (quatrocentos e cinquenta euros) e, subsidiariamente, caso não pague a multa, em 60 (sessenta) dias de prisão subsidiária;
II. Julgar, na parte restante, improcedente o recurso, negando-lhe provimento.
Sem custas (artº 513º, nº 1, a contrario sensu, do Código de Processo Penal).
Remeta boletim ao registo criminal.
Notifique e deposite.
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Lisboa, 10 de outubro de 2024.
Os Juízes Desembargadores,
Eduardo de Sousa Paiva
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Ana Marisa Arnedo