Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CARLOS M. G. DE MELO MARINHO | ||
Descritores: | PROPRIEDADE INTELECTUAL MARCA NOTÓRIA AFINIDADE MARCA DE PRESTIGIO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/16/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | I. Num quadro processual tecnicamente adequado, é o facto que se esteia em documentos e não são os documentos que constituem factos, a menos que estes sejam elementos da própria causa de pedir; II. Quer a «Classificação de Nice» quer a noção de afinidade convocada nos autos e por ela também aferida só ganham sentido por referência à protecção dos actores dos inúmeros e diversos mercados relevantes para um determinado produto ou conjunto de produtos com vista a garantir o correcto funcionamento dos distintos espaços de acção económica, proteger a economia nacional em geral, obviar não só à destruição da possibilidade de entrada num focado espaço económico mas também ao uso parasitário de posições nele adquiridas, prosseguindo os objectivos de criação de equidade e livre acesso; III. O erro, a confusão ou a associação referidas na al. b) do n.º 1 do art. 232.º do Código da Propriedade Industrial podem resultar não apenas da identidade de produtos mas também do facto de os mesmos serem relacionados, semelhantes, análogos, aparentados, em suma, afins; IV. Não tendo os produtos nem identidade nem afinidade, qualquer desvio avaliativo só poderá ser atribuído ao próprio consumidor, não se materializando desvalor extrínseco nem, consequentemente, ilicitude; V. É ao nível da aferição fina das características do mercado específico que se devem realizar as operações de cotejo e busca da afinidade invocada; VI. A tutela das marcas que gozem de prestígio em Portugal ou na União Europeia é muito abrangente (nos termos regulados no art. 235.º do Código da Propriedade Industrial) ultrapassando os limites da afinidade e dispensando-a; VII. Essa protecção incide também sobre signos relativos a produtos ou serviços desprovidos de identidade ou afinidade, desde que «o uso da marca posterior procure tirar partido indevido do caráter distintivo ou do prestígio da marca, ou possa prejudicá-los»; VIII. Uma marca de prestígio é aquela que tem uma reputação elevada, individualidade e originalidade significativas e surja associada a produtos ou serviços de alta qualidade, sendo reconhecida pelos consumidores como símbolo de distinção e excelência; IX. Os objectivos subjacentes à sua tutela muito específica e muito focada são os de impedir a erosão ou diluição de marcas que funcionam como referentes no mercado (relevando mesmo em distintos mercados) salvaguardando o seu valor comercial, designadamente na vertente essencial desse valor que é a capacidade de atracção do público»; X. O prestígio é um valor absoluto que sobre tudo paira e que está para além do mero funcionamento do mercado concreto e das relações de consumo. É abstracto e não circunscrito, genérico e não relacional. É um estado, uma noção global, uma visão de conjunto na perspectiva da sociedade, aqui abrangendo os desinteressados do consumo do concreto produto ou serviço referenciados pela marca; XI. Não há prestígio quando a noção corrente relativa à marca seja mítica e ilusória, esteada em factos inexistentes. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção de Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa: * I. RELATÓRIO FROMAGERIES BEL PORTUGAL, S.A., com os sinais identificativos constantes dos autos, interpôs recurso judicial «do despacho proferido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (...) que indeferiu o pedido de anulação do registo da Marca Nacional n.º 583094 “FOLAR LIMIANO”, requerido por LV». O Tribunal «a quo» descreveu os contornos da acção e as suas principais ocorrências processuais até à sentença nos seguintes termos: 1. FROMAGERIES BEL PORTUGAL, S.A. veio, ao abrigo do disposto nos artigos 38.º e seguintes do Código da Propriedade Industrial, interpor recurso judicial do despacho do Senhor Director da Direcção de Extinção de Direitos no Instituto Nacional da Propriedade Industrial, datado de 16/06/2023, que indeferiu o pedido de anulação da marca nacional n.º 583094 [IMAGEM NÃO REPRODUZIDA] registada a favor de LV, apresentado nos termos do artigo 260.º do Código da Propriedade Industrial por se considerar não ter sido infringido, na sua concessão, o disposto no artigo 235.º do Código de Processo Civil. Alegou, para tanto e em síntese, que o registo da Marca Nacional n.º 583094 “FOLAR LIMIANO” constitui imitação da marca notória Limiano, ao abrigo do art.º 234.º do Código da Propriedade Industrial, o que chegou a ser reconhecido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial em cinco processos de registo similares. Além disso, o registo da marca nacional n.º 583094 “FOLAR LIMIANO” constitui igualmente uma infracção da marca de prestígio “LIMIANO”, na medida em que, além da reprodução do elemento idêntico e distintivo LIMIANO, tira partido indevido do carácter distintivo e do prestígio da marca, necessariamente a prejudicando através da sua diluição e vulgarização. Com efeito, a marca objecto do pedido de anulação – FOLAR LIMIANO – destina-se a assinalar “pastelaria salgada”, sendo que os folares salgados, pelo menos os tradicionais portugueses, são de queijo e/ou carnes e os produtos lacticínios incluem necessariamente queijos. Como tal, são produtos que se complementam e que são vendidos nos mesmos circuitos comerciais. Por fim, existe uma óbvia semelhança entre os sinais, em razão da reprodução total da palavra Limiano, sendo que a expressão BY ARTE DO LIMA PASTELARIA apresenta uma reduzida dimensão que a torna dificilmente perceptível. 2. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 42.º do Código da Propriedade Industrial, tendo o Recorrido apresentado resposta, pugnando pela manutenção do registo. Alega que este Tribunal de Propriedade Intelectual sempre recusou o estatuto de marca de prestígio à marca Limiano, o que sucedeu nos processos que correram termos sob os n.ºs 158/17.0YHLSB e 30/18.6YHLSB. Noutra sede, o próprio Instituto Nacional da Propriedade Industrial, mais recentemente abandonou já o entendimento que antes perfilhava, no sentido de a marca “LIMIANO” poder ser considerada uma marca de prestígio ou notória. Além disso, não há qualquer imitação de marcas, atenta a falta de afinidade entre produtos e as dissemelhanças existentes entre os respectivos sinais. Foi proferida sentença que decretou: Nos termos e pelos fundamentos expostos, julga-se improcedente, por não provado, o presente recurso judicial e, em consequência, mantém-se o despacho recorrido do Senhor Director da Direcção de Extinção de Direitos do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, de 16/06/2023, que indeferiu o pedido de anulação da marca nacional n.º 583094 ao Recorrido LV, É dessa sentença que vem o presente recurso interposto por FROMAGERIES BEL PORTUGAL, S.A., que alegou e apresentou as seguintes conclusões: I. Considera-se indispensável a ampliação da matéria de facto por ser deficiente, nos termos do art.º 662.º, n.º 1 e n.º 2, al. c) do CPC, na medida em que foi alegada matéria de facto com manifesta relevância para a decisão de mérito sobre o 1º requisito do art.º 235.º do CPI que não foi incluída na matéria assente; II. A sentença recorrida é omissa no elenco dos factos provados e não provados relativamente a pontos da matéria de facto considerados relevantes para aferir quanto ao prestígio da marca “LIMIANO”, designadamente os que dizem respeito ao critério de natureza qualitativa: valor simbólico, atracção e/ou satisfação junto dos consumidores; III. Considerando os documentos que constam do processo, deve ser matéria de facto ser alterada nos termos do art.º 662.º, n.º 1 e n.º 2, al. c) do CPC de modo a aditar aos Factos Dados como Provados os factos citados nos artigos 95, 97, 100 e 101, do requerimento inicial de recurso da Recorrente; IV. O regime especial das marcas de prestígio teve em mente a protecção das marcas de prestígio contra situações de aproveitamento indevido mas também contra as situações de diluição da marca, que estão previstas nesta parte final do art. 235.º do CPI; V. A decisão recorrida errou na interpretação e aplicação do art.º art.º 234.º, n.º 1, al. b) e art.º238.º, n.º 1, al. b), ambos do CPI, considerando que existe afinidade entre os produtos em confronto; VI. Dispõe o art.º 234.º, n.º 1, al. b) do CPI que: deve ser recusado o registo da marca que constitua imitação de marca anterior notoriamente conhecida em Portugal, se for aplicada a produtos ou serviços idênticos ou afins, sempre que com ela possa confundir-se ou se, dessa aplicação, for possível estabelecer uma associação com o titular da marca notória; VII. Os produtos em confronto são: “queijos“ (marcas da Reclamante) e “pastelaria salgada” (marca reclamada). Os queijos são muito vendidos como snacks proteícos, juntamente ou até em conjunto com outros snacks como frutos secos e sandes ou mesmo alimentos de pastelaria salgada. Embora o seu método de produção e natureza seja distinto, existe uma partilha nos circuitos comerciais e locais de venda, que tanto podem ser mercearias, quiosques ou vending machines; VIII. A aplicação da marca FOLAR LIMIANO a artigos de pastelaria salgada, porque se trata de um produto alimentar, com partilha do mesmo público-alvo, locais de venda e por outro lado, considerando a identidade do elemento dominante LIMIANO, correspondente a uma marca notória, é muito fácil e provável que o consumidor ao se deparar com um salgado FOLAR LIMIANO estabeleça uma associação com o titular da marca notória; IX. O tribunal recorrido não se pronunciou quanto à última situação de violação de marca prevista na parte final do art.º 235.º que foi invocado pela Recorrente: a afectação do carácter distintivo e do prestígio da marca. Este artigo prevê várias situações alternativas e basta que exista uma dessas violações para que a referida disposição seja aplicada; X. O Requerente sabia perfeitamente que ao escolher como marca o nome LIMIANO iria beneficiar a custo zero e a expensas da Recorrente do valor económico e publicitário que a marca LIMIANO tem no mercado português; XI. Ficou já demonstrado até perante o próprio Tribunal de Ponte de Lima que LIMIANO é uma marca de fantasia e que não é usado com um significado geográfico – relativo ao Rio Lima; XII. Muito facilmente os consumidores poderão associar a marca FOLAR LIMIANO ao titular da marca, devido identidade do elemento dominante LIMIANO e porque são todos produtos alimentares salgados que poderão partilhar os mesmos circuitos comerciais; XIII. No caso LIMIANO v. LIMIANA (carnes) o EUIPO entendeu que os consumidores portugueses irão com grande probabilidade estabelecer uma ligação mental entre as marcas, o que permitirá o fenómeno do “free-riding”, o aproveitamento dos elevados investimentos realizados na promoção e desenvolvimento do good-will da marca LIMIANO; XIV. Independentemente de se considerar que o uso da marca LIMIANA retira partido indevido ou não do prestígio e/ou capacidade distintiva da marca LIMIANO, a aplicação da última parte do art.º 235.º não está dependente de qualquer intenção: a a afectação do carácter distintivo e do prestígio da marca, que opera in casu pela via da diluição da marca LIMIANO; XV. A diluição da marca LIMIANO ocorrerá necessariamente com o aparecimento de outra marca no mercado alimentar cujo nome e elemento dominante é idêntico a LIMIANO, pois gera-se a vulgarização e banalização de LIMIANO e consequentemente a marca perda a sua força distintiva e poder de atracção; XVI. Face à matéria factual dada como provada e tendo em consideração toda a documentação junta os autos e ainda a matéria factual cujo aditamento se requereu, é possível concluir que a marca LIMIANO goza do estatuto de marca de prestígio; XVII. 59. O grau de conhecimento das marcas LIMIANO é muito elevado, quer junto do público especializado, quer junto do público em geral e por isso gozam de uma excepcional notoriedade; XVIII. Essa notoriedade resulta da antiguidade da marca; dos elevados investimentos publicitários; do facto de a marca líder no mercado dos queijos em Portugal e com a maior quota de mercado e foi também atestada por estudos de mercado; XIX. Além da elevada notoriedade, constitui uma marca de referência nacional que “faz parte da família” dos portugueses, sendo a imagem de uma marca de confiança mas também de afecto (Cfr. Factos e documentos de suporte, cujo aditamento se requereu; XX. A sentença recorrida enferma do vício de erro de interpretação e aplicação das normas jurídicas constantes dos artigos 234. e 235.º do CPI e por conseguinte encontram-se preenchidos os requisitos legais previstos no art.º 260, n.º 1, do CPI que determinam a anulação do registo da marca sub judice. Nestes termos e nos demais de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença sindicada e que seja consequentemente ordenada a anulação do registo da marca nacional n.º 583094 “FOLAR LIMIANO”, (...) Cumprido o disposto na 2.ª parte do n.º 2 do art. 657.º do Código de Processo Civil, cumpre apreciar e decidir. Dado que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes (cf. arts. 635.°, n.° 4, e 639.°, n.° 1, ambos do Código de Processo Civil) – sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.°, n.° 2, por remissão do art. 663.º, n.° 2, do mesmo Código) – são as seguintes as questões a avaliar: 1. Devem ser aditados aos Factos Provados os constantes dos artigos 95, 97, 100 e 101 do requerimento inicial de recurso da Recorrente? 2. Existe afinidade entre os produtos em confronto, sendo que é muito provável que o consumidor, ao deparar-se com um salgado «FOLAR LIMIANO», estabeleça uma associação com o titular da marca notória «LIMIANO»? 3. A sentença recorrida enferma do vício de erro de interpretação e aplicação das normas jurídicas constantes dos artigos 234.º e 235.º do CPI, encontrando-se preenchidos os requisitos legais previstos no art. 260.º, n.º 1, do Código da Propriedade Industrial que determinam a anulação do registo da marca sub judice? II. FUNDAMENTAÇÃO Fundamentação de facto 1. Devem ser aditados aos Factos Provados os constantes dos artigos 95, 97, 100 e 101 do requerimento inicial de recurso da Recorrente? Têm o seguinte conteúdo os artigos de alegação a que se refere a presente questão: 95. No Doc. 34 lê-se também “é a marca de queijo flamengo preferida por metade dos portugueses e é conhecida por 99% da população” 97. No Doc. 36 consta ainda que “o queijo fatiado é o mais consumido em Portugal, sendo a escolha de 77,4% dos portugueses. Limiano, por seu turno, é a marca que mais vezes acaba no carrinho de compras (31,4%) 100. Citando as palavras do livro Superbrands Portugal de 200611: «Não se trata apenas de uma marca de queijo flamengo presente no quotidiano das famílias portuguesas», é também «a marca preferida por metade da população portuguesa, sendo distinguida pela sua tradição, textura amanteigada e sabor suave». (vide Doc. n.º 4 junto com o pedido de anulação) 101. O grau de confiança, atracção e ainda valor simbólico da marca manifesta-se em diversos factos já referidos na reclamação apresentada, a saber: - Distinção da marca LIMIANO pela organização Superbrands como uma marca de excelência nacional por mais de 6 anos consecutivos12 ; (Doc. 4 junto com o pedido de anulação e aqui se reproduz para os devidos e legais efeitos); - LIMIANO é a marca preferida de queijo da população portuguesa, de acordo com o estudo realizado em Agosto de 2012 pela empresa A.C. Nielsen Portugal - Estudos de Mercado, Unipessoal Lda. (Nielsen) denominado Study About the Favourite Cheese Brand of the Population; Vide Doc. n.º 5 junto com o pedido de anulação; - LIMIANO é uma das marcas de queijo mais consumida em Portugal – Cfr. artigo publicado no site da ANIL – Associação Nacional dos Industriais de Lacticínios - Doc. n.º 6 junto com o pedido de anulação e aqui se reproduz para os devidos e legais efeitos; - De acordo com a auditoria à marca LIMIANO realizada em 2013: «LIMIANO é a referência do mercado de queijo flamengo»; «É marca de queijo flamengo de excelência, a marca que está na mente de todas as consumidoras»; «LIMIANO é uma promessa de qualidade, transmite confiança». A marca LIMIANO estabelece uma relação emocional com os consumidores, derivada da associação que gera a Portugal, à tradição e à família. Evoca também infância a muitos portugueses pois trata-se de uma marca antiga, que desde há muitos anos acompanha gerações e gerações. (Cfr. doc. n.º 7 junto com o pedido de anulação reclamação e aqui se reproduz para os devidos e legais efeitos;) - O reconhecimento da qualidade do queijo LIMIANO demonstrado, por exemplo: - Na obtenção da melhor classificação de todos os queijos, independentemente da categoria em que se insere, 21.ª edição dos Masters da Distribuição - Na obtenção do Grande Prémio - no caso do queijo Limiano Amanteigado obteve o; (Cfr. doc. n.º 8 junto com o pedido de anulação e aqui se reproduz para os devidos e legais efeitos;) - O LIMIANO Amanteigado foi vencedor do Troféu Ouro na categoria de alimentação e bebidas e do Grande Prémio em Eficácia de Comunicação – que visa avaliar e divulgar as melhores práticas geradoras de eficácia nesta área. (Cfr. Doc. n.º 9 junto com o pedido de anulação e aqui se reproduz para os devidos e legais efeitos;) - O LIMIANO foi distinguido mais uma vez com o prémio “Sabor do Ano 2009” na categoria de queijo flamengo – Cfr. http://superbrands.sapo.pt/marcas e Vide Doc. n.º 19 que se junta. A alegação que gerou a questão que se aprecia confunde, manifestamente, facto relevante com meio instrutório e facto com conclusão de facto. Num quadro processual tecnicamente adequado, é o facto que se esteia em documentos e não são os documentos que constituem factos, a menos que estes sejam elementos da própria causa de pedir. Na clara economia do art. 362.º do Código Civil, os documentos são meios de prova, não resultado dela, sendo a sua finalidade representar pessoas, coisas ou factos (só esta última vertente nos interessando no caso em apreço). Sobretudo, não se admite que se proponham atalhos para o nobre, privativo dos Tribunais e muito especializado acto de julgar de facto. Não tem sentido que se junte um documento na esperança de o Órgão Jurisdicional o dê automática e acefalamente como relevante e provado (e provado o quê: o conteúdo?, o afirmado? a conclusão? a opinião?), não avaliando a sua validade demonstrativa e credibilidade por referência a um facto alegado, antes dando de imediato como assente o que conste de qualquer papel ou suporte digital, aceitando que automaticamente esteja feita prova positiva do descrito num qualquer documento (ainda que se possa tratar de uma invocação falsa, de fantasia, mera opinião ou hiperbólica valoração interessada ou errónea de um determinado postulado ou, até, num quadro de maciço investimento económico em publicidade e «marketing» – com gastos de 41 milhões de euros de publicidade só em 2015, conforme demonstrado – de afirmações de base remunerada). Tal alegação constitui, pois, uma proposta de materialização de uma ilegalidade. Acresce que o que era relevante era saber se é verdade o que o documento, opinativo e avaliativo, afirma. Não se o documento existe e tem um determinado conteúdo. No que tange ao último ponto de alegação, tudo se agrava. Com efeito, o que aí se contém é uma pretensa repetição do já dito (sendo que, se fossem relevantes e demonstrados, seriam os factos repetidos e não a repetição que haveria que incluir) e, sobretudo, uma conclusão de facto emprestada como atalho ao julgador, olvidando que o se leva às decisões judiciais, em sede de fundamentação fáctica, são os factos singelos e não as conclusões deles extraíveis – cf os n.ºs 3, 4 e 5 do art. 607.º do Código de Processo Civil. Era ao Tribunal que competia concluir em sede de fundamentação de Direito e subsunção, com base em factos cristalizados nos autos, existir confiança, atracção e valor simbólico da marca e respectivo grau. E, na fundamentação das respostas de facto, teria o Tribunal que ter previamente indicado quais os testemunhos ou documentos (ou outros esteios instrutórios) dos quais extraíra tal factualidade. Como se vê, tudo o pretendido na alegação que gerou a questão proposta está desfocado e surge em oposição ao Direito adjectivo constituído e espelhado na prática quotidiana dos Tribunais. O que havia a fixar no que tange à presença e relevo no mercado respectivo da ora Recorrente consta já dos n.ºs 5 a 11 (sendo que o ponto 12 padece de fragilidade idêntica à ora apreciada) A muito básica e elementar inadequação técnica da alegação de recurso dispensa mais dilatadas considerações impondo, pois, de imediato, resposta negativa à pergunta sob ponderação. Vem provado que: 1. O Recorrido deduziu, em 26/05/2017, pedido de registo da marca nacional n.º 583094 para assinalar produtos/serviços da classe 30: pastelaria salgada, o que foi concedido em 24/08/2017. 2. A Recorrente deduziu, em 24/08/2022, um pedido de invalidade total da marca referida em 1. 3. Por despacho proferido em 16/06/2023 foi decidido indeferir o pedido de anulação do registo da marca referida em 1., cfr. decisão junta com o processo administrativo e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. 4. A Recorrente é titular da marca nacional n.º 344971 LIMIANO, pedida em 21/03/2000 e registada em 10/02/2016, para assinalar produtos e serviços da classe 29: queijo. 5. A Recorrente é titular da marca da UE n.º 002061026 LIMIANO, pedida em 26/01/2001 e registada em 11/08/2003, para assinalar produtos e serviços da classe 29: produtos lácteos. 6. Em 2015, os investimentos publicitários rondaram os 757 milhões de euros, sendo que os referentes à marca LIMIANO foram de 41 milhões de euros, cfr. documentos 31 e 32 juntos com o recurso e cujo conteúdo se dá por integralmente para todos os efeitos legais. 7. Em 2016, os investimentos em publicidade totalizaram os € 7 365 178,47, cfr. Doc. 32. 8. Em 2017, os investimentos rondaram os € 13 464 518,60, cfr. Doc. 32. 9. De acordo com a análise realizada pela empresa Multimarket Services Portugal, Lda., com base nos dados recolhidos pelas empresas Mediamonitor e GfK “Limiano é um dos principais investidores no mercado de queijo e em 2017 foi a marca de queijo com maior investimento nos media”, cfr. Doc. 32. 10. Em média cada campanha LIMIANO tem uma cobertura acima de 80% do alvo, isto é, em média 85% do alvo é impactado com a campanha pelo menos uma vez, cfr. Doc. 32. 11. O estudo de mercado realizado pela empresa Millward Brown confirma que a marca LIMIANO foi reconhecida como marca líder em termos de reconhecimento não assistido ou espontâneo (unaided awareness), cfr. doc. 3 junto com o pedido de anulação e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. 12. Do documento 36 junto com o recurso e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, “o queijo fatiado é o mais consumido em Portugal, sendo a escolha de 77,4% dos portugueses. Limiano, por seu turno, é a marca que mais vezes acaba no carrinho de compras (31,4%)”. Não se provou que: 1. No ano de 2013 foram despendidos €4 793 134,00 em publicidade aos produtos LIMIANO, sendo que €4 778 274,00 concernem a publicidade por televisão. 2. De acordo com a informação fornecida pela empresa de estudos de mercado AC Nielsen: em Portugal são consumidos 52 milhões de toneladas de queijo e 40% é queijo flamenco porque este tipo de queijo faz parte dos hábitos de consumo dos consumidores portugueses. 3. A marca LIMIANO tem a maior quota de mercado de queijo e é na verdade líder no mercado de queijo. Fundamentação de Direito 2. Existe afinidade entre os produtos em confronto, sendo que é muito provável que o consumidor, ao deparar-se com um salgado «FOLAR LIMIANO», estabeleça uma associação com o titular da marca notória «LIMIANO»? Demonstrou-se que a marca posterior «Folar Limiano» se destina a assinalar pastelaria salgada e que a marca da Recorrente, pré-existente, «Limiano», foi registada a nível nacional para assinalar queijo e, no âmbito da União Europeia, para apontar produtos lácteos. Pretende agora a Recorrente alargar a sua esfera de capacidade de exclusão a todos os produtos alimentares sustentando serem queijos e folares parte do mesmo mercado. Resulta da sua tese que qualquer agente económico que pretenda usar a denominação «Limiano» (parte do vocabulário luso, etimologicamente associada ao nome do Rio Lima e à ancestral Vila de Ponte de Lima) para assinalar produtos alimentares não o poderia fazer por a palavra referida ter sido apropriada por uma empresa (aparentemente integrada em grupo internacional, face à sua denominação), que considera que o apontado vocábulo antes representa uma denominação de fantasia e nada tem a ver com a toponímia nacional. A este respeito, cumpre começar por referir que não se justifica o tratamento, nesta sede, de noções de enquadramento lançadas pelo Tribunal «a quo» na sentença criticada e que não estão objecto da impugnação judicial que se aprecia. Aí, o apontado Órgão Jurisdicional fez tratamento jurídico dos conceitos de marca, sua função e objectivos e do regime emergente dos art.s 262.º, 259.º, 260.º, 234.º do Código da Propriedade Industrial em termos que não têm que ser aqui sindicados por não passar por eles o filão decisório, sendo que qualquer análise redundante antes se apresentaria como ociosa, logo inútil, logo proscrita pelo direito adjectivo constituído – cf. o disposto no art. 130.º do Código de Processo Civil e o princípio da economia processual aí enunciado. Quanto ao fundo, importa referir que quer a «Classificação de Nice» quer a noção de afinidade aqui convocada e por ela também aferida só ganham sentido por referência à protecção dos actores dos inúmeros e diversos mercados relevantes para um determinado produto ou conjunto de produtos com vista a garantir o correcto funcionamento dos distintos espaços de acção económica, proteger a economia nacional em geral, obviar não só à destruição da possibilidade de entrada num focado espaço económico mas também ao uso parasitário de posições nele adquiridas, prosseguindo os objectivos de criação de equidade e livre acesso («fairness» and «contestability», no jargão europeu comum do direito da concorrência ). O erro, a confusão ou a associação referidas na al. b) do n.º 1 do art. 232.º do Código da Propriedade Industrial podem resultar não apenas da identidade de produtos mas também do facto de os mesmos serem relacionados, semelhantes, análogos, aparentados, em suma, afins. Mas não mais. Não tendo os produtos nem identidade nem afinidade, qualquer desvio avaliativo só poderá ser atribuído ao próprio consumidor, não se materializando desvalor extrínseco nem, consequentemente, ilicitude. É, neste contexto, ao nível da aferição fina das características do mercado específico que se devem realizar as operações de cotejo e busca da afinidade invocada. Não nos chegam factos apurados relevantes para esta análise. Nada nos indicia que sejam comuns os canais de distribuição, espaços de exposição e compra, mecanismos de fixação de preços e consumidores entre queijo e folar. Não possuímos quaisquer elementos – nem tal inculca a experiência comum – que apontem para o parentesco dos produtos, sobretudo aos olhos de quem importa: o consumidor. Nada nos diz que quem compra queijo também compra folares, ou, nalgum circuito, da produção à distribuição e compra, queijos e folares sejam considerados análogos. Se a Recorrente queria provar estes elementos, não o fez. «Sibi imputet». Não vem demonstrada a pretensa afinidade, sendo a ausência de identidade por demais evidente. O carácter notório da marca da Recorrente, reconhecido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial e pelo Tribunal de Primeira Instância e aqui não posto em crise, não introduz consequências no quadro que se aprecia, face ao disposto na al. b) do n.º 1 do art. 234.º do Código da Propriedade Industrial, à míngua da existência da procurada afinidade. Se isto é insofismavelmente assim, menos sentido e adequação tem defender, como se fez na alegação que gerou a pergunta que se analisa, que o “consumidor, ao deparar-se com um salgado «FOLAR LIMIANO», estabeleça uma associação com o titular da marca notória «LIMIANO»”, ou seja, com a Sociedade «FROMAGERIES BEL PORTUGAL, S.A.», que nenhum facto provado permite concluir tratar-se de empresa conhecida de forma relevante em Portugal. É, pelas razões alinhadas, mandatório responder negativamente à questão apreciada. 3. A sentença recorrida enferma do vício de erro de interpretação e aplicação das normas jurídicas constantes dos artigos 234.º e 235.º do CPI, encontrando-se preenchidos os requisitos legais previstos no art. 260.º, n.º 1, do Código da Propriedade Industrial que determinam a anulação do registo da marca sub judice? No que tange ao art. 234.º, resulta do já acima dito que, não estando em cogitação a identidade, cuja falta é manifesta, não se patenteia, na situação apreciada, a afinidade de produtos referenciada na al. b) do art. 234.º do Código da Propriedade Industrial. Ao não reconhecer a existência dessa afinidade pressuponente da recusa de registo, bem andou o Tribunal «a quo», não merecendo qualquer censura. Não sendo de Direito as razões que levaram à rejeição da argumentação, id est, relativas à interpretação do referido artigo, o que falta e foi devidamente reconhecido, é a materialização do pressuposto afinidade que constituía conclusão a extrair dos factos demonstrados. Não existe, consequentemente, erro de interpretação do art. 234.º do encadeado normativo sob referência, não havendo, também, qualquer erro de interpretação na muito parca fundamentação constante da sentença posta em crise. Quanto às marcas que gozem de prestígio em Portugal ou na União Europeia, a sua tutela é muito abrangente (nos termos regulados no art. 235.º do Código da Propriedade Industrial) ultrapassando os limites da afinidade e dispensando-a. Com efeito, essa protecção incide também sobre signos relativos a produtos ou serviços desprovidos de identidade ou afinidade, desde que «o uso da marca posterior procure tirar partido indevido do caráter distintivo ou do prestígio da marca, ou possa prejudicá-los». Mister é que estejamos perante uma marca dotada de prestígio num daqueles espaços geográficos. Com referimos e sumariámos no nosso acórdão proferido nesta Relação no processo n.º 472/19.0YHLSB.L2-PICRS de 20.05.2024, «Uma marca de prestígio é aquela que tem uma reputação elevada, individualidade e originalidade significativas e surja associada a produtos ou serviços de alta qualidade, sendo reconhecida pelos consumidores como símbolo de distinção e excelência» e «Os objectivos subjacentes à sua tutela muito específica e muito focada são os de impedir a erosão ou diluição de marcas que funcionam como referentes no mercado (relevando mesmo em distintos mercados) salvaguardando o seu valor comercial, designadamente na vertente essencial desse valor que é a capacidade de atracção do público». Como aí, remetemos neste ponto, quanto a esta matéria, para proveitosa análise da obra de Pedro SOUSA E SILVA, Direito Industrial, 2019, Almedina, Coimbra (e-book), sobretudo para o afirmado na pág. 245 desse sólido texto. No presente âmbito, tem muito sentido e relevo a menção feita neste processo na decisão do Instituto Nacional da Propriedade Industrial de 16.06.2023 (n.º 028/D.E./2003), pág. 31 – louvando-se no trabalho de «Pedro Domingues, Luís. (2010). Marcas Notórias, Marcas de Prestígio e Acordo ADPIC/TRIPS. Direito Industrial (Vol. VII). Coimbra, Almedina, p. 186» – no sentido de que o «que a marca de prestígio tem a mais do que a notória, é que deve ser conhecida também pelas pessoas que estão fora do leque das que consomem ou usam os produtos que a mesma assinala em resultado da sua força de atração». Assim é. O prestígio é um valor absoluto que sobre tudo paira e que está para além do mero funcionamento do mercado concreto e das relações de consumo. É abstracto e não circunscrito, genérico e não relacional. É um estado, uma noção global, uma visão de conjunto na perspectiva da sociedade, aqui abrangendo os desinteressados do consumo do concreto produto ou serviço referenciados pela marca. Ora, é justamente esta consagração geral e abrangente que não se demonstrou que a marca «Limiano», destinada a assinalar queijo e produtos lácteos, possua. Com efeito, se sabemos apenas o que se provou sob os n.ºs 6 a 10 e 12 no que se reporta às relações com o consumidor, nada de sólido e seguro extraímos dos factos assentes quanto à perspectiva que a sociedade lusa (ou a europeia) terão sobre a marca da Recorrente. A este nível, o estudo referido no ponto 11 é apenas isso mesmo: um estudo, relativamente ao qual não se patentearam a metodologia, os critérios, a motivação, os objectivos, o regime de custeio, o nível de isenção subjacente e o universo observado. Aliás, o juízo que tinha que ser feito era o do Tribunal e não de uma empresa não conhecida nos autos, de nome «Millward Brown», que não foi incumbida pelo Órgão Jurisdicional de colher prova por arbitramento (necessariamente sujeita aos controlos e cautelas inerentes ao regime adjectivo desse meio instrutório e ao juízo, que sobre tudo paira, do Tribunal). Acresce que sempre seria insuficiente, para o efeito demonstrativo desejado, um único estudo, uma singela perspectiva unilateral e circunscrita. Faltaria, ainda, avaliar o que sabe o cidadão comum da marca «Limiano». Se a conhecer apesar de não ser consumidor de queijo, terá um conhecimento real e actualizado? Será que tem dela uma visão mítica, associando-a a um produto tradicional e projecto económico português, de referente geo-localizado na zona do Lima ou na secular Vila de Ponte de Lima (face ao pretérito envolvimento de um seu autarca no notoriamente conhecido «caso do Queijo Limiano»)? E será que o conhecimento generalizado, a existir, resultaria do apontado episódio político ou do carácter superlativo do queijo? E pensará, ilusoriamente, esse cidadão conhecedor da marca apesar de não consumidor do respectivo produto – se existir - estar perante um projecto e uma marca exclusivamente lusos e de afirmação da identidade nacional e regional, ou será que sabe que está face a um produto de aparente grupo internacional com nome de língua francesa («fromageries) que nem associa a marca a qualquer lugar de Portugal, não lhe atribui força centrípeta na construção de identidade regional e mais-valia local e está, até, convencido de que possui uma marca de abstracção e fantasia, desgarrada deste País e da sua história e idiosincrasias locais? E, concluindo neste sentido, poderia perguntar-se se, desconhecendo o apontado cidadão a realidade da marca e vendo-a de forma mítica, seria legítimo ainda falar de prestígio ou, tão só, de noção emergente de ilusão ou paralaxe. A resposta a esta questão afigura-se dever ser negativa por se estar perante uma noção inquinada inquinada logo pelo seu objecto. Emerge do dito que não temos a menor prova de estarmos diante de uma marca de prestígio, logo não sendo a situação apreciada nos autos subsumível ao disposto no art. 235.º do código ao qual se vem fazendo referência. Nada no processo inculca a convicção da existência de infracção do estabelecido nos arts. 232.º a 235.º do CPI. Não se preenchem as previsões do art. 260.º do mesmo Código. É mandatório responder negativamente à questão proposta o que, neste momento, se concretiza. III. DECISÃO Pelo exposto, julgamos improcedente o recurso apreciado e, em consequência, negando-lhe provimento, confirmamos, a sentença impugnada. Custas pela Apelante. * Lisboa, 16.10.2024 Carlos M. G. de Melo Marinho Bernardino J. Videira Tavares Armando M. da Luz Cordeiro |