Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANTÓNIO MOREIRA | ||
Descritores: | ACÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS OBRIGAÇÃO CONTRATO LIVRANÇA PREENCHIMENTO ABUSIVO ERRO NA FORMA DE PROCESSO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/12/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | 1- Na acção especial de prestação de contas está em causa a obrigação de informação a que respeita o art.º 573º do Código Civil, densificada na obrigação de prestar contas por parte de quem administra bens alheios, face ao direito do titular desses bens a obter o apuramento das receitas e despesas resultantes dessa administração. 2- Estando em causa uma relação contratual da qual não resulta a entrega pelos AA. à R. de qualquer bem ou valor da propriedade dos AA., para que ficasse a ser administrado pela R., mas antes a obrigação de os AA. entregarem à R. as prestações pecuniárias convencionadas no contrato, como contrapartida da cedência do gozo temporário de um veículo automóvel da R. e da prestação de serviços de manutenção e de reparação desse veículo, não assiste aos AA. o direito a obter da R. qualquer prestação de contas relativamente aos créditos da titularidade desta. 3- Tendo a R. preenchido e dado à execução uma livrança que foi subscrita em branco pelos AA. e entregue à R. acompanhada do respectivo pacto de preenchimento, como garantia do cumprimento do contrato, é no âmbito da tramitação da acção executiva que competia aos AA. invocar o preenchimento abusivo da livrança, determinante da inexistência do direito de crédito exequendo. 4- Uma vez que os direitos dos AA. decorrentes da eventual inexistência do direito de crédito exequendo, incluindo o direito à restituição de qualquer quantia indevidamente penhorada aos AA. e entregue à R., careciam de ser exercitados por via dos incidentes próprios da acção executiva, e não autonomamente através da acção especial de prestação de contas que propuseram, verifica-se o erro na forma do processo utilizado para o fim visado pelos AA., a determinar a nulidade total do processo, porque inexiste qualquer acto que possa ser aproveitado, incluindo a petição inicial. (Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil) | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados: C. M. e mulher, D.C., intentaram acção especial de prestação de contas contra L., S.A., alegando em síntese que: . A A. celebrou com a R. um contrato pelo qual a R. alugou à A. um veículo automóvel pelo período de 48 meses, prestando-lhe ainda serviços de gestão do veículo em questão, e contra o pagamento do valor mensal de €632,06; . Em garantia do contrato os AA. entregaram à R. uma livrança em branco subscrita por ambos, acompanhada do respectivo pacto de preenchimento; . Nos termos previstos no contrato os AA. solicitaram o final antecipado do mesmo, após mais de 30 meses de cumprimento do contrato, procedendo à devolução do veículo em 30/10/2007 e pagando ainda à R. a quantia de €1.365,00 por transferência bancária, ignorando a que título, e não tendo sido notificados do montante residual do débito dos mesmos; . Tornando ainda mais imperceptíveis as contas, a R. enviou aos AA. uma nota de crédito de €690,83, uma nota de débito de €690,83, uma nota de débito de €32.241,73 e uma nota de crédito de €32.241,73, para além de um conjunto de notas de débito referentes a despesas de recuperação e despesas de recondicionamento do veículo, bem como ao acerto de quilómetros; . Os AA. solicitaram explicações à R. sobre tais factos, o que nunca sucedeu; . Em 6/10/2008 a R. instaurou contra os AA. uma acção executiva para pagamento do valor de €17.769,46, correspondente ao valor de €17.552,46 inscrito pela R. na livrança entregue pelos AA., acrescido de €217,00 a título de juros desde o vencimento da mesma; . Perante a propositura da execução por valor cujo fundamento os AA. ignoram, e tendo fundadas dúvidas sobre a sua existência, assiste-lhes o direito de exigir da R. a prestação de contas, impendendo sobre esta a obrigação de as prestar, uma vez que os termos das notas de débito emitidas pela R. não permitem concluir quais os serviços concretamente prestados, nem permitem a fiscalização da regularidade dos valores debitados; . No âmbito da execução a R. já recebeu, até 18/8/2020, a quantia de €18.316,84, proveniente da penhora incidente sobre a pensão de reforma do A. Concluem pedindo a prestação de contas pela R., a incidir sobre os seguintes itens: a) Qual o valor em dívida, com justificação documental, à data do final antecipado do contrato, em 30/10/2007; b) Qual a quantia efectivamente obtida para satisfazer a dívida exequenda e qual a que foi entregue à R., até à data da propositura da acção; c) Qual o montante das despesas e honorários do agente de execução até à data da propositura da acção; d) Qual a razão porque, tendo o veículo locado sido entregue à A. em 30/10/2007, a rescisão do contrato só produziu efeitos em 7/4/2008 e quais as consequências em termos contabilísticos que daí emergiram. Citada a R. para prestar as contas ou contestar, nada disse. As partes foram notificadas para se pronunciar sobre a existência de erro na forma do processo, por ter o tribunal recorrido entendido não ser aplicável a forma do processo especial de prestação de contas à causa de pedir invocada pelos mesmos. Em resposta os AA. apresentaram requerimento onde, em síntese, sustentam que a obrigação de prestação de contas traduz a obrigação da R. informar os AA. relativamente à operação matemática que conduziu ao valor inscrito na livrança, o que consubstancia uma gestão de dinheiros alheios, face às solicitações dos AA. a que a R. não respondeu. A R. apresentou igualmente requerimento onde conclui pela verificação do erro na forma do processo, sustentando, em síntese, que não administra quaisquer bens dos AA. e apenas é credora dos mesmos relativamente à dívida emergente do incumprimento do contrato invocado pelos AA., tendo instaurado a execução para cobrança dessa dívida e devendo qualquer questão relacionada com a mesma ter sido discutida no âmbito dessa execução, que se encontra já extinta, e não tendo aí os AA. deduzido qualquer oposição por embargos de executado ou oposição à penhora, apesar de devidamente citados. Seguidamente foi proferido despacho, com o seguinte dispositivo: “Nestes termos e com tais fundamentos julga-se procedente a nulidade decorrente do erro na forma de processo, porquanto a própria petição inicial não pode ser aproveitada para a forma de processo adequada que é a da acção comum e, em consequência, absolve-se a Requerida da instância. * Custas a cargo dos Requerentes. (cfr art. 527º do CPC)”. Os AA. recorrem desta decisão final, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem: 1ª- A sentença em crise limitou-se a enunciar uma verdade digna de La Palisse quando desvendou que o conteúdo do petitório da acção de prestação de contas é diferente do plasmado na acção com processo comum, o que nada tem de estranho dado que num caso se trata de uma acção especial e, no outro, de uma acção comum; acresce que não explicitou, minimamente, as razões da sua opção, no caso concreto, pela forma comum em detrimento da forma especial. 2ª- Conforme entendimento do Prof. Alberto dos Reis “Deve mesmo o juiz indeferir in limine a petição inicial … se em vez de se oferecerem as contas ou se exigir a prestação, se propuser acção de dívida em que se peça o pagamento da quantia que se julga exprimir o saldo das contas”. 3ª- Contra o doutamente decidido na instância, não ocorre, erro na forma do processo porquanto os requerentes fizeram uso do processo regulado nos artigos 941º e seguintes do CPC com verificação de todos os pressupostos que legitimam a utilização desse meio processual na medida em que: - por força do contrato celebrado, têm o direito de exigir da requerida a prestação de contas, existindo por parte da requerida a obrigação de as prestar, prestação que tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas e despesas realizadas com a administração de bem alheio, com a condenação no pagamento do saldo que for apurado; - decorrendo a obrigação de prestar contas do dever de informação consagrada no artigo 573.º do CC., essa obrigação existe quando, como é o caso, o titular de um direito tenha dúvidas fundadas acerca do seu conteúdo e alguém esteja em condições de prestar as informações necessárias para remover essas dúvidas. (Aliás, o CC prevê, com carácter geral, a obrigação de informar que exige a verificação cumulativa de dois pressupostos: a dúvida fundada do titular do direito sobre a sua existência ou conteúdo e que outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias); - de conformidade com a previsão legal, o meio processual usado destinava-se a conhecer o montante das receitas e das despesas cobradas ou efectuadas em vista ao apuramento de um saldo devedor ou credor; - entendem os requerentes que a requerida e obrigada à prestação, encontra-se, por força do contrato celebrado, na posição de administradora de bens ou interesses alheios. 4ª - Acresce que, como foi enunciado, por um lado, os requerentes nem conheciam ab initio os valor da dívida exequenda nem tinham forma de a conhecer diferente do recurso à acção especial prestação de contas; por seu turno, a requerida, que autocraticamente não prestou essa informação – nem mesmo quando foi citada para o fazer - estava em perfeitas condições de o fazer. 5ª- Como defende o Mestre Alberto dos Reis, ao contrário do sufragado na sentença recorrida, “ … o saldo proveniente de determinada gestão não pode ser pedido directamente em acção de dívida; tem de ser apurado em acção de prestação de contas … Deve mesmo o juiz indeferir in limine a petição inicial … se em vez de se oferecerem as contas ou se exigir a prestação, se propuser acção de dívida em que se peça o pagamento da quantia que se julga exprimir o saldo das contas”. 6ª - A fundamentação da sentença (prevista no nº 3 do artigo 607º do CPC), consiste na exposição dos motivos de facto e de direito com a enunciação e interpretação das normas legais consideradas e aplicadas, fundamentação que se destina a que as partes conheçam as razões da decisão. 7ª - In casu, a sentença recorrida limitou-se a declarar, sem o fundamentar devidamente, que da conjugação entre o pedido e a causa de pedir ocorre nos presentes autos nulidade de erro na forma de processo, sem que se pudesse aproveitar a petição inicial para o prosseguimento dos autos de acção comum inexistindo correspondência entre o pedido formulado na acção especial de prestação de contas e a acção declarativa comum, o que, salvo o devido respeito, o que retira a lógica do seu percurso decisório não sendo possível estabelecer o fio condutor entre a decisão e os factos que a suportam. 8ª - Acresce que a sentença recorrida parte do pressuposto de que o exercício do direito a exigir a prestação de contas assenta exclusivamente em norma legal, interpretação que é restritiva na medida em que o exercício do direito a exigir, pode resultar também de um contrato ou, ainda, de uma administração de facto. (Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 07/11/2019 – II. A obrigação de prestar contas decorre directamente da lei como pode derivar do negócio jurídico ou mesmo do princípio geral de boa fé …”). 9ª - Confrontando os termos da fundamentação da sentença em recurso com a factualidade alegada no articulado inicial apresentado pelos requerentes não pode aceitar-se que não seja exigível por parte dos requerentes a prestação de contas contra a requerida L., SA como administradora de um bem que esteve na esfera patrimonial dos requerentes e dela foi retirada sem que os requerentes conhecessem os seus precisos termos. 10ª - Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação dos artigos 20,º, n.º 1, 62.º, nº 1 e 205º, nº 1 da CRP, 573º do CC e 546º, nº 2, 607, nº 3, 615º, nº 1, alíneas c) e d), 941º, 1016º do CPC pelo que deve ser revogada e em face da falta de contestação da requerida ser os requerentes notificados para apresentar contas, seguindo-se os ulteriores termos como é da mais elementar JUSTIÇA! A R. não apresentou alegação de resposta. *** Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem‑se com: a) A nulidade da decisão recorrida; b) A (in)existência de erro na forma do processo. *** A factualidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede. *** Da nulidade da decisão recorrida Segundo a al. c) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. E segundo a al. d) do mesmo nº 1 a sentença é ainda nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. A respeito da arguição de nulidades da sentença importa recordar que, como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 737), existe “uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso”. Mais pormenorizadamente, e no que respeita a eventual oposição entre os fundamentos e a decisão, é sabido que tal vício ocorre quando “a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, Coimbra Editora, reimpressão, 1981, pág. 141). Ou seja, o vício em questão corresponde ao erro lógico da argumentação jurídica, surgindo quando o resultado do silogismo judiciário aponta num sentido e a decisão aponta no sentido oposto. Na expressão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/12/2017 (relatado por Tomé Gomes e disponível em www.dgsi.pt), trata-se de um vício que “requer uma relação de exclusão recíproca – um dizer e desdizer – entre aqueles dois termos da equação discursiva”. Do mesmo modo, na expressão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/7/2021 (relatado por Fernando Baptista e disponível em www.dgsi.pt), tal vício “distingue-se do erro de julgamento em virtude de neste não existir qualquer vício de raciocínio do julgador, mas apenas um erróneo julgamento da matéria de facto, por a prova produzida não consentir esse julgamento de facto, mas antes outro (error facti) ou por o juiz ter incorrido numa incorrecta aplicação das normas ao caso concreto, que demandava a aplicação de outras, ou ter incorrido na errónea interpretação das aplicáveis (error iuris)”. Já sobre a questão da nulidade da sentença por omissão de pronúncia, explica Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, volume II) que “devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe estão submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe caiba conhecer (art 660º/2), o não conhecimento do pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade (…)”. No caso concreto os AA. invocam que “a fundamentação da decisão recorrida não é, em absoluto, rigorosa”, discorrendo em seguida sobre os argumentos aí apresentados, para concluir pelo desacerto do decidido. Do mesmo modo, entendem que a “sentença recorrida limitou-se a declarar, sem o fundamentar devidamente (…), que da conjugação entre o pedido e a causa de pedir ocorre nos presentes autos nulidade de erro na forma de processo (…)”, comparando em seguida a argumentação constante da decisão recorrida com o alegado na P.I. para concluir pela inexistência do referido vício da nulidade total por erro na forma do processo. Ou seja, inexiste qualquer erro lógico de argumentação, correspondente ao referido “dizer e desdizer”, mas apenas, e eventualmente, uma fundamentação insuficiente ou desacertada. Do mesmo modo, não se alcança a referência à d) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, na medida em que os AA. reconhecem que o tribunal recorrido se pronunciou sobre a questão do erro na forma do processo, e sendo que foi relativamente a tal questão que as partes foram notificadas para exercer o contraditório. E como a afirmação da nulidade de todo o processo em razão da verificação do referido erro na forma do processo prejudica o conhecimento do mérito da causa, naturalmente que não se pode falar de qualquer omissão de pronúncia. O que equivale a concluir, sem necessidade de ulteriores considerações, pela improcedência da arguição de nulidade em questão. *** Do erro na forma do processo Como resulta do nº 2 do art.º 2º do Código de Processo Civil, a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente. Assim, e como explica António Santos Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, I volume, 2ª edição revista e ampliada, 1998, pág. 34), “ninguém duvida, no plano dos princípios, que a única justificação do processo civil, como conjunto de normas de direito público a que as partes devem sujeitar-se quando recorrem ao tribunal (princípio da legalidade) e que servem de orientação à actividade do juiz na condução do processo, resulta da necessidade de um instrumento que garanta a boa e segura decisão da causa. Para que esse objectivo possa ser alcançado, todos os intervenientes processuais ficam a saber, de antemão, qual o rito e o ritmo processual que será empreendido, os direitos e obrigações de cada um deles, ou as normas porque devem reger-se os actos processuais a praticar pelas partes, pelo juiz ou pelos funcionários”. Do mesmo modo, explica tal autor que “tendo em consideração a génese e fundamentos do direito processual, é fácil concluir que deverá estar subordinado à concretização e realização do direito substantivo. O direito adjectivo só existe porque existe direito substantivo. Este último é integrado por normas que, de modo abstracto e generalizado, concedem direitos, fixam obrigações ou impõem ónus ou limitações. Em caso de conflito de interesses impõe-se a intervenção reguladora e definidora de um órgão de soberania com funções de tutela de direitos subjectivos ou de interesses juridicamente relevantes”. Ou seja, porque o direito processual existe para regular e disciplinar a actividade do tribunal e das partes, no âmbito do exercício do direito de acção, é a partir do direito substantivo que se pretende fazer valer em juízo que se deve determinar qual o conjunto de normas processuais que deve regular o processo respectivo. Isso mesmo resulta do nº 2 do art.º 546º do Código de Processo Civil, quando aí se dispõe que o processo especial se aplica aos casos expressamente designados na lei, sendo o processo comum aplicável a todos os restantes casos, aos quais não corresponda processo especial. Assim, e no que respeita à acção especial de prestação de contas, prevista no art.º 941º do Código de Processo Civil, daí resulta que a mesma “pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”. Como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2020, pág. 388), “em termos de direito substantivo, a obrigação de prestar contas decorre de uma obrigação de carácter mais geral – a obrigação de informação – consagrada no art. 573º do CC. A jurisprudência tem enfatizado que a acção especial de prestação de contas é uma das formas de exercício deste direito de informação, cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito”. Mais explicam tais autores que o direito à prestação de contas pode ser de natureza obrigacional, real, familiar ou sucessória, e que, “em termos gerais, assume-se que quem administra bens ou interesses, total ou parcialmente alheios, está obrigado a prestar contas ao titular ou ao contitular desses bens ou interesses”, mas admitindo igualmente que, ao abrigo do princípio da autonomia privada, “as partes podem convencionar a obrigação de prestar contas associada aos contratos que firmem”. No que respeita à obrigação de informação prevista no art.º 573º do Código Civil, a mesma existe “sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias”. Como explicam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil anotado, volume I, 4ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 590), em anotação a tal preceito de direito substantivo, “pode dizer-se que, de modo geral, sempre que alguém trate de negócios alheios, ou de negócios ao mesmo tempo alheios e próprios, deve prestar contas”. Ou seja, não sofre controvérsia que a obrigação de prestação de contas representa uma densificação da obrigação de informação a que respeita o art.º 573º do Código Civil. Nessa medida (e sem prejuízo de poder surgir por via convencional, ao abrigo do já referido princípio da autonomia privada), o pressuposto primeiro do surgimento da obrigação de prestar contas é a existência de uma relação jurídica no âmbito da qual o obrigado administre bens alheios e, nessa medida, decorra o direito do titular desses bens a obter o apuramento das receitas e despesas resultantes dessa administração. Recuperando tais considerações para o caso concreto dos autos, os AA. não invocaram que nos termos do contrato celebrado com a R. tenha sido convencionada a obrigação desta última de prestar qualquer informação adicional sobre as notas de débito por si emitidas, e correspondentes a valores devidos à R., nos termos contratuais. Pelo contrário, aquilo que é o entendimento dos AA. é que a obrigação de prestação de contas da R. emerge da circunstância desta ter administrado valores pecuniários dos AA. ao abrigo de tal contrato, estando assim, e nessa medida, obrigada a prestar contas dessa administração. E, nessa medida, concluem que o direito a tal prestação de contas deve ser exercido através da correspondente acção especial, regulada pelos art.º 941º e seguintes do Código de Processo Civil. Torna-se evidente o desacerto do entendimento dos AA. É que está em causa um contrato de aluguer de veículo automóvel com prestação de serviços de manutenção e reparação do mesmo, sendo que a R. se obrigou a entregar o seu veículo aos AA. para que estes o utilizassem temporariamente, como sucedeu, do mesmo modo obrigando-se a providenciar pelos serviços de manutenção e reparação de que o veículo carecesse, e obrigando-se os AA., em contrapartida, a pagar à R. um valor mensal a título de retribuição global do aluguer e dos serviços de manutenção e reparação. Ou seja, não emerge do contrato em questão que os AA. tenham entregue à R. qualquer bem ou valor da propriedade dos mesmos, para que ficasse a ser administrado pela R., mas que os mesmos se obrigaram a entregar-lhe determinadas prestações pecuniárias, para que passassem a ser da R., porque representam o cumprimento das obrigações emergentes do contrato. Pelo que, por esta via, não resulta qualquer direito dos AA. a obter da R. qualquer prestação de contas relativamente a tais créditos da titularidade da R. Do mesmo modo, emerge da situação factual em apreço a prestação pelos AA. de uma garantia de cumprimento de tais obrigações emergentes do contrato, consubstanciada na entrega de uma livrança em branco acompanhada do respectivo pacto de preenchimento, e que posteriormente a R. preencheu e deu à execução. Ou seja, se a R. preencheu tal título cambiário em contrário do pacto de preenchimento e, nessa medida, veio executar os AA. por montantes que os mesmos não estavam obrigados a pagar, é no âmbito da tramitação da acção executiva que competia aos AA. invocar tal preenchimento abusivo e, como decorrência dessa invocação, pugnar pela inexistência do direito de crédito exequendo (e seus acessórios, como juros de mora e despesas com a execução). Dito de forma mais simples, e no que respeita a valores entregues pelos AA. à R. em cumprimento da sua obrigação contratualmente assumida, não resulta qualquer direito dos AA. a obter da R. informação sobre quaisquer receitas obtidas e sobre quaisquer despesas realizadas, porque não decorre do programa contratual qualquer administração de bens dos AA. a determinar tal direito à informação em questão. Já no que respeita a valores em dívida e às circunstâncias em que a R. preencheu a livrança dada à execução, não só não está em causa a administração de quaisquer bens e/ou direitos dos AA. de onde resultaria a obrigação da R. de os informar das receitas e despesas decorrentes dessa administração, como qualquer desvio a tal programa contratual por parte da R., no que respeita ao referido preenchimento e apresentação a pagamento da livrança, sempre carecia de ser invocado e discutido no âmbito da execução, mais concretamente pela via da oposição à execução por embargos de executado. E, por último, o direito à restituição de qualquer quantia indevidamente penhorada aos AA. e entregue à R., no âmbito dessa execução, sempre carecia de ser exercitado por via dos incidentes próprios da acção executiva (desde logo a oposição à penhora), e não autonomamente através de qualquer acção especial de prestação de contas destinada a apurar os montantes penhorados aos AA. e os montantes entregues (à R. e ao agente de execução) naquela sede executiva. Assim, tendo os AA. lançado mão da acção especial de prestação de contas para exercitar tais direitos, e estando demonstrado que ao exercício de tais direitos não corresponde tal forma processual especial, importa concluir, como na decisão recorrida, pelo erro na forma do processo utilizado para o fim visado pelos AA. Do mesmo modo importa atentar, face ao que já ficou referido quanto ao exercício dos direitos dos AA. no âmbito da acção executiva, que o erro em questão não é suprível através da recondução da tramitação à forma processual correcta, mesmo que com recurso ao disposto no art.º 547º do Código de Processo Civil. Com efeito, e como resulta do nº 1 do art.º 193º do Código de Processo Civil, o erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei. Como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 232), “a idoneidade da forma de processo, que deve ser indicada na petição inicial (…), afere‑se em função do tipo de pretensão formulada pelo autor (…), ocorrendo o erro e a correspondente nulidade quando o autor usa uma via processual inadequada para fazer valer a sua pretensão”. Do mesmo modo, explicam tais autores que “o limite a observar [quanto ao aproveitamento dos actos praticados e à prática dos actos necessários à recondução do processo à forma prevista na lei] é sempre o das garantias de defesa, não podendo aquele aproveitamento traduzir-se numa diminuição dessas garantias”. Ora, no caso concreto está em causa uma pretensão que carecia de ser colocada em sede da execução que a R. moveu aos AA., e com recurso aos incidentes previstos para tal forma processual (desde logo o incidente da oposição à execução por embargos). Mas como a dedução de tais incidentes está sujeita à observância de prazos processuais, e na medida em que os AA. não trouxeram aos autos qualquer elemento que permitisse afirmar terem os mesmos prazos sido observados, tal significa que o aproveitamento de todos os actos aqui praticados e a adequação da P.I. para o conhecimento de tal pretensão redundaria numa efectiva diminuição das garantias de defesa da R., por permitir o exercício de direitos potencialmente extintos. O que significa que todos os actos aqui praticados, incluindo a P.I., deixam de poder ser aproveitados para o conhecimento da pretensão formulada pelos AA., assim se verificando a excepção dilatória insuprível da nulidade de todo o processo, com a consequente absolvição da R. da instância, tendo presente o disposto nos art.º 278º, nº 1, al. b), 576º, nº 2 e 577º, al. b), todos do Código de Processo Civil. Em suma, não merece qualquer censura a decisão recorrida, quando decidiu pela absolvição da R. da instância com fundamento na nulidade total do processo decorrente do erro na forma do processo, assim improcedendo as conclusões do recurso dos AA., quanto a esta questão. *** DECISÃO Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se a decisão recorrida. Custas pelos recorrentes. 12 de Setembro de 2024 António Moreira Orlando Nascimento Higina Castelo |