Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA TERESA LOPES CATROLA | ||
Descritores: | RECURSO DE REVISÃO CADUCIDADE SERVIDÃO DE VISTAS DIREITO DE PERSONALIDADE | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/22/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | INDEFERIDA | ||
Sumário: | (elaborado pela relatora - art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil): 1. É hoje doutrina pacífica que as relações de vizinhança e os litígios delas decorrentes, independentemente da natureza dos respetivos direitos sobre os imóveis, têm frequentemente uma dimensão mais ampla, postulada pela tutela geral dos direitos de personalidade. 2. No reconhecimento do direito à servidão de vistas da autora está ínsito o direito constitucionalmente protegido da autora à saúde e bem estar, entendido como direito pessoal de personalidade da autora (valor vital singular da dignidade humana). 3. O recurso de revisão permite e destina-se a fazer ressurgir uma ação finda e a reabrir uma instância anterior e com ele pretende-se um novo exame da mesma causa. Se o recurso obtém provimento ou está em condições de seguir, o processo anterior retoma o seu vigor. 4. Sendo o recurso de revisão um meio processual que permite, a quem tenha ficado vencido ou prejudicado num processo anteriormente terminado por decisão transitada em julgado, a sua reabertura ou revisão, mediante a invocação de certos fundamentos taxativamente indicados na lei que a determinam, verifica-se o fundamento invocado pela recorrida para a procedência do recurso de revisão». | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório AA e BB, réus nestes autos, interpuseram o presente recurso de apelação do despacho proferido pelo Tribunal a quo em 23 de abril de 2024, que admitiu o recurso de revisão interposto pela autora, “atenta a procedência da ação declarativa que visou a anulação da transação, e determinou o prosseguimento dos autos”. Os recorrentes terminam as suas alegações, alinhando as seguintes conclusões: “1º. Vem o presente recurso da decisão de 23.04.2024 proferida pelo Tribunal Recorrido, que decidiu admitir (erradamente) o recurso de revisão interposto pela Autora, determinando o prosseguimento dos autos principais. 2º. O Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo nº 19/17.2T8HRT.L1 tão só, determinou a anulação do conteúdo da cláusula 2ª do acordo (transação realizada no processo principal), bem como das demais daquela dependentes (3ª a 6ª), relacionadas com as obras para cumprimento daquela. 3º. Os Réus defenderam na ação nº 19/17.2T8HRT.L1, erro na redação da cláusula 2ª na parte em que dizia “41 cm abaixo do nível do parapeito do pátio da autora”, deveria constar 41cm acima do parapeito do pátio da autora. 4º. Naquela ação, na sequência do recurso interposto pelos Réus, o Tribunal da Relação de Lisboa, concluiu inequivocamente que, o que as partes quiseram verdadeiramente acordar, foi em baixar o telhado da edificação (…) em 41 cm acima do parapeito do muro do pátio da autora, de modo à reposição da servidão de vistas (reconhecida na cl. 1ª) relativamente ao pátio existente e não em baixar 41 cm abaixo do parapeito. Tal resulta do aditamento à matéria factual provada dos pontos: 11-A.; 11-B; 11-C; 13-A; da alteração dos factos não provados B. e F. e da eliminação dos factos não provados C., G. e H. 5º. Baixar 41cm repunha, como repôs, o direito à servidão de vistas da Autora relativamente ao pátio existente, mostrando-se assim, cumprido a cl. 1ª da transação. 6º. Contrariamente ao escrito na decisão recorrida, com a decisão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, a cl. 2ª da transação outorgada passou a ter a seguinte redação: 2. Os réus obrigam-se a baixar o telhado da edificação que construíram no seu prédio descrito na conservatória do registo predial sobre o 630 e inscrito na matriz sobre o artigo 863, 41 cm acima do nível do parapeito do pátio da autora. 7º. Os Réus realizaram a obra nesse pressuposto (baixando o telhado 41 cm ou seja, até ao parapeito), conforme resulta do facto provado nº 15 (ação nº 19/17.2T8HRT.L1): Os ali réus e aqui autores licenciaram a obra com vista à reposição da servidão de vistas na Câmara Municipal da Horta, 41 cm acima do parapeito do pátio da autora e executaram-na antes de 30 de setembro de 2016. 8º. Estando a obra executada de acordo com a decisão proferida no processo nº 19/17.2T8HRT.L1, nada mais há que realizar por banda dos Réus para a reposição de servidão de vistas, relativamente ao pátio existente (a servidão reconhecida pelos Réus). 9º. Não há que conhecer dos demais pedidos da ação 24/24.8TBHRT, porque foram alvo de desistência por parte da Autora. 10º. Na verdade, o que a Autora pretende com o presente processo de revisão, é que seja proferida uma nova decisão que “anule”, faça “letra morta” da decisão proferida no âmbito do recurso na ação 19/17.2T8HRT – J1 da Horta. 11º. Na realidade, a Autora continua a pretender que os Réus baixem o telhado 41cm abaixo do parapeito ou seja, 82cm, mais 41cm do que já fora demolido, questão já resolvida pela decisão da Relação. 12º. Está reposta a servidão de vistas de acordo com a cl. 1ª da transação, não há, pois, que discutir, novamente esse direito na ação (da servidão de vistas), como pretende incutir a decisão recorrida, nem discutir os outros pedidos que a Autora livremente renunciou, sendo ilógica o prosseguimento da ação principal. 13º. Querer-se agora outra decisão para que os Réus procedam a mais demolições (…), atenta contra os princípios da certeza e segurança jurídicas, e é querer-se ir contra o sentido e efeitos do “caso julgado”, que resultam dos artigos 619º a 621º do CPC. 14º. A pretensão da Autora e assim, da decisão recorrida, extravasam por completo, os fundamentos que norteiam um recurso de revisão sendo infundada e ilegítima a pretensão da Recorrida, atuando esta, em evidente abuso de direito – art.º 334 do Código Civil, até porque, foi a Autora que deu azo ao erro. 15º. No caso, não está em causa a existência de janelas ou portas para o prédio vizinho, nem o facto da construção poder afetar ou impedir a entrada de luz e ar para o prédio da Autora, para o pátio. 16º. Consideram ainda os Recorrentes que ao caso presente, sempre seria de aplicar o prazo ínsito no art.º 697º, nº 1 do CPC (5 anos), estando assim, caducada a pretensão da Autora, face à data em que transitou a sentença proferida na ação principal. 17º. Assim, nenhum sentido/fundamento (quer de facto, quer de direito) existe para o prosseguimento da ação principal, como decidiu o Tribunal Recorrido. 18º. A decisão recorrida avaliou erradamente o pedido de revisão, preferindo decisão que viola os artigos 619º a 621º, 696º, 697º, nº 2, 699º e 701º, todos do CPC. Nestes termos: deverá o presente recurso ser julgado procedente e em consequência: ser revogado o despacho recorrido que ordena o prosseguimento dos autos principais, substituindo-o por outro que indefira o pedido de revisão, fazendo-se justiça!” A recorrida apresentou contra-alegações, alinhando as seguintes conclusões: “a) É falso que estejam em vigor as clausulas 2.ª a 7.ª da transação homologada nos autos principais. b) A cláusula 2.ª porquanto foi expressamente anulada na decisão do processo 19/17.2T8HRT e a 3.ª a 7.ª cláusulas da mesma transação, também o foram, porque claramente dependentes da referida cláusula 2.ª. c) Assim, a transação homologada apenas reconhece à ali autora e ora recorrida a uma servidão de vistas, nada resolvendo quanto aos demais factos controvertidos da referida ação. d) Estando assim, e por via do decidido na segunda ação (19/17.2T8HRT), completamente esvaziada de conteúdo. e) Demais os réus não repuseram materialmente a servidão de vistas de que a autora beneficia tendo assim o processo anexo, toda a razão para continuar. f) Pois que os ora recorrentes conseguiram anular os demais pontos da decisão através de ação em que alegaram ter atuado em erro na declaração ou erro-obstáculo e erro na transmissão da declaração – divergência entre a vontade e a declaração. g) Nos termos da cláusula 8.ª do dito acordo os ora recorridos desistiram dos demais pedidos, mas apenas porque viam reconhecidos os que constavam das cláusulas 2.ª a 7.ª. h) Desaparecendo estes, têm de desaparecer também a referida declaração de desistência, nos termos da decisão proferida no processo 19/17.2T8HRT porquanto também ela era dependente do que constava da cláusula 2.ª e seguintes também anuladas. i) Os recorrentes pretendem, de má-fé, conjugar o decidido no processo 20/14.8TBHRT com o decidido no processo 19/17.2T8HRT, na parte em seu benefício, quando o que é certo, é que no segundo processo foram anuladas as cláusulas 2.ª a 8.ª do acordo homologado por sentença e com isso confundir o Tribunal. j) O que fazem de má-fé e tentando desesperadamente estabelecer a confusão. k) Aliás, vêm nas conclusões do seu recurso, que pende sob a decisão de um recurso de revisão, crer discutir a relação material controvertida no processo 20/14.8TBHRT. l) O que extravasa de todo o pedido e causa de pedir neste recurso de revisão. m) Que tem a ver apenas com a ausência de tutela jurisdicional quanto ao peticionado pela autora, por via do decidido do segundo processo. n) É de todo ridículo e incompressível dizer que a ora recorrida atua de má-fé, pois foram os recorrentes que através da dita referida ação conseguiram dar “o dito” e homologado por sentença “por não dito”. o) Só a si pois sendo imputável o tempo já decorrido desde a propositura da ação. p) Que corresponde aliás ao tempo à que a ora recorrida vem vendo negada a servidão de vistas de que beneficia, por via da atuação, essa sim, abusiva dos recorrentes. q) Invocam ainda os recorrentes a caducidade pelo decurso do prazo de 5 anos, para a propositura do presente recurso de revisão- referem-se ao art.º 697 nº 1 do CPC, mas certamente por lapso, uma vez que o que está em causa não é o seu nº 1, mas o nº 2. r) Este prazo de caducidade está excecionado nos casos em que o recurso de revisão se refere a direitos de personalidade, ainda nos termos do nº 2 do art.º 697 do CPC. s) Porém os recorrentes quer na motivação, quer nas conclusões do seu recurso, nem sequer abordam esta questão, não fundamentando assim, a razão por que entendem que a autora não pretende ver no processo principal reconhecidos direitos de personalidade. t) Ora, nos termos do recurso interposto da decisão proferida e também nestas contra-alegações, fundamentou-se já, com citação de abundante jurisprudência, por que se entende que no caso a construção feita pelos réus, em termos ilegais, afeta os direitos de personalidade da autora. u) Como se disse, os recorrentes invocam a caducidade do direito ao presente recurso de revisão, não invocando qualquer fundamento e muito menos qualquer jurisprudência no sentido em que apelam. v) Naturalmente, porque não têm razão, senão tê-lo-iam certamente feito. w) Num recurso não basta lançar temas para o ar sem qualquer fundamentação, pois tal põe em causa o princípio do contraditório, porquanto a ora recorrida, não sabe, nem pode saber o que tem de rebater. x) No entanto, sempre se repetirá que os ora recorrentes construíram uma casa a menos de 1,50m do prédio da autora, que tem uma casa e um pátio, com isso atuando contra o que dispõe o artigo 1360.º do Código Civil. y) Ora, este art.º que regula as relações de vizinhança entre proprietários confinantes, mais não pretende assegurar que o arejamento, desafogo, vistas e direito ao sol por alguns até chamado de “direito à insolação” que visam assegurar Direitos Fundamentais e Constitucionalmente Protegidos, como o Direito à Reserva e Intimidade da Vida Privada e Familiar (art.º 26 nº 1 da CRP), Direito à Saúde (art.º 64 da CRP), Direito a um ambiente de Vida Humano e Sadio (art.º 66 nº 1 da CRP) e art.º 65 nº 1 “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”(sublinhado nosso). z) Trata-se de Direitos pessoais e Fundamentais, por isso também abrangidos naturalmente pela tutela dos Direitos de personalidade prevista nos termos do art.º 70 nº 1 do Código Civil. aa) Nos termos do citado art.º 697 nº 2 do CPC, em que se excluem as ações respeitantes a direitos de personalidade do prazo de caducidade de 5 anos, para interpor recurso de revisão, o recurso interposto pela recorrida não está sujeito a qualquer prazo de caducidade. bb) Pelo que só pode ser considerado tempestivamente interposto. cc) Não se entende o referido no ponto 17.º das conclusões dos recorrentes, quando referem que o presente não tem qualquer fundamento de facto. dd) É que no mesmo e por definição, nunca está em causa a discussão de questões de facto. ee) Já no que se refere às questões de direito e por todo o supra exposto elas estão com a recorrente. ff) A decisão recorrida constituiu uma peça jurídica modelar fazendo uma adequada e proporcionada conjugação dos deveres de síntese, objetividade, lógica e fundamentação de direito, com citação de normativos legais e jurisprudência de forma conforme ao Direito. gg) Aliás, não pode deixar de se elogiar uma vez mais a mesma, porque de uma forma simples e sintética decidiu o presente recurso de revisão com saber e de forma conforme o Direito e plenamente fundamentada. hh) Com as citações necessárias, num plano lógico e racional e sem as citações desnecessárias e que cortam a lógica e objetividade do raciocínio. Termos em que se concluiu: 1) Não deve ser admitido o recurso dos recorrentes CC e DD por ilegitimidade dos mesmos. 2) Deve o recurso ser julgado totalmente improcedente, assim se mantendo o douto despacho recorrido. 3) Subsidiariamente e caso os recursos dos recorrentes CC e DD sejam admitidos, considera-se que devem também ser considerados totalmente improcedentes, mantendo-se também a douta decisão recorrida. Mas VOSSAS EXAS, VENERANDOS DESEMBARGADORES, no entanto, como sempre e com subido critério melhor decidirão, fazendo justiça! Em 2 de setembro de 2024 foi proferida decisão sumária, ao abrigo do disposto no artigo 656 do CPC, que julgou parcialmente procedente a apelação interposta por AA e BB, réus nestes autos, e, em consequência, revogou a decisão recorrida na parte em que determina o prosseguimento da ação principal, e não admitiu o recurso de revisão interposto. A recorrida reclamou para a conferência. Apresenta as seguintes conclusões: “a) O decidido no processo 1919/17.2T8HRT não constituiu qualquer caso julgado relativamente aos presentes autos. b) Pois, entre estes e esses são diferentes o pedido, quer a causa de pedir. c) Do mesmo modo, os factos ali provados não podem ser transpostos para o presente, pois mesmo que existisse caso julgado, este refere-se tão só à decisão proferida e não aos respetivos pressupostos, de facto ou de direito. d) Aliás, a admissão do presente recurso de revisão decorre expressamente do previsto no artigo 696 alínea d) do CPC, que por esta via não pode ser aberogado. e) A matéria resultante ao recurso de revisão por vicio da vontade quanto a transação homologada por sentença tem sido pouco estudada e sobre a mesma não há, que se conheça Jurisprudência relevante. f) Assim, a questão em causa nunca podia considerar-se como simples, pelo que não poderia nunca proferir-se decisão sumária ao abrigo do disposto no art.º 655 nº 1 do CPC, sendo que a mesma sempre devia ser competência do Tribunal Coletivo. Termos em que se pede a substituição da decisão sumária proferida, por outra, agora em Tribunal Coletivo, que julgue improcedente o recurso interposto pelos Réus, ora Recorrentes, e determine o prosseguimento dos autos apensos, conforme decidido em primeira instância, tudo com as demais consequências legais, se fará a costumada justiça!!” Os recorrentes/réus AA e BB, ora reclamados, responderam, pronunciando-se no sentido de dever ser confirmada em Conferência a Decisão Sumária e, a ser proferida nova decisão, que julgue procedente o Recurso dos Recorrentes. Os recorrentes/réus/reclamados não formularam conclusões, remetendo para as já apresentadas no requerimento de interposição de recurso. Nos termos previstos no art.º 662.º, n.º 3 do CPC, a parte que se considere prejudicada por qualquer despacho do relator pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão. A reclamação para a conferência não constitui uma forma de impugnação da decisão singular do relator, mas um instrumento que visa a sua substituição por uma decisão colectiva, que permita, depois e sendo esse o caso, a interposição de recurso de revista. Tanto assim é que a reclamante nem sequer está obrigada a expor as razões pela quais discorda da decisão singular, bastando-lhe manifestar a vontade de que o objecto do recurso seja apreciado em conferência (cfr., Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 7.ª ed., 2022, p. 303). Optando, no entanto, a reclamante por justificar a sua iniciativa, é, obviamente, livre de a motivar como bem entender, sustentando uma posição diversa da acolhida na decisão singular, desde que, naturalmente, se situe dentro dos limites da matéria em causa. A reclamação - que foi tempestivamente deduzida - é, pois, perfeitamente admissível, nada obstando ao seu conhecimento. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. II. Âmbito do recurso Nos termos do artigo 635 do CPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações dos recorrentes, sem prejuízo do disposto no artigo 608 do mesmo Código. Questões a decidir: - saber se o requerimento de recurso de revisão deveria ter sido indeferido, apreciando-se previamente a excepção de caducidade do direito de interpor este recurso de revisão deduzida pelos recorrentes; - saber se a recorrida/autora agiu em abuso de direito. III. Fundamentação de Facto São elementos processuais relevantes para a apreciação do recurso os elencados no relatório, e os que constam do seu elemento narrativo dos autos, destacando-se: 1. Em 15 de janeiro de 2014, EE, na qualidade de Autora, intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum e que correu termos sob o número de processo 20/14.8TBHRT, contra AA, BB, CC e DD, pedindo que na sua procedência: a) Fosse reconhecido à Autora o direito de servidão de vistas do pátio e da janela; b) Fossem os Réus condenados a: b.1 demolirem a obra com vista à reposição das medidas impostas por lei; b.2 pagarem à Autora o montante de 1.500,00€ a título de danos não patrimoniais; b.3 pagarem à Autora a título de dano futuro o montante que se vier a apurar a título do prejuízo sofrido pelas diversas deslocações da Autora do Continente à ilha, e todas as despesas inerentes à ação. 2. Os Réus contestaram a ação, defendendo-se por impugnação e peticionando a condenação da Autora como litigante de má-fé. 3. Na audiência prévia realizada em 4 de dezembro de 2015, foi proferida sentença transitada em julgado em 19 de janeiro de 2016, que homologou a transação alcançada pelas partes nos seguintes termos: “1. Os réus reconhecem o direito à servidão de vistas da autora, relativamente ao pátio existente no prédio urbano sito na Travessa ..., Horta inscrito sobre o artigo matricial n.º 902. 2. Os réus obrigam-se a baixar o telhado da edificação que construíram no seu prédio descrito na conservatória do registo predial sobre o 630 e inscrito na matriz sobre o artigo 863, 41 cm abaixo do nível do parapeito do pátio da autora. 3. Os réus comprometem-se a realizar as obras necessárias com vista ao cumprimento do estatuído no ponto anterior do presente acordo até ao dia 30 de Setembro de 2016. 4. Na data aludida em 3), as partes comprometem-se, conjuntamente e respetivamente, cada uma com perito da sua confiança, a fiscalizar o cumprimento da boa execução da obra objeto do presente acordo, altura em que deverá, por escrito, ficar circunstanciado se o acordo foi cumprido ou não e quais os fundamentos para um eventual incumprimento. 5. Acordam as partes que o incumprimento do prazo estipulado no ponto anterior implica o pagamento dos réus à autora de uma quantia diária de 50 euros até ao seu integral cumprimento a título de cláusula penal. 6. Comprometem-se os réus a juntar ao processo, até dia 31 do corrente mês, comprovativo do pedido de licenciamento junto da Câmara Municipal. 7. Acordam as partes que conferem ao presente acordo o seu respetivo título executivo, podendo a autora, no caso de incumprimento dos réus, recorrer à execução de prestação de facto. 8. Acordam as partes em desistir dos demais pedidos pendentes, incluindo o de litigância de má-fé. 9. Custas em partes iguais prescindindo ambas as partes de custas de parte”. 4. No seguimento de uma ação interposta pelos Réus em 25 de janeiro de 2017, que correu termos sob o número de processo 19/17.2T8HRT, foi proferido, em sede de recurso, Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa que declarou a anulabilidade, por verificação de erro na declaração ou erro-obstáculo e erro na transmissão da declaração – divergência entre a vontade e a declaração -, da cláusula 2. da transação realizada na ação nº. 20/14.8TBHRT, na parte onde consta “41 cm abaixo do nível do parapeito do pátio da Autora”, bem como das demais cláusulas desta dependentes. A decisão transitou em julgado em 2 de outubro de 2023. 5. Nesse Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa consta a seguinte factualidade: “A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Na sentença recorrida/apelada, foi considerado como PROVADO o seguinte (consta a negrito a matéria factual aditada, conforme decisão infra): 1. A ré, EE, na qualidade de cabeça de casal de herança indivisa aberta por óbito de FF intentou ação judicial contra os autores AA, BB, CC e DD, que correu termos no Tribunal Judicial da Horta, secção única, sob o n.º 20/14.8TBHRT. 2. A ré, autora na mencionada ação, formulou os seguintes pedidos: «1. Nestes termos, deve a acção ser julgada procedente e em consequência ser reconhecido à Autora o direito de servidão de vistas do páteo e da janela da Autora; 2. Serem os Réus condenados a demolirem a obra com vista à reposição das medidas impostas por lei; 3. Serem os Réus condenados a pagar à Autora, o montante de 1500,00(mil e quinhentos euros) a título de pagamento de danos morais; 4. Serem os Réus condenados a pagar a título de dano futuro o montante que se vier a apurar a título do prejuízo sofrido pelas diversas deslocações da Autora do Continente à ilha, e todas as despesas inerentes à presente ação.» 3. A referida ação foi precedida de providência cautelar de embargo de obra nova que correu termos no mesmo Tribunal sob o n.º 300/13.0TBHRT 4. Quer na audiência de julgamento da providência, quer na ação principal referida, foram realizadas inspeções ao local, sendo que a inspeção realizada no âmbito do processo n.º 20/14.8TBHRT ocorreu no dia da audiência prévia, 04-12-2015. 5. Mais concretamente, no âmbito do procedimento cautelar que correu termos sob o n.º 300/13.0TBHRT, foram feitas duas inspeções ao local: uma no dia 02-09-2013, aquando da produção de prova, sem audição dos requeridos, à qual presidiu o Mmo. Juiz de Direito, Dr. GG e outra no dia 20-05-2014, após oposição deduzida pelos requeridos e que foi presidida pela Mma. Juíza Dra. HH. 6. Da ata da diligência realizada no dia 20-05-2014, no âmbito do referido procedimento cautelar consta, após o auto de inspeção e o despacho de homologação de desistência da instância: «Neste momento, pela Mma. Juíza de Direito dispensadas as testemunhas II, JJ, KK, LL e MM.» 7. Da inspeção ao local resultou realizada no dia 04-12-2015, no âmbito do processo n.º 20/14.8TBHRT, consta que: «- Da esquina noroeste da construção nova (dos RR.) até ao terraço da autora contam-se 95 cm (noventa e cinco centímetros); - Da esquina nordeste da construção nova até ao terraço da autora são 115 cm (cento e quinze centímetros); - Do parapeito do terraço entre os mencionados 95 e 115 cm ligeiramente oblíquos em relação à construção nova dos réus, esta construção dos RR. Apresenta uma altura excedente ao mencionado parapeito em cerca de 41 cm (quarenta e um centímetros). - Sentado no terraço da autora constata-se que a parcela dos 41 cm (quarenta e um centímetros) excedente ao parapeito da A., cobre a vista de parte do Porto Novo e Cais, bem como de uma pequena parte da vista sobre a base da Ilha do Pico.» 8. Após a realização da inspeção ao local e regressados ao Tribunal, reentraram na sala de audiências o Juiz de Direito, Dr. NN, a oficial de justiça, OO, a então autora, EE, a sua mandatária e o mandatário dos ali réus. 9. O aqui autor, réu na ação n.º 20/14.8TBHRT, EE optou por não entrar na sala de audiências por se ter enervado, no decurso da inspeção ao local. 10. O mandatário do autor, réu na ação n.º 20/14.8TBHRT, saiu da sala e transmitiu-lhe que a proposta da autora era baixar em 41 cm acima do nível do parapeito da autora. 11. O aqui autor e ali réu EE acordou em baixar 41 cm acima do nível do parapeito do pátio da casa autora desde que lhe fosse concedido um prazo razoável para realização da obra. 11-A.: “o mandatário dos ali Réus disse que, em face das medições efetuadas na inspeção ao local, os seus clientes estavam na disposição de demolir o seu prédio em 41 cm acima do parapeito do muro do pátio da autora”; 11-B.: “O que foi aceite pela Autora e sua mandatária”; 11-C.: “Os ali Réus e aqui Autores só subscreveram o acordo em causa também devido às medidas recolhidas na inspeção ao local” ; 12. A mandatária da ali autora e aqui ré passou a ditar o acordo para a ata. 13. A mandatária da autora na ação n.º 20/14.8TBHRT e aqui ré ditou o seguinte acordo para a ata: «1. Os réus reconhecem o direito à servidão de vistas da autora, relativamente ao pátio existente no prédio urbano sito na Travessa ..., Horta, inscrito sobre o artigo matricial n.º 902 2. Os réus obrigam-se a baixar o telhado da edificação que construíram no seu prédio descrito na conservatória do registo predial sobre o 630 e inscrito na matriz sobre o artigo 863, 41 cm abaixo do nível do parapeito do pátio da autora. 3. Os réus comprometem-se a realizar as obras necessárias com vista ao cumprimento do estatuído no ponto anterior do presente acordo até ao dia 30 de setembro de 2016. 4. Na data aludida em 3), as partes comprometem-se, conjuntamente e respetivamente, cada uma com perito da sua confiança, a fiscalizar o cumprimento da boa execução da obra objeto do presente acordo, altura em que deverá, por escrito, ficar circunstanciado se o acordo foi cumprido ou não e quais os fundamentos para um eventual incumprimento. 5. Acordam as partes que o incumprimento do prazo estipulado no ponto anterior implica o pagamento dos réus à autora de uma quantia diária de 50 euros até ao seu integral cumprimento a título de cláusula penal. 6. Comprometem-se os réus a juntar ao processo, até dia 31 do corrente mês, comprovativo do pedido de licenciamento junto da Câmara Municipal. 7. Acordam as partes que conferem ao presente acordo o seu respetivo título executivo, podendo a autora, no caso de incumprimento dos réus, recorrer à execução de prestação de facto. 8. Acordam as partes em desistir dos demais pedidos pendentes, incluindo o de litigância de má-fé. 9. Custas em partes iguais prescindindo ambas as partes de custas de parte.» 13-A: “Nem no momento em que foi ditado o acordo pela mandatária da ali autora e aqui ré, nem posteriormente, o mandatário dos ali réus, aqui autores, se apercebeu da troca da palavra “acima” pela palavra “abaixo”; 14. O referido acordo foi homologado por sentença proferida de imediato pelo Mmo. Juiz, a qual transitou em julgado em 19-01-2016. 15. Os ali réus e aqui autores licenciaram a obra com vista à reposição da servidão de vistas na Câmara Municipal da Horta, 41 cm acima do parapeito do pátio da autora e executaram-na antes de 30 de setembro de 2016. 16. Os autores receberam uma carta da mandatária da ré que invocava a redação dada por ela ao acordo “abaixo do parapeito” e não acima do nível o que surpreendeu os autores. Na mesma sentença, foi CONSIDERADA NÃO PROVADA, a seguinte factualidade (encontra-se assinalada com um * a matéria de facto impugnada; encontram-se em itálico os factos alterados e em nota de rodapé os factos originais): A. A autora, EE e a sua mandatária tomaram a bancada à direita do Mmo. Juiz e o mandatário dos réus sentou-se na bancada à esquerda, ou seja, do lado do mar. B. “que para além do consignado no facto 11-A, o mandatário dos ali Réus tenha igualmente afirmado a disponibilidade dos seus clientes para que a demolição se estendesse até à distância de 1,5 m” 2 *; C. Eliminado 3 *; D. No início da audiência prévia e quando se tentava um acordo, a mandatária da ali autora, aqui ré, afirmou que a construção dos réus ofendia a servidão de vistas em 30 cm acima do parapeito. E. Não se tento procedido a acordo nesses moldes, ou seja, 30 cm acima do parapeito do pátio, por o mandatário dos réus ter insistido na inspeção ao local. F. “que a circunstância de ter sido a mandatária da Autora na acção nº. 20/14.8TBHRT a ditar o acordo, nos termos expostos no facto provado 13., se deva ao facto da mesma querer incluir uma cláusula penal” 4 *; G. Eliminado 5 *; H. Eliminado 6 *; (2 Originariamente, este facto tinha a seguinte redacção: “Questionados os advogados sobre a possibilidade de um acordo, o mandatário dos ali réus disse que, em face das medições efetuadas na inspeção ao local, os seus clientes estavam na disposição de demolir o seu prédio em 41 cm acima do parapeito do muro do pátio da autora até à distância de 1,5 m”. 3 Constava a seguinte redacção: “O que foi aceite pela autora e sua mandatária”. 4 O presente facto tinha a seguinte redacção: “Foi a mandatária da ré, autora na ação n.º 20/14.8TBHRT a ditar o acordo porque queria incluir uma cláusula penal”. 5 Constava no presente facto que: “Os ali réus e aqui autores só subscreveram o acordo em causa por causa das medidas recolhidas na inspeção ao local”.) I. A redação dada pela mandatária da aqui ré, ali autora, ao acordo referindo 41 cm abaixo do nível do parapeito do pátio da autora obriga à demolição da parede da construção em causa que é estruturante e serve de suporte às traves do telhado. J. Tal demolição implica custos muito elevados por exigir a remoção do pilar existente e da viga de amarração até àquele nível, o que obriga à construção de novo pilar para apoio da viga de amarração e suporte do travejamento em madeira que sustenta o telhado. K. Obrigando a retirar grande parte das placas de gesso do teto falso e consequente reposição, assim como obriga a proceder a alteração de parte do telhado com nova inclinação para as traseiras do edifício para evitar infiltrações. L. As demolições referidas, aquisição de materiais e mão de obra importarão um custo superior a 5.000,00 €. M. A filha dos aqui autores, ali réus, mantém no edifício um centro de terapia e meditação, pelo que, o mesmo terá de ser obrigado a encerrar durante o período de execução das obras, causando prejuízos que atento o tempo necessário à execução da obra, rondarão os 3.000,00 €. 6. A autora EE interpôs em 1 de dezembro de 2023 o presente recurso de revisão. IV. Fundamentação de Direito Da decisão sumária consta a seguinte fundamentação: “- O recurso de revisão Como dão nota Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes (Dos Recursos – Regime do Decreto-Lei n.º 303/2007, Quid Juris Soc. Ed., Lisboa, 2009, pp. 333-335), “na origem do processo e da jurisdição encontra-se o legítimo desejo de os particulares adquirirem certeza relativamente aos seus direitos ou interesses dignos de tutela. Perante a dúvida quanto à existência desses direitos, aberta pelo conflito de vontades e de acções práticas dos particulares, partes numa determinada relação ou situação com relevo jurídico, nasce a exigência do juízo, do recurso a um terceiro imparcial e equidistante que declare o direito. O acertamento judicial surge como o mais importante antídoto para dissipar aquela dúvida. Contudo, se esse acertamento pudesse ele mesmo ser posto em dúvida e discutido vezes sem conta, sem limites, até ao infinito, não constituiria remédio eficaz para superar a crise instalada nas relações jurídicas (…). Para obviar a esse resultado torna-se necessário que o acertamento jurisdicional revista a característica da indiscutibilidade. O conceito de caso julgado exprime precisamente esta característica (…). Mas pode haver circunstâncias que induzam a quebrar a rigidez do princípio. A sentença pode ter sido consequência de vícios de tal modo corrosivos, que se imponha a revisão como recurso extraordinário para um mal que demanda consideração e remédio. Quer dizer, pode a sentença ter sido obtida em condições tão estranhas e anómalas, que seja de aconselhar fazer prevalecer o princípio da justiça sobre o princípio da segurança. Por outras palavras, pode dar-se o caso de os inconvenientes e as perturbações resultantes da quebra do caso julgado serem muito inferiores aos que derivariam da intangibilidade da sentença (…)”. O recurso de revisão constitui, neste sentido, um meio necessário, mas extraordinário, de impugnação de decisões judiciais (cfr. artigo 627.º, n.º 2, do CPC). Conforme ilustra Luís Filipe Brites Lameiras (Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2.ª ed., Almedina, 2009, p. 292): O recurso de revisão “[n]o fundamental destina-se a ser válvula de escape para certo tipo de situações em que a posteriori se descortina algum facto demonstrativo de um vício decisivo que, na substância, atinge a decisão consolidada no caso julgado. Não fora este mecanismo, haveria decisões manipuladas ou injustas que, porque transitadas, jamais poderiam ser modificadas, pese o reconhecimento daquela sua manipulação ou inequívoca injustiça. É, em suma, aquele tipo de decisões que o recurso de revisão tem em vista destruir, destruindo uma situação viciante anterior”. Na expressão do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de junho de 2019 (Pº 98/16.0T8BGG-A.G1.S1, rel. Ilídio Sacarrão Martins, “o recurso de revisão previsto no artigo 696 e seguintes do CPC constitui um atentado à intangibilidade do caso julgado formado pela sentença revidenda e, deste modo, à segurança ou à certeza jurídicas que aquele envolve, só justificável por razões de justiça impostas pelo evoluir da consciência jurídica dos povos civilizados e mais conformes à feição social do direito hoje preponderante. O recurso extraordinário de revisão é um expediente processual que faculta a quem tenha ficado vencido num processo anteriormente terminado, a sua reabertura, mediante a invocação de certas causas taxativamente indicadas na lei”. O recurso extraordinário de revisão, regulado nos artigos 696º a 702º do CPC, é um meio processual que permite, a quem tenha ficado vencido ou prejudicado num processo anteriormente terminado por decisão transitada em julgado, a sua reabertura ou revisão, mediante a invocação de certos fundamentos taxativamente indicados na lei que a determinam. Ou seja: “O recurso de revisão é o meio processual que permite afastar, em situações excecionalíssimas, taxativamente elencadas no art.º 696º do CPC, o caso julgado operado por uma decisão judicial, dando prevalência ao primado da justiça, em detrimento da estabilidade e segurança jurídicas, permitindo-se o reabrir do processo em que a decisão transitada em julgado foi proferida, com o fito de se eliminarem os graves vícios que a afetam e que servem de fundamento ao recurso de revisão” (assim, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 7 de março de 2019, Pº 37/14.2TBPCR-B.G1, rel. José Alberto Moreira Dias). O artigo 696 do CPC estabelece quais os fundamentos do recurso de revisão dispondo o seguinte: “A decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando: a) Outra sentença transitada em julgado tenha dado como provado que a decisão resulta de crime praticado pelo juiz no exercício das suas funções; b) Se verifique a falsidade de documento ou ato judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever, não tendo a matéria sido objeto de discussão no processo em que foi proferida; c) Se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida; d) Se verifique nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transação em que a decisão se fundou”; Trata-se de uma enumeração taxativa dos fundamentos – os únicos – que admitem a possibilidade de revisão de uma sentença (assim, Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes; Dos Recursos – Regime do Decreto-Lei n.º 303/2007, Quid Juris Soc. Ed., Lisboa, 2009, p. 339 e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02-06-2016, Pº 13262/14.7T8LSB-A.L1.S1, rel. Oliveira Vasconcelos e de 19 de outubro de 2017, Pº 181/09.8TBAVV-A.G1.S1, rel. Fernanda Isabel Pereira. - A caducidade Sustentam os recorrentes que ocorreu o prazo de caducidade de 5 anos previsto no artigo 697/1 do CPC para interpor esta ação porque “no caso, não está em causa a existência de janelas ou portas para o prédio vizinho, nem o facto da construção poder afectar ou impedir a entrada de luz e ar para o prédio da autora, para o pátio”. Nas contra-alegações apresentadas a autora refuta a exceção deduzida, alegando, em síntese, que estão em causa não apenas simples questões de direitos reais, mas verdadeiros direitos de personalidade, uma vez que as servidões legais de vistas visam antes de mais a proteção de verdadeiros direitos de personalidade. Logo, não ocorreu o prazo de caducidade para a interposição deste recurso, estabelecido pelo artigo 697.º nº 2 do C.P.C. Apreciando. Encontramo-nos perante um recurso extraordinário de revisão de sentença (neste caso de uma sentença homologatória de transação proferida no âmbito da ação 20/14.8TBHRT do Tribunal da Horta, que os recorrentes instauraram/interpuseram. Como fundamento para a interposição do recurso de revisão, a autora/recorrida invocou a alínea d) do artigo 696 do CPC, segundo a qual “a decisão transitada em julgado… pode ser objeto de revisão quando se verifique nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transação em que a decisão se fundou”. O artigo 697/2 do CPC dispõe o seguinte: “O recurso não pode ser interposto se tiverem decorrido mais de cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão, salvo se respeitar a direitos de personalidade, e o prazo para a interposição é de 60 dias, contados: a) No caso da alínea a) do artigo 696.º, do trânsito em julgado da sentença em que se funda a revisão; b) No caso das alíneas f) e h) do artigo 696.º, desde que a decisão em que se funda a revisão se tornou definitiva ou transitou em julgado; c) Nos outros casos, desde que o recorrente obteve o documento ou teve conhecimento do facto que serve de base à revisão.” Como decorre da leitura de tal preceito legal, estabelece-se um primeiro prazo limite de 5 anos, contado da data em que transitou em julgado a sentença revidenda, que não pode, em caso algum, ser excedido - salvo tratando-se de matéria que diga respeito a direitos de personalidade -, funcionando depois dentro desse prazo um outro, mais curto, de 60 dias, cujo início de contagem, para a interposição do recurso, depende do fundamento invocado para a revisão da sentença. Muito embora a lei não o diga expressamente, constitui entendimento pacífico que estamos perante prazos de caducidade, que são de conhecimento oficioso, o que, decorre, por um lado, da natureza indisponível do direito que se pretende exercitar e, por outro, do facto de o artigo 699/ do CPC determinar a aplicação do art.º 641º, que incumbe ao juiz apreciar a oportunidade do requerimento de interposição do recurso” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 14 de julho de 2022, no processo 602/15.0T8AGH.L1-A.S1). É hoje doutrina pacífica que as relações de vizinhança e os litígios delas decorrentes, independentemente da natureza dos respetivos direitos sobre os imóveis, têm frequentemente uma dimensão mais ampla, postulada pela tutela geral dos direitos de personalidade. Como escreveu Rodrigues Bastos in “Das Relações Jurídicas, tomo 1.º, 20/21, os direitos de personalidade têm por fim impor a todos os componentes da sociedade o dever negativo de se absterem de praticar actos que ofendam a personalidade alheia, sendo à doutrina e à jurisprudência que competirá definir os limites da sua defesa. Estes direitos pertencem à categoria dos direitos absolutos, oponíveis a todos os terceiros, que os têm que respeitar e têm consagração constitucional. Com efeito, ressalta da Constituição da República Portuguesa a ideia da protecção da pessoa humana, da sua personalidade e dignidade, falando-se, no artigo 1º, da dignidade da pessoa humana como fundamento da sociedade e do Estado; o artigo 24º, nº 1, declara que a vida humana é inviolável; o artigo 25º garante o direito à integridade moral e física da pessoa; o artigo 26º consagra também outros direitos pessoais e o artigo 64º e 66º protegem os direitos à saúde e a um ambiente salutar. Enquadram-se na categoria de direitos de personalidade, entre outros, os direitos à vida, à integridade física, à honra, à saúde, à inviolabilidade do domicílio, ao repouso essencial à existência - v. P. Lima - A. Varela, Código Civil Anotado, vol. 1.º, 55; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 101. Os direitos de personalidade estão também regulados no Código Civil, embora nele se não contenha uma definição de direito de personalidade. Apenas o artigo 70º consagra o direito geral de personalidade, abrangendo, na sua protecção, no âmbito do direito civil, como refere, Rabindranath Capelo de Sousa in “A Constituição e os Direitos de Personalidade, Estudos sobre a Constituição, vol. 2º, Lisboa, 1878, 93, todos os "direitos subjectivos, privados, absolutos, gerais, extra-patrimoniais, inatos, perpétuos, intransmissíveis, relativamente indisponíveis, tendo por objecto os bens e as manifestações interiores da pessoa humana, visando tutelar a integridade e o desenvolvimento físico e moral dos indivíduos e obrigando todos os sujeitos de direito a absterem-se de praticar ou de deixar de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender a personalidade alheia sem o que incorrerão em responsabilidade civil e/ou na sujeição às providências cíveis adequadas a evitar a ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa cometida”. Prescreve o nº 1 do artigo 70º do Código Civil que “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”, o que significa a assunção e um reconhecimento da existência de um direito geral da personalidade – v. a propósito da evolução do direito de personalidade na civilística portuguesa, António Meneses Cordeiro in” Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Inocêncio Galvão Teles”, Vol. I, 21-45. Entre os direitos de personalidade protegidos no n.º 1 conta-se indubitavelmente o direito à saúde. Em causa nos autos está o reconhecimento pelos réus da existência de uma servidão de vistas da autora, relativamente ao pátio existente no prédio urbano sito na Travessa ..., Horta, inscrito sob o artigo matricial n.º 902. A autora alega na petição inicial que, em virtude da obra efectuada pelos réus, deixou de ter claridade, arejamento e luz natural. No reconhecimento do direito à servidão de vistas da autora está insíto o direito constitucionalmente protegido da autora à saúde e bem estar, entendido como direito pessoal de personalidade da autora (valor vital singular da dignidade humana). O artigo 697/2 do CPC dispõe que a interposição do recurso de revisão não pode exceder 5 anos depois do trânsito em julgado da decisão revidenda, a não ser que o pedido respeite a direitos de personalidade. Atenta a natureza dos direitos em causa, “a lei não estabelece qualquer prazo para a apresentação do recurso de revisão” (A. Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil”, 7.ª edição, pág. 588. Assim, não ocorreu a caducidade e por isso bem andou o tribunal de 1.ª instância em julgar improcedente a excepção de caducidade. Improcede, nesta parte, o recurso interposto. - É admissível o recurso de revisão? Entendemos que não. Por acórdão já transitado em julgado proferido na ação n.º 19/17.2T8HRT.L1 que correu termos pelo juiz 2 do Tribunal judicial da Horta, foi aditada à matéria de facto provada os seguintes factos: 11-A.: “o mandatário dos ali Réus disse que, em face das medições efetuadas na inspeção ao local, os seus clientes estavam na disposição de demolir o seu prédio em 41 cm acima do parapeito do muro do pátio da autora”; 11-B.: “O que foi aceite pela Autora e sua mandatária”; 11-C.: “Os ali Réus e aqui Autores só subscreveram o acordo em causa também devido às medidas recolhidas na inspeção ao local” ; Estes factos são determinantes para a decisão que agora se profere. Dos factos provados em 11-A e 11-B, que fundamentaram a anulação parcial da transação alcançada em 4 de dezembro de 2015, baseada em erro na declaração ou erro-obstáculo e erro na transmissão da declaração, resulta inequivocamente que a aqui recorrida compreendeu na íntegra qual era a real vontade dos aqui recorrentes, a qual, seria apenas vincular-se a baixar o telhado da edificação que construíram 41 cm acima do nível do parapeito do pátio da recorrida. Vontade que era também a sua (facto n.º 11-B), tendo sido sugestão da autora na ação n.º 20/14.8TBHRT “baixar em 41 cm acima do nível do parapeito da autora” (facto provado n.º 10). Ora, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida (artigo 236/2 do Código Civil). Concomitantemente, uma vez decretada a anulação da cláusula 2 da transação, na parte onde consta “41 cm abaixo do nível do parapeito do pátio da autora”, bem como das demais clausulas dependentes, tal cláusula n.º 2 verá a sua redação alterada- repita-se, por ser essa a vontade real do declarante conhecida do declaratário- no sentido de ler-se “41 cm acima do nível do parapeito do pátio da autora”. Encontrando-se já resolvida a questão da anulação, por acórdão já transitado em julgado, e devendo operar-se o disposto no artigo 236 do Código Civil, nada há a rever em consequência de tal anulação. Tudo se mostra já resolvido e sanado, tanto mais que os aqui recorrentes já executaram a obrigação a que estavam adstrito (cfr. facto n.º 15 provado) na sequência da outorga do contrato de transação com o conteúdo efetivamente querido e conhecido de todos os outorgantes. Ora, destinando-se o recurso de revisão previsto na alínea d) do artigo 696 do CPC a alterar a situação jurídica ou de facto criada por causa da nulidade ou anulabilidade da transação, não havendo necessidade de se proceder a tal alteração, torna-se inviável o uso do recurso de revisão. Por outras palavras, se as partes quiseram efectivamente transigir com os contornos acima assinalados, se essa era a vontade real das mesmas, nada há a rever, mas simplesmente a executar o acordo, o que já sucedeu. Têm assim razão os recorrentes quando alegam que admitir o procedimento do processo de revisão, seria não só passar por cima da real vontade de todos os intervenientes na transação, mas também ignorar o caso julgado que se formou com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa na ação 19/17.2T8HRT.L1. Há, pois, que impedir que se reabra um litígio já resolvido por acordo das partes e a contento das mesmas. Procede, nesta parte, o recurso interposto. - O alegado abuso de direito da recorrida Alegam os recorrentes que a recorrida, ao interpor este recurso de revisão agiu em abuso de direito, não só porque foi a autora que deu azo ao erro como também porque a sua pretensão extravasa por completo os fundamentos que norteiam o recurso de revisão. Alega a recorrida que não atua de má-fé, pois foram os recorrentes que através da ação 19/17.2T8HRT.L1 conseguiram dar “o dito” e homologado por sentença “por não dito”. Não nos vamos alongar. Para o tribunal apreciar o abuso de direito é forçoso que o quadro de facto com que se depara quando procede à análise jurídica do caso suscite, em função das suas particularidades, o dever de ponderar a sua aplicação, em ordem à cabal resolução do objeto do litígio. No caso, o conhecimento desta excepção está prejudicada pela apreciação e decisão de outra questão- a inadmissibilidade do recurso de revisão - e por isso inútil se torna a sua apreciação.” Apreciando em conferência: Embora a decisão sumária tenha ido no sentido da não admissão do recurso de revista, o Acórdão que agora se profere resulta da posição unânime da relatora e das duas Ex.mas colegas adjuntas. No que respeita à questão da caducidade, é unânime a concordância com a fundamentação da decisão sumária quanto a esta questão. No que respeita ao recurso de revisão: Agora se constata que a decisão sumária assenta num facto que apenas foi referido pelos recorrentes e não corroborado ou aceite pela recorrida- o de que os recorrentes já tinham cumprido a obrigação a que estavam adstritos- baixar o telhado da edificação que construíram 41 cm acima do nível do parapeito do pátio da recorrida. Pelo contrário, tal afirmação dos recorrentes é refutada pela recorrida, que afirma que estes apenas procederam à demolição de cerca de 90 por 41 cm do seu prédio (ponto 24 das contra-alegações de recurso). Os recorrentes entendem que, com a ação que propuseram, ficou definitivamente resolvido que é 41 cms acima do parapeito que tem de demolir a obra feita. Contudo, o caso julgado não se estende à matéria de facto dada como provada. No processo 19/17.2T8HRT, foi declarada a anulabilidade. Não houve correção da transação. A opção dos recorrentes pela ação de anulação não evita a revisão. O tribunal recorrido ordenou o prosseguimento dos autos principais, o que significa que julgou procedente o recurso de revisão. Os autos vão seguir "os termos necessários para a causa ser novamente instruída e julgada, aproveitando-se a parte do processo que o fundamento da revisão não tenha prejudicado". E o recurso de revisão permite e destina-se a fazer ressurgir uma ação finda e a reabrir uma instância anterior e com ele pretende-se um novo exame da mesma causa. Se o recurso obtém provimento ou está em condições de seguir, o processo anterior retoma o seu vigor. Sendo o recurso de revisão um meio processual que permite, a quem tenha ficado vencido ou prejudicado num processo anteriormente terminado por decisão transitada em julgado, a sua reabertura ou revisão, mediante a invocação de certos fundamentos taxativamente indicados na lei que a determinam, verifica-se o fundamento invocado pela recorrida para a procedência do recurso de revisão que determinou o prosseguimento dos autos principais. De todo o exposto se conclui que o recurso interposto merece um juízo de improcedência, mantendo-se a decisão recorrida. - O alegado abuso de direito da recorrida Alegam os recorrentes que a recorrida, ao interpor este recurso de revisão agiu em abuso de direito, não só porque foi a autora que deu azo ao erro como também porque a sua pretensão extravasa por completo os fundamentos que norteiam o recurso de revisão. Alega a recorrida que não atua de má-fé, pois foram os recorrentes que através da ação 19/17.2T8HRT.L1 conseguiram dar “o dito” e homologado por sentença “por não dito”. Não nos vamos alongar. Para o tribunal apreciar o abuso de direito é forçoso que o quadro de facto com que se depara quando procede à análise jurídica do caso suscite, em função das suas particularidades, o dever de ponderar a sua aplicação, em ordem à cabal resolução do objeto do litígio. Perante os argumentos acima expendidos e que conduzem à admissibilidade do recurso de revisão, não existe quadro factual que permita concluir que a recorrida agiu em abuso de direito. Improcede o recurso apresentado, também nesta parte. VI. Decisão Por todo o exposto, acordam os Juízes desta 8.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, em conferência, em deferir a reclamação, alterando a decisão sumária, e em consequência, julgam totalmente improcedente o recurso interposto, mantendo a decisão recorrida. Custas da apelação pelos recorrentes. Custas da reclamação pelos reclamados. Escrito e revisto pela Relatora. Assinaturas eletrónicas. Lisboa, 22 de outubro de 2024 Maria Teresa Lopes Catrola Maria do Céu Silva Carla Matos |